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A clonagem humana

domingo, 23 de julho de 2023

Atualizado em 21 de julho de 2023 09:13

Logo após a divulgação da clonagem da ovelha Dolly, em fevereiro de 1997, nascida após 277 tentativas, criou-se a expectativa da clonagem reprodutiva humana, isto é, criar outra pessoa com as mesmas características e carga genética do doador do núcleo. A comunidade médica internacional, no entanto, além de repudiar a nova técnica, lançou por terra qualquer esperança de dar continuidade a eventual projeto com tal propósito.

A clonagem, vista sob o prisma científico, carrega uma falsa impressão no sentido de conseguir fazer a transferência da bagagem genética para outra pessoa, com sucesso absoluto, tornando-a sucessora do doador. Engano que a ciência consegue comprovar com a segurança necessária. O homem não é resultado única e exclusivamente do desenvolvimento de seus genes.

A própria etimologia da palavra clonagem já reproduz a dimensão de seu significado. Originária do vocábulo grego klón, significa novo broto, rebento, ramo pequeno, uma réplica, cópia, no sentido de derivação de um ente originário. Pode-se dizer que a clonagem é uma forma de reprodução assexuada, agâmica, sem a intervenção dos gametas masculino e feminino visando conseguir uma réplica da pessoa que cedeu seu material procriativo.

Pode-se afirmar com segurança, de acordo com o pensamento psicanalítico, que a identidade do ser humano passou a existir a partir de Freud. Em mais de cem anos de prática clínica, bate-se pela diferenciação entre a identidade genética com a fenótipa (expressão do gene) e da pessoa (personalidade).

Nesta linha de pensamento percebe-se claramente que há uma restrição com relação à clonagem. Por várias razões éticas. É sabido, pelas experiências realizadas em animais, que são necessárias muitas tentativas seguidas e destruição de inúmeros embriões para se conseguir atingir o objetivo, que se mostrou de pouca eficiência, com reiterados abortos de fetos malformados e com morte em curto espaço de tempo.

A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, em seu artigo 11, enfatiza: "Práticas contrárias à dignidade humana, tais como a clonagem de seres humanos, não devem ser permitidas. Estados e organizações internacionais competentes são chamados a cooperar na identificação de tais práticas e a tomar, em nível nacional ou internacional, as medidas necessárias para assegurar o respeito aos princípios estabelecidos na presente Declaração".1

O Código de Ética Médica, por sua vez, em seu artigo 15, traz idêntica proibição.2

A Lei de Biossegurança,3 também de forma incisiva, construiu um tipo penal próprio e específico, quando proíbe a realização da clonagem humana e estabelece pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa para o responsável pela conduta ilícita.

A descrição da conduta penal do agente é incisiva e objetiva. O legislador não emprega vários verbos para tipificar a conduta. O núcleo da ação é o verbo realizar, que deve ser interpretado com o seu significado literal, no sentido de tornar real, criar, produzir, lançar mão de todos os meios técnicos e científicos para conceber um ser humano idêntico a outro já existente, independentemente dos objetivos. A simples ação de quebrar a regra da procriação e inverter seu procedimento para se obter artificialmente um clone é uma conduta demonstrativa de dolo intenso, uma vez que é social e penalmente relevante e reprovável. Por essa razão, Moser, de forma magistral, esclarece que: Pela clonagem os seres humanos "enganam" a natureza, trocando a "receita" original por outra estranha, oriunda da mesma espécie, ou então de espécie diferente.4

Tal dispositivo encerra, numa só vez, conteúdos ético, moral e legal, todos proibitivos, a exemplo de inúmeros outros diplomas mundiais. Já não é o homem e sim a humanidade que se une para coibir qualquer investigação científica na área da clonagem, por entender que não é lícito ao homem contrariar as leis da própria natureza. Se a determinação biológica vem previamente determinada pelo histórico genético - que confere a cada pessoa um tempo limitado de vida -  não é plausível que seja dada continuidade a uma vida em curso ou que já se expirou, substituindo-a por outra. A individualidade é fator que determina e especifica o cidadão no meio social, com seus predicados, virtudes e caráter. O substituto artificial jamais conseguirá ocupar o mesmo espaço e receber a mesma avaliação. E, juridicamente, será outra pessoa.

A clonagem se apresenta, desta forma, como uma experiência isolada, que foge e em muito dos princípios estabelecidos pela natureza e pelo homem e mais se aproxima de uma miragem kafkiana. Parece até um expediente científico, sem qualquer comprometimento ético, de natureza meramente investigativa, para satisfazer uma curiosidade, não se preocupando com a descoberta e sim com a invenção.  A clonagem pode ser representada como uma fantasia humana que satisfaz narcisicamente a humanidade na busca da perfeição, da harmonia, da eternidade e, ao mesmo tempo, a afasta da sua realidade de ser finito, incompleto, e das dificuldades inerentes de lidar com os limites da própria vida.

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1 Disponível aqui.

2 Resolução CFM 2.217/2018

3 Lei 11.105/2005.

4 Moser, Antônio. Biotecnologia e bioética: para onde vamos? Petrópolis: Vozes, 2004, p. 171.