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A internação involuntária de dependentes de drogas em situação de rua

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Atualizado em 7 de fevereiro de 2022 07:47

A lei 10.261/01, também conhecida como Reforma Psiquiátrica, com vigência há mais de 20 anos, tem como objetivo principal a proteção dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e, para tanto, redireciona o modelo assistencial em saúde mental, buscando sempre proporcionar aos pacientes um tratamento mais humanizado, igualitário, seguindo a baliza constitucional da dignidade da pessoa, principalmente sua recuperação e reinserção social.

Tanto é que deixa transparecer seu espírito colaborativo e protetivo no primeiro artigo, quando proclama: "Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra." E complementa no parágrafo único do segundo artigo, inciso II, também voltado à pessoa portadora de transtorno mental: "Ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade."

É neste palco que se situa a exposição do tema proposto, atrelado diretamente à internação involuntária dos usuários de drogas, principalmente daqueles que frequentam locais, ruas e praças públicas para o consumo das substâncias ilícitas.

A lei sub studio adverte, antecipadamente, que a internação psiquiátrica só será permitida quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, deixando bem claro que a intenção será voltada para um ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis, dando preferência para os serviços comunitários de saúde mental. Quando, no entanto, for admitida a internação, exige, antecipadamente, a apresentação de um laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos, e estabelece as seguintes modalidades: a) voluntária, quando receber a anuência do usuário; b) involuntária, quando se dá sem o consentimento do usuário e sim a pedido de terceiro; c) compulsória, quando ocorrer determinação judicial e somente será determinada mediante decisão fundamentada.

Diante das dificuldades apresentadas, o próprio legislador se convenceu da necessidade de retirar a internação compulsória de dependentes químicos. Para tanto foi sancionada a lei 13.840/19 que modifica a lei 11.343/06 e estabelece medidas para prevenção do uso indevido, atenção, reinserção social dos usuários e dependentes de drogas. Referida legislação exclui a internação compulsória judicial e permite a internação involuntária a ser providenciada e autorizada pela família ou responsável legal do dependente e, na falta de ambos, o pleito poderá ser feito por servidor na área da saúde, assistência social ou de órgãos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), pelo prazo máximo de 90 dias, considerado suficiente para a desintoxicação, a ser cumprido em unidades de saúde e hospitais gerais, sempre com o aval de um médico.

Faz-se aqui uma explicação necessária a respeito da internação involuntária e a compulsória. Na primeira delas a tomada de decisão não é do paciente, mas seu direito deve ser resguardado. Tanto é que a lei 10.216/01 determina a obrigatoriedade da comunicação ao Ministério Público por meio do Termo de Comunicação de Internação Involuntária (Portaria GM 2391/02) para que o representante do Parquet, em razão de sua missão institucional, exerça a função fiscalizadora dos direitos dos pacientes internados nesta condição. A internação compulsória, por sua vez, terá ocorrência apenas na condição de existência de delito e consequente inimputabilidade observada após tramitação de processo em separado, conforme acentua a Portaria nº 8/2019, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no parágrafo único do artigo 18.

Da mesma forma a internação provisória prevista no artigo 319, VII da Lei de Execuções Penais (LEP), muitas vezes utilizadas para a internação de usuários de álcool e outras drogas ou pessoa com transtornos mentais, só pode ter sustentabilidade legal em caso de existência de crime praticado com violência ou com grave ameaça. Cai por terra, desta forma, o decreto-lei 891/38 que previa internações compulsórias de usuários de álcool e drogas, pois não foi recepcionado pela Constituição Federal da República de 1988, não podendo ser considerado vigente quando da promulgação da lei 10.216/01.

Cabe aqui uma cunha comparativa com a obra "O Alienista", de Machado de Assis, em que o médico dr. Bacamarte construiu um manicômio na pequena Itaguaí para cuidar dos pacientes com problemas mentais. O autor, com a sagacidade que lhe é peculiar, elaborou uma perfeita crítica social, além de tecer uma considerável e coerente análise psicológica dos personagens, principalmente do médico responsável pelo hospital, que seguia rigorosamente seus rigorismos científicos. Com o passar do tempo, 75% da população acabou internada.

Na realidade a proposta e preocupação da lei é abrir espaços para atingir cada vez mais metas relacionadas com políticas públicas para solucionar um problema sério e preocupante, que é o da saúde mental dos dependentes químicos.

É inquestionável o direito da pessoa de se manifestar a respeito de determinada decisão que lhe aprouver, desde que seja capaz, com plenas condições de discernimento. Não preenchida a condição de autogoverno e autodeterminação, como é o caso geralmente do dependente em drogas, a representação passa para os familiares e, na falta, para terceiros juridicamente legitimados. O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 4º, II, em acréscimo determinado pela lei 13.146/15, considera relativamente incapaz os viciados em tóxico para praticar determinados atos ou à maneira de os exercer.

É sabido, por outro lado, que há vozes que bradam contrariamente e defendem que a internação só poderá ocorrer com a concordância expressa do paciente ou de seus representantes legais e não por outra medida coativa, circunstância que retira totalmente sua autonomia. Mas, por outro lado, há de se atentar que o dependente gera um perigo para si mesmo, assim como para o grupo social que frequenta.

O que não se concebe é o fato ocorrido há tempos atrás na cidade de São Paulo, que compreendeu a decretação generalizada da internação compulsória feita a critério do órgão municipal, sem a elaboração do laudo psiquiátrico circunstanciado individualizado, não só para garantia do direito do paciente como também para a segurança do serviço médico, respeitando os parâmetros da autonomia do enfermo ou de seu representante legal, visando à tutela da dignidade da pessoa humana. A vulnerabilidade do dependente é manifesta e sem qualquer compreensão e discernimento a respeito de seu quadro clínico, pode colocar em risco sua própria saúde.

A volição humana compreende a autodeterminação do paciente em confabular e autorizar o profissional da saúde a realizar determinada conduta médica escolhida dentro do seu critério de conveniência. Seria, em outras palavras, o médico pedir permissão para a prática da conduta interventiva. A aquiescência vem materializada no documento devidamente assinado pelo interessado ou seu representante legal, que é o termo de consentimento informado. Quer dizer, o destinatário do serviço de saúde, de forma consciente, autoriza a realização da prática médica, com a liberdade inerente em sua autonomia, sem qualquer coação, e sabedor que é dos riscos advindos do procedimento. Antes a atenção médica residia na obrigatoriedade de o profissional da saúde cuidar do bem-estar da pessoa, dentro da visão paternalista e absolutista da medicina. A decisão era unicamente do profissional da saúde a respeito do tratamento a ser indicado. Agora, com a nova determinação contida no Código de Ética Médica, terá o paciente como coautor.

É repetitivo e até mesmo incoerente falar que, após a edição da Lei de Drogas (lei 13.146/06), foi constatado um aumento desproporcional do número das cracolândias nos grandes municípios e das microcracolândias nos pequenos. É uma invasão que vai se tornando rotineira e um espaço que vai fazendo parte da paisagem urbanística, manchando-a.

Nem se faz necessário tecer comentários a respeito dos refúgios existentes nas grandes cidades para criar os locais coletivos de consumo de drogas e a convivência com aqueles que trabalham ou se locomovem pelas cracolândias, assistindo às cenas de degradação da pessoa humana. Apesar de todo esforço policial e até mesmo dos órgãos de saúde, até o presente nenhuma medida realmente eficaz foi levada a efeito, a não ser algumas paliativas e provisórias, lideradas por ONGs imbuídas de boa vontade. De nada adianta despejar dependentes moradores de rua de suas calçadas que, na sequência, após circularem por outras praças, retornam para o habitat natural.

A aplicação de medidas policiais e até mesmo as judiciais em casos de grupos de consumo é totalmente ineficaz. A força policial não é instituição adequada para lidar com usuários, muitos deles sem a mínima condição de discernimento, por se apresentarem corroídos pelas drogas.  Sendo dependentes, o rigor da lei é mínimo e não avança mais do que a advertência feita pelo juiz sobre os efeitos das drogas, a prestação de serviços à comunidade e eventual aplicação de medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.1

A questão, realmente, é tormentosa. Apesar de coexistirem várias figuras delituosas, como é o caso de comércio de drogas, furtos, roubos, crimes contra a liberdade sexual, apreensões de armas de pesados calibres e tantas outras, a questão fulcral é ligada diretamente à proteção da saúde humana, com a prevalência do princípio da dignidade da pessoa, conforme apregoado constitucionalmente.

O pensamento popular caminha na mesma direção daquele preconizado pela lei em comento, no sentido de tentar recuperar a vida daqueles que foram envolvidos pelo vício. Ao que tudo indica, se nada for feito, hoje eles não exercem e no futuro não exercerão qualquer profissão ou atividade que lhes possa garantir o sustento e terão, certamente, que abraçar a carreira do crime para saciar o vício. Busca-se, então, a intervenção de parentes e autoridades relacionadas com a saúde para evitar o mal maior tanto ao usuário de drogas como também às pessoas que com ele convivem na sociedade, com total repúdio ao laissez-faire, laissez passer.

O mais salutar é o deslocamento da questão para a área da saúde pública, com políticas eficientes direcionadas aos usuários que se iniciam na prática e aos que já foram dominados pelo vício, com a intenção de recuperá-los. Daí que a decretação da internação involuntária é o único instrumento capaz de responder aos reclamos sociais e à própria proteção dos usuários, para que tenham, pelo menos, a chance da tão almejada recuperação. Sabe-se que que é uma tarefa árdua, mas que, se levada adiante com seriedade e comprometimento, é um fator indicativo de um bom resultado.

Diante de tal permissivo de internação involuntária é de se concluir pela boa medida das pessoas legitimadas tomarem as medidas coativas para a preservação da vida, de acordo com as balizas estabelecidas pela Constituição Federal, já que o detentor da cidadania não se encontra mentalmente apto para o exercício de seus direitos e necessita da aplicação de medidas protetivas específicas. Qualquer outra solução que contrarie o interesse maior prevalente, que é o da saúde, do viver, não tem o condão de inverter o pensamento determinado pela lei maior. É a junção, a uma só vez, da prevalência do bem individual e coletivo.

A internação involuntária de usuários de drogas que vivem nas ruas, apesar de ser considerada um recolhimento forçado, apresenta-se como medida extrema, porém necessária e oportuna para proporcionar um acolhimento humanizado e individualizado com projetos terapêuticos que sejam eficazes para a melhoria da saúde do paciente, acompanhada de boa escolarização e qualificação profissional, visando à mais adequada reinserção social.

1 Lei 11.343, de 23/8/06, artigo 28.