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Planos de saúde e o rol taxativo

domingo, 12 de junho de 2022

Atualizado em 10 de junho de 2022 12:24

O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento aguardado com muita ansiedade pelos beneficiários dos planos de saúde, por seis votos a favor e três contra, decidiu que as operadoras podem recusar a cobertura de procedimentos que não estão incluídos na listagem da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), concluindo, definitivamente, que o rol de benefícios é taxativo e não exemplificativo, conforme entendimento judicial dominante por mais de duas décadas nos tribunais.

Referida decisão causou indignação e perplexidade para a comunidade brasileira que se sentiu, de repente, apequenada diante da restrição imposta, vendo seus direitos rolando montanha abaixo, qual Mito de Sísifo, de Camus, revelando que todo o esforço empreendido e toda a conquista alcançada de nada valeram.

A interpretação dada pelo Tribunal, levando-se em consideração o equilíbrio atuarial das operadoras e seguradoras que terão melhores condições de ofertar um serviço de qualidade com preços mais acessíveis - abraçando a pretensão dos grupos empresariais que operam os planos de saúde - com o devido respeito, cai por terra diante da realidade social.

Direito é uma ciência de interpretação. Os fatos são encaminhados para o Judiciário para julgamento e retornam com a entrega da prestação jurisdicional. É certo que a lei delimita a pretensão e a própria atuação do órgão jurisdicional. Mas a lei - como um cânone que vai nortear a vida em sociedade - não deve ser vista em sua estreiteza e sim na dimensão de encontrar a mens legis que norteou o legislador. Muitas vezes o texto que está sendo interpretado apresenta-se com determinada roupagem externa, porém, em seu interior, reflete muito mais do que aquilo que ostenta.

Se o operador do direito terminar a leitura do texto legal e aplicá-lo ao caso concreto, estará simplesmente realizando uma operação sistemática, praticamente matemática, sem levar em consideração a elasticidade escondida nas palavras da lei, com o consequente fiat justitia, pereat mundus. Aplica o texto frio e gélido, sem qualquer riqueza de conteúdo, como pretendia Justiniano com seu Corpus Juris. Se, porém, contornar o biombo que o esconde e ingressar no cerne da norma, descobrirá a riqueza nela contida, possibilitando alcançar situações que até mesmo, originariamente, não estavam contidas na mens legis.

E a ciência hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance. "Quando, argumenta com toda autoridade Ferraz Júnior, dizemos que interpretar é compreender outra interpretação, (a fixada na norma) afirmamos a existência de dois atos: um que dá a norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo".1  

O rol exaustivo, taxativo que serviu de alicerce para a decisão do Tribunal, é revelador de uma situação que não permite diálogo e fecha a comporta judicial para a apreciação de qualquer pedido que não se encontre alistado no referido catálogo de serviços. Em total confronto com o próprio texto constitucional que, em abrangência praticamente ilimitada no artigo 196, proclama: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."

E tal obrigatoriedade alcança também a iniciativa privada complementar ao Sistema Único de Saúde, desde que siga rigorosamente as diretrizes traçadas pelo poder público (art. 199, § 1º, CF).

A limitação imposta na referida decisão atinge todas as pessoas acobertadas pela proteção conquistada e garantida reiteradamente pelos tribunais. O que faz surgir a limitação de um direito tão amplamente exercido anteriormente e, principalmente, em prejuízo dos mais vulneráveis, que se apegavam a uma pequena abertura existente ainda.

A realidade e a necessidade social são fatos que devem ser analisados juntamente com a norma, uma vez que o destinatário é o cidadão que necessita de serviços médicos. Além do que, com o avanço imensurável da medicina, várias doenças novas e raras serão desvendadas e o tratamento, com toda a certeza, não fará parte do rol exaustivo, pois serão analisadas e, se aprovadas, incluídas no prazo de 180 dias, prorrogáveis em mais 90.

Na vigência do rol expansivo ou exemplificativo poderia se encontrar um paradigma existente na relação das doenças e que fosse mais próximo da moléstia com a possibilidade de pleitear autorização judicial para gozar do novo benefício pretendido. "A norma jurídica, com precisão adverte Bittar, se extrai da vivência social e para ela se dirige, reativa-se na medida em que é usada, em que é manipulada, vista, sentida, conhecida e interpretada."2

Os romanos, com sabedoria peculiar, proclamavam pelo aforismo summum ius summa iniuria que todas as vezes em que o Direito se apegar exclusivamente à pura expressão literal dogmática, por melhor que seja a intenção, irá abrir margem para uma grande injustiça.

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1 Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 2006, p. 72.

2 Bittar, Eduardo Carlos Bianca. Linguagem jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009, p.154.