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Marizalhas

Crônicas variadas.

Antônio Claudio Mariz de Oliveira
quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Faculdade franca, mas não tão risonha

Em texto anterior mostrei que a vida acadêmica do meu tempo se desenvolvia em vários setores com muita intensidade e participação abrangente. Difícil apontar um colega que não tenha tido atuação em algum desses setores: cultura; esporte; artes; política acadêmica ou externa; boemia. A Faculdade nos proporcionava enormes oportunidades para termos múltiplas experiencias na vida em sociedade. Ao lado da formação profissional adquiríamos valioso conhecimento do mundo e dos homens. Os eventos políticos da minha época na Faculdade  impulsionaram os estudantes para uma rica atividade voltada para a redemocratização do país. Em verdade a nossa luta ainda era para que a democracia não sucumbisse. A luta foi em vão. Após 1964 o regime militar, implantado mercê de um golpe, foi se consolidando e as franquias do regime constitucional foram sendo aniquiladas, até que em 1968 veio a derrocada com o ato institucional nº 5. Havia na Católica duas correntes que divergiam sobre os métodos de combate à ditadura. Uma delas pregava um ativismo que poderia chegar até a luta armada. Os seus integrantes constantemente saiam às ruas em passeatas e para  comícios que em várias ocasiões terminavam com a intervenção da polícia. A outra corrente, à qual eu pertencia, entendia que a oposição ao regime recém implantado deveria ter como foco os meios de comunicação, os que escapavam da censura, a assembleias e, especialmente, o contacto com entidades profissionais, sindicatos, clubes, associações culturais e outros agrupamentos. Nós criticávamos as demonstrações de violência pois entendíamos que elas estariam dando ensejo ao endurecimento do regime. O nosso vaticínio foi cumprido, com o ato institucional de 1968. Nas assembleias e reuniões internas, esses dois grupos se opunham,  mas o adversário comum que era o regime ditatorial os unia, pois ambos o combatiam com ardor embora de forma diferente. Houve uma ocasião em que nós "tomamos" a Faculdade impedindo que houvesse aulas. Nosso gesto quis mostrar que era impossível a normalidade da vida universitária sem a liberdade que nos fora subtraída. Os colegas do Largo de São Francisco também ocuparam a Faculdade na mesma ocasião. Apesar dos tempos sombrios de repressão, prisões, censura, tortura, cerceamentos e limitações  de toda ordem os acadêmicos não perderam as suas tendências para brincadeiras, galhofas, divertimentos. A alegria, no entanto, não substituiu as preocupações com a redemocratização do país.  Como disse, o empenho pela volta à normalidade democrática possuía duas vertentes, representadas pelas duas facções que se utilizavam de métodos diversos. A mais agressiva quando da "tomada" da escola, colocou no sótão alguém armado, para talvez defender o prédio de eventuais invasores dos aparelhos das forças da repressão. Imaginem se isso seria possível? . . .   Eu mesmo testemunhei o empenho bélico de alguns estudantes. Certa manhã, no centro acadêmico 22 de agosto localizado em frente à Faculdade, abri um carrinho de Fanta para tomar uma, quando me deparei não com os refrigerantes, mas sim com coquetéis "molotov". O carrinho transportava garrafas com pano na borda embebido de álcool ou gasolina.  Esse foi um tempo no qual os estudantes de direito assumiram a vanguarda do movimento pela redemocratização do país. Não obstante a desigualdade de armas o combate foi permanente e aguerrido, pouco importando os métodos utilizados, todos nós lutamos e eu muito me orgulho por ter participado dos embates em prol da liberdade.
terça-feira, 31 de outubro de 2023

Faculdade risonha e franca

Em outros escritos expliquei as minhas ligações afetivas com a Faculdade do Largo de São Francisco, embora tenha me formado na Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em verdade, todos aqueles que são vocacionados para atuar na área do Direito sofrem uma influência natural do espírito acadêmico das arcadas, independente da Faculdade em que se formaram. No meu caso específico há um componente diria que hereditário. O meu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior formou-se no Largo, foi um ardoroso propagador das tradições da Velha Academia, das histórias de seu tempo como acadêmico e especialmente dos feitos da Turma de 1946, por ele considerada a melhor de todas. A Paulista de Direito, por sua vez, fincou raízes irremovíveis no meu espírito, nas minhas memórias e no meu afeto. Lá cultivei e aprimorei duas tendências talvez inatas. Uma para a advocacia e a outra para a política, não a política partidária ou eleitoral, mas aquela que objetiva o conhecimento dos problemas sociais e institucionais de maior alcance, com o objetivo de contribuir para a sua solução. Política participativa, como cidadão e profissional do direito. Pude, na Faculdade, tendo em vista, especialmente, o momento histórico, participar intensamente da política acadêmica, unindo-me quanto aos fins, nem sempre quanto aos métodos, a todos os colegas e correntes que se colocavam contra o golpe militar de 1964. Foi no antigo convento da Monte Alegre que conheci Ângela, colega de turma com quem me casei; fui aluno de magníficos professores; tornei-me amigo de companheiros de toda a vida; aprendi a conviver com os contrários e tive uma vida acadêmica intensa, diria rica de emoções, momentos de boêmia, esfuziantes alegrias vividas em bares, restaurantes, na sede do Centro Acadêmico e nas memoráveis choupadas no campo de futebol, não mais existente.  Ao lado de uma esmerada formação profissional, de uma intensa atividade de política universitária, a Católica nos proporcionou memoráveis situações hilariantes, decorrentes  do convívio com professores, colegas e até com estranhos aos bancos escolares. Desses últimos lembro-me de um simpático andarilho apelidado por nós de "Vermelho". Perambulava pelas imediações da Faculdade e, por vez, estacionava na sua porta e lá permanecia. Conversando conosco ou discursando, insuflado pelos alunos por ele considerados colegas, Vermelho fazia parte do nosso cotidiano.  Nem sempre o nosso "colega" estava sozinho. Por vezes se apresentava com uma companheira. Jovem, mas judiada por uma  vida cruel marcada por infortúnios.  No entanto, sentíamos que a atenção que dávamos a ambos os alegrava a ponto de se sentirem integrados na nossa comunidade. Em nome dessa integração certa ocasião resolvemos levar Vermelho e sua companheira para assistir à uma aula de Direito Internacional, ministrada pelo Professor Dalmo Belfort de Matos. Homem de rara cultura, profundo conhecedor dos meandros do direito e das relações internacionais, mas um mestre talvez excessivamente complacente conosco, os seus alunos. Havia um dia da semana que o Prof. Dalmo ia à feira existente nas imediações da Faculdade e da casa em que morava também ali perto. Passava pela calçada do lado oposto à Escola, empurrando o carrinho com as suas compras. Educado que era, respondia aos inúmeros cumprimentos dos alunos postados do outro lado. Ficava aflito com tantos "bom dia professor" que tirava o seu indefectível chapéu para responder às saudações e se esquecia do carrinho. Este velozmente descia a Monte Alegre, derrubando verduras e frutas que se espalhavam pelo chão. Creio que mudou o seu itinerário, ou desistiu de fazer feira,  pois após algumas repetições da cena nunca mais o vimos empurrando o carrinho.      Mas voltamos ao casal de "colegas". Antes do início da aula do professor  Belford de Matos pusemos ambos sentados em carteiras da sala de aulas. Na primeira, a moça e o Vermelho mais atrás. Esse comportou-se bem. Ela, no entanto, assim que teve início a preleção, começou a mexer-se e, mais e pior, não parava de arrumar a sua blusa que por defeito de fabricação não cobria por inteiro os seus seios. Incomodado com aquela cena, repetida várias vezes, o Ilustre e querido Professor não se conteve e sempre mantendo a sua fidalguia disse: "Senhorinha, por favor, comporte-se". Sem nada entender a "senhorinha" ainda tentava aprumar-se. Dois lúcidos colegas, para evitar maior constrangimento ao professor, a retiraram da aula. Vermelho, no entanto, permaneceu atento até o seu final. 
terça-feira, 17 de outubro de 2023

O centro que para mim não morreu

Eu sou avesso ao conceito corrente entre os mais velhos de que em seu tempo as coisas eram melhores, fluíam com mais facilidade, o convívio entre as pessoas  tranquilo, enfim que a vida era melhor para ser vivida. Não concordo. Há aspectos melhores sim, mas há também outros que surgiram para nos beneficiar, com o correr dos anos. Deve-se, em regra, viver o presente com os olhos voltados para o porvir. Viver do passado ou viver no passado em verdade impede a evolução, o aperfeiçoamento, a fruição do que o presente nos oferece. Pode-se sim viver com as lembranças do passado que nos são gratas. Nesse sentido, valho-me da memória para recordar aspectos marcantes de minha vida ligados à cidade de São Paulo, especificamente ao centro da cidade. As minhas lembranças remontam aos anos cinquenta até início ou meados dos anos dois mil. Dizem respeito não só às experiências lá vividas, mas sobretudo ao que ele representou para a própria da cidade e para a sociedade. O centro de uma cidade em nosso país sempre representou o local de confluência de pessoas, de concentração do comércio e do acúmulo dos interesses sociais, financeiros e culturais. Compras, negócios e lazer se desenvolviam em lojas, restaurantes, teatros, livrarias, bancos, escritórios, enfim todos os aspectos que materializam as múltiplas atividades de uma população citadina,  eram exercidas em suas ruas e praças. Nas cidades do interior ainda as praças do centro possuíam os coretos e eram palco dos tradicionais footings. As minhas primeiras idas à cidade se deram quando criança. Eu acompanhava minha mãe que ia fazer compras. Lembro-me de uma confeitaria chamada Campo Belo, na rua São Bento, onde tomava ice cream soda. Interessava-me o Mappin, onde também tomávamos lanche. Ficaram em minha memória lojas como a Genin onde minha mãe ia comprar novelos de   lã, pois era uma exímia tricoteira. Loja da China e a do Ceilão vendiam de tudo para festas de aniversário, salvo engano ficavam na rua José Bonifácio. Eu a  frequentaria muito no futuro, especificamente para ir ao restaurante Itamarati e à livraria Saraiva. As sapatarias estavam na rua Quintino Bocaiuva. As lojas de tecidos e de livros religiosos na Benjamin Constant. Essa região, denominada centro velho, era bem sortida de restaurantes. Estudantes do Largo de São Francisco, advogados, juízes, promotores, funcionários do fórum e do Tribunal de Justiça, além dos comerciantes compunham a lista de assíduos frequentadores do Corso; do Campestre; do Gouveia; do Mon Ami; do Bar do Zé; do Amarelinho; dos Japoneses da rua da Glória e vizinhança; do Ouro Velho; do primeiro Jardin de Nápoli; do Barsorti; do Guanabara; da Brasileira; do Terraço; e inúmeros outros.           Havia um expressivo número de livrarias. As jurídicas eram a Saraiva; a Forense; a Revista dos Tribunais; a Buchascki e vários sebos que também possuíam livros de Direito. Dentre os sebos havia o Floresta; o Messias; o Orfali e outros localizados na Praça João Mendes e nas ruas Rodrigo Silva e Álvaro Machado. Na mesma Praça João Mendes uma livraria que era muito frequentada por mim chamava-se Livraria do Povo, dirigida por um livreiro que  tinha pleno conhecimento dos livros expostos, seus autores, conteúdo e outros detalhes. Um autêntico livreiro. Freitas Bastos, na 15 de novembro, Brasiliense, Teixeira, Livraria Francesa, essas no "Centro Novo" e outras que me escapam atraiam ao centro intelectuais, escritores, poetas e leitores em geral. Aliás, iam ao centro artistas de todas as categorias. Os musicistas compravam instrumentos e partituras na Casa Manon, na 24 de maio. Os pintores se abasteciam de tintas, telas, pinceis na Casa Miquelangelo, na Líbero Badaró. A diversidade do centro como o principal centro comercial da cidade atraia os mais variados consumidores. Os chamados "passarinheiros" frequentavam a Casa Orestes, salvo engano esquina de Benjamin Constant com Largo de São Francisco. Os profissionais da medicina se socorriam da Casa Fretin, no Largo do Patriarca com São Bento. Aliás, e me perdoem as lembranças esparsas e desorganizadas, agora me veio à mente na  mesma rua São Bento a Casa California, especializada em magníficos sanduiches de linguiça  e sucos. Lá pela hora do almoço quando saia do cursinho do Professor Tolosa eu tomava uma batinha de maracujá, com alguns colegas. Os restaurantes do Centro Velho eram menos sofisticados do que aqueles situados do outro lado da cidade, atravessando o Viaduto do Chá. Paddock; Bistrô ; Baiuca; Bar Redondo; Marcel; Gigeto; Vienense; Churrascaria República; La Casserole; Gato que Ri; Ponto Chic; Bar Brahma; Papai; Salada Paulista. Círculo Italiano. Em nome da fidelidade ao que havia de mais significativo no centro da cidade, não posso me esquecer dos boêmios e dos locais que frequentavam, além dos bares e das choperias. Refiro-me às boates, aos chamados inferninhos e aos "taxi danças", instituições hoje inexistentes. Dacar; Clube de Paris; Avenida Danças; Chuá; Paulistano da Rua da Glória; Som de Cristal, eram alguns dos lugares noturnos obrigatórios para jovens e homens maduros. Mas também a eles acorriam os ainda adolescentes que alteravam as suas idades em documentos, para ter a entrada permitida. A Praça da Sé e vizinhanças representam os locais das minhas mais marcantes recordações do centro da cidade. Depois de haver trabalhado na rua Boa Vista, no 3º Tabelionato de Notas fui para o escritório de meu pai, na Praça nº 399, 5º e depois 6º andar. O quadrilátero formado pelas Praças da Sé, Clóvis Bevilaqua, João Mendes e Av. da Liberdade reunia o maior número de advogados por metro quadrado talvez de todas as grandes Capitais do mundo. Todos os prédios nelas localizados e mais os das ruas ao redor eram ocupados por escritórios de advocacia. Ademais, os Tribunais de Justiça e os de Alçada, os Foros  Cíveis e Comerciais, o Ministério Público e as várias Procuradorias do Estado e do Munícipio funcionavam nas imediações. As sedes da Ordem, da Associação e do Instituto dos Advogados estiveram ali situadas.  As ruas eram locais de encontro de bacharéis e de estudantes do Largo de São Francisco. Esse contacto permanente e inevitável dava a todos uma agradável sensação de pertencimento. Sabia-se integrante de uma comunidade. O título desse texto reflete uma realidade que me é presente, qual seja a da perpetuidade do centro de São Paulo. Talvez esse apego exista porque o único sentimento que nunca se apossou dos que lá frequentavam era o de solidão. Até hoje, mesmo com ele abandonado e degradado, os que lá estiveram não se sentem sós.
quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Leite de cabra e outros leites

Em verdade, minha intenção não é escrever sobre o leite, nem sobre os seus predicados nutricionais e obviamente sobre a pecuária  do leite. Quero me referir a um tipo de leite, o de cabra e o sobre aqueles que vinham em garrafa e eram ou comprados nos armazéns ou postos no portão das casas. Mas, devo esclarecer que a menção que faço ao leite é para tê-lo como gancho de um outro tema que parece não guardar nenhuma relação com o leite. Como se verá guarda sim. O tema de fundo é a sociabilidade provocada pelas entregas e serviços feitos nos domicílios de antigamente. Além do leite, os jornais eram entregues. As casas eram visitadas pelo tintureiro, pela lavadeira, encanador, marceneiro,  chaveiro, limpador de vidros, eletricista, engraxate que ia buscar e entregar os sapatos o afiador de facas, o consertador de panelas e  outros prestadores de serviços fundamentais. As minhas lembranças  ficaram  marcadas por cada um deles que nos atendiam na rua Cubatão, na Vila Mariana, onde morávamos. Alguns se tornaram amigos de casa, figuras incorporadas não só nas nossas lembranças como nas nossas memórias  afetivas. O leite de cabra  não me marcou nem pela senhora que conduzia o animal e nem pela cabra.  Mas sim pelo leite, por isso o título. Ah! O leite. Espumoso, quente, sim saia quente. Não pensem que era fervido, não. Saia quente da generosa cabra, diretamente para o copo. Tinha   um sabor característico, inigualável. Era gorduroso, isso é verdade. Mas, e daí? Falo do leite não só pelo seu sabor, que só por si já bastaria. Mas, quero me referir ao seu entorno. Em primeiro lugar à  minha avó paterna, pois era em sua casa que a cabra passava. Morava ela na esquina de Stella com Cubatão. Nos dias de visita da representante da raça caprina eu ia à casa da avó. Quando a senhora chegava eu descia com dois copos que eram enchidos. Pagava e subia com minha avó para deliciar-me. Ia esquecendo de um aspecto : a cabra anunciava a sua chegada tocando um simpático sininho colocado em seu pescoço. Sentávamos minha avó e eu, em duas cadeiras de balanço. Velhas cadeiras, que a acompanhavam há mais de cinquenta anos. Eram de palhinha. Passávamos longo tempo sorvendo o leite. Vovó, então,  contava-me histórias de seu tempo de jovem. As histórias sempre eram as mesmas. Cada narrativa, no entanto, apresentava aspectos novos ou que modificavam os descritos antes. Eu me deliciava. Saibam, no entanto, que as nossas conversas e as suas narrativas não eram só regadas a leite. Não. Quando não havia leite, nós tomávamos um detestável martini branco, acompanhado de uma latinha de castanha de caju. O leite de cabra e todos os produtos e serviços originários dos magníficos artesãos que batiam às nossas portas simbolizam uma época na qual o homem comandava atividades essenciais ao nosso dia a dia e criavam sólidos laços de afeição e de amizade. Por mais que possa a tecnologia não poderá substituí-los.
terça-feira, 12 de setembro de 2023

Ele se foi. A sua alma ficou. Ele é imortal

Todos nós, em algum momento da vida, ou em vários, ou durante ela toda, tivemos algum amigo que nos auxiliava e amparava, em situações específicas ou permanecia atento e alerta para intervir quando necessário fosse. Laços de amizade formavam um elo entre essas pessoas a nós de forma absolutamente desinteressada. Essa afeição nem sempre correspondida a um estreito relacionamento no nosso cotidiano. E, nem era preciso, pois bastava haver uma necessidade para que o protetor dissesse presente.   Durante a minha já longa existência - quero que ela mais se alongue - eu encontrei um expressivo número de amigos prontos a dar estímulo e colaboração à uma empreitada ou para estender-me a mão em alguma situação de dificuldade.   Um desses amigos foi-se recentemente. Seu nome, Antônio Ivo Aidar. A característica mais marcante do nosso relacionamento foi o seu desprendimento. De mim nada quis, mas muito me deu.   Era notável o seu entusiasmo pela Ordem dos Advogados e por sua política. Logo nos primórdios de sua carreira profissional talvez antes até de formar-se, empenhou-se na instalação da subseção da OAB na sua amada cidade natal, Olímpia. Os colegas de lá devem ser gratos à sua insistência e pertinácia, responsáveis pela subseção local. Não pararam aí  as postulações de Ivo em prol de sua cidade. Anos depois, foi inaugurada a Casa do Advogado, que leva o nome de Henri Couri Aidar, saudoso advogado, homem público e dirigente esportivo de escol,  também de Olímpia. Creio também que se não fosse a sua   obstinação os advogados locais não teriam a sua Casa. Quanto a mim, creio dever a Ivo boa e significativa parcela da minha trajetória junto à OAB. A subseção de Olímpia foi instalada quando a Ordem de São Paulo era presidida por Mário Sérgio Duarte Garcia. A pedido de Ivo fui designado para fazer o discurso na solenidade de inauguração. A partir desse evento, creio eu em 1980, trilhamos juntos uma longa e exitosa trajetória na política de classe. Quando em 1986, fui candidato à presidência da entidade lá estava ele me apoiando, estimulando e trabalhando intensamente em toda a sua região. Foi grande a sua indignação e inconformismo em relação à votação de Olímpia: dois advogados não votaram em nossa chapa. Ivo passou vários anos para descobrir quem foram os insubordinados, que não obedeceram à sua voz de comando. Nos anos seguintes, seguramente durante trinta e poucos anos ele participou intensamente das campanhas de Ordem, apoiando os candidatos lançados por nosso grupo que originariamente denominava-se Tempos Novos. Nos anos em que o grupo não apresentou candidato o seu inconformismo era grande. Ligava-me constantemente para reclamar, pois entendia que eu era o "chefe", o responsável único pelas decisões do grupo. Essa sua impressão a meu respeito  muito me lisonjeava. É preciso acentuar que Ivo não era apenas um entusiasta da política,  exercida por ele com grande maestria. Tinha muita percepção não só dos fatos da política como decifrava os homens que dela participavam. Irônico e sagaz não perdoava aqueles pouco dotados de inteligência, e com finura de espírito produzia tiradas  hilariantes a respeito de suas vítimas.   Ivo possuía características peculiares que lhe emprestavam um natural charme expresso por suas  pitorescas observações e condutas, sempre marcadas pelo seu agudo senso de humanismo, solidariedade e bondade.   Não posso deixar de invocar o testemunho daqueles que acompanharam a sua carreira como advogado e o assistiram nas audiências. O grande advogado de família era  respeitado e  temido pelos adversários,  por alguns  juízes, pois não perdoava os desvios éticos dos colegas e os abusos dos magistrados. Reagia com enérgicas e sarcásticas intervenções. A defesa intransigente de seus clientes assegurava a esses uma assistência eficiente e corajosa numa área delicada e sensível da profissão.    Ivo atuou em vários setores e departamentos da Ordem, tendo se destacado na presidência da Comissão do Advogado Deficiente. Nessa oportunidade, demonstrou toda a sua sensibilidade humana e o seu poder de cativar as pessoas. Ivo foi amado por quem o conheceu. Meu amigo de sempre e sempre amigo, da minha parte  ficam a minha gratidão, a minha saudade e a minha permanente lembrança dos momentos  de vida compartilhados com ele. Como disse o poeta Fernando Pessoa,  a morte é como a curva do rio, apenas não se é mais visto. Você viverá, Antônio Ivo Aidar, na memória de todos nós, por isso você se tornou imortal.
quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Descobrindo o Brasil

Escrevi em certa ocasião que "Quem gosta do Brasil é estrangeiro". O título talvez conduza à generalização no sentido contrário: o brasileiro não gosta do Brasil. Há compatriotas que obviamente amam o país em que nasceram. Diria que, em regra, esses pertencem às camadas menos privilegiadas da sociedade. São homens e mulheres simples que herdaram dos seus pais e dos ensinamentos escolares o respeito pelos símbolos da pátria; o culto pelos que se destacaram nos campos da literatura, da música, das artes plásticas e em outros setores; a admiração por alguns eventos históricos como a independência, a inconfidência mineira, a libertação dos escravos e muitos outros motivos de estima que o país nos fornece.   Lamentavelmente, o mesmo sentimento de apreço pelo que é nosso nós não encontramos em alguns setores mais sofisticados pertencentes às elites, especialmente aquelas melhor posicionadas financeiramente. Há uma indisfarçável tendência dos seus integrantes em supervalorizar tudo que é oriundo de fora em detrimento do que é nosso. São pessoas que ao obterem êxito econômico e posição social destacada passam a negar as suas raízes e principalmente olvidar as razões desses êxitos, todas elas vinculadas ao país em que nasceram. Trocando em miúdos, quero dizer que ganham dinheiro no Brasil e o desprezam. Mais do que isso, sonham em deixar o país, ou ao menos desejam mandar seus filhos para outras plagas.      Esse desapego talvez se deva ao fato de termos sido uma colônia durante três séculos. Mesmo após nossa independência não adquirimos com clareza e com firmeza uma identidade nacional. Nos deixamos influenciar por culturas alienígenas a ponto de usarmos outros idiomas como linha auxiliar de nossa língua.   E isso, em uma escala alarmante. Tivemos primeiro o francês e, posteriormente, o inglês impregnando a nossa fala cotidiana e substituindo o português na publicidade, na marca de produtos e na denominação de estabelecimentos comerciais. Esses e outros aspectos representam um nítido complexo de inferioridade.  Nelson Rodrigues afirmou que nós padecemos do complexo do cão vira lata e somos verdadeiros Narcisos ao inverso. Olhamos para o espelho e não gostamos do que vemos. Eu ousaria contestar o grande teatrólogo para dizer que o cão vira lata, como aliás afirmou Eduardo Giannetti possui uma grande capacidade para improvisar, criar soluções e superar obstáculos tal como nós brasileiros. Esses atributos do vira lata permitem que ele sobreviva a todas as agruras da vida.  Esta comparação feita por um ângulo positivo mostra que se somos como o cão que vira as latas tanto como ele temos condições de resolvermos problemas e de construirmos o nosso próprio futuro, com as aptidões que nos são inatas. Portanto, "herdeiros" ou não dessas características caninas, não há razões para essa depreciativa noção que alguns possuem. O atávico desamor nacional que marca certos segmentos sociais constitui sem dúvida um fator importante de atraso civilizatório em vários setores da vida nacional. Eu fiz toda essa digressão como sinalização para essa questão da baixa estima que nos acompanha, parece que desde sempre. Na verdade, quero exatamente contar algo que nos dá orgulho e envaidece. Escrevo sobre isso, pois chegou a hora de enaltecermos o positivo e não ficarmos presos ao depreciativo, ao reprovável. É pouco aquilo que vou discorrer brevemente. Mas, de pouco em pouco vamos descobrir que temos uma infinidade de aspectos dos quais nos orgulhamos. Vou me referir a um museu que visitei na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se do Museu Histórico Nacional. Está instalado num adorável conjunto arquitetônico que imagino ter sido uma fortaleça. Posteriormente, um palácio que deve ter tido inúmeras serventias. Localizado na região central do Rio, perto do Aeroporto Santos Dumond e quase encostado à antiga Casa de Misericórdia, ele não fica devendo a qualquer museu do mundo se for feito um cotejo. As obras: pinturas esculturas, peças decorativas, louças, moedas, armas, móveis, quadros de personagens, estão expostos e organizados cronologicamente e seguidas por explicações colocadas ao lado de cada uma de molde a nos dar informações completas sobre cada uma e, sendo o caso, sobre os seus autores. Inclusive sobre a nossa pré-história há obras e valiosas explicações. Toda a nossa história está descrita e exposta de forma pedagógica, ilustrativa e abrangente dando-nos, tanto quanto um museu pode dar, noções valiosas das nossas origens, da nossa cultura e de como construímos o país que temos. Eu citei apenas um dos nossos museus. Inúmeros outros devem ser realçados: Museu do Amanhã; Museu do Ipiranga; Museu de Belas Artes; Museu da República (Catete); Museu de Petrópolis; Museu da Quinta da Boa Vista; Museu do Futebol; Museu da Língua Portuguesa; os vários Museus de Imagem e de Som e outros tantos de Arte Moderno e Arte Contemporânea espalhados pelo Brasil. O destaque agora foi para os museus. No entanto basta que nos despojemos do preconceito inferior e adquiramos autoestima para enxergar nossas qualidades e nossos valores. Precisamos entender definitivamente que não somos piores nem melhores do que outros povos, somos sim diferentes. Salve essa diferença.  
segunda-feira, 3 de julho de 2023

Precisamos defender o habeas corpus

Uma série de fatores sociais, políticos e jurídicos transformaram substancialmente as relações interindividuais, assim como aquelas que envolvem os cidadãos e o Estado. Um desses fatores foi o aumento da criminalidade e, como consequência , a ação repressiva do Estado. O sistema jurídico nos mostra que, se de um lado, o crime deve ser reprimido, de outro, a sociedade precisa estar protegida contra o arbítrio e o abuso de poder. O arcabouço jurídico foi construído tendo em vista esses dois objetivos. Sendo assim, nós temos os Direitos, Penal e Processual Penal, voltados não só para a atividade punitiva como  para a garantia  da dignidade e da liberdade do homem. No direito pátrio o instrumento mais eficiente de proteção individual é o Habeas Corpus. Mercê de sua simplicidade procedimental, pois não prevê uma fase probatória e um contraditório amplo, a sua impetração leva a decisão rápida que visa pôr fim a uma coação ilegal. No entanto, nos dias de hoje,  estamos assistindo a uma diminuição sensível no acolhimento por parte do Poder Judiciário desse fundamental instrumento de proteção aos direitos individuais. Em nome do acúmulo de processos  o âmbito de sua  aplicação está sendo gradualmente reduzido, assim como a atuação dos advogados impetrantes está cada vez mais sendo dificultada e mitigada. Em face da sua importância, tradicionalmente o Habeas Corpus é chamado de "remédio heroico". Pois bem, aproveitando a analogia médica, pode-se afirmar que se está atacando a doença com a morte do doente. Em nome da tentativa de se desafogar os Tribunais,  está se deixando que  pereçam os direitos que deveriam ser amparados pelo remédio tido como heroico. O nosso país sempre teve em seu ordenamento jurídico, desde a Constituição de 1824, normas de proteção aos direitos individuais. Não explicitamente, mas de forma clara e precisa, a Carta da Monarquia impunha obrigações  a toda autoridade que efetuasse a prisão de alguém. Posteriormente, a legislação ordinária passou a utilizar a expressão Habeas Corpus como meio de defesa contra uma coação ilegal. Em 1889, a Constituição Republicana deu ao instituto uma amplitude que alcançou não só o direito de ir e vir, como quaisquer outros que não poderiam ser exercidos em face de uma coação ilegal. As Constituições posteriores, inclusive a de 1988, mantiveram o Habeas Corpus, ao lado do mandado de segurança, ambos como eficazes instrumentos para a salvaguarda de diretos atingidos por uma ilegalidade. Houve um momento da nossa história recente que o Habeas Corpus sofreu uma sensível diminuição em sua amplitude, especialmente com o ato institucional nº 5, de l969, que praticamente o suprimiu. Como já dito, atualmente, obstáculos estão sendo impostos à impetração e ao julgamento de Habeas Corpus. Deve-se apontar, incialmente, a constante quebra do princípio do colegiado, na sua  apreciação por parte dos Tribunais. Uma das características que inclusive justificam a  existência desses órgãos é exatamente possibilitar a revisão das decisões de 1º grau, por meio de julgamentos coletivos, proferidos por Magistrados mais antigos na carreira e, portanto,  mais experientes. A  regra do colegiado, no entanto, vem sendo sistematicamente desobedecida. O Habeas Corpus não está sendo polpado.  No mesmo dia da impetração os autos são distribuídos e nos dias subsequentes, quando não no mesmo, recebem uma solução individual. Os advogados não têm oportunidade sequer de entregar memoriais e o Ministério Público de se manifestar. Tem-se pleno conhecimento da enorme quantidade de processos acumulados nos Tribunais. Ademais, sabe-se eu o número de sustentações orais por sessão de julgamento é excessivo. Esse fato muitas vezes leva os Magistrados à exaustão no final dos dias. A necessidade e a qualidade de algumas sustentações, por outro lado,  deixam muito a desejar. A partir de tais constatações vários advogados estão em contacto com Ministros dos Tribunais Superiores para que, em conjunto, sejam encontradas soluções que conciliem as dificuldades dos Magistrados com os direitos dos jurisdicionados. Uma das medidas aventadas é a organização da advocacia em carreira, tal como ocorre na maioria dos países. Será adotado um critério temporal que venha a possibilitar aos profissionais após cinco anos de militância em 1º grau, oficiar perante os Tribunais localizados nos Estados e após outros cinco postular junto às Cortes Superiores em Brasília. Deseja-se minimizar as agruras provocadas pelo excesso de litigiosidade com, no entanto sendo preservados o direito dos cidadãos terem as suas postulações integralmente examinadas pelos Tribunais, por meio de decisões obrigatoriamente colegiadas, após a livre manifestação dos advogados nas tribunas, em respeito ao pleno exercício do sagrado direito de defesa.
quinta-feira, 22 de junho de 2023

Povoar o centro para ressucitá-lo

Não me impressionam no centro da cidade os moradores de rua, pois esses infelizmente habitam São Paulo em todos os seus bairros e cantos. É o reflexo de uma trágica situação de desequilíbrio social que se agrava há anos e encontra a imutável insensibilidade por parte expressiva da sociedade e a quase inércia absoluta do Estado como respostas. Ações esporádicas de solidariedade e providências governamentais de pouca efetividade ficam muito além das necessidades reais da população de rua e permanecem distantes da solução do problema, que só se dará quando todos tiverem um teto que os abrigue em condições dignas de habitação. Abstraindo-se essa trágica questão social, assim como o estado de deterioração de inúmeros imóveis, e também o  precário estado das calçadas e do piso das ruas, o fato que mais me aflige e chama a minha atenção é o abandono físico das ruas do centro. Entenda-se esse abandono como a ausência de pessoas circulando por espaços anteriormente quase intransitáveis, como diriam os antigos apinhados de gente.  Quer o chamado "centro velho," quer aquele ligado pelo Viaduto do Chá, o "centro novo" que já é vetusto, as ruas abrigam poucas lojas abertas e um número cada vez menor de transeuntes. Essa característica empresta a certas regiões um triste ar de desolação, na verdade a aparência de um corpo desprovido de alma. O que ainda permanece são as histórias de um centro pungente no qual fervilhavam todos os sentimentos de um povo que emprestava à cidade características de um burgo em permanente crescimento industrial, financeiro e cultural. As velhas ruas que circundavam a Praça da Sé, tais como  Riachuelo, Senador Feijó, Benjamin Constant, Quintino Bocaiuva, 15 de Novembro, Direita, São Bento, Largo de São Francisco, um pouco mais abaixo José Bonifácio, Líbero Badaró, Páteo  do Colégio, Alvares Penteado, Boa Vista, do Comércio, Patriarca carregam uma carga repleta de eventos históricos e de lirismo, plantado pelos vates,  estudantes da Velha Academia. Sobre cada um desses espaços foram debruçadas epopeias que marcaram a história de São Paulo, cada uma delas como reflexo de sonhos e de ideais que impulsionavam e davam razões de viver para as respectivas gerações. Na Praça da Sé, os inesquecíveis comícios das Diretas Já. Anteriormente, os apelos cívicos de trinta e dois, as campanhas eleitorais e até um sangrento evento que envolveu integralistas e comunistas, na chamada Guerra da Praça da Sé, dentre inúmeros outros. Os acadêmicos do Largo de São Francisco marcavam a cidade com as suas fanfarronices, críticas, zombarias, troças, por meio dos "trotes" e das "peruadas". Por outro lado nas passeatas que ocupavam as ruas acima citadas procuravam levar à população mensagens em prol da redemocratização do país, durante a ditadura Vargas; na Revolução de 1932; clamaram pela participação do Brasil na 2º guerra mundial ao lado dos aliados; proclamaram a necessidade da anistia aos presos políticos e ajudaram a levantar a Nação em prol das eleições diretas.    Voltando às ruas e às suas efemérides: a Líbero Badaró assistiu ao assassinato do Jornalista que lhe emprestou o nome; o Largo de São Bento presenciou a aclamação de Amador Bueno como Rei dos Paulistas, título não aceito; a Rua de São Bento possuía uma cruz em sua extremidade, que segundo a lenda teria sido furtada pelos estudantes. A verdade é que ela desapareceu. O mesmo destino teve o badalo do sino da Faculdade, que foi furtado para que não mais fosse acionado para chamar os alunos às aulas.   No final da hoje rua Cristovam Colombo, lateral ao Largo de São Francisco, havia um barranco que produzia um eco muito forte e nítido. Consta que o poeta Olavo Bilac quando estudante se dirigia à sua beira e gritava "boa noite" para ouvir de volta a retribuição da gentileza "boa noite". Essas mesmas ruas e aquelas situadas após o Viaduto do Chá eram ocupadas pelos estudantes que com grande frequência faziam serenatas àquelas que desejavam conquistar. Como regra não despertavam o interesse das donzelas, mas sim ganhavam baldes de água fria acompanhados do próprio balde arremessado pelos futuros ex-sogros. Acadêmicos vestidos de mulher perambulavam pelas vias da cidade alguns portando armaduras medievais e outros armados de palmatória prontos para castigar algum notívago que era mandado para casa. As hoje abandonadas vias do centro abrigavam bares e restaurantes que se fixaram na memória degustativa e sentimental de todos os que, como eu, os frequentavam diariamente, impossibilitados de ir fazer refeições em suas próprias casas, especialmente em razão do horário do expediente forense. Gouveia; Corso; Campestre; Itamarati; Ouro Velho; Amarelinho; os japoneses da Liberdade; Mon Ami; Bar das Sardinhas; Terraço e outros eram locais também de confraternização e comemorações. Abrigavam especialmente advogados, promotores, juízes, estudantes, funcionários do Poder Judiciário, enfim acolhiam toda a família forense e possibilitavam um congraçamento que tornava ameno e agradável um convívio muitas vezes, durante os trabalhos judiciais, marcados, não raras vezes por contrariedades e alguns dissabores. Imagino que o Centro de São Paulo possa um dia voltar a ser um expressivo núcleo de sociabilidade para os paulistanos numa conjugação de pessoas com uma cidade marcada por história, arquitetura extraordinária e um acendrado simbolismo sentimental e afetivo. 
sexta-feira, 16 de junho de 2023

A amizade: sentimento que está em falta

A amizade é uma necessidade do ser humano decorrente de sua característica de animal gregário que é.  Desta forma, possui a tendência de se relacionar que, por sua vez, provoca situações que criam uma dependência afetiva com outros seus semelhantes.   Raros são os misantropos, os que se isolam e desejam a solidão como forma de vida. Na verdade, eu imagino que tais pessoas não se isolaram sempre. Um fato qualquer, uma forte decepção, um evento específico deve ter provocado aversão pela vida em sociedade e o seu consequente afastamento. O cronista, aliás excepcional cronista e compositor, Antônio Maria, disse em relação aos seus amigos que eles "nunca se sofreram". No entanto, nem todos podem afirmar que nunca tiveram sofrimentos ou percalços em suas amizades. O fenômeno da amizade reflete a própria natureza humana, que apresenta uma carga de erros, desencontros, desacertos, próprios da falibilidade humana.   Eu posso afirmar que tive e tenho inúmeras amizades que resistiram a incontáveis vicissitudes. Algumas delas, no entanto, foram rompidas. Não levo em conta as causas, muito menos os culpados, importa sim que elas, apesar de interrompidas, entraram no rol das minhas mais gratas recordações. As experiências que tive no campo das amizades desmentem um outro grande jornalista, escritor e dramaturgo que foi Nelson Rodrigues. Para ele o amigo é "a desesperada utopia que todos nós perseguimos até a última golfada de vida". Eu posso afirmar que transformei a utopia em sonho e este em realidade. Tive e tenho amigos. Uns já se foram para o outro patamar. Como eu creio na perenidade daqueles que continuam a viver em nossa lembrança, eles para mim são imortais. Como disse o poeta, a morte é como a curva de um rio, só não se é mais visto.    A amizade em regra não cobra retribuição e nem é egoísta. Ao contrário do amor que exige reciprocidade e exclusividade. É interessante a indagação que se faz vez ou outra, a respeito dos motivos que levam a se ter amizade por alguém.  Por que sentimos afeto por determinada pessoa? Estou me referindo às amizades sem causa, aquelas que surgem sem que tenha havido algum motivo. A respeito dessa afeição instantânea fala-se, simbolicamente, em amor à primeira vista, diz-se que houve uma "química", uma recíproca atração, e coisas que tais. Aliás, todas essas expressões retratam uma tendência, uma inclinação recíproca entre duas pessoas. Essa simpatia não possui nenhuma base na realidade das coisas, ela decorre do instinto. Ser amigo é aceitar o outro, como as suas características, defeitos, qualidades, sem nenhuma avaliação ética ou moral. Você pode sentir afeto por quem você não comunga das ideias, não concorda com o comportamento, por vezes recrimina, mas apesar disso você gosta e ponto final. Ser amigo não é fazer uma escolha padronizada, consoante um modelo preordenado, como se retirasse o amigo de um manequim, como um vestido ou um paletó. A amizade é sobretudo um acolhimento.   Em resumo, ela simboliza a fraternidade, o amor que deve reger o relacionamento em sociedade. Todas as barreiras que nos separam uns dos outros podem ser superadas se os pressupostos da amizade estiverem presentes. Mesmo que não se queira a aproximação com alguém ou com um grupo é necessário que eles sejam respeitados, aceitos, tolerados. Esses sentimentos representam a antítese da discriminação e da intolerância raivosas, odientas que infelizmente foram propagadas nos últimos anos e deixaram raízes que precisam ser removidas. Na verdade, nunca a amizade e a recuperação da essência do seu significado foram tão necessárias como atualmente.    Não seremos amigos de todos ao mesmo tempo e nem em tempos diversos. Mas poderemos ter um olhar de compreensão, tolerância, complacência, aceitação, amizade, enfim amor, com todos e com tudo mesmo com os que mais se distanciam e diferem de nós. O afastamento  e a divergência não podem trazer a repulsa e a malquerença.
terça-feira, 30 de maio de 2023

Viver é preciso. Morar também

Um dos mais angustiantes problemas da atualidade são os moradores de rua. Não se pense serem eles os responsáveis por esses problemas. Em verdade representam a sua consequência, vitimados por uma histórica situação de injustiça social. Constituem as suas vítimas e em nada contribuíram para a sua ocorrência. Um acúmulo de fatores levou às ruas milhares de paulistanos, para nos fixarmos apenas na cidade de São Paulo. Todos eles convergem para um denominador comum: a histórica e crônica desigualdade social, que nos acompanha desde sempre. Ela é fruto da má distribuição de rendas; da ausência de empregos; da baixa escolaridade; da inexistência de políticas públicas, dentre tantas outras causas, que foram agravadas pela pandemia do COVID. Ademais, a iniquidade é refletida na carência em áreas como as da saúde e do saneamento básico; da habitação; da alimentação; do vestuário; da violência; da criança abandonada. Essa desigualdade, cujas razões e efeitos foram exemplificados acima, é marcada por um aspecto que lhe empresta uma situação de permanência e imutabilidade, qual seja a insensibilidade das chamadas elites. O mais arguto e atento observador dessa tragédia, a ausência de moradia para milhares de pessoas, não consegue assimilar e, portanto, transmitir o sofrimento que acomete essas pessoas. Trata-se de uma situação inenarrável. Para se chegar perto da realidade é necessário que se tenha extremada sensibilidade, ausência e egoísmo, e acima de tudo amor ao próximo. Aqueles sentimentos, no entanto, estão ausentes de parcelas consideráveis da nossa sociedade. Caso tenham um dia se sensibilizado com o angustiante problema, logo se acostumaram a com ele conviver. Vale dizer, se ele não causar nenhum incômodo, as pessoas pouco ou nada se importarão. O ideal é que as "habitações" não fiquem no seu campo de visão, assim a situação será esquecida. Esquecida não, desprezada.   Poder-se-á indagar, em face da situação qual diferença faria o maior interesse da sociedade. Talvez essa indagação se justifique especialmente nos dias de hoje, quando o individualismo se tornou marcante na sociedade brasileira. Embora os meios de comunicação e de informação tenham sido aprimorados e agilizados, estamos diante de desafiador paradoxo:  as pessoas podem se ver e se comunicar com mais facilidade, no entanto, estão mais voltadas para si e mais distantes das questões coletivas. Caso houvesse um despertar geral para os problemas que afligem comunidades e segmentos específicos, com certeza a rede de solidariedade conseguiria minimizar consideravelmente os sofrimentos dos seus integrantes. Ademais, a sociedade como um todo, uma vez mobilizada poderia ser um instrumento de pressão junto aos governos cujas ações de enfrentamento do problema são parcimoniosas, pouco eficientes e normalmente possuem um caráter meramente midiático. Um exemplo da natureza dessas ações, é aquela desenvolvida pela Prefeitura em relação às barracas existentes na Praça da Sé e adjacências. Pela manhã, as "moradias" são retiradas para que haja uma limpeza nos respectivos locais. Denomina-se essa conduta de "zeladoria". Depois de um determinado horário à noite as mesmas barracas são respostas. Suaviza-se o problema de forma meramente estética, plástica, visual, durante o dia até o anoitecer. Pergunta que se impõe: e as pessoas para onde vão, onde ficam, o que fazem durante essas longas horas? Perambulam pelas ruas, com certeza. Estamos falando de seres humanas: homens, mulheres, idosos, crianças, doentes, grávidas, viciados, todas as espécies que compõe esse vergonhoso universo de desvalidos, que nem sequer possuem um teto durante o dia, ao menos de lona. A vergonha deveria ser nossa. Talvez ela nos impulsionasse, em nome da solidariedade humana, a sair da inércia e a imitar o apelo do grande historiador Capistrano de Abreu, no sentido de que a Constituição da República deveria ter uma única norma de comando "Todo brasileiro deverá ter vergonha na cara". Entenda-se a expressão vergonha como o sentimento de honradez, decência, pudor, dignidade, cuja ausência denota, além da carência daquelas qualidades, uma absoluta falta de sensibilidade, solidariedade e como já dito de amor ao próprio. O "outro pouco se me dá como pouco se me deu". Para amenizar a cruel situação dos habitantes das ruas, da sociedade se exige reconhecer o problema e não permanecer inerte. Já há algumas ações concretas de auxílio e amparo, mas são insuficientes, precisam ser ampliadas. Como a questão necessita de medidas que atinjam a sua raiz, do Estado se espera, na verdade se exige, planejamento, recursos e vontade política para ele fazer o que tem que ser feito: disponibilizar moradias, construindo-as ou adaptando imóveis já existentes. Morar, não nas ruas, é preciso, para se viver com dignidade. 
quarta-feira, 17 de maio de 2023

Sustentações orais: A minha primeira no STF

Um dos problemas que afligem a advocacia criminal nos nossos dias diz respeito às sustentações orais. Alguns fatores têm causado algum incômodo nos magistrados. Eles não escondem o mal-estar que sentem em face do número excessivo de advogados na tribuna em cada sessão. Eu acrescentaria que a má qualidade de algumas sustentações constitui outro fator da indisposição, mas que não é revelado por elegância e respeito a nós, outros advogados. Como regra, são de quinze a vinte sustentações diárias. Esse número é comum nos Tribunais Superiores, nos Tribunais Regionais e em alguns Estaduais, como os de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Eu me espanto com o crescimento acelerado, vertiginoso do número de colegas que comparecem para sustentar nos dias de julgamentos. Até poucos anos apenas em certos casos de maior complexidade os colegas viam necessidade de se comunicarem oralmente com os julgadores durante os julgamentos. Entregava-se memoriais, por vezes pessoalmente e apenas nas hipóteses de esclarecimentos mais pormenorizados ou em face de maior complexidade é que se sustentava. Vários advogados, eu inclusive, no ato da contratação deixávamos claro que a sustentação ficaria exclusivamente a nosso critério. Sabíamos que por vezes ela seria contraproducente e isso pelas mais variadas razões. No entanto, atualmente especialmente os colegas recém-formados não adotam nenhum critério de necessidade ou de oportunidade e sustentam em todo e qualquer caso. Por vezes, usam a tribuna apenas para lerem as razões já escritas ou os memoriais apresentados. Sensibilizados com o grande número de sustentações orais desnecessárias, por vezes produzidas por colegas ainda carentes de experiência e de preparo técnico, nós, advogados mais antigos e afetos aos julgamentos dos órgãos superiores, passamos a cogitar na hipótese de enviarmos ao Congresso Nacional um projeto de lei organizando a advocacia em carreira, tal como ocorre em outros países.        Ao lado do fator acima apontado, número não pequeno de sustentações desnecessárias, é preciso ser realçado outros motivos que são alheios à conduta dos advogados. Os Tribunais Estaduais e os Regionais Federais recebem um número expressivo de recursos e de habeas vorpus em razão do rigor dos juízes de primeira instância que decidem em consonância com a cultura punitiva que se instalou no país. Exacerbação das penas; decretação de preventivas estando ausente a sua necessidade; manutenção de flagrantes em crimes de bagatela; ignorância dos fatores deletérios das cadeias; indeferimento de postulações defensivas e claro desequilíbrio no tratamento das partes nos processos são alguns dos fatores que nos obrigam a que se valha dos tribunais. Por outro lado, como os tribunais dos Estados não seguem reiteradas decisões em um mesmo sentido proferidas pelos tribunais de Brasília, esses são acionados em nome da unicidade e coerência do sistema penal. Desta forma, como é óbvio, os próprios órgãos do Poder Judiciário são responsáveis pelo acúmulo de processos nos tribunais superiores. Um outro fato que vem nos afligindo diz respeito aos habeas corpus. Os seus julgamentos estão sendo feitos monocraticamente pelos respectivos relatores. As decisões são proferidas sem que o advogado tenha tido oportunidade de sustentar e nem sequer de despachar memoriais. Não são raros os casos nos quais uma vez distribuída a medida receba um imediato despacho. Havendo indeferimento resta ao impetrante o agravo regimental, que agora permite uma sustentação oral por cinco minutos. Concessão outorgada por uma recém lei, mas que nada representa em face da exiguidade do tempo e pelo indeferimento já existente. Esse estreitamento do grande instrumento da liberdade que é o habeas corpus representa verdadeiro atentado à liberdade dos jurisdicionados e ao próprio Estado Democrático de Direito. Bem, para amenizar esse texto, eu passo a narrar a minha primeira sustentação oral no Supremo, em uma época na qual o direito de defesa era exercido em sua plenitude. Foi em 1974, ainda quando as franquias democráticas estavam fortemente mitigadas. Estava apreensivo, mas feliz por ir à Brasília apresentar-me ao Supremo pela primeira vez. Tomei o avião, sentei-me, afivelei o cinto, afrouxei a gravata, mas não tirei o paletó. Terrível erro. Uma simpática e solícita aeromoça ao me trazer um suco de laranja o entornou por inteiro em meu paletó e camisa. Atingiu também a gravata.    O seu constrangimento e as desculpas reiteradas impediram-me de reclamar. Acabei por dizer-lhe que não era nada, que não se preocupasse. Menti, pois era muito. No entanto, mesmo impregnado pelo cheiro da laranja e pelas manchas amarelas, ao vestir a beca no Supremo voltei a sentir o orgulho inicial.
quarta-feira, 3 de maio de 2023

Gloriosos comilões

Uma das manifestações mais eloquentes do viver com alegria, com prazer, com entusiasmo ocorre na mesa, durante uma refeição. A confraternização que ela nos proporciona, em regra, solidifica amizades, sela parcerias, possibilita o congraçamento de ideias e de ideais. A mesa é um verdadeiro símbolo de confraternização humana. Não é outra a razão que todas as raças, todos os povos sejam lá de que origem forem, emprestam um valor inestimável ao momento em  que a família se reúne para os almoços  e jantares. Ultimamente no Brasil tem-se ouvido que as pessoas evitam as reuniões de família, especificamente os almoços de domingo, para evitar manifestações de intolerância política que vem ocorrendo. Uma intolerância raivosa fruto de um discurso radical e profundamente antidemocrático daqueles que não admitem a divergência de opiniões. Oxalá o brasileiro volte a utilizar a cordialidade como regra de conduta e que os descorteses voltem para os armários dos quais jamais deveriam ter saído. Mas voltemos à mesa. Seja da casa, de um restaurante, de um bar, de um boteco, até do chão transformado para os piqueniques. Deve ela voltar a ser símbolo de amizade e de amor. Quero render homenagem àqueles que a cultuam, não só como símbolo de confraternização, mas também como instrumento de apreciação da arte culinária. Senta-se à mesa  para cultivar afetos e para saborear iguarias. Aliás, estas são os atrativos daqueles. Essas homenagens serão personificadas nas figuras de José Eduardo Mariz de Oliveira, meu saudoso irmão e do extraordinário jornalista e historiador Élio Gaspari. E o faço narrando fatos ilustrativos do imenso prazer, da indisfarçável alegria, da reverência e do culto de ambos ao ato de comer. Meu irmão, que já nos deixou há anos, enquanto viveu parece ter vivido para comer e não comido para viver, como dizia a nossa mãe. O seu prazer pela mesa era indisfarçável e se tornou público, eu diria até folclórico. Todos que com ele se relacionavam tinham como sua marca registrada o afeto pelo comer bem. Nem sempre era a excelência dos pratos que o atraia, mas a quantidade. Quando apreciava uma nova iguaria não media esforços para saboreá-la, tantas vezes quantas fossem possíveis. Uma ocasião almoçamos no restaurante Genova e um prato desconhecido para ele foi servido. Macarrão com feijões  (fagioli). Pois bem, o almoço deve ter  terminado por volta das três horas e às seis ou sete, do mesmo dia, lá estava ele para repetir a iguaria. O proprietário da excelente cantina, Sr. João, não se cansava  de divulgar a proeza, inédita para ele e para todos que a ouviam. Em certa ocasião descobriu um sorvete de milho segundo ele espetacular. Fosse a hora que fosse lá ia ele deliciar-se com o gelado. Não se pense que a sorveteria era logo ali na esquina de sua casa. Não me recordo o local, mas era muito longe em um bairro distante quilómetros do seu.          Ao lado de meu irmão coloco o querido amigo Élio Gaspari. Em dia recente tive a confirmação do seu apego à arte de comer. Antes eu já intuía que o emérito historiador e festejado jornalista era um devoto da mesa. Intuição, na verdade baseada em um fato. A convite de outra figura de destaque, o Ministro Delfim Neto, fomos saborear ostras especialmente encomendadas de Cananeia para ele, pelo restaurante Roma. Após terem ingerido, Élio e Delfim, eu um pouco menos, mas não muito menos, dezenas de ostras um disse ao outro, em voz mais baixa, como para ninguém ouvir: "vamos comer agora um macarrãozinho". Em seguida, veio à mesa um suculento macarrão alho e óleo. Para ser honesto preciso confessar que por minha sugestão, ao alho e ao óleo foi acrescentado aliche. Assim, ao lado das ostras foi devidamente devorado um "macarrãozinho". O episódio do Élio que quero narrar se deu no restaurante,  que eu recomendo, chamado Cozinha de Preto, na rua Fradique Coutinho. Estávamos Élio, eu e meu velho, querido amigo Vitorino Antunes. Claro que todos comemos bem e nos satisfizemos, pois o prato era generoso. Todos não. Élio nos disse sem nenhum constrangimento que sentia um pequeno vazio no estômago. Com certeza comeria mais. E, pensamos Vitorino e eu que ele preencheria o vazio estomacal à noite ou com um pequeno lanche quando chegasse em sua casa. Grande engano. Não se fez de rogado e pediu outro prato. Aliás, o mesmo prato. Vale dizer, repetiu o que já havia comido. E o fez sem nenhum esforço, com prazer lambeu os beiços. Vejo nesses dois exemplos e muitos outros existem, uma homenagem à própria vida, à alegria de viver, ao saber viver usufruindo o que ela nos oferece de saudável, de digno e de perene, pois esses momentos dão eternidade ao efêmero.
terça-feira, 25 de abril de 2023

De quase padre a herege

Não consegui até hoje saber a razão que me levou a desejar abraçar a vida clerical, quando tinha uns onze ou doze anos. Não sei o motivo, mas lembro do meu estado de espírito à época. Estava todo ele voltado para aquilo que eu imaginava ser uma vocação irrenunciável. Recordo-me de algo bizarro, mas que deve ter influenciado a minha, à época, inclinação sacerdotal. Eu lia uma revista em quadrinhos ( gibi ) sobre a vida de santos e santas da igreja católica. Certa ocasião assistia a uma missa na Igreja do Embaré em Santos quando uma querida tia, irmã de minha mãe, perguntou-me se ainda eu queria ser padre. Respondi literalmente : "agora mais do que nunca." A frase foi amplamente divulgada para a família. Tenho certeza de que poucos acreditaram na minha contundente declaração. Meus pais, não tenho dúvidas, jamais puseram fé nas minhas inclinações sacerdotais. Conheciam-me bem. Ao fazer um  histórico da minha infância e adolescência   lembro-me que frequentava uma igreja, a Santa Generosa, localizada no Paraíso, Largo Guanabara, cujo pároco era extremamente rigoroso especialmente em relação a nós meninos e jovens que éramos chamados de "cruzados". Acima estava a categoria dos congregados marianos. As moças eram "filhas de Maria".  Eu não cheguei àquela categoria. Não fui promovido. Embora o Padre José nos vigiasse, muitas vezes "cabulávamos" suas palestras dadas na casa paroquial. Dizíamos em casa que iríamos ao seu encontro, mas na verdade o nosso destino era o campo do Olímpicos, a rua Stella e as da imediação onde ficávamos "vadiando". Vez ou outra, tentávamos ir jogar sinuca em bar existente no Largo ao lado da Igreja. Nem sempre conseguíamos entrar, pois não tínhamos idade. Mais velhos passamos a frequentar a sinuca do bar Vermelhinho, localizado na rua Machado de Assis.    Após o curto período em que quis  abraçar a vida religiosa, descobri que a minha "vocação" não era sacerdotal. Eu tenho dúvidas em relação a certos dogmas da Igreja Católica. Não consigo, por exemplo, entender o celibato imposto aos padres; jamais compreendi as indulgências e a confissão; a ideia do pecado; a posição contrária ao planejamento familiar, por meio dos anticoncepcionais; a ferrenha oposição ao aborto mesmo nos casos de anencefalia e do estrupo. Essas minhas objeções e dúvidas, no entanto não abalam a minha fé em Deus, a minha crença nos valores do cristianismo e a admiração e atração pela vida de Cristo.   A minha fugaz tendência clerical veio, no futuro, a se contrapor à uma defesa criminal que fiz, pelo menos na visão de alguns católicos. Fui defensor de um pastor evangélico acusado de haver desferido chutes em uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida, durante um programa de televisão. Ao assumir esse caso não imaginava as suas consequências no âmbito familiar. Eu fui duramente interpelado por uma tia, a mesma da igreja do Embaré, inconformada com a minha atuação profissional em defesa de um agressor da santa. Tentei explicar-lhe que estava sendo porta-voz de um direito sagrado que era o de defesa. Minha tia pouco se importou com as minhas justificativas. "Qual direito de defesa qual nada" e acrescentou: "caso sua mãe estivesse viva você iria ver só"... Nenhum argumento, nenhuma explicação sobre o próprio caso, nada a demovia do sentimento de revolta em relação ao sobrinho até então muito querido.   Com certeza ela pensava: "imaginem ele até quis ser padre!!!"  
sexta-feira, 14 de abril de 2023

Jornalista frustrado. "Foca" realizado

Jornalista frustado. "Foca"  realizado : Na década de sessenta eu já estava realizando tudo que almejava para aquela época. Entrara na Faculdade de Direito; estava trabalhando no escritório de advocacia de meu pai, como office boy forense, depois como estagiário e solicitador acadêmico. No final da década fiquei noivo, formei-me em 1969 e no início de setenta casei-me. No entanto, uma inquietação que me acompanhou durante minha vida, impelia-me a obter novos conhecimentos, viver novas experiências, entrar em contato com pessoas, ampliar os meus horizontes. Hoje verifico que se tratava e se trata de uma grande ânsia de conhecer a vida, o quanto possível, em várias de suas dimensões, ânsia que ainda está presente. Lembro-me que mesmo trabalhando com meu pai, resolvi frequentar um escritório de um primo distante, Laurentino Camargo, localizado no bairro da Penha. Duas vezes por semana saía da faculdade, passava no escritório e tomava o ônibus na Praça Clóvis para meia hora depois chegar no distante bairro. Essa experiência não durou muito, como já era previsível. Anteriormente, como primeiro emprego, trabalhei no 3º Tabelião de Notas, localizado na rua Boa Vista. A minha função era de conferente de escrituras. Muito distraído, eu deixava passar erros de datilografia nas escrituras. Devo ter sido um dos piores conferentes que passaram pelo Tabelião Teixeira. Esse emprego foi obtido depois de grande insistência da muita parte, com a ajuda de minha mãe. Sempre ela. Eu tinha 15 anos e cursava o primeiro ano clássico. O meu padrinho foi o Oficial Maior do Cartório, o saudoso Sr. Pedro Gouveia, velho amigo da família. Depois fiz um breve estágio no Banco da lavoura de Minas Gerais. Ainda quando era estudante de Direito comecei a procurar um jornal para trabalhar, desde que com horário compatível com a Faculdade e com o escritório. A primeira tentativa me foi proporcionada por meu sogro, Murilo Castello Branco, que me indicou para uma entrevista com o jornalista Sábato Magaldi, responsável pela editoria  de cultura do Jornal da Tarde. Eu havia tentado a sucursal de O Globo e para lá fui chamado. Nosso, meu e de meu pai, querido amigo do São Paulo Futebol Clube, Claudio Aidar, foi o responsável pela minha rica experiência como "foca" de jornal.   Minha carreira durou intenso e bem aproveitado um ano. Não permaneci no diário do Rio pelo acúmulo de atividades, pelas apertadas vinte e quatro horas do dia e, principalmente, pelas preocupações que o filho trabalhador causava à sua mãe. Enquanto eu não chegava ela não se deitava. Nessa ocasião eu cursava o quarto ano da Faculdade Paulista de Direito da PUC pela manhã, entrávamos às sete e meia. Morava na Vila Mariana, a escola era nas Perdizes. Da Faculdade ia para o escritório, na Praça da Sé. Por volta das dezessete e trinta rumava para o jornal, localizado no Edifício Zarvos, esquina de Consolação com São Luiz. O expediente não terminava antes das onze, onze e trinta. Antes de remetermos a última matéria pelo telex, nós não saíamos. Invariavelmente a nossa direção era um bar, um restaurante ou até um famoso local frequentado por jornalistas, o Atlântico, situado na avenida Ipiranga. Quaisquer uma dessas direções menos a de nossas casas.   O desvelo e carinho maternos estavam presentes  diariamente, com sacrifício para a sua saúde.  Como só dormia quando eu chegava em casa e sempre após a meia noite, uma hora da manhã ou mais tarde e se levantava muito cedo para acordar-me, as suas noites eram curtas e mal dormidas. Por essa razão, a minha trajetória como jornalista foi efêmera, mas enriquecedora, pois me possibilitou conhecer o fascinante mundo do jornalismo. Captar informações, interpretá-las, divulgá-las, comentar fatos e situações, expandir a cultura clássica e a popular, enfim tornar-se o elo entre o indivíduo leitor e o mundo que o cerca. A minha primeira experiência como jornalista foi em uma entrevista coletiva concedida pelo então Ministro Delfin Neto. Absolutamente jejuno em economia limitei-me a registrar as respostas às perguntas dos colegas. Uma sua manifestação ao final da entrevista impressionou-me. Ao se despedir perguntou alto e bom som qual o local, nas redondezas, onde se poderia tomar um "bom  chope". Essa sua indagação gerou a minha simpatia, não pelo Ministro do Governo Militar, mas pelo apreciador das boas coisas da vida. A pequena redação da sucursal abrigava excelentes e experientes jornalistas. O chefe era o Candinho, egresso da Folha e um excelente jornalista, emérito farejador de notícias capaz de dar furo nos jornais de São Paulo. A experiência jornalística me fez observar a grande similitude dessa profissão com a advocacia. O exercício de ambas impõe a existência de um regime político no qual impere a liberdade. Há uma absoluta incompatibilidade dessas profissões com o  autoritarismo. Sem democracia e direito à livre expressão não se faz jornalismo e não se advoga.    Em uma sucursal, adquire-se um conhecimento global de todas as múltiplas atividades de um jornal. Salvo a entrega dos exemplares nas bancas e a parte fotográfica todos os jornalistas fazem de tudo. Assim é em relação a experientes profissionais, que dirá para um foca. Eu era um. Redigia, entrevistava, fazia a "cozinha" com base nas noticiais dos jornais locais eu só não dava título às matérias. Minha experiencia em jornal foi curta, mas deixou marcas significativas na minha formação pessoal.
terça-feira, 4 de abril de 2023

Fui técnico de esgrima: verdade e mentira

Tenho escrito por gentileza de Migalhas singelas colunas sobre variados assuntos. Agora estou traçando recordações também diversas e um tanto desordenadas sobre fatos e pessoas marcantes em minha vida.  Procuro situar as minhas lembranças no tempo e no espaço e, com isso, reviver situações não só de importância pessoal como aquelas marcantes para as respectivas épocas.  Eu quero salientar um aspecto referente à memória. Por vezes surgem recordações que não nos permitem ter certeza se nós fomos participantes dos eventos lembrados. Vale dizer que nem sempre nós vivemos o que recordamos. A nossa memória não distingue com exatidão se certas imagens e eventos foram por nós vivenciados ou se nos foram transmitidos por terceiros. Por vezes, a descrição que nos é feita passa a povoar a nossa mente com tal intensidade que ficamos sem saber se retrata uma realidade ou se faz parte do nosso imaginário. Os fatos ficam tão arraigados em nosso íntimo que quando os transmitimos passamos a impressão de que efetivamente foram experiências pessoais. Por vezes foram. Outras não. Há acontecimentos reais que, no entanto, retratam falsas verdades. Dir-se-á que se é falsa não é verdade. A lógica indica estar correta a afirmação. No entanto, há duas verdades: a verdade verdadeira e aquela que retrata uma afirmação verdadeira, mas com conteúdo enganoso. Passo a citar um evento do qual fui protagonista e que expressa o que acima foi dito. Já afirmei em outro escrito a minha inaptidão futebolística. Não só para o esporte da bola como para quaisquer outras modalidades. Aliás, aqui abro um parêntese. Devo afirmar que a minha incapacidade não era apenas esportiva, pois no campo da música igualmente eu jamais tive alguma inclinação. Herdei essa deficiência artística de meu pai. Ao contrário de meu irmão que absorveu o dom musical de minha mãe, que possuía ouvido privilegiado. Era uma exímia violonista. O seu sonho era que seu filho mais velho tocasse algum instrumento. A sua derradeira tentativa foi dar-me um pandeiro. Em vão. Minha incompatibilidade com o brasileiríssimo instrumento foi absoluta. Bem, volto ao binômio verdade, falsidade. Houve um esporte ao qual eu me dediquei. Dedicação apenas documental. Explico. Até hoje guardo com orgulho a carteira de técnico de esgrima da Federação Paulista de Esportes Universitários (FUPE). Ela me foi entregue por Ulisses Nutti Moreira, presidente da entidade e presidente da Associação Atlética 22 de Agosto, da Faculdade Paulista de Direito, da PUC. Fui padrinho de casamento de Ulisses, mas nessa época eu não o havia apadrinhado. Portanto, a carteira não se deve a essa condição. A escolha de Ulisses foi técnica.  Durante os jogos Universitários Leste Sul, que aconteceram na cidade de Piracicaba, São Paulo necessitava de um representante nas reuniões e assembleias que lá se realizariam. Havia a possibilidade de confrontos políticos entre as várias Federações Universitárias. Eu fui o escolhido para os embates que ocorreriam e ocorreram. No entanto, para ser inscrito nos jogos eu precisaria integrar a equipe de algum dos esportes da competição. Para mim restou a esgrima. Não iria como esgrimista, por razões óbvias. Colocaram-me na honrosa condição de técnico. Portanto esse é um exemplo de fato formalmente verdadeiro, mas mentiroso em sua essência.  
terça-feira, 28 de março de 2023

Futebol: jogava-se em qualquer lugar

Na última crônica evoquei as minhas "aptidões" futebolísticas. Quero nessa pedir licença para fazer uma breve explanação de como era jogado o futebol nos anos cinquenta e sessenta em São Paulo. A primeira observação é de lamento, em relação à ação predatória de algumas construtoras que movidas pela ganância terminaram com os campos de várzea, existentes em todos os bairros de São Paulo. O Poder Público, por sua vez, não soube defender esses importantes espaços de sociabilidade.    Na verdade, discorro não sobre como era jogado, mas qual o instrumento com que se atuava e os locais onde o esporte era praticado. A bola, bem, a bola nem sempre era bola. Diga-se que ela era à época quase uma raridade. Poucos a tinham. Quem a fornecia se credenciava para jogar, como era o meu caso. Aliás, como disse no escrito anterior a única razão de ser escalado era essa.  A bola era tão preciosa que a tratávamos, como se dizia antigamente, a "pão de ló". Dávamos-lhe carinhos especiais: para conservar o couro, passávamos sebo em todos os seus gomos. Naqueles tempos a chamávamos de bola "capotão". Não sei o porquê dessa expressão. Nem sempre tínhamos bola ou mesmo local apropriado para jogar. No lugar da bola serviam meias, que grudadas uma a uma formavam uma esfera própria para ser chutada. Por vezes, para não perdermos o hábito, uma latinha também servia. Quanto aos locais para o futebol, uma primeira observação. É com tristeza que se observa que São Paulo, em pouco tempo, perdeu as ruas, como seus espaços de convivência e de sociabilidade. Os campos de várzea também foram soterrados, como já disse. O trânsito e a especulação imobiliária foram os usurpadores. O poder público poderia ter planejado a existência de mais ruas que pudessem, em cada bairro, ser fechadas para serem ocupadas pelas pessoas, como se fez com a avenida Paulista aos domingos. Mesmo na minha época de jovem, de adolescente e mesmo antes de menino, além da rua qualquer espaço era espaço para jogarmos. Sempre encontrávamos um meio de transformar os locais em campos. As traves, bem as traves eram pedaços de pau, tijolos, pedras, até nossos sapatos ou quaisquer outros objetos serviam para demarcar os gols. Não se pense que vivíamos de improvisações. Não. Por vezes conseguíamos atuar no Colégio Ipiranga; no Ateneu Brasil; na quadra da Faculdade Paulista de Medicina, no "campinho" do Olímpicos da Vila Mariana; em uma chácara de meu avô localizada em Diadema. Também exercíamos as nossas habilidades futebolísticas em locais menos ortodoxos como vilas, ruas, terrenos abandonados jardins e quintais.  No entanto, o nosso estádio, o nosso campo, o nosso especial reduto, o nosso abrigo era a rua Stella. Lá tudo fazíamos e tudo era possível de ser feito, inclusive acolher as nossas pelejas. No entanto, na Stella nós nos defrontávamos com um problema insolúvel. Jogávamos em um trecho da rua na qual ela passava a ser uma ladeira. Assim, o time que ficava na sua parte baixa tinha insuperáveis dificuldades para atacar. Era fundamental a escolha do lado, antes da partida ter início. Mas não se pense que as nossas saudáveis atividades esportivas não eram do agrado dos habitantes da Stella. A maioria nos compreendia e por nós nutria simpatia. Alegrávamos a rua, com nossos jogos, conversas e por vezes cantorias. Havia duas moradoras, irmãs, que nutriam indisfarçável implicância com o nosso futebol de rua. Na verdade, a implicância era mesma conosco. Uma ocasião em que um dos gols era o portão de sua casa, a bola, inadvertidamente, caiu em seu jardim, fato que não era incomum. Mas, desta feita foram rápidas e apreenderam a pelota, não a devolveram e, suprema violência, a furaram. A nossa indignação só não foi maior do que o nosso desejo de vingança. Logo surgiu uma ideia, bastou olharmos para um pé de café que ornamentava o pequeno jardim da pequena casa. Nada tínhamos contra a simpática rubiácea e suas reluzentes folhas. No entanto, tínhamos que devolver a infâmia praticada contra o objeto de nossas afeições, a bola. Pagaríamos na mesma moeda, atingindo o xodó de ambas que era o pé de café. Arrancá-lo seria a forma mais eficaz de atingir as irmãs agressoras. Em uma noite, cortamos a pequena árvore e a encostamos na porta de entrada da casa. A vindita estava consumada. E logo estávamos com outra bola, passando de pés em pés.   
terça-feira, 21 de março de 2023

Memória sem aviso prévio

A memória não nos dá aviso prévio. Ela surge e nos conduz a um fato, a uma pessoa, a uma saudade, a alegrias e a tristezas, enfim nos retira de onde estamos e nos transporta para outros tempos e para outras situações. Isso deve ter uma razão. Acho que as recordações não representam apenas uma volta ao passado, geradora de nostalgia e de tristeza. Não, ela nos mostra que a nossa vida é composta pelo que foi, pelo que é e pelo que será. Todas essas etapas estão entrelaçadas, se comunicam, por vezes se misturam, se repetem e se projetam para o futuro. São indissociáveis. É muito bom que assim seja, pois dessa forma não perdemos a nossa identidade. Conseguimos conservar o que fomos, o que somos e projetar o que seremos, sem que nos deixemos soterrar pela voragem do tempo.   Tenho uma especial predileção pelos memorialistas que escrevem sobre si, sobre sua época e não só a respeito dos fatos que vivenciou, mas especialmente sobre o seu eu, a sua alma, suas paixões, suas idiossincrasias, realizações e frustações, enfim gosto de conhecer, através da leitura, as ações, o pensamento, os erros e os acertos daqueles que tem a coragem e a honestidade de se colocar integralmente, sem subterfúgios e maquiagens diante de seus semelhantes. Desta forma peço licença aos milhares de migalheiros para pô-los, pelo menos aqueles que perderem o seu tempo lendo-me, em contacto com algumas das minhas recordações. São lembranças que assumem algum significado, não em razão de quem as narra, mas das pessoas citadas das situações e dos eventos que são descritos, sempre com realce a algum aspecto ligado aos sentimentos que movem o ser humano.     Hoje veio-me à mente uma das grandes frustações de minha vida. Frustação amenizada pelos seus aspectos hilários. Sempre quis ser um craque de futebol. Nunca o fui, muito ao contrário. Quando permitiam que eu atuasse era, simplesmente, por que eu fornecia a bola. Caso houvesse outro amigo que a possuísse eu ficava fora do time. Não indaguem qual a minha posição. Eclético, eu sempre estava pronto a atuar em qualquer delas. Aos meus companheiros pouco importava onde eu jogaria. Na verdade, desejavam que eu sempre estivesse onde era necessário, LONGE DA BOLA. Mas, digo-lhes com orgulho jamais desisti. Joguei no time de futebol do 3° Tabelião de Notas, o meu primeiro emprego. Joguei uma única vez, mas joguei na lateral direita. Não conheciam as minhas aptidões. Escalaram-me, joguei por dez minutos. Também integrei o time do Centro Social dos Cabos e Soldados da Polícia Militar, do qual fui advogado. Meu consolo nesse time é que, um dos laços craque de fora, era Plínio Marcos, grande teatrólogo, mas sofrível jogador. Para enriquecer o meu curriculum futebolístico duas derradeiras recordações. Primeira, nós da rua Stella fizemos uma união com outras turmas e criamos o Oásis Futebol Clube. Eu fui um dos artífices e como tal consegui o honroso cargos de MASSAGISTA. Um outro, refere-se ao glorioso "In Dúbio Pro Reo" fundado por jovens advogados, na década de setenta. Esses colegas fizeram-me justiça, pois no final da temporada entregaram-me um significativo troféu, merecida homenagem, o "Troféu Encrenca". A minha trajetória futebolística nunca foi devidamente reconhecida. Paciência, me contento com o citado troféu.
terça-feira, 14 de março de 2023

Voto livre, mas no meu candidato

A elegante senhora sorridente, adornada com joias, maquiada com apuro falou que me admirava, acompanhava o meu trabalho e lia os meus escritos, mas, no entanto, lamentava que eu havia votado em Lula: "pena que você votou no Lula". A única coisa que me ocorreu foi dizer "pena que a senhora votou no Bolsonaro". E, nada mais. Fala curta, mas incisiva e significativa, que ocorreu na última semana, quatro meses depois das eleições. A fala foi incisiva porque veio na forma de uma sentença, de uma afirmação categórica, sem dar ensejo à contestação, justificativa, explicação. A senhora disse e pronto, ponto final. Significativa porque veio na forma de um anátema, de uma reprovação, de uma censura, que aliás espelha uma triste realidade de parte de nossa sociedade, especialmente da se dizente elite.  Fosse a senhora dotada de formação democrática ela jamais condenaria a minha opção, a respeitaria. No entanto, para ela as minhas eventuais qualidades, por ela declinadas, perderam o valor diante da minha escolha eleitoral. A sua manifestação reflete com exatidão o clima de intolerância que ainda reina no país. Dessa feita não houve nenhuma agressão, nenhum maior desconforto, mas poderia ter havido. Bastaria que eu passasse a defender o meu candidato ou a criticar o por ela escolhido, para que a temperatura subisse a graus insuportáveis. Por outro lado, não adiantaria nada eu tentar explicar que a democracia implica  na liberdade de pensamento, de expressão e de escolha, pois, naturalmente, ela só admitiria ouvir um meu mea culpa ou uma palavra de arrependimento pelo voto dado.  Usou a liberdade para, sem me conhecer, em um lugar inadequado -- estávamos numa festa -- interpelar-me. Ou melhor, censurar-me, apontar-me o dedo e exclamar que eu deveria ser excluído do rol dos confiáveis. Não afirmou isso, mas é o que significa a sua intolerância. Poder-se-á dizer que a minha censora apenas emitiu a sua opinião. Não, não foi bem isso. Ela não se limitou a dizer que o seu candidato fora outro. Que não votara no meu, enfim, falas que não implicassem em condenação pessoal pela escolha feita. Eu reunia qualidades, no entanto, superadas pelo pecado, pelo crime de votar no outro candidato. Anteriormente, eu já tinha sofrido a ação de patrulheiros ideológicos. Nas décadas de sessenta e setenta não foram poucas as manifestações contrárias ao meu posicionamento político. Mas, a diferença residia no fato de que estávamos vivendo uma situação política anômala. Não estávamos sob o guarda-chuva do Estado Democrático de Direito. Lá não havia liberdade, aqui há, mas não respeitada. Mais recentemente, logo após haver proferido um discurso em prol do meu candidato, recebi um telefonema agressivo, ofensivo de alguém que jamais vira. Nos mesmos dias um conhecido de mais de quarenta anos disse por escrito que eu o havia decepcionado, e que não mais merecia o seu respeito. Em outra ocasião fui interpelado na porta de um clube com a mesma fala absurdamente antidemocrática sobre o meu apoio político e eleitoral. Todas essas pessoas e mais milhares de brasileiros mostraram e seguem mostrando a sua verdadeira face: autoritária, intolerante, contrária à liberdade e claramente incompatível com o regime democrático. Creio estar na hora, e que não seja tardia, de ensinarmos democracia para parcelas da sociedade que estão se revelando avessos à liberdade de escolha, de pensamento e de expressão. A missão é difícil, mas devemos tentar.   
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Réquiem para uma livraria

O réquiem de uma livraria não representa uma simples manifestação por meio de oração ou de canto pela sua perda. É mais, deve ser mais. Precisa representar um clamor vigoroso contra as causas desse trágico evento. Pois bem, no caso da Livraria Cultura, os administradores de sua massa falida, os advogados, juízes, curadores e credores poderão apontar as causas jurídicas e de natureza financeira. Para nós, leitores, seus velhos frequentadores, uma só e fatal causa: o gigantismo. É claro que essa irrefreável e irresponsável ânsia de crescimento, portanto de lucro, tem uma única causa, pecaminosa e criminosa: a ganância. A cultura começou, salvo engano, no Conjunto Nacional. Pelo menos eu a conheci lá. Era menor, muito menor do que era quando se foi. Simpática localização, com simpáticos atendedores. Fácil de se encontrar os livros desejados. Havia mesinhas fora, onde as pessoas sentavam-se e desenvolviam tertúlias literárias. Eu nunca delas participei, pois simples rábula jamais me aventurei nessas lidas intelectuais. Mas gostava de ver os que ali estavam. Dentre eles via um que se tornou meu querido e imprescindível amigo: Ignácio de Loyola Brandão. A nossa amizade surgiu em um evento na Associação dos Advogados de São Paulo. De lá para cá, eu não mais o larguei. Voltemos às origens da Cultura. Não sei se foi ela, acho que não, mas na época introduziu-se a possibilidade de se ter um cadastro, um cartão de cliente. Isso facilitava e instigava as compras. Na verdade, estou me  lembrando que o crédito para aquisição de livros foi introduzido pelo velho livreiro Saraiva. Tornou-se ele um benfeitor dos  estudantes de Direito que podiam adquirir as obras exigidas pelos  mestres da São Francisco com facilidade. Durante anos estudantes do Largo e de outras faculdades, como eu que me formei na Católica, podiam formar as suas bibliotecas de forma suave. Abríamos contas na loja então existente na rua José Bonifácio, antiga do Ouvidor. Ao falar da Saraiva, lembro de tantas outras que não mais existem. Freitas Bastos, na 15 de novembro; Teixeira, na Marconi, ou teria sido na Conselheiro Crispiniano? Livraria do Povo, na Praça João Mendes; Forense, no Largo de São Francisco; Revista dos Tribunais, na Conde do Pinhal; Nobel, no Itaim; Brasiliense ou seria Civilização Brasileira na Barão de Itapetininga; o sebo Orfali na Benjamin Constante; a Livraria Vozes, salvo engano na Senador Feijó. Vários e valiosos outros sebos existentes na região da João Mendes se foram. Outros resistem, como o Messias. Dizia eu que no caso específico da Cultura o crescimento desordenado e a fúria expansionista decretaram-lhe o fim. Soube que possivelmente sem planejamento algum, foram abertas filiais em várias capitais, algumas com dimensões até incompatíveis com o mercado local. Em São Paulo, a ampliação da que me parece ter sido a primeira foi extraordinária. Deixou-nos, os seus assíduos clientes, entusiasmados num primeiro momento. Com o passar dos tempos viu-se e soube-se que o crescimento em outras praças já estava colocando em risco a sua higidez financeira. E agora vieram as consequências. Amargas consequências, para a cultura em geral e para os seus velhos e fiéis amigos.  Eu torço, rezo e faço mandingas para que outras livrarias não caiam nas mesmas tentações argentárias e se lembrem que embora o lucro seja legítimo, o escopo de suas existências é a expansão da cultura, é o livro, tal como entendia o livreiro Saraiva.
terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Eu joguei com Pelé

Conheci Pelé. Ocupei-me da defesa de seu filho Edinho e por esta razão estivemos juntos algumas vezes. Quem conviveu com ele e pode conhecer aspectos de sua personalidade faz uma necessária distinção entre o Pelé e o Edson. Como ele mesmo disse em uma entrevista reproduzida em amplo noticiário a seu respeito, o Pelé é Rei, o Edson carrega qualidades e defeitos tal como os demais seres humanos. Eu pude testemunhar essa dualidade. Para se fazer justiça a ambos é preciso que se faça a distinção.   No entanto, nesse singelo escrito quero apenas narrar uma experiência com o majestático futebolista. Antes, no entanto, assinalo que como espectador de futebol tive a ventura de vê-lo jogar. Duas partidas marcaram-me e se fixaram em minha memória. Uma delas, pelos idos de sessenta e três, sessenta e quatro, no Morumbi. No time do São Paulo estreava um zagueiro, ou um então chamado centro médio, vindo do Atlético Mineiro chamado Procópio. Alto, bem apessoado, forte, dava a nítida impressão de ser senhor de si em campo, portanto de indiscutível eficiência como marcador e destruidor das jogadas dos atacantes. Além da aparência, a sua fama era mesmo de um defensor intransponível. Mal começou a partida, lá estava ele, Pelé, ultrapassando com facilidade o que se imaginava ser uma inexpugnável barreira, o beque vindo das Minas Gerais. Não posso jurar, a memória não me permite fazê-lo, mas acho que no derradeiro lance antes de sua saída de campo, Procópio foi brindado com uma bola no meio de suas pernas. Saiu, talvez a pretexto de uma contusão, mas saiu. Em seu lugar foi colocado um jogador chamado Vitor. Encorpado, loiro, aparência, força e brutalidade de um viking. Nada clássico, ao contrário, era um jogador que usava seu porte físico para desarmar o adversário. Por vezes agredia para desarmar.   Nesse jogo, assim que entrou, disse ao que veio. Assim, se pensou, quando por duas vezes desarmou Pelé, que seria anulado. No entanto, essa foi uma mera ilusão da enorme torcida tricolor. Até então, o jogo repleto de lances memoráveis e inúmeros gols, estava empatado três a três. Eis que o Rei resolveu jogar para valer. Num estalar de dedos colocou o Santos na frente, que terminou vencendo por seis a três. Possivelmente, eu tenha testemunhado um dos jogos mais brilhantes do craque. Não demorou para que eu testemunhasse a vingança do São Paulo. Desta feita no Pacaembu. Assisti ao jogo literalmente pendurado em um morrinho que havia ao lado das arquibancadas. O desconforto, verdadeiro sacrifício, foi compensado pelo brilho da atuação do mais querido. Estreava, como centro avante, um ex-santista. Pagão. Ele e seus companheiros calaram a pequena torcida do Santos, deixaram exultantes os são-paulinos e, o que foi notável e inédito, provocaram a saída de campo de todo o time praiano. Os craques foram caindo, um a um. Iam sendo retirados por alegada contusão. Atingido o número mínimo, salvo engano seis, o juiz deu a partida por encerrada. O São Paulo já vencia por quatro gols e mais seriam marcados não fosse a debandada, a estratégica fuga. Pelé estava entre os retirantes.           Certo dia fomos, meu sócio de escritório Sérgio Alvarenga e eu, encontrar Pelé em seu escritório. Falamos do caso de seu filho, para em seguida ele passar a narrar alguns episódios de sua soberba carreira. Em determinado momento contou-nos como fizera um gol contra o Juventus, na rua Javari, considerado o mais espetacular dentre os mil e tantos que marcou. Essa narrativa não se limitou à descrição oral. Não, ela veio acompanhada por uma coreografia. Para tanto, nós fomos colocados como protagonistas. Sérgio e eu desempenhamos um papel fundamental na cena. Cumpriu-nos atuar como os dois aparvalhados zagueiros que foram vítimas de chapéus seguidos do "Rei" antes de vitimar por derradeiro o goleiro Mão de Onça, que não foi encenado por ninguém. Na sala estava, além de nós, apenas Celso Grellet, seu sócio e companheiro de sempre, que foi poupado. Estava me esquecendo do principal. A jogada foi fielmente reproduzida pelo ator principal. Com uma bola imaginária ele bailou levantando a perna para os chapéus, gingando o corpo para os dribles e por fim disparando um chute fatal para eternizar um grande gol. Vê-se, pois, que o título desse escrito não é mentiroso. Eu joguei com Pelé. 
terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Passa a faixa esconde a faixa

A  impressão que tenho é a de que o atual presidente não quer passar a faixa presidencial ao vencedor das eleições não apenas por antipatia pessoal a ele que, diga-se, é fato notório. Na realidade, ele não quer é passar a presidência. O apego à faixa é o apego ao poder. Até o momento da transmissão, ao que parece, ele nutre a esperança de que o ato de passagem não se consume. Houve outros casos em que esse símbolo não foi entregue pelo antecessor ao sucessor. O General Figueiredo não entregou a faixa ao Presidente Sarney. Não se sabe se o faria caso a recebê-la fosse o eleito Tancredo Neves. Houve casos nos quais o presidente não fez a transmissão ao seu sucessor porque não completou o mandato. Jânio Quadros, João Goulart, Costa e Silva, Fernando Collor, Dilma Rousseff. Na primeira república Deodoro e Afonso Pena não terminaram o mandato. Este porque faleceu antes do término do mandato, sendo sucedido por Nilo Peçanha. O Marechal Deodoro havia renunciado. Rodrigues Alves, que havia sido presidente nos anos de 1902 a 1906, foi eleito novamente para o mandato de 1918 a 1922, mas por razões de saúde não chegou a assumir. Em seu lugar assumiu Delfim Moreira, até a posse de Epitácio Pessoa, para o mesmo mandato. É possível que tenha sido omitido algum episódio dessa natureza. Ficam as minhas desculpas se isso ocorreu. Houve um caso singular no qual a faixa presidencial não foi entregue pelo presidente eleito ao sucessor, mas sim ao zelador do Palácio Presidencial. O Presidente Washington Luiz foi deposto em 1930 e, por essa razão, não fez a transmissão do cargo. Quanto à faixa, um pouco antes de sua saída para o exílio, ele a entregou ao Sr. Albino José Fernandes, zelador do Palácio do Catete. Alertou-o no sentido de que só a desse "a quem de direito, depois que tudo estivesse resolvido". O zeloso funcionário, no Palácio desde 1908, tratou de guardar a preciosa faixa em um lugar inacessível : no seu próprio corpo. Colocou-a no peito, debaixo da camisa e de seu paletó. Consta que não a retirava sequer para dormir. Quando a presidência foi transmitida para Getúlio Vargas, líder da revolução de trinta, pela Junta Governamental, ele cumpriu sua missão sem nenhuma solenidade, sem nenhum alarde. Portanto, o Sr. Albino envergou o símbolo da República por alguns dias. O atual presidente se nega a passar a faixa mesmo que seja a um zelador do Planalto.
terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Mudou o Natal ou mudamos nós?

Desejos de paz, fraternidade, união entre os homens são ouvidos nos quatro cantos nessa época natalina. Uma preocupação comum, além dos votos, são os presentes que exteriorizam, segundo dizem, a estima, o bem querer, a amizade.  É óbvio, o comércio é quem agradece esse hábito. Todos querem comprar, aqueles que tem e aqueles que não tem recursos. Estes tentam dar um jeito. Também como marca dos dias natalícios, há as comemorações. Almoços e jantares em família, não só no dia em que Cristo veio à terra, mas em dias antecedentes. Festas nos escritórios. Encontros em bares e restaurantes. Drinks nas casas. E, tudo o mais que denote confraternização. Eu me pergunto se esse ano no Brasil o espírito natalino estará presente como nos anteriores. As intoleráveis barreiras da intolerância continuarão a separar amigos e parentes influenciados pelos rumos da política? A ruptura da sociabilidade plena estará presente nessas horas em que se deveria estar apertando as mãos, dando abraços e até vertendo lágrimas?   Imagino que exatamente para preservar ainda o que resta de união, muitas e muitas famílias não farão festas com todos os seus integrantes. Ressentimentos gerados pelo fanatismo político poderão macular a fraternidade natalina. Assim, melhor será que alguns não estejam presentes nas comemorações, para evitar rupturas definitivas. Uma situação talvez jamais vista no país. Eu com certeza nunca a assisti, nos meus setenta e sete anos. Cabe aqui a pergunta de Machado de Assis "Mudou o Natal ou terei mudado eu?". O Bruxo do Cosme Velho confessou a sua falta de inspiração para fazer um poema natalino e limitou-se a fazer essa indagação. E, com efeito, se naquela época já lhe faltou inspiração, hoje ele não a teria sequer para criar aquele singelo verso-indagação.    Parece- me que o Natal não mudou. Com certeza mudamos nós. Claro que nem todos. Apenas aqueles que se deixaram influenciar por maus exemplos. São os que com certeza já estavam predispostos a acolhê-los. Como os exemplos maus passaram a ser constantes e divulgados por meio de falas, escritos e comportamentos aquela parcela já suscetível a se deixar influenciar saiu do armário e passou a aderir a aquilo que lhe era sugerido. Eu, por exemplo, tenho um amigo que sempre possuiu idiossincrasias marcantes que o revelavam um conservador empedernido. Avesso aos avanços da sociedade em relação aos direitos das minorias, incluindo das mulheres, bastou surgir no cenário político um arauto do discurso retrógado e ultrarreacionário para ele se identificar e aderir às pregações. Eu continuo a gostar dele e a ser seu amigo. Não sei se a recíproca é verdadeira. Caso não seja, só me resta lamentar mais esse mau exemplo daquele a quem os seguidores acham dever obediência, em detrimento de sua liberdade individual. Para eles mudou o Natal, eles eu acho não, continuam os mesmos. Que pena!   Sempre apreciei o Natal. O clima que ele gera. Os votos que transmito e recebo de amigos e conhecidos. Os comes e bebes. Os presentes que ganho e os que eu dou. As músicas natalinas, embora sempre as mesmas, me emocionam.  A alegria estampada nos rostos das minhas netas que é a mesma daqueles dos meus filhos quando crianças. Cultivamos em casa um hábito, na verdade um gesto de solidariedade, cumprido em todos os Natais. Minha mulher acompanhada das netas sai a esmo distribuindo roupas, brinquedos e alimentos para os que ela encontra nas ruas. O ponto alto do dia 24 é a meia noite, quando após rezarmos uma oração, nos abraçamos. Todos os anos eu aguardo esse momento como o mais significativo do Natal. A reza simboliza a fé e a esperança, enquanto o abraço significa a comunhão com o outro. Seria bom que houvesse rezas de quaisquer religiões, abraços, afagos e que todos estivessem com a alma leve, sem ressentimentos, mágoas ou intolerâncias.
quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Jovens querem deixar o país

Recentemente eu li que um significativo número de jovens quer deixar o país (76% dos pesquisados). Uma notícia alarmante. Duas razões para o alarme. Em primeiro lugar com o êxodo da juventude haverá carência em todos os campos das atividades. Não teremos novos quadros para  impulsionar os setores produtivos, culturais, científicos e no setor público inexistirão novas lideranças políticas e administrativas  para ocupar os cargos de administração da Nação. As carências já existentes de homens aptos para gerir a política e a coisa pública  agravada pela debandada. Entendo que sair do país, especialmente aqueles que têm condições de contribuir para o seu aprimoramento representa uma incompreensível  falta de estima pelo Brasil e por seu povo. Sabe-se ter havido na história inúmeros exemplos  de imigrações que atingiram inúmeros países. O Brasil mesmo, desde o século 19 acolheu imigrantes de inúmeras Nações. Os estrangeiros que para cá vieram e seus descendentes se integram em nossa vida social e cultural assim como nos legaram positivas influências de suas origens. Todos os surtos imigratórios tiveram causas bem detectáveis a justificá-los. Eles foram marcados por insuperáveis carências em seus países. Fatores diversos, especialmente guerras e revoluções, reduziram as oportunidades de trabalho e suprimiram condições mínimas para a permanência de grande parcela das populações em seus Estados de origem. A imigração passou a ser uma solução de sobrevivência.     Será que estamos atravessando no Brasil de hoje um período de catástrofe social, uma revolução interna, uma ameaça de guerra externa ou de invasão de Nações estrangeiras, um caos na economia, uma avalanche destrutiva de fenômenos naturais? Não. É verdade que não estamos vivendo em um país onde reine a segurança, a igualdade social, uma economia sólida e produtiva, uma assistência integral e abrangente nas áreas de saúde, educação, habitação, saneamento. Estamos sim passando por não pequenas dificuldades. Mas, os nossos problemas não justificam a saída coletiva de brasileiros do país. Impõe sim a união, a crença e o amor à pátria. Tal como nos unimos em defesa da democracia e das instituições, salvo alguns adeptos do totalitarismo,  é essencial que os nossos esforços sejam empregados na supressão ou diminuição de nossas conhecidas mazelas. Sair do país, não. Devem permanecer para construir. É interessante que muitos  que desejam ir embora do Brasil   aqui deveriam ficar, acima de tudo porque a ele muito devem. Refiro-me aos quais foram proporcionadas situações favoráveis para progredir cultural e materialmente, a ponto de poderem  sair e se manter fora . Lembre-se,  tais condições eles as  encontraram no país que agora  querem deixar. Parece ter chegado a hora da parcela privilegiada mergulhar dentro de si e rever posicionamentos herdados do Brasil  imperial, patrimonialista, escravocrata. Desprezo, arrogância, auto suficiência, individualismo, preconceito e discriminação  marcam parte dos integrantes dessa autoconsiderada "casta". É a elite envergonhada de aqui ter nascido. O seu sonho seria ter origem em outras plagas. Retirou do país tudo aquilo que ele lhe pode proporcionar e agora quer ir ou mandar os seus filhos para fora. Fiquem e os deixem no país para retribuírem o que o Brasil lhes proporcionou. Dirão não temos oportunidade. Vamos cria-las. Só os da elite podem fazê-lo. Os menos favorecidos, aliás a enorme massa, quer  sobreviver. Eles sim não possuem condições  para sair do país. Os favorecidos, ao contrário podem tudo, até abandonarem o nosso barco.    O  trabalho é árduo e as mudanças necessárias. Interesses coletivos no lugar dos particulares. A solidariedade ao invés  do egoísmo. O bem público separado do interesse privado. A compreensão afastando a intolerância. O desprendimento em vez da ambição desmedida e da ganância; o amor em substituição ao ódio. São fórmulas piegas, poderão dizer. Não importa. Surtirão efeitos e  irão nos melhorar. Talvez a nossa esperteza excessiva, o apego ao consumo e ao acúmulo de bens materiais; a prevalência do  ter sobre o ser; a ânsia pelo protagonismo, pelas posições sociais de destaque tenham escondido ou feito desaparecer o nosso lado infantil, ingênuo, puro mesmo, mas pleno de entusiasmo, encantamento pelas coisas simples, alegria. O homem e a mulher brasileiros abandonaram algumas de suas marcas distintivas. Criatividade, agilidade mental, improvisação, adaptação a situações adversas, facilidade de relacionamento: o conhecido de agora é o amigo de sempre e tantas outras características deveriam ser reconhecidas, acolhidas e não rejeitadas. Ser quem e como somos e não como imaginamos ser: europeus ou americanos. Está na hora de sabermos quem somos e que Nação queremos construir. Manter o status quo, a favor de uma minoria ou construir um país para todos? Não somos melhores ou piores do que outras gentes, somos diferentes. Tais diferenças devem ser enaltecidas pois constituem as nossas marcas. Ficar no país é dever, trabalhar por ele é missão de todos.   
quarta-feira, 26 de outubro de 2022

O melhor e o pior da festa

Minha mãe dizia que o melhor da festa é esperar por ela. Não tenho dúvidas. A expectativa de momentos de felicidade, confraternização, abraços, emoção, palavras carinhosas e desejos de um porvir melhor nos proporcionam um grande bem estar. A ansiedade dessa espera é confortante, traz otimismo e entusiasmo. Há vezes até que a expectativa supera a própria festa. Mas isso não importa. Importa sim que façamos o possível para que a festa corresponda à espera.  Aguardar um acontecimento, no entanto, pode nos criar sensações desagradáveis. Como a perspectiva da alegria nos causa boas emoções o contrário nos aflige e incomoda. Com efeito, esperar maus momentos provoca inquietação, medo, insegurança e uma sensação desagradável de um futuro de consequências imprevisíveis. Mas, como na boa espera por vezes o acontecimento não é tão agradável quanto se desejava, também a má expectativa pode não corresponder ao fato sobrevindo, e esse ser melhor.  Eu agora transporto a festa acima referida para as eleições e o bom e o mau acontecimento para o seu resultado.  Considero o voto, como já disse alhures, um instrumento exemplar de igualdade. Ele iguala a todos, independente de raça, cor, sexo, religião. É talvez o único traço de união entre os membros da sociedade em um momento determinado. Todos, podendo, votam.  O sentimento generalizado quando da votação, para os democratas, é o de júbilo por estarem exercendo na prática um direito primordial que é o da escolha. É da natureza humana querer fazer as suas opções pelos caminhos que deseje trilhar. Trata-se de exercer a liberdade. E a escolha daqueles que irão governar assume uma dimensão extraordinária para cada eleitor. Ele rigorosamente está declarando quais são as suas esperanças  quanto ao encaminhamento das questões de interesse nacional. Está, nessa hora, determinando quais são as suas opções ideológicas e programáticas.  Pois bem, nova  festa eleitoral se aproxima. Claro, como em todas as eleições, as  expectativas que eram diversas no primeiro turno foram reduzidas para duas possibilidades. Parte da sociedade terá os seus anseios satisfeitos e a outra parte frustrados. Vale dizer, que a sociedade está esperando pelo melhor da festa que é a vitória do seu candidato e, igualmente, pelo pior que é a derrota. Isso significa, ansiedade, dúvida, expectativa do melhor e do pior, sentimentos que trazem desconforto. Esses sentimentos se projetam para o futuro na forma de insegurança, incerteza, otimismo e  pessimismo.  Como o homem não tem o domínio sobre o seu futuro, a sociedade, igualmente, não possui as rédeas do seu porvir e nem possui o controle dos destinos da Nação. No caso das eleições, após a escolha em quem votar, o cidadão adquire a certeza de que os dias, meses e anos  vindouros serão alvissareiros se o vitorioso for o seu candidato. Com a derrota ao contrário as perspectivas serão sombrias. Trata-se do melhor e do pior da festa.  Eu não me sentiria confortável se nesse momento deixasse de manifestar a minha opção eleitoral. Na verdade, reiterá-la pois já foi exposta. Quando o foi recebi críticas contundentes, por vezes ferozes de pessoas que se espantaram com a minha opção. E disseram a mim e a outros do seu inconformismo com a minha escolha. Como era possível que eu estivesse apoiando o candidato da oposição ao atual presidente. Ora, fiquei abismado, não com a posição contrária desses questionadores, mas sim com o questionamento que denota absoluta ausência de formação democrática. Aliás, bem coerente com a opção eleitoral que fizeram. O seu candidato jamais escondeu suas preferencias autoritárias e a sua nostalgia pelo período ditatorial.  Mas, voltando ao inconformismo para com a minha escolha. A pergunta que se impõe: qual a razão da minha preferência causar espanto e a deles não. Escolhi um candidato e eles outro. Assim é na democracia. Eu sim fiquei espantado, abismado com o espanto deles. Mostraram que não são democratas. Repito, foram coerentes.  Quero  realçar que aceito a sua escolha, como democrata que sou. Mas quero declarar  que, em relação à minha escolha, eles se esquecem que o meu candidato já governou o país. Não implantou o comunismo, como apregoam que fará; não invadiu casas; não comeu criancinhas; não estatizou a economia; não avançou nas nossas contas bancárias, como fez ex-presidente que apoia o atual. Fez escolhas corretas para o seu corpo de auxiliares, sem conotação ideológica como exemplo temos Henrique Meireles. Naquela época a festa correspondeu às expectativas.    Permito-me afirmar que a opção que  fizeram parece-me injustificável pois carrega uma enorme quantidade de dúvidas, especulações, inseguranças de caráter  institucional e social. A  paz, a segurança e a harmonia correm riscos concretos.  O presente artigo tem como foco o antes e o depois da grande festa eleitoral. Antes, venturosas expectativas de vitória do candidato da oposição. E, mais, de um porvir que atenda às expectativas dos que buscam viver em uma sociedade menos desigual, pacífica e democrática. 
segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Jô Soares um brasileiro

Há figuras humanas que se imagina serem imortais. Não é a imortalidade dos que permanecem na memória e na saudade daqueles que ficam. Eu me refiro à imortalidade no sentido literal. O ser que jamais se ausentará. Jamais morrerá. Jamais será enterrado. O seu corpo permanecerá e sempre será visto. Essa sensação de eternidade física se deve à importância e à imprescindibilidade de certas pessoas. Não se admite a vida sem elas. Assim, eu imaginava que ocorreria com o Jô Soares. Ele nunca nos deixaria. Como diziam os antigos ele ficaria para semente. No entanto, ele partiu, mas com certeza as suas sementes germinarão e darão frutos. Quais sementes? Várias, e correspondem às suas qualidades e características. Inteligência, cultura, rapidez de raciocínio, alegria, humor, fidelidade às suas origens, por vezes sagacidade e ironia. Essas e tantas outras. No entanto, eu quero testemunhar um relevante aspecto que foi para mim revelado nos últimos tempos. Especificamente nos quatro anos anteriores a essa data. A sua brasilidade. A sua preocupação com o país. A sua apreensão de estar assistindo a um Brasil atormentado pela intolerância, pelos riscos de ruptura institucional, pelas pregações destrutivas, pelo estímulo às armas, pelo esmaecimento de sua imagem perante o mundo, pela destruição das matas etc. etc. Padecia com a irracionalidade de um governo que não ele via governar e se afligia com a crescente  desarmonia instalada no seio da sociedade, por um discurso voltado à destruição e  ao ódio. Talvez poucos homens de comunicação tivessem conhecido o Brasil e os brasileiros como ele, mercê de sua profícua atividade de entrevistador, durante sessenta anos. Conheceu o homem brasileiro de todas as classes sociais, categorias culturais, atividades profissionais. Explorou com argúcia e profundidade todos os  escaninhos e labirintos do pensamento, da vida, dos fatos ligados a cada entrevistado. Desta forma ele esmiuçava a sociedade. Dissecava os seus meandros, levantava o tapete de suas escondidas mazelas. E tudo fazia com refinado humor, com absoluta liberdade e independência  jornalística. Jô tornou-se um retratista fidedigno do Brasil e do seu povo, eu diria ter sido ele um historiador do nosso presente. Os tipos que encenava  nos programas de humor representavam os vários brasileiros habitantes dessa terra diversificada, plural, miscigenada. Uma terra quase incompreendida, que, no entanto,  ele retratava com a fidelidade possível. Semanalmente conversávamos. Possuidor de uma memória extraordinária deliciava-me com histórias de fatos e de gentes. Remontava à época em que começara na televisão com Silveira Sampaio, considerado por ele como mestre das entrevistas televisivas. Outra figura por ele enaltecida, na área dos programas humorísticos, foi Max Nunes. Citava também um antigo colaborador da TV Tupi, canal 3, Tulio de Lemos. Deixava ainda patente a sua gratidão ao jornalista Matinas Suzuki, responsável pelas suas memorias. Era muito discreto quanto à sua vida pessoal. Não falava de seus amores. E, foram muitos. Mas, não escondia o seu afeto e a sua gratidão pela Flavinha, que o amparou até os últimos dias. Mesmo após o término do romance a amizade de ambos não os separou. Como disse, a situação do país o preocupava sobremodo. Indagava-me sobre medidas judiciais que poderiam ser adotadas para barrar a escalada autoritária e antidemocrática em marcha. Queria saber dos movimentos de resistência da sociedade. Ações coletivas ou isoladas lhe davam esperança e alento.   Jô se foi, para minha decepção, pois o julgava imortal. Partiu o Jô brasileiro. O insubstituível  Jô Soares. Ficou o vazio, a tristeza, mas, especialmente ficaram as suas lições de amor ao próximo e ao Brasil.     
quarta-feira, 8 de junho de 2022

A violência estimulada se alastra

Antes de ser guilhotinado Manon Roland afirmou "Oh liberdade, quantos crimes se cometem em seu nome". Eu me permito perguntar: segurança, quantos crimes e barbaridades tem você como pretexto, desculpa e até aplausos? Até quando vai se matar inocentes ou culpados, não importa. Não se pode matar. Só se pode matar em legítima defesa, circunstância prevista em lei e que justifica a conduta. No entanto, mata-se porque se quer matar. Invade-se uma comunidade, tiros são disparados sem que outros tiros tenham sido desferidos. E as balas atingem não só os alvos desejados como quem está nas ruas ou em casa ou em um bar, em uma loja, dentro de um carro, seja lá onde for as balas alcançam qualquer um. Dizem que são balas perdidas. E daí. É pior, pois demonstra que as armas foram acionadas a esmo. O atirador assume o risco consciente de matar quantos forem alcançados por seus projéteis. Ele aciona sua arma sabendo que ela poderá ser letal para qualquer um. Isso não o preocupa. Deve-se ter presente um pensamento do prêmio Nobel Soljenitsin no sentido de que a violência está sempre acompanhada da mentira. Com efeito, inverdades e invencionices servem para justificar os abusos e inverter as responsabilidades. As vítimas se tornam culpados.   Aliás, a violência desmotivada, desnecessária, criminosa tem como elemento propulsor um discurso oficial que estimula, incentiva e autoriza a barbárie assassina contra a sociedade. O que desencadeia a conduta predatória dos chamados agentes da lei, que, na verdade agem contra ela?  A luta contra o crime? Sim, admitamos que seja. Mas como e por que as mortes entram nesse combate? A única forma de se atacar o crime é matar o criminoso, o suspeito ou o inocente? Há algumas situações que justificam a ação repressiva, mesmo que eventualmente se ponha em risco a integridade física de terceiros, como, por exemplo, nos casos de trocas de tiros, agressões contra pessoas ou contra a própria polícia, intervenção no curso da prática de um crime, e algumas outras. Mas, como explicar a mortandade quando não há violência desencadeada? Chegar nos locais atirando; executar pessoas depois de já imobilizadas, como ocorreu na comunidade do Falet no Rio de Janeiro; partir da mera suposição de que irão atirar contra a polícia e antecipar os disparos tal qual fizeram no Jacarezinho e agora na Vila Cruzeiro, constituem ações que não podem ser denominadas de "Operações Policiais". Não, isso é chacina, assassinato em massa, crime contra a humanidade.  E mais, não se pense que a barbárie é cometida apenas contra grupos, com o receio de seus integrantes atirarem primeiro. Não, se está matando no atacado e no varejo. Não faz muito tempo matou-se alguém em um supermercado sufocando-o. Agora, no Estado do Sergipe,  asfixiou-se  um detido  já imobilizado dentro de um carro, atirando gazes dentro do veículo. Há anos houve dois episódios que muito me marcaram em São Paulo. Um motoqueiro, desarmado, foi morto pelas costas porque não parou quando instado a tal. E um casal de velhos japoneses feirantes que foram executados pois também seguiram com sua kombi, sem perceber que havia uma barreira policial. A memória não ajuda, mas posso afirmar que foram centenas os casos de mortes individuais ou coletivas provocadas por desastrosas ações policiais.   Aliás, crueldades também são cometidas por não policiais. Violências são registradas tendo como autores membros de seguranças privadas.  A violência igualmente está instalada no seio da sociedade, especialmente contra a legião dos desamparados e desvalidos. Até incêndios em corpos vez ou outra são noticiados. Os conflitos provocados pelas diversidades de origem social, cor da pele, opções sexuais, vitimam com frequência, pobres, negros, indígenas, homossexuais. Soma-se a esse rol as atrocidades contra crianças e mulheres. A intolerância que é geradora do ódio, atualmente, permeia o relacionamento pessoal. Manifestações antagônicas não mais são marcadas pela compreensão, pela tolerância e pela educação. Na verdade, esse autoritarismo de ideias representa a negação da própria democracia e da liberdade de pensamento. Haverá respeito desde que a opinião alheia coincida com a minha. Os estímulos à violência são constantes e insistentes, divulgados  basicamente, pela palavra falada, tendo como arautos autoridades que num plano hierárquico  influenciam os incautos e desavisados. Em regra, seus discursos pregam a discórdia e fazem apologia do povo armado. Mentiras, invencionices, bravatas, vulgarização da linguagem, falas impensadas, quando pensadas mal pensadas estão sensibilizando obtusos e fanáticos seguidores.  As arengas criminosas e as blasfêmias não respeitam pessoas, instituições do Estado, algumas religiões e credos, inclusive o Papa e os defensores dos direitos humanos foram alvos de infâmias. É imprescindível que incorporemos e divulguemos os valores da civilidade e do humanismo para não nos transformarmos em uma sociedade, já injusta e desigual, estigmatizada pelo ódio que inviabiliza a pacífica e harmônica relação entre os homens.
terça-feira, 22 de março de 2022

Lembranças que nos alimentam

Li um texto, primoroso texto, de Ignácio de Loyola Brandão. Abro uma pausa para declarar que a minha amizade e o meu afeto por ele constituíram um dos fatos mais prazerosos e gratificantes que me ocorreram nos últimos dez anos. Pois bem, o seu artigo versa sobre a nostalgia que sente da rua onde reside há décadas, a João Moura. A rua de hoje não é a mesma de antanho. Isso o entristece. A mudança ocorreu basicamente pela fúria imobiliária. No local de uma casa, pequena que fosse, existe um mega prédio abrigando centenas de pessoas. Assim está sendo em toda São Paulo. Já há algum tempo, do terraço de um apartamento, durante uma festa, alguém olhando um campo de futebol me disse "que desperdício nesse campo várias torres poderiam ser erguidas". Era um empresário, na verdade um grande tonto para quem o que importa é o lucro, a cobiça, e nenhum outro valor. Não pensou no lazer, o único lazer, que aquele campo proporcionava aos moradores das redondezas, talvez o único instrumento de distração e de sociabilidade para as comunidades do entorno. Ao ler o artigo de Loyola me veio à mente as minhas ruas Cubatão e Stella. Morava na primeira, mas vivia na segunda. Eu pertencia à gloriosa T.S. - Turma Stella. Muitos daquela época já se foram, mas ainda nos reunimos e conversamos constantemente sempre pelo telefone, nos negamos a falar online. Contamos as mesmas histórias, fazemos as mesmas gozações, rimos sonoramente os mesmos risos, queremos que assim seja até o fim. Aliás, assim é há quase setenta anos, por que mudar agora? E, que o fim demore. Na rua Stella e adjacências nós imperávamos. O nosso reino se estendia para o centro de São Paulo, quando atingimos idade para frequentá-lo. Antes e mesmo já jovens nós ainda brincávamos na rua. As brincadeiras eram  "lasca- romeu",  "mãe da rua" e "mãe da lata". Todas elas eram delicados folguedos onde os atritos físicos muitas vezes levavam ao desforço, sempre entre "tapas e depois beijos", ou melhor e depois cerveja. Devo dizer que mesmo as constantes desavenças com outras turmas, em especial nas festas, eram encerradas em algum bar, que servisse álcool para menores. Começamos as nossas atividades etílicas com quinze, dezesseis anos. As brigas naqueles tempos não eram cruentas. Ninguém matava. Tapas, socos e cerveja. Na rua Stella jogamos futebol. Naquele tempo chuteira era chanca e campo era cancha. O futebol era por nós praticado em qualquer lugar, qualquer canto onde houvesse algum espaço onde pudéssemos improvisar os gols, qualquer coisa servia para demarcá-los. Na rua Stella tínhamos um problema, pois em determinado trecho ela era uma descida. O time que ficasse na parte de baixo levava óbvia desvantagem. Embora passassem poucos carros, o nosso problema eram os vizinhos e as janelas de suas casas. Aliás, em uma delas um pé de café existente no pequeno jardim era o nosso grande obstáculo para os chutes fortes, pois tínhamos que tomar cuidado para não o atingir. Ele era florido, verdinho, as folhas brilhavam, nós até gostávamos dele. Na casa moravam duas irmãs já de certa idade. Elas já não nutriam grande simpatia por nós. A recíproca era verdadeira. Um dia quando a bola lá caiu as intolerantes senhoras a sequestraram, não a devolveram e achamos que estraçalharam a pelota. É claro que tínhamos que reagir. Deveríamos aplicar a Lei do Talião - dente por dente -. E o fizemos. Cortamos o pé de café e o deixamos encostado na porta de entrada da casa. Com isso vingamos a bola e aplacamos a nossa ira. Devo confessar nunca ter sido bom de bola. Sempre era o último a ser escolhido no par ou ímpar. Quando era "escalado" eu sempre me colocava onde o time queria: longe da bola. Um fato marcante daqueles tempos, com certeza notado também pelo Loyola, o nosso imortal, era a confraternização existente entre vizinhos. Tinha-se nas típicas pequenas casas de São Paulo da época minúsculos jardins que serviam de locais de encontro, conversa, fofocas. As pessoas paravam para papear com as que estavam nos jardins. Elas também andavam a pé. Carro para a classe média ainda era raridade. Andavam e se encontravam. Havia o maravilhoso bonde. O democrático bonde. O espaço para reflexão, leitura, cochilo, amizades e pernas, sim pernas, como um poeta indagou "Oh Deus  por que tantas pernas?". O relacionamento com os comerciantes da região é outro aspecto que também marcou a minha infância e juventude. O Nicolau do empório, Januário sapateiro, Coca e Mudinho jornaleiros, Manezinho jardineiro, Pedro barbeiro, Lili engraxate, Valinho mecânico e tantos outros que se incorporaram à minha vida e permanecem em minha memória. Mais, muito mais eu poderia recordar das minhas ruas e do meu bairro, na verdade da vida que era risonha e franca. Talvez continue em outros escritos. Por hoje basta, para homenagear esse grande escritor brasileiro Ignácio de Loyola Brandão e para dizer a ele não ficar triste, pois nós pelo menos temos do que lembrar.
terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A tragédia reveladora

A mãe com uma pá nas mãos vai removendo a lama, a terra, as pedras e madeiras para encontrar um tesouro: seu filho. Pacientemente, com aflição e angústia controladas e com esperança vai palmilhando o chão macabro, ao encontro daquele que não mais existe. Em outro dia, tal como um pescador, talvez escafandro, ou mesmo um garimpeiro, o pai vai explorando as margens do rio à cata de uma preciosidade: seu filho. Ele viajava em um ônibus que foi tragado pelas implacáveis águas. Lá se foi. Moço, moço também o pai. O que importa a idade? A fúria das águas não respeita idade. Mães, pais, avós, avôs, irmãos, amigos. Até bebês recém-saídos do útero materno foram levados para outro patamar. Há quem poderá dizer que esses seres foram poupados das misérias e sofrimentos humanos. Mas, ninguém lhes perguntou se queriam ser poupados. O poder da natureza mais uma vez suplantando a vontade e os esforços humanos. E o homem na sua predatória ignorância a desafia obstinadamente. Pobre homem, sem poder, sem inteligência e, principalmente, sem humildade para reconhecer as suas limitações, a sua impotência em face do universo. Desgraças como a de Petrópolis tem, no entanto, o condão de revelar um lado edificante, nobre, que nos dá esperança: a solidariedade. Entidades, ONGs, os valentes motoqueiros e pessoas anônimas da cidade e de fora dela, entregam-se à sublime tarefa de ajudar o outro. Nessas tragédias tem aflorado o amor ao próximo. Amor que se estendido a dimensões mais abrangentes nós teríamos menos guerras; violência; mortes; violação de direitos humanos; queima de florestas; predação de rios e outras condutas destrutivas. O amor substituiria a cobiça que é o guia de uma sociedade argentária e insensível. Gostaria muitos de ver segmentos das elites pegando os seus carros e as suas motos para ir a Petrópolis, não para veranear ou invernar, mas para praticar atos de amor. E mais, que essa tragédia desperte a consciência embotada das autoridades, de todos os níveis, para adotarem medidas de proteção às populações de risco de todo o país. Não devem prometer nada. Devem agir preventivamente, revelando que possuem alguma decência, dignidade, honradez e amor ao semelhante. 
segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Marizalhas em retalhos

Tenho utilizado esse espaço gentilmente cedido pela direção de Migalhas, para divulgar alguns despretensiosos escritos elaborados na forma de crônicas. Muitas já foram publicadas pela Editora Migalhas em um livro denominado "Crônicas Absolvidas". Outras são enviadas de forma irregular, e imediatamente colocadas à disposição leitor. Intenciono dar continuidade à essa agradável atividade enquanto contar com a gentileza do editor e com a paciência dos migalheiros. Meu intuito, agora, são curtas narrativas, não sei se chegam a ser crônicas, sobre fatos que foram vividos por mim ou que chegaram ao meu conhecimento e que apresentam um lado hilário do comportamento humano. A exposição das facetas divertidas, cômicas, jocosas que todos possuem, ilustradas por fatos concretos, pode ter o condão de suavizar a rude e áspera realidade que nos cerca na atualidade. É preciso que saibamos resistir ao negacionismo que pretende atingir até a nossa alegria de viver, a ser substituída pelo permanente estado de rancor, de confronto e de intolerância. Precisamos reafirmar uma característica bem brasileira, qual seja a capacidade de rir e de fazer blague até na adversidade. Como primeira manifestação nesse sentido eu vou narrar um susto, na verdade uma perplexidade que me acometeu quando fui à Teresina para proferir uma palestra. Eu era à época presidente da Ordem dos Advogados de São Paulo, e compunha o chamado Colégio de Presidentes das Seccionais do Brasil. Nessa condição havia uma agradável convivência com advogados de todo o país e a possibilidade de se conhecer as capitais e cidades de outros  Estados. Atendendo a um convite, fui à Teresina. Assim que desembarquei fui recebido cordialmente por dois dirigentes da Ordem estadual. Solícitos foram logo pegando as minhas malas e demonstrando entusiasmo disseram-me que iríamos em seguida "comer a Maria Isabel". Aturdido, talvez tenha ficado ruborizado em face da inusitada proposta. Nada disse, o que deve ter significado para os meus anfitriões a minha aquiescência  ao  programa, para mim, de natureza sexual, tão prontamente proposto e em uma hora imprópria.    Nunca soube se os amigos piauienses perceberam o meu constrangimento e deixaram propositadamente de esclarecer a situação. A verdade foi que passamos no hotel, fiz o registro, deixei a mala e rumamos, segundo imaginava, para algum lupanar. Durante o percurso não houve nenhum comentário sobre a aventura que se avizinhava. Eu, ainda meio assustado, não me senti à vontade para fazer indagações sobre o que nos esperava. Aguardei. Pois bem, depois de algum tempo paramos diante de um restaurante. Pensei tratar-se de um bordel camuflado. Essa suspeita mais me preocupou. Imaginei os riscos que estaria correndo caso houvesse uma batida policial. De qualquer, com muito medo, entrei e sentei-me à mesa que me foi indicada. Quando se aproximou o maitre achei que ele nos conduziria para algum outro cômodo, que imaginei qual seria. No entanto, ali ficamos até que os pratos foram pedidos. E, quando isso correu, uma sensação de alívio tomou conta de mim: Maria Isabel era o nome de um prato típico do Piauí.