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A delimitação do estado puerperal no infanticídio

domingo, 20 de junho de 2021

Atualizado às 09:16

O delito próprio contido na norma do artigo 123 do Código Penal, tipificado como infanticídio, tem ocorrência rara na seara do Direito, mesmo para aqueles que atuam na específica área criminal. Isto porque coloca a mãe como autora do homicídio do próprio filho recém-nascido e especifica o lapso temporal estabelecido durante o parto ou logo após.

Em vista disso, o infanticídio pode ser rotulado como delito próprio e autônomo, desvinculado da espécie de homicídio privilegiado (art. 121, §1), para dar à mãe vulnerável pela influência do estado puerperal o direito a uma pena mais branda e humanizada.

Cabe dizer, em palavras mais lúcidas: ao invés de colocar o estado puerperal da mãe como causa de diminuição de pena, preferiu o legislador criar um tipo penal próprio para o caso, transformando o delito de homicídio praticado pela mãe, nas condições do caput do artigo 123 do Código Penal, contra o filho, em infanticídio. Assim, esse delito exterioriza a intenção do legislador em reconhecer o estado puerperal como condição excepcionalíssima, porém, estranhamente, apenas acolhe-o nos momentos durante ou logo após o parto.

E é neste ponto que reside a problemática maior. É certo que no Direito a delimitação temporal visa antecipar eventual situação fática para melhor caracterização do tipo penal, aliando o momento da execução ao correto enquadramento da norma jurídica. No entanto, tal prática, ao cumprir o que se propõe, distancia-se do escopo da Justiça, colocando o infanticídio em um verdadeiro paradoxum dilemma.

Dentro do conceito desenhado pelo Código Penal vigente, admite-se que a prática do infanticídio deve ser oriunda de uma perturbação psíquica ocasionada pelo estado puerperal da mãe, de modo que diminua sua capacidade de entendimento ou de autoinibição. Do contrário, o tipo penal seria de homicídio.

Desse modo, é seguro afirmar que a perturbação psíquica a que a mãe está sujeita, enquanto perdurar o estado puerperal, é razão suficiente para ver caracterizado o infanticídio, e não o homicídio. Os traços psicológicos do perfil da mãe devem transparecer a indubitável redução do seu discernimento ao provocar a morte do próprio filho. Salvo exceção no caso de não ficar demonstrada a evolução para doença mental, incapacitando-a, por completo, de entender o caráter ilícito de seu ato. Nesse caso, a inimputabilidade da acusada é medida que se impõe, sem prejuízo de vasto debate doutrinário acerca do tema.

Assim, da medicina pode-se extrair que a situação pós-parto da mãe é de extrema vulnerabilidade com potencial de levar à ansiedade e à depressão profundas. São casos que, certamente, afetam o discernimento e a volição, contribuindo para um estado mental sujeito a severas perturbações psíquicas. A questão nodal não é nem processar a mãe em busca de um édito condenatório e sentir que a justiça foi feita. O problema penal ocupa a menor fatia desse imbróglio social, e deve sim levar em consideração o despreparo para a maternidade, a preocupação em ocultar a desonra própria e até mesmo o abandono por parte do companheiro e eventual consequência financeira, como a demissão do emprego.

Tal cenário, aliado ao fato de que o estado puerperal da mãe pode se estender por até 40 dias após o parto1,  levanta a questão de se é justa e correta a imputabilidade daquela que comete o infanticídio semanas após ter dado à luz seu filho. A ela não se amolda o tipo penal do infanticídio, mas também pode-se dizer que sua condição psíquica não é lúcida suficiente para condená-la pelo homicídio, por exemplo. É uma questão que envolve diversas frentes e levanta o debate sobre a redação do próprio caput do artigo 123 do Código Penal.

Ademais, não é nada além de sintomas da historicidade humana, uma vez que "A maneira de entender o infanticídio e de puni-lo tem variado profundamente através dos tempos"2. É verdade, pois, por exemplo, que em 1439, fora decretado pelo Concílio de Florença que a alma das crianças mortas sem batismo iria direto para o inferno, fazendo considerar o infanticídio um crime hediondo abominável, mais grave que o homicídio, punindo as mães com penas mais cruéis do que as dadas aos homicidas3.

Como se vê, apesar de ser um tema pouco frequentado, exige modulação frequente por parte dos pesquisadores, legisladores e operadores do direito de um modo geral, como se vê na PLS 236/12 em tramitação atualmente no Senado Federal, que cuida da reforma do Código Penal e exclui o estado puerperal da redação para a caracterização do infanticídio, tipificando-o à parturiente somente, desde que ocorra o evento sob a "influência perturbadora" do parto. Para o bem ou para o mal, vez ou outra o tema vem à baila e merece atenção.

É o debate que se propõe.

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1 Cf. reportagem.

2 BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa, p.147.

3 Cf.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado;

*Luca Zuccari Boskovitz é bacharel em Direito, mestrando no programa de Pós-Graduação em Psicologia e Saúde da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto - FAMERP.