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Do uxoricídio ao feminicídio

domingo, 29 de maio de 2022

Atualizado em 28 de maio de 2022 18:55

O Tribunal do Júri da comarca de Santo André/SP condenou um homem a cumprir a pena de 12 anos de reclusão, em regime inicial fechado, por ter matado, no interior de um motel, em total menosprezo à condição de mulher, uma garota de programa que havia conhecido em uma boate e se recusou a manter com ele relação sexual.1

O Direito, assim como outras ciências, também promove variantes linguísticas no vernáculo.  A palavra homicídio, por exemplo, que por muitos anos frequentou com exclusividade um artigo do Código Penal, compreendia a ação de matar um homem ou uma mulher. Uxoricídio, em sua etimologia específica, designava a conduta daquele que matava a esposa. Mais recentemente foi introduzida a palavra feminicídio, com significado abrangente e consentâneo com o pensamento jurídico da atualidade, compreendendo a morte de qualquer mulher, esposa, companheira ou não, atrelada, no entanto, à questão de gênero em contexto discriminatório envolvendo conteúdos históricos, culturais, econômicos, sociais e outros.

O tipo penal do feminicídio é de construção recente, e não figura como crime autônomo e sim como apêndice do crime de homicídio, na forma qualificada. Impõe pena mais exacerbada que a do homicídio, além de revestido do mesmo caráter de hediondez e que tem por finalidade a proteção da mulher, no tocante à violência doméstica e familiar como, também, ao menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A título de curiosidade, a prática de homicídio simples prevê uma pena de 6 a 20 anos de reclusão, enquanto que no feminicídio a pena é de 12 a 30 anos, também de reclusão, sem contar ainda com os acréscimos em razão do estado gestacional da vítima, se for praticado diante de descendentes ou ascendentes, assim como em razão de descumprimento de medida protetiva.

Pode-se dizer que a Constituição Federal de 1988, quando erigiu a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais, juntamente com a promoção do bem social sem preconceitos de sexo, trouxe um comprometimento diferenciado em relação às tutelas anunciadas. Inclinou seu olhar protetivo para a mulher, principalmente aquela que era considerada vulnerável e que necessitava de cuidados especiais, vez que exposta a tantos conflitos sociais, com sérios prejuízos e danos à saúde e à vida. A Lei nº 11.340/2006, conhecida por Maria da Penha, é exemplo, em razão da determinação constitucional prevista no artigo 226 § 8º. Apresenta claramente seus objetivos, as políticas públicas voltadas para o combate à violência doméstica e os mecanismos para atingir seus fins, além dos tipos penais específicos.

A Lei Maria da Penha vem produzindo, de forma reiterada, inúmeras alterações em seu texto originário introduzindo, ao longo do tempo, verdadeiros tentáculos flexíveis, com a função de fechar o cerco protetivo às vítimas que se encontram em situação de violência doméstica e familiar. Dificilmente uma lei consegue tamanha façanha e, mesmo assim, não alcançou os resultados desejados. Basta ver o acentuado crescimento no número de feminicídios, apesar de toda advertência encartada a respeito. Assim, a cada nova investida, apresenta-se um acréscimo à lei para inibir a nova modalidade agressiva.

A vulnerabilidade referida acima é a circunstancial, mais precisamente a proveniente de discriminação, em que a pessoa se vê impossibilitada de exercer seus direitos em igualdade de condições com as demais, necessitando, para tanto, de uma ação coadjuvante para desenvolver suas capacidades e competências.

No caso específico relatado e decidido pelo Tribunal do Júri, a violência exigida para a prática do delito se espraiou e alcançou um encontro eventual entre um homem e uma mulher, sem qualquer relacionamento amoroso, sem qualquer convivência anterior. A negativa da mulher em ter relação sexual com o seu acompanhante - recusa legítima em razão da autonomia da vontade - por si só, traz à tona o menosprezo e a discriminação pelo fato de ser a vítima uma mulher.

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1 Disponível aqui.