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A bioética e o Direito

domingo, 7 de maio de 2023

Atualizado em 5 de maio de 2023 13:40

A partir da Constituição Federal de 1988, o Brasil elencou, dentre de seus fundamentos, o princípio da dignidade da pessoa humana. Tal inserção, que integra a teoria kantiana e se abrigou no preceito contido na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, abriu um novo portal por onde transita a pessoa como destinatária de uma enorme carga protetiva de direitos.

Quando se fala em dignidade da pessoa humana ingressa-se em um universo de proteção ilimitada, amparando direitos já conquistados assim como outros difusos que ainda virão em razão da mutabilidade da própria sociedade. O homem, desta forma, torna-se fim e valor em si mesmo, centro e ponto de convergência de todas as ações, dotado da capacidade volitiva e intelectiva, detentor de uma supremacia própria, exerce sua condição de sujeito moral, com autonomia decisiva própria, buscando todos os meios para o desenvolvimento de sua inalienável dignidade.

Oportuna a observação de Sarmento: A centralidade da pessoa humana, tratada não como meio, mas como fim da ordem jurídica e do Estado, revela-se logo na organização da Lei Maior. Se as constituições anteriores começavam disciplinando a estrutura estatal e só depois enunciavam os direitos fundamentais, a Carta de 88 faz o oposto, principiando pela consagração dos direitos das pessoas.1

As relacionalidades jurídica e a terapêutica, apesar de advindas de fontes diferentes, sempre coexistiram, conforme pode ser observado pelo dictum hipocraticum e pelo Digesta, de Justiniano. A Bioética e o Direito, nos tempos modernos, convivem pacificamente em espaços diferenciados, mas tangidos por temas comuns a ambos. Pode-se dizer que o Direito, nesta interface, assume nova roupagem, intitulando-se Biodireito.

Para tanto é interessante refletir a respeito da ponderação feita por D'Agostino, professor da Cadeira de Filosofia de Direito da Universidade de Roma:

Em seu horizonte paradigmático tradicional, o direito gera ao mesmo tempo a natureza e o artifício; mas os problemas da bioética nascem justamente quando se manifesta a percepção social de que a dimensão da naturalidade tornou-se evanescente e que foi ultrapassado o umbral de suportabilidade da artificialização da vida.2

Na aliança da bioética e do biodireito busca-se a resposta para os temas que aguçam e desafiam o homem ainda despreparado e que não carrega de pronto uma definição a respeito da aceitação ou rejeição de condutas que podem quebrar o consenso ético ou da utilização de técnicas que venham a ser incompatíveis com a expectativa da vida individualizada. As pesquisas envolvendo células-tronco embrionárias; as variadas técnicas aprovadas para a realização da procriação assistida; a maternidade de substituição; o patrimônio genético; a célula sintética; a decifração do DNA recombinante; o aborto permitido, o de feto anencefálico  e o proveniente da opção procriativa da mulher; a cirurgia de transgenitalização e suas consequências na vida civil; as pesquisas científicas com seres humanos e o Sistema CEP/CONEP; as clonagens terapêutica e científica; a transfusão de sangue e o direito à crença diante do direito à vida no confronto com a ADPF 618; o direito à dignidade da morte diante da eutanásia, distanásia, ortotanásia e suicídio assistido; as uniões homoafetivas e suas implicações legais; o Estatuto do Idoso e a proteção à longevidade; o Estatuto da Pessoa com Deficiência e suas vulnerabilidades; a doação e o transplante de órgãos e tecidos humanos; o início e o fim da vida humana, conforme decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação direta Inconstitucionalidade nº 3.510  são, dentre muitos outros, temas que provocarão mudanças sociais, éticas, culturais e jurídicas.

Na medida em que a evolução da biotecnociência vai desvendando a natureza humana e penetrando em perspectivas até então inimagináveis, como os fármacos de última geração e outros procedimentos que possam administrar doenças reiteradamente combatidas, a Bioética, como se fosse um senso regulatório, compartilha os resultados favoráveis e comparece a fim de dar seu nihil obstat para a utilização humana. Basta ver o caso recente relacionado com a aprovação de vacinas pela ANVISA contra o coronavírus.  

A ciência deve ser sim estimulada a desenvolver imunizantes, que serão criteriosamente avaliados pela agência com a finalidade de conferir a eles segurança, garantia e eficácia e o resultado científico perquirido expressará a proteção conferida ao ser humano, que deve figurar como destinatário do estudo, sem experimentar qualquer dano.   É a regra do malum non facere ou primum non nocere. Em outras palavras, seria envidar todos os esforços para maximizar os resultados que trouxeram significativos dividendos à saúde e minimizar os possíveis efeitos nefastos com impactos negativos a ela. Todo este iter deve vir acompanhado de passos sincronizados, que tragam suporte de benefício não só para a pessoa, como também para a comunidade

Marco Segre, a esse respeito, ensina de forma magistral:

"Matérias como a engenharia genética, a reprodução assistida, o aborto, o planejamento familiar, a disponibilidade (ou não) de órgãos para transplante, o suicídio assistido (inadequadamente denominado eutanásia), interessam à pessoa, portanto ao cidadão, sendo que sua regulamentação, procedida democraticamente, é um coroamento dos 'direitos da cidadania'. Não mais colegiados de médicos ou de juízes (ou de qualquer outro grupamento corporativo) que haverão de decidir sobre matérias que dizem respeito aos aspectos mais íntimos da vida de cada ser humano. São eles, somos nós, todos seres humanos, atuando como sujeitos (e não como objetos) de nosso destino, que vamos nos manifestar sobre o que considerarmos adequado ou inadequado, construtivo ou destrutivo, para o nosso convívio em sociedade".3

Pode-se dizer, finalizando, que a Bioética teve um impulso alentador com a Constituição de 1988, que abrigou em seu núcleo direitos fundamentais não estáticos e sim amplificados para que pudessem atender as reais necessidades da nação. Tanto é verdade que o Supremo Tribunal Federal, guardião responsável pela melhor interpretação da Carta Magna, vem, reiteradamente, revelando a existência de novos direitos para que o homem possa atingir a essência de sua plenitude como cidadão.

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1 Sarmento, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Editora Fórum,2016, p..72

2 D'Agostino, Francesco.Bioética - Segundo o enfoque da Filosofia do Direito - Tradução: Luísa Raboline. São Leopoldo RS: Editora da Universidade Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS -, 2006, p. 99.

3 Segre, M. Definição de bioética e sua relação com a ética, deontologia e diceologia. In: Segre, M, Cohen, C. (orgs.). Bioética. 3nd ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. p. 27.