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Fatos e fitas: refregas e conflitos

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Atualizado em 9 de janeiro de 2019 13:45

Não foram raras as ocasiões nas quais os estudantes se viram envolvidos em conflitos coletivos ou interpessoais. Interessante notar duas peculiaridades desses conflitos. Eles tinham início em locais fechados e se estendiam para as ruas. Ademais, em regra, as brigas não ocorriam entre estudantes, mas sim com a polícia ou mesmo com professores da Faculdade.

Uma delas teve início pela obstinação de um militar que teimava em permanecer no teatro com o seu quepe na cabeça. Foi repreendido por um estudante, mas não atendeu aos reclamos do acadêmico. A apresentação acabou sendo interrompida, fato que provocou uma reação da plateia, contra o teimoso militar, que acabou abandonando o local.

A paz voltou a reinar no pequeno teatro. No entanto, terminada a sessão, teve início um conflito entre estudantes que foram socorrer seus colegas e militares que os estavam esperando na porta. Nos dias subsequentes os ânimos se acirraram e, em decorrência, ocorreram vários incidentes. Em um dos conflitos, um militar foi empurrado de um barranco, fato que lhe causou ferimentos generalizados.

Os estudantes, em face das ameaças dos companheiros do militar ferido, constituíram uma comissão, para pedir providencias ao presidente da Província, Jósimo do Nascimento Silva, que os atendeu e informou que os militares haviam sido removidos para outras cidades.

A interferência do presidente foi providencial, pois evitou consequências graves no confronto que se avizinhava, entre estudantes e militares.

Em outro momento, em um teatro localizado no Pátio do Colégio, os estudantes presentes passaram a tossir insistente e continuamente. Tosses incômodas para a plateia, mas que provocavam risos daqueles acadêmicos que paravam de tossir, apenas para poder gargalhar.

Assistia ao espetáculo o coronel Joaquim José Luis de Souza, presidente da Província. Assumiu ele a palavra para advertir os estudantes. Nesse exato instante, um deles levantou-se na plateia e elevou a sua voz, ou melhor, a tosse forçada.

Esse estudante recebeu voz de prisão dada pelo delegado João Carlos da Silva Teles, presente ao evento, em cumprimento à ordem do coronel presidente. Como o delegado fosse egresso da Faculdade, os jovens acreditaram que a ordem não seria cumprida. Enganaram-se.

Tristão da Cunha Menezes e Martim Francisco Ribeiro de Andrade ambos acadêmicos, foram presos, pois se colocaram ao lado do colega que recebera ordem de prisão, o também acadêmico José Caetano de Andrade Pinto.

Os demais estudantes aos gritos, passaram a lançar impropérios contra as citadas autoridades. Todos eles foram ameaçados de prisão, mas não se intimidaram, pois além de continuarem a esbravejar dirigiram-se à cadeia e lá ficaram com os colegas presos. Segundo registro, cerca de setenta estudantes teriam passado a noite na delegacia. Foram eles postos em liberdade em razão de um habeas corpus concedido pelo ex-acadêmico do Largo e juiz de Direito, Carlos Antonio de Bulhões Ribeiro.

Apesar desses incidentes, os estudantes possuíam a capacidade de alegrar uma cidade austera e sisuda. Serenatas, cantorias, recitais, saraus, passeios em grupos, a pé ou a cavalo, brincadeiras com transeuntes, por vezes brigas e algazarras compunham todo um rol de entusiasmadas atividades que davam uma especial animação a São Paulo.

No entanto, não eram unânimes os aplausos às estripulias estudantis.

Especialmente os padres reagiam. E, o faziam, talvez com alguma dose de razão. Dentro das igrejas, o inadequado comportamento de alguns estudantes também se fazia presente.

Tantas foram as denúncias de mau comportamento, que o presidente da Província determinou a abertura de um inquérito para apurar as denúncias contra os acadêmicos. Foi o procedimento policial instaurado com ofícios subscritos por várias autoridades eclesiásticas, narrando a maneira como se portavam os estudantes durante as cerimonias religiosas.

Em um desses ofícios, a queixa se referia ao posicionamento dos jovens que não se ajoelhavam quando deveriam fazê-lo. Para o subscritor do documento esse fato representava "mui pouca decência".

Um outro, dizia respeito aos "abusos" cometidos por esses "indiscretos moços". Considerou-se, em um ofício, ser a conduta da "atual mocidade" nas igrejas tão "escandalosa" a ponto de afligir "ainda aqueles que são indiferentes à religião".

Nem sempre o "mau" comportamento nos templos podia ser atribuído aos estudantes, pois não eram eles identificados. No entanto, dificilmente outros jovens poderiam ser responsabilizados, em face da ausência de indícios de autoria, e porque os "antecedentes" dos acadêmicos indicavam serem eles os principais suspeitos.

Um desses "antecedentes" teria ocorrido na Ordem 3ª de São Francisco e foi narrado pelo seu vigário. Teria ele visto dois jovens "jogando bola com uma caveira no jazigo da Ordem". Não soube, no entanto, informar se eram estudantes. Tudo levou a crer que...

O procedimento coletivo ou individual dos acadêmicos não ensejava reação apenas das autoridades policiais ou eclesiásticas. Casos houve que a repressão foi comandada pelo próprio presidente da Província. O fato em foco, no entanto, não se revestiu da gravidade que justificasse a dura reação do presidente da província, Vicente Pires da Mota.

O estudante Antonio José de Figueiredo Vasconcelos, em certa ocasião, praticou um fato que já se tornara uma tradição entre os acadêmicos: participou das chamadas rapinagens famélicas, tendo como alvo perus e galinhas.

Não se tem conhecimento de consequências gravosas para inúmeros outros estudantes que desde a instalação dos cursos jurídicos visitaram os quintais das casas paulistanas, no afã de abastecerem suas repúblicas com as saborosas aves.

No entanto, na gestão do presidente Vicente Pires da Mota o tacão da repressão caiu pedaço sobre alguns acadêmicos da época, praticantes ousados e corajosos da já arraigada tradição.

Embora formado nas Arcadas, Pires da Mota considerava grave transgressão o furto dos galináceos. E, coerente com essa visão, determinou a prisão de Antonio José de Figueiredo Vasconcelos. Houve resistência por parte do acadêmico, que acabou sendo amarrado pelos pés e pelas mãos em uma vara, na posição horizontal, como se fosse um animal conduzido para o sacrifício.

Houve pronta reação dos colegas de Vasconcelos, que publicamente e em altos bradodos censuraram a violência praticada por Pires da Mota. Em face das pressões exercidas pelos estudantes, o acadêmico, após ser conduzido à delegacia da forma animalesca já descrita, foi posto em liberdade.

Destacou-se no meio estudantil e na própria sociedade paulistana, nos primórdios da Faculdade, o estudante José Joaquim Ferreira da Veiga. Boêmio inveterado, gozava de liderança junto àqueles que também professavam a mesma crença nessa opção existencial. Seu afeto à Faculdade foi demonstrado pelo longo período em que lá cursou Direito: oito anos. Ingressou em 1829 e formou-se em 1836.

Talvez inspirados em seu porte físico e em seu temperamento, seus colegas o apelidaram de "Boi". Possuía compleição avantajada, e um gênio irascível e belicoso. Exercia uma atividade incomum para um estudante: era um exímio capoeirista.

Tornou-se popular, querido e respeitado não só por um considerável número de estudantes, como por populares, especialmente pelos boêmios e pelos notívagos.

A época de atuação de Boi e de seu grupo esteve marcada por graves agitações. Pedro I havia abdicado. Os ânimos exaltados dividiram a sociedade de São Paulo: de um lado os portugueses que desejavam a volta do Imperador, de outro o nativismo tomava conta do espirito dos brasileiros, que desejavam a consolidação de nossa Independência, mas sem a presença de D. Pedro.

Comícios em praças públicas e nas portas de bares, ocorriam especialmente à noite, impedindo o sossego noturno das famílias paulistanas. Os livros se referem ao grupo brasileiro como "jacobinos", pela exaltação e radicalismo do sentimento nativista. Registram, ainda, as constantes provocações dos portugueses, que não desprezavam oportunidades para dar vivas a D. Pedro e exigir o seu retorno ao Brasil. A bem da verdade, a eles faziam coro alguns brasileiros, chamados de restauradores. Poucos brasileiros, diga-se.