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Embriões sub judice

domingo, 30 de maio de 2021

Atualizado em 28 de maio de 2021 10:12

A evolução da embriologia e da engenharia genética pode ser considerada um marco referencial na medicina reprodutiva. Muitas metas e anseios científicos que eram contemplados vagamente e até mesmo como um aparato ficcional, com o desenvolvimento de tecnologias de ponta, passaram a ocupar um espaço de concretude para a efetivação do processo de procriação. É o demonstrativo inequívoco de que a ciência é coadjuvante do homem, proporcionando a ele inúmeras alternativas para solucionar seus problemas. Mas faz-se necessária a construção de uma ponte para se buscar uma perfeita adequação entre o universo científico e a realidade social, com um olhar arguto dirigido especialmente para os princípios éticos, acompanhados da necessária acomodação legal.

Fato interessante, não só sob o prisma jurídico, mas igualmente bioético, aconteceu recentemente.1 Durante seu casamento, um homem adotou dois filhos. Já septuagenário, em novo casamento, submeteu-se a um tratamento em clínica de reprodução assistida que possibilitou a fecundação de dois embriões. No ato da criopreservação o marido autorizou a utilização dos embriões no primeiro ciclo fértil subsequente da esposa. Ocorre que dois anos após o marido faleceu e os embriões não foram implantados, mas, mesmo assim, a viúva procurou a clínica para fazer o procedimento, que foi negado porque faltou a autorização marital expressa para a realização do procedimento post mortem. Diante da recusa, foi invocada pela esposa a tutela jurisdicional, que foi negada em primeiro grau. Em sede de recurso, o Tribunal de Justiça de São Paulo permitiu que ela realizasse o procedimento médico. O processo, agora, bateu às portas do Superior Tribunal de Justiça. Se a decisão for pela implantação e se vingarem os embriões, várias consequências patrimoniais e sucessórias irão aflorar em razão da expressiva herança envolvida.

Apesar de a Constituição do Brasil2 estabelecer que o planejamento familiar é livre decisão do casal e que o Estado deverá proporcionar recursos científicos para o exercício desse direito para aqueles que não conseguem atingir a procriação, não há ainda legislação ordinária para estabelecer todos os pressupostos e requisitos para a reprodução assistida. Mesmo assim, o Código Civil brasileiro, em vigor a partir de 2002, em iniciativa exemplar, ensaiou os primeiros passos na regulamentação das inseminações e fecundações homóloga e heteróloga (art. 1597).

Supletivamente, no entanto, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução 2168/2017, estabelecendo as normas técnicas e éticas do procedimento. No item V, nº 3, é taxativa ao prescrever: "No momento da criopreservação os pacientes devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos embriões criopreservados, quer em caso de divórcio, doenças graves ou falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-lo".

No caso em discussão os embriões, embora não se encontrem alojados em sua clausura natural silenciosa e sim em cilindro de nitrogênio, aguardam uma decisão judicial para saber se irão se desenvolver como spes vitae.

No caso presente, a Hermenêutica pode trazer relevante auxílio interpretativo. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado, cum grano salis e a necessária dose de bom senso. É um bólido que deve ser teleguiado por técnicos que tenham conhecimento de sua potencialidade: se não for feito o ajustamento do alvo, o impacto em local não apropriado poderá ser desastroso.

Levando-se em consideração a breve narrativa feita, duas soluções se apresentam. A primeira delas é relacionada diretamente com a interpretação literal ou gramatical, aquela em que se recomenda buscar nas palavras do documento a vontade que norteou os participantes do contrato. Trata-se mais de uma interpretação rígida e que fica adstrita aos termos do vernáculo, com o seu significado limitado, sem qualquer expansão. Por tal norte é de se concluir que a não utilização dos embriões no prazo convencionado, por si só, impede qualquer outra iniciativa posterior.

A segunda é relacionada com a interpretação teleológica que permite ampliar o texto, dando-lhe a elasticidade suficiente para comportar um fato dentro de uma realidade visível, procurando, desta forma, extrair a finalidade que norteou a própria obrigação, tendo em vista os fins sociais e humanísticos. É, por assim dizer, contornar o biombo que esconde a verdade perquirida e ingressar no cerne do contrato, locus que desvendará a riqueza nele contida, possibilitando alcançar outras situações que não estavam nele inseridas explicitamente. E a elasticidade hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance.

Muita atrativa e condizente a última proposta e parece que reúne as melhores condições para ofertar uma decisão com teor mais apropriado para o deslinde do caso. É indiscutível que o marido se submeteu ao procedimento médico com a finalidade de criar os embriões para a procriação biológica que almejava. O fato de não ter sido cumprido o prazo estabelecido no pacto firmado pelo casal para a transferência dos embriões não elide a pretensão que motivou o procedimento em placas de Petri. Tanto é que o marido poderia acusar o descumprimento e propor a doação dos embriões para fins de pesquisa e terapia, conforme permite a Lei de Biossegurança, ou até mesmo o descarte embrionário, como proposto na resolução já citada do Conselho Federal de Medicina. Não o fez. Provocou, com sua inércia, a prorrogação tácita do acordo e, consequentemente, manteve viva a chama da implantação dos embriões.

Resta aguardar a decisão a ser proferida pelo Tribunal.

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1 STJ julga implantação de embriões após morte de um do cônjuges.

2 Artigo 226 § 7º da Constituição da República Federativa do Brasil.