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A recusa vacinal

domingo, 18 de julho de 2021

Atualizado em 16 de julho de 2021 14:12

A autonomia da vontade da pessoa, com relevo na área da saúde, é uma conquista ainda recente, mas já incorporada como dogma na Constituição Federal e viga estrutural do atual Código de Ética Médica (Resolução CFM 2217/18). Atribui ao paciente o direito de manifestar sua aquiescência a respeito de determinado procedimento médico, quer seja cirúrgico quer terapêutico, após ter sido corretamente esclarecido a respeito. Daí que, após a exposição de uma situação clínica, de forma bem clara e precisa, com a indicação dos benefícios que poderão advir da prática da ars curandi, assim como de eventuais insucessos, em razão da liberalidade existente no Pacient Self-Determination Act (PSDA), o paciente poderá assinar o Termo de Consentimento Esclarecido. A autorização, no entanto, será dispensada em caso de risco de iminente morte, quando clama mais alto o direito à tutela da vida.

A autonomia do paciente, apesar de transitar por vários procedimentos médicos, revela-se relevante no quadro atual do país, principalmente com o aumento da imunização. Percebe-se agora mais claramente a existência de três grupos vacinais: o primeiro, relacionado com aqueles que aguardam ansiosamente pela sua chamada de acordo com o cronograma estabelecido pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI); o segundo, formado por aqueles que aceitam somente as vacinas produzidas por algumas indústrias farmacêuticas; o terceiro grupo, assim definido até mesmo antes da decretação da pandemia, pelos refratários à vacinação de doenças infectocontagiosas e imunopreveníveis, que totalizam cerca de 20 vacinas para todas as faixas etárias, disponíveis gratuitamente nas Unidades Básicas de Saúde.

Os dois últimos grupos, pelas suas escolhas, justificam o presente artigo.

Constata-se, nitidamente, conforme determinam o artigo 227 da Constituição Federal e a norma disposta no artigo 14 da lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), no âmbito do poder familiar, que há a obrigatoriedade da vacinação de crianças e adolescentes, nos casos apontados pelas autoridades sanitárias. Tal exigência, no entanto, não alcança os adultos.   

Quando se determina a obrigatoriedade vacinal compreende-se a limitação ao direito individual da autonomia da pessoa e há necessidade da existência de uma lei que represente os anseios de uma sociedade democrática e pluralística no sentido de restringir um direito individual em favor da proteção sanitária do direito à saúde de toda comunidade, inclusive daquele que se recusa à imunização.

A recusa, portanto, vista sob o prisma da autonomia da vontade da pessoa, guarda consistência legal.

Assim é que, no instante em que ocorre a recusa, quer seja em razão de escolha de uma vacina de determinado laboratório, quer seja pela indiferença vacinal, a pessoa demonstra, de forma inequívoca, sua autonomia de vontade expressa pelo termo de recusa ou simplesmente, por opção ou convicção, rejeita a inoculação. Alguns gestores públicos estão exigindo a assinatura do termo de recusa para justificar a adoção de algumas medidas administrativas, como, por exemplo, permitir a imunização somente após a vacinação do último adulto com 18 anos de idade.

Ocorre que o Brasil sancionou a lei 13.979/20, norma excepcional caracterizada pela decretação da pandemia e que prevê, em seu texto, medidas de enfrentamento da emergência em saúde pública com a finalidade de conter a contaminação ou propagação do vírus. Dentre as medidas previstas no artigo 3º da referida lei, destacam-se as de realização compulsória, compreendendo: exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos. É certo que se trata de uma lei temporária com vigência determinada pela duração da pandemia (cessante ratione legis, cessat ipsa lex), mas, por ser a vigente, tem legitimidade para cuidar das situações descritas em seu corpo (tempus regit actum).

Ora, vacinação é uma questão afeta diretamente à saúde pública da comunidade e a lei excepcional referida traz a sinalização de políticas públicas visando à erradicação das doenças infectocontagiosas, seguindo rigorosamente a determinação prevista no artigo 196 da Constituição Federal, que estabelece o dever de proteção e prevenção do gestor público.

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, analisando as Adis 6.586, 6.587 e ARE 1.267.897, considerou válida a vacinação disposta no artigo 3º da lei 13.979/20. A Corte assim decidiu: "A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, por exigir sempre o consentimento do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e (i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, (ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, (iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas, (iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade e (v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente."

Por outra banca, o Código Penal em seu artigo 268 explicita: Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, com aplicação da pena de detenção de um mês a um ano e multa, infração de pequeno potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal.

Percebe-se, desta forma, que a recusa, por si só, não é motivo suficiente para justificar a não imunização. O ordenamento legal fala mais alto e, somente ele, estribado na justiça geral em favor da necessidade humana, faz evidenciar não só a defesa da saúde da comunidade, como também os interesses econômicos, sociais e outros necessários para o compartilhamento harmônico das atividades humanas.