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Leitura jurídica do teste do pezinho

domingo, 26 de junho de 2022

Atualizado em 25 de junho de 2022 18:02

Ao longo do tempo é fácil constatar que a Medicina vem se dedicando para ampliar os cuidados com a prevenção primária, conforme recomendação da Organização Mundial da Saúde. No mesmo diapasão o direcionamento que se aninha na Constituição de 1988. Após considerar que a saúde é direito de todos os cidadãos e o Estado deve intervir obrigatoriamente como provedor, explicita que a saúde merece receber "atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais" (artigo 198, II).

A inovação científica passou a frequentar com mais assiduidade os temas relacionados com a saúde humana, incentivando até mesmo a elaboração de políticas públicas, que compreendem desde a primeira infância até o envelhecimento da população. Basta ver que já é possível realizar o diagnóstico genético pré-implantacional dos embriões quando apresentarem alterações genéticas causadoras de doença. Neste caso poderão ser doados para pesquisa ou até mesmo descartados, com consentimento dos genitores. Assim como podem ser selecionados embriões HLA-compatíveis para transplante de células-tronco em irmão já afetado por doença grave, como é o caso da Anemia Falciforme.

O rastreio neonatal, conhecido popularmente como "teste do pezinho", vem sendo realizado no Brasil desde 1970, com a finalidade de diagnosticar doenças graves em recém-nascidos. A Portaria 822/01 do Ministério da Saúde introduziu o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), obrigando hospitais públicos e particulares a realizarem o exame.

A recente lei 14.154/22, por sua vez, ampliou, e em muito, de seis para aproximadamente cinquenta diagnósticos de doenças que podem ser detectadas pelo exame. Trata-se de um procedimento simplificado em que a coleta de sangue será retirada do calcanhar do recém-nascido, entre o terceiro e o quinto dia de vida. Mesmo que o resultado seja positivo para alguma doença, há necessidade de exames clínicos e complementares.

As doenças encontradas pela triagem neonatal - metabólicas, genéticas, enzimáticas e endocrinológicas - possibilitam a identificação precoce para que o paciente possa receber os tratamentos adequados, evitando, desta forma, o desagradável surgimento na vida adulta, quando já não será possível uma intervenção exitosa.

Na realidade, se for bem observado, o homem, desde o seu nascimento, vive se prevenindo de doenças. Basta ver o controle vacinal oferecido a partir da mais tenra idade, sem levar em consideração ainda a eventual exigência quando ocorrer uma pandemia.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8069/90) dimensiona todo seu alicerce protetivo em torno de dois princípios: da proteção integral e do melhor interesse da criança. Esse último, apesar de ausente explicitamente do estatuto menorista, foi construído sobre sólida evolução hermenêutica dos direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, abrangendo também as crianças.

Da junção dos dois princípios encontra-se o denominador comum da vontade do legislador, no sentido de que, além dos inúmeros outros direitos, difusos ou contextualizados, a saúde das crianças goza de prioridade e toda inovação que trouxer dividendos para o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual, em condições de igualdade e de dignidade, será bem recepcionada e amparada pelo princípio bioético da beneficência. Além do que, conforme determinação constitucional, é dever da família, sociedade e Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à saúde (art. 227 CF).

Assim é que a lei menorista, em seu artigo 10, inciso III, foi taxativa ao determinar aos hospitais a obrigatoriedade de proceder a exames visando ao diagnóstico e terapêutica de anormalidades no metabolismo do recém-nascido, bem como prestar orientação aos pais. E no parágrafo primeiro, com o acréscimo determinado pela Lei nº 14.154/2021, foi incisiva em determinar que os testes para o rastreamento de doenças no recém-nascido serão disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde, no âmbito do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), na forma da regulamentação elaborada pelo Ministério da Saúde.

Tamanho o interesse do legislador no cumprimento do procedimento que estabeleceu um tipo penal específico no artigo 229 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com a pena de seis meses a dois anos de detenção. In verbis: Deixar o médico, enfermeiro ou dirigente de estabelecimento de atenção à saúde de gestante de identificar corretamente o neonato e a parturiente, por ocasião do parto, bem como deixar de proceder aos exames referidos no art. 10 desta Lei.

Percebe-se, claramente, que a preocupação do legislador é fazer com que a criança, antes de deixar o hospital, seja submetida ao exame de triagem neonatal. Pode ser até que haja recusa dos genitores - como ocorre com certa frequência no calendário vacinal - mas os funcionários da saúde irão envidar todos os esforços para convencer os pais da necessidade de se fazer o exame, levando-se em consideração que a saúde integra os direitos fundamentais da criança, opondo-se até mesmo à discordância deles.

O eventual conflito de interesse - dilema ético da decisão parental - não pode reverter em prejuízo da saúde do recém-nascido, pois além de quebrar a regra do melhor interesse, colide frontalmente com a melhor proteção integral a ser ofertada a ele, comprometendo as perspectivas de uma melhor qualidade de vida futura. Prevalece, de forma soberana, o princípio da beneficência járeferido, que canaliza toda a proteção e cuidados em benefício da criança visando atingir um resultado satisfatório sem a ocorrência de danos desnecessários.

Se persistir a recusa, há necessidade de se invocar o auxílio do Conselho Tutelar e do Ministério Público para que sejam tomadas as medidas cogentes legais.