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Filiação socioafetiva

domingo, 20 de novembro de 2022

Atualizado em 18 de novembro de 2022 14:00

Após a Constituição Federal de 1988, o conceito de família experimentou um alargamento necessário visando, de forma aprumada com a realidade, acomodar os vários núcleos que se formaram em torno do conceito original, restrito por demais. O padrão atual abandonou o rigorismo, ampliou os espaços e abriu as vertentes para compreender não só os dados biológicos, como, também, os introduzidos pelo socioafetivo, podendo ser a família constituída por um só indivíduo ou pela união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, nos moldes já decididos pelo Supremo Tribunal Federal (ADIn 4277/ADPF 132,) assim como a adoção de crianças por casal homoafetivo.

Enfatiza o estatuto menorista que toda criança ou adolescente deve ser criado ou educado no seio da família natural e deixa transparecer que a adoção é uma medida excepcional. Exige a inscrição no cadastro das pessoas interessadas, cumprimento de estágio de convivência com a criança, salvo se já for detentor da tutela ou guarda judicial e outros requisitos para sua efetivação judicial.

Quando se fala a respeito da adoção, o tema transcende o humano e até mesmo os limites estabelecidos pela lei, justamente pela sublime motivação que o reveste. Desde os primórdios da civilização, sempre despertou a atenção pela sua característica de relação afetiva, na qual uma criança é recebida por uma família, geralmente carregada de uma sensibilidade extremada na busca de tal vínculo, e proporcione a ela um acolhimento caloroso com o propósito de se iniciar uma nova história de vida. Vigora a regra adoptio naturam imitatur (a adoção imita a regra da própria natureza), que prevalecia no Direito Romano. O que se leva em consideração nos casos de adoção é justamente o afeto, o pertencimento, o envolvimento emocional que impulsiona as pessoas que participam do relacionamento familiar.

A adoção de Milton Nascimento, por exemplo, denominada de intuitu personae, não mais vigente na lei menorista, permitia que a mãe ou o pai entregasse a criança, geralmente para um casal de sua confiança, para criá-la e exercer o poder-dever de sustento e educação, fazendo nascer um longo estágio de convivência, com total distanciamento dos pais biológicos. Os antigos tratavam este procedimento de "pegar para criar".

Há ainda muitos casos no Brasil em que casais convivem com filhos na relação socioafetiva, sem o devido registro, mas com a prova maior que é o tempo de convivência demonstrado por um período de longos anos, sem se preocupar com a regularização da guarda legal, com a inscrição no cadastro único criado pela lei menorista.

Não há nenhuma dúvida de que a criança, que de fato vive razoável tempo com um casal, já pode ser considerada como um filho. Seria um excesso de preciosismo, desnecessário até, exigir-se como conditio sine qua non a inscrição dos candidatos no cadastro único criado pela lei. A lei preocupa-se, e com razão, de cuidar de casos em que não ocorreu a convivência anterior e não com aqueles em que já há uma definição afetiva devidamente estabelecida. Daí que a adoção intuitu personae continua ainda presente na nova legislação, mesmo que obliquamente.  As mães criadeiras no período colonial do Brasil, que recolhiam as crianças abandonadas na roda dos expostos, cuidavam de amamentá-las e viam nascer o afeto que muitas vezes dificultava a separação.

O Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser visto em sua dimensão maior, em conjunto com os princípios que norteiam sua aplicação, dentre eles a efetivação do interesse e da proteção dos infantes, ultrapassando e em muito, nos casos de guarda de fato, a regra seca estabelecida na obrigatoriedade de inscrição em cadastro de adoção.

Tanto é que o Supremo Tribunal federal já decidiu e este respeito e proclamou: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais".1

Assim, neste diapasão, o vínculo socioafetivo vem consolidado pelos vários anos de convivência no âmbito de um relacionamento familiar harmônico e a figura do pai e da mãe não é mais vista pelo prisma daqueles que geraram o filho e sim daqueles que o criaram.

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1 https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE898060.pdf