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Lei Mariana Ferrer

domingo, 19 de dezembro de 2021

Atualizado em 17 de dezembro de 2021 10:19

Desde a compilação das leis feita pelo imperador romano Justiano (Corpus Juris Civilis), percebe-se com relevo a presença do brocardo ex facto oritur ius, no sentido de que o fato faz nascer uma lei garantidora de um direito a determinada pessoa. Tanto é verdade que a vida em sociedade vai exercendo um crivo de viabilidade de condutas expurgando as não recomendadas, que serão catalogadas posteriormente como impróprias.

No Brasil é comum um fato com repercussão nacional envolvendo violência - em suas mais variadas formas contra mulheres - ser a fonte geradora de uma lei que tomará emprestado o nome da personagem para identificá-la. Assim ocorreu, dentre outras, com a Lei Maria da Penha (lei 11.340/06), Lei Carolina Dieckmann (lei 12.737/12) e Lei Joana Maranhão (lei 12.650/12).

E agora com a Lei Mariana Ferrer, sancionada recentemente com o 14.245/21, que altera dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e testemunhas, além estabelecer uma causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo.

O projeto da referida lei é da deputada federal Lídice da Matta (PSB-BA) e teve como suporte a audiência realizada no processo em que figurou como vítima de estupro a influenciadora digital Mariana Ferrer que, durante a instrução processual, teve sua intimidade exposta pelo defensor do acusado.

É fato que a mulher, nos crimes contra a dignidade sexual em que figura como vítima, quando ainda na fase investigativa perante a autoridade policial, vai ofertar sua versão a respeito dos fatos, além de se submeter a exame de corpo de delito, quando for o caso. Posteriormente, coram judice, na presença dos atores processuais, repete novamente a mesma versão, dando espaço para a revitimização, com a desagradável sensação de relatar novamente todos o enredo criminoso e ver sua intimidade invadida.

Na audiência sob o crivo do contraditório, tanto o promotor de justiça como o advogado, ambos com a intenção de elucidar o fato perquirido, poderão formular perguntas diretamente à vítima ou à testemunha, desde que guardem conexão com o caso sub judice. E a nova lei é bem clara em não se permitir qualquer outra referência à vida pessoal da depoente e nem mesmo a utilização de material que seja divorciado do processo e que possa trazer qualquer tipo de constrangimento. Não há restrição ou prejuízo ao exercício da ampla defesa assegurada constitucionalmente.  A intenção é a de preservar e oferecer proteção à dignidade da mulher depoente que, na realidade, é uma colaboradora na busca da justiça, e não o foco da discussão a respeito de sua intimidade.

Tanto é que a novatio legis, até mesmo em termos pedagógicos, impõe a todas as partes do processo e demais sujeitos processuais presentes ao ato, a obrigação de zelar pela integridade física e psicológica da vítima ou da testemunha, principalmente em ações que apuram crimes contra a dignidade sexual, proibindo, taxativamente, a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objetos da persecução penal, assim como a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da depoente.  Cabe ao juiz do processo o poder disciplinar para garantir o cumprimento das medidas de proteção.

Não se concebe a construção de uma imagem da vítima criando uma falsa projeção de sua personalidade por meios processualmente inadequados. A pretensão levada à jurisdição deve se ater somente com relação aos fatos relatados na inicial, uma vez que delimitarão os limites cognitivos do processo.

A jurisprudência é uníssona em abraçar a versão ofertada pela vítima em crimes contra a dignidade sexual, recebendo-a com credibilidade quando encontrar ressonância com as demais provas coletadas no processo. Isto porque crimes desta natureza não contam com provas testemunhais e sim são praticados solus cum sola, daí a relevância da palavra da ofendida. De nenhuma valia a utilização de circunstâncias alheias e totalmente distantes do fato perquirido dificultando e até mesmo criando verdadeiros labirintos para a busca da verdade e que venham a desmerecer e macular a intimidade da mulher depoente.