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A atualidade dos brocardos jurídicos

domingo, 4 de julho de 2021

Atualizado em 2 de julho de 2021 09:29

Ao leitor exigente e curioso, movido pelo interesse de pesquisar a etimologia da palavra brocardo, devo advertir que ingressará em um campo árduo e sua tentativa será fadada ao insucesso. Nenhuma raiz grega ou latina irá lhe prestar auxílio. Isto porque a origem remonta a um fato histórico ocorrido no ano de 1550. Buscardo era Bispo de Worms e, caprichosamente, organizou uma coletânea denominada Decretum Burchardi. Sua publicação teve grande aceitação nos meios culturais por oferecer preceitos gerais e aforismos pinçados da jurisprudência, além de condensar pensamentos de escritores de referência. Tamanha foi sua penetração que a obra passou a ser chamada popularmente de burcardos e, posteriormente, com a acomodação linguística, brocardos.

Os brocardos jurídicos latinos, também chamados de axiomas, guardadas as proporções, correspondem aos provérbios ou ditados populares que passam por várias gerações e sempre com o mesmo significado original, demonstrando, de forma inequívoca, o acerto da sabedoria dos antigos. Os brocardos, por sua vez, apresentam uma conotação mais científica e acadêmica porque deixam transparecer uma verdade baseada na cultura dos operadores do Direito e conduzida pelos dogmas inafastáveis da ciência jurídica.

Maximiliano, com a acuidade que lhe é peculiar, sentenciou: "Assim como os provérbios resumem a sabedoria popular, são os brocardos um elemento importante da tradição jurídica. Não têm força obrigatória; porém guiam, orientam o hermeneuta. Desempenham relativamente ao Direito o papel de bússola em relação ao polo: apenas indicam o rumo em que pode ser encontrado."1

O Direito brasileiro tem sua origem atrelada ao Direito Romano e, consequentemente, herdou seu vasto repertório de adágios condensados em frases curtas, linguagem precisa, pensamento lúcido e palavras que irradiam uma linguagem de perene revelação. Machado de Assis, na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, fez interessante observação com relação às parêmias latinas: "Não digo que a universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim: embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da conversação."

A incorporação dos brocados no mundo jurídico provocou um necessário diálogo do profissional com a Hermenêutica, disciplina responsável pelo estudo e sistematização do sentido e do alcance das expressões jurídicas. Não se trata de um adorno ou de repetição de velhas fórmulas e nem se apresenta como um mero biombo decorativo ou até mesmo um jogo de palavras que façam considerações a respeito das elegias de Ovídio, das odes de Horácio ou da oratória de Cícero em sua obra De Legibus, e sim de buscar as preciosidades culturais que foram legadas pela insuperável experiência dos romanos.

Não se pode afirmar também que são memórias de um passado que não guardam qualquer relevância com a civilização do presente. O ponto focal, desde o nascedouro do Direito, é o homem em sua contextualização com o grupo social. Ora, por mais dinâmica que seja a evolução da humanidade, o homem guarda sempre a história do passado e busca, no labirinto da memória, reencontrar o conhecimento relevante que se traduziu em palavras condensadas e reveladoras e que já foram incorporadas definitivamente à linguagem universal do Direito.

É interessante observar que um brocardo inserido em uma peça processual ou até mesmo em um texto doutrinário, por si só, na imensa dimensão de seu conteúdo, carrega um inestimável valor didático e processual e consegue atingir seus objetivos mais rapidamente do que inúmeros argumentos jurídicos. Basta ver a expressão Nemo tenetur se detegere, compreendendo o direito de não produzir provas contra si mesmo, erigido à categoria de dogma constitucional em nossa legislação. Alastrou-se pelo mundo e o direito americano a encampou na expressão privilege against self incrimination e o francês na cláusula protetiva do droit au silence.

E é essa garantia de não autoincriminação que vem sendo nos dias de hoje suscitada perante o Supremo Tribunal Federal pelas pessoas convocadas para depor à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que tramita no Senado Federal, com a finalidade de apurar as ações e omissões do governo Federal no enfrentamento da Covid-19.

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1 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 197.