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Chame o síndico

domingo, 24 de outubro de 2021

Atualizado em 22 de outubro de 2021 10:15

É regra que qualquer pessoa do povo, assim expresso no artigo 5º, § 3º do Código de Processo Penal - que abre as comportas da mais ampla legitimidade processual - que tiver conhecimento da ocorrência de um crime que seja de natureza pública, poderá, verbalmente, ou por escrito, comunicá-lo à autoridade policial para que dê início à investigação e, posteriormente, se for o caso, à persecução penal cabível para a elucidação do fato, com ênfase em sua autoria e materialidade.

O legislador processual, com tal regramento, visa possibilitar ao particular participar como longa manus do Estado que, na impossibilidade de comparecer a todos os locais preventivamente, delega tal função ao particular, que a exercerá como interveniente substitutivo do Estado.

Tanto é que o Código de Processo Penal é taxativo no artigo 301: "Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito." De um lado, o legislador conferiu uma faculdade ao particular quando empregou o verbo poder na sua forma de futuro do presente, "poderá", designando uma mera faculdade, ao passo que, com relação às autoridades policiais e aos seus agentes, determinou a obrigatoriedade flagrancial.

Na realidade o compartilhamento de informações entre Estado e particular é um canal que possibilita a rápida atuação dos responsáveis pela segurança pública. Assim o particular exerce temporariamente, e em ocasiões específicas, parcela do poder estatal, pelo menos quando se propõe a fazer  a delação a respeito de uma infração penal. E, se não se sentir confortável em declarar seus dados, poderá lançar mão da modalidade anônima, que será rigorosamente preservada.

Os tentáculos protetivos da Lei Maria da Penha, no sentido de penetrar em todos os locais de convivência, abrangendo também os condomínios, fez com que o Governo do Estado de São Paulo editasse a lei 17.406/2021. Referida norma obriga, no âmbito estadual, os síndicos ou administradores de condomínios residenciais e comerciais a encaminharem comunicação à Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher e, na sua falta, a órgãos de segurança pública, quando ocorrerem episódios de violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças, adolescentes e idosos.

Nem sempre a função de síndico é desempenhada por um profissional com formação qualificada na área. Na maioria dos casos, como prevê o Código Civil, é um morador, que a título de colaboração, sem qualquer remuneração, a não ser em alguns casos a isenção da taxa condominial, lança seu nome na assembleia para concorrer ao cargo. Se obtiver êxito na votação, passa a ser o representante do condomínio por determinado período e, como tal, responsável pelo cumprimento do regimento interno, convenção condominial e determinações das assembleias, além de outras obrigações inerentes à função.

E agora, cumulativamente, recebe o ônus de exercer uma modalidade anômala de fiscalização com relação aos episódios ocorridos no interior das moradias e que tenham relação com violência doméstica, comunicando o fato à autoridade policial. Apesar de que qualquer morador possa fazer a comunicação, conforme permissivo do estatuto processual penal, a inovação é voltada para a pessoa do síndico ou do administrador que, em razão da função, é obrigado a comunicar a ocorrência. Assim, o morador poderá comunicar o fato ao síndico que se vê obrigado, mesmo sem qualquer formação na área jurídica, a fazer o crivo de viabilidade ou não da notitia criminis e repassá-la adiante para as autoridades competentes.

Além do que, ainda de acordo com a nova lei, se o episódio de violência estiver em curso, em verdadeira situação flagrancial, o síndico deverá comunicar imediatamente à autoridade policial por ligação telefônica ou aplicativo móvel. Se já consumada, no período de 24 horas a partir do momento em que o síndico tomou conhecimento do fato, irá redigir documento endereçado à autoridade contendo informações que possam contribuir para a identificação da possível vítima e do possível agressor.

A lei, apesar de revestida dos melhores propósitos, traz inconvenientes que dificultam e em muito a sua execução. É bem provável que, para cumprir rigorosamente a determinação legal, diante de um quadro provável de violência doméstica, o síndico ou o administrador, deva ter contato pessoal com as partes envolvidas, o que é, na prática, totalmente desaconselhável, pois além de ser pessoa não grata na residência, é desprovido de qualquer preparo para conter os ânimos ainda belicosos e pode até ser que os ataques se voltem contra ele. Se o fato já estiver findado, mesmo assim, para a feitura da comunicação, terá que se ver com os envolvidos para elaborar seu breve relatório. Sem falar ainda que, em caso de processo judicial, com certeza o síndico será arrolado como testemunha. É um desestímulo insuperável para quem tiver a pretensão de um dia colaborar com seu condomínio.

É certo que a lei paulista foi publicada no Diário Oficial no dia 16/9/2021 e entrará em vigor 60 dias após a publicação, assim como ainda não foi elaborada a regulamentação pelo Poder Executivo visando estabelecer os aspectos necessários à sua efetiva aplicação.

Neste período conhecido como vacatio legis, que compreende a data da publicação de uma lei e o início de sua vigência, seria até de bom alvitre repensar a modalidade de comunicação obrigatória por parte do síndico ou do administrador e diluir a responsabilidade entre todos os condôminos para que sejam incentivados a fazer a comunicação direta à autoridade policial de episódio de violência doméstica ou familiar no interior do condomínio, preservando a identidade do informante. Para tanto, seriam afixados cartazes explicativos nas áreas comuns do complexo habitacional, como já prevê o serviço do Disque-Denúncia, com garantia absoluta do anonimato.