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Marizalhas

Crônicas variadas.

Antônio Claudio Mariz de Oliveira
sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Mandar é comandar?

Parecem expressões sinônimas. Mas não, elas apesentam nuances diversas. Quem manda ordena, impõe, obriga sem aceitar contestações ou meras ponderações. O comandar implica na adoção de uma filosofia, de uma orientação de caráter geral. O comandante dá o norte, o rumo a ser seguido, traça linhas de conduta e de ação. Sujeita-se à opinião de seus subordinados mais próximos e por vezes a acata. O mando é categórico e inflexível, já o comando é permeável e transigente. Transpondo essas noções para o sistema de segurança pública nós observamos que as atuais chefias das corporações policiais, desde o Governo do Estado, da Prefeitura e da própria Polícia Militar são exercidas nos moldes do mando e não do comando, embora se fale em "comandantes das forças de segurança". Digo isso porque as rígidas hierarquia e disciplina internas tornam os integrantes da corporação imunes a quaisquer críticas e protestos da sociedade, quando agem com desnecessária violência, indicando estarem seguindo ordens superiores. Fossem essas em sentido contrário, de preservação da incolumidade física, outro seria o panorama das ações policiais.     A PM, lamentavelmente considerada pela Constituição Federal como "força auxiliar e reserva do Exército" vem de forma ostensiva desviando-se de sua missão constitucional, que é a de preservar a ordem pública, por meio do policiamento ostensivo. Chama logo a atenção a inexistência de policiamento ostensivo. Pouco se vê policiais ou viaturas nas ruas. Parece que a corporação entende ser uma atribuição menor policiar as ruas, afinal ela é "força auxiliar do Exército". A preservação da ordem pública, por sua vez, exige uma atuação episódica só quando há conturbação coletiva. A sua interferência nem sempre é pronta e eficaz. Basta que se veja os embates entre torcidas de futebol. Os objetivos da corporação não estão sendo cumpridos satisfatoriamente. Mas o grave, o terrivelmente grave, é ela, a pretexto de combater o crime, estar tirando a vida daqueles que estão distantes do crime, mas são vítimas da incúria, da precipitação, do desrespeito à vida alheia, do despreparo técnico e psicológico dos que, em verdade, agem de acordo com uma voz de comando, ou melhor de mando, emanada de seus superiores e daqueles que ocupam cargos governamentais. Atiram por vezes sem estarem sendo atacados porque todo o discurso dos atuais governantes do Estado, e do Município de São Paulo é no sentido do confronto armado e da eliminação daqueles que se imagina serem criminosos. Dentro dessa concepção onde impera a violência indiscriminada e descriteriosa matam crianças, idosos, mães, avós, pacíficos cidadãos que estavam na linha de tiro. Talvez pensem "paciência", são acidentes da luta contra o crime. Não é verdade, o combate contra o crime não justifica disparos a esmo das chamadas "balas perdidas". Tiros que não deveriam ser disparados, salvo se fosse em situação de legítima defesa. Aliás, a voz de comando deveria ser no sentido de disparos só nos casos de defesa própria ou de terceiros. Eu ocupei a Secretaria de Segurança Pública em uma época de menor incidência da criminalidade, há trinta anos. Mesmo nesta época, dois episódios muito me abalaram. Primeiro, um motoqueiro foi atingido pelas costas quando se evadia de uma ocorrência. Em outro um casal de idosos feirantes japoneses dentro de uma Kombi em uma manhã nublada, não pararam em bloqueio policial e foram metralhados. O meu inconformismo levou-me a editar portarias normatizando a conduta dos policiais, impondo a proibição de atirar a não ser em legítima defesa e chamais pelas costas. Não posso afirmar que ocorrências como aquelas não mais se repetiram, mas garanto que a letalidade policial diminuiu sensivelmente. Nós não podemos mais conviver com uma polícia que mata. É preciso que haja um comando de amparo e proteção à sociedade em substituição aos mandamentos de violência e de morte, mesmo que em nome do combate ao crime.
terça-feira, 24 de setembro de 2024

Joia rara de ser humano

Sem nenhuma visão pessimista ou derrotista sobre a atualidade, mas sim realista, percebo atualmente uma queda no nível intelectual e ético daqueles do meu entorno. Não me refiro aos advogados, juízes e demais integrantes da família judiciária, com os quais mais convivo, falo, no geral, de todos os segmentos sociais, incluindo-os também, mas sempre com as necessárias ressalvas que toda generalização exige. A ressalva deve se situar especialmente no setor da integração social daqueles que sempre foram descriminados e estão num admirável processo de amalgamento. Processo aceito pela sociedade, que é irreversível e constitui um exemplo de avanço civilizatório extraordinário. Há de se anotar que há algumas lamentáveis exceções que resistem ao aprimoramento da sociedade. Pois bem, dentro desse quadro é preciso realçar figuras humanas exemplares com as quais convivi. Devem ser mencionadas para preservar-lhes a memória e como exemplo. Vou me referir agora a José Eduardo Loureiro, advogado, ex-presidente da OAB SP e um homem admirável pela sua cultura, retidão de caráter, coerência, simplicidade e alguma maravilhosa excentricidade. Aspecto relevante para mim foi sempre a sua invejável autenticidade. Loureiro era de uma fidelidade absoluta para consigo mesmo. Não transigia com suas ideias e com seu modo de ser por vezes original e singular. Dando respaldo a tais características ele era portador de coragem para resistir às opiniões e palpites dos amigos e conhecidos que lhe sugeriam mudanças, coragem para sempre com grande senso de humor continuar a ser o que sempre foi.   Eu mesmo fui um dos palpiteiros. Tinha a imensa alegria de acompanhá-lo em viagens para o interior do Estado quando foi candidato à presidência da Ordem. Eu coordenei a sua campanha. Coordenação quase inócua, pois só fazia aquilo que desejava.  Viajávamos com seu Volks vermelho. Ele no volante. Eu lhe dizia, ou melhor, implorava "Loureiro ponha um rádio nesse carro e um ar-condicionado" Não, respondia ele "quando estou com calor eu abro a janela. Caso esteja com sono, eu canto. Para que esses aparelhos?" Foi Presidente da Ordem em uma época marcada pela transição democrática, 1985/6. Fora seu diretor anteriormente e soube contribuir com muita discrição, mas com importante eficiência nas campanhas da anistia, das eleições diretas e da constituinte. Sem alarde, sem protagonismo personalista, emprestava credibilidade a todos os movimentos dos quais participava. Nessa época o metrô e a informática estavam nos seus nascedouros. Dizia para tomarmos o metrô. "Não sou tatu para andar embaixo da terra". Negava também ser passarinho, razão pela qual recusava o avião. Quanto à informática a sua objeção era peremptória: "computador dá choque". Igualmente era categórica a sua opinião sobre as férias. Proclamava: "Férias é invenção de vagabundo"   Não se pense que esse líder da advocacia era um conservador empedernido, retrógado, insensível à realidade, especialmente a social, que o cercava. Não, era acima de tudo um portador privilegiado de senso de humor, um notável piadista. Mas, sempre esteve sincronizado com as mudanças sociais, culturais e tecnológicas dos novos tempos.   Admirável era o respeito que tinha pelo outro. Cito um exemplo pessoal de quanto ele foi digno comigo. Lancei-me candidato à Ordem, depois de ter discordado do grupo ao qual ele e eu pertencíamos. Não me apoiou, mas com grande dignidade transmitiu-me a Presidência. Eu fui seu sucessor. A nossa amizade consolidou-se e ficamos juntos até o final. José Eduardo Loureiro você faz muita falta.  
quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Nossa reação evitará o caos

As perguntas mais frequentes que fazem os amigos e mesmo os meros conhecidos:  O que está acontecendo? O que vamos fazer? Será que ele ganha as eleições? O que está havendo com todos? A essas indagações e a outras no mesmo sentido, as respostas, quando alguém as dá, são sempre titubeantes, inseguras, inconvincentes. Com efeito o apoio, refletido nas pesquisas, a um dos candidatos à Prefeitura de São Paulo é absolutamente surpreendente, carente de explicações razoáveis. Assim, as perguntas acima ficam sem resposta. No entanto, sob a minha ótica, incalculavelmente mais espantoso, assustador, terrivelmente enigmático é o apoio a ele dado. Não é um determinado segmento social, não são as pessoas que moram em certo bairro, não se está falando de uma categoria profissional, não pertencem a uma raça ou a uma religião, nem professam ideologia, não são nem os pobres, nem os ricos e sequer compõe a classe média. Quem são então? São todos, de todos os credos, profissões ou classes sociais. O candidato empolgou. Está captando simpatia geral das mais várias origens. E, tão preocupante quanto, é a inércia, a falta de reação dos segmentos mais lúcidos e esclarecidos que não compactuam, mas nada fazem. Os enigmas que acompanham esse fenômeno crescem quando o questionamento é sobre o porquê de sua popularidade. Lembre-se que o candidato não apresenta um plano de governo; nenhuma pauta programática; não tem definição ideológica; nos debates ofende, mas se esquiva de qualquer discussão pontual. Enfim é o perfeito anticandidato. Representa a negação do sistema. Talvez aí resida a sua força. Está refletindo a contrariedade em um sistema político insatisfatório que não atende aos anseios e às aspirações da sociedade.     A descrença na classe política já se repetiu em pleitos anteriores. Cidadãos votaram em determinados candidatos apenas como protesto. A primeira vez que me lembro foi quando lançaram a candidatura do inofensivo rinoceronte Cacareco, em 1959. O Cacareco não assumiria mesmo que eleito, obviamente. O risco de hoje é visível e irá gerar consequências, creio eu, as mais danosas que se pode imaginar para São Paulo e seus moradores. E mais grave: abrirá um precedente político aterrorizante. A política poderá ser exercida sem qualificação, ideologia ou programas de ação e de conduta. Vale dizer, estamos correndo o risco de exercermos a democracia e a cidadania em um contexto absolutamente desconhecido até então, marcado pela ausência de parâmetros, critérios e princípios, diria eu, talvez até inexistentes. Será o reinado do non sense, do ilogismo, da distopia total. E, dessa para o caos é um pequeno passo.   É imprescindível que reajamos pelo voto, pois do contrário decretaremos um futuro de ruptura política, institucional e social de consequências desastrosas, inimagináveis.   A nossa inércia será comparsa, cúmplice das sombras caóticas que se abaterão sobre nós.
terça-feira, 27 de agosto de 2024

A presença dos ausentes

É incontável o número daqueles que povoaram a nossa existência, mas já se foram. Parentes próximos ou distantes; amigos das várias épocas de nossas vidas e os da vida inteira; há no rol também os conhecidos, com quem tivemos maior ou menor convivência, mas que ainda provocam lembranças. Animais gregários que somos, nossa necessidade de nos relacionar e interagir com outros nos desperta sentimentos variados em relação aos que se tornam nossos próximos. Simpatia, afinidades de diversas naturezas, culturais, esportivas/clubísticas, ideológicas, sociais, de vizinhança, profissionais e tantas e tantas outras. Eu diria que a empatia ou antipatia por alguém muitas vezes não possui nenhuma razão concreta, detectável. Simpatiza-se ou não e ponto. O afeto; a empatia; a atração, por vezes independem de qualquer afinidade ou identidade. Na vida de cada um de nós existem os núcleos que centralizaram as nossas amizades, cultivadas no curso dos anos. No meu caso eu aponto a rua Stella, na Vila Mariana/Paraiso, onde formamos desde a infância uma turma, a Turma Stella, cujos remanescentes até hoje se reúnem. Convivem, aproximadamente há mais de setenta anos. Alguns estudaram no mesmo colégio onde se conheceram no jardim da infância. Eu sou um deles. Outro polo agregador no meu caso foi a Faculdade de Direito da PUC e a Advocacia. Nesses três locais posso afirmar ter criado o meu arsenal de amigos e companheiros de jornada. As recordações que familiares e amigos me trazem e que os coloca presentes em minha vida, apesar de suas ausências, levam-me à repetida indagação: por que eles se foram? Indagação sem resposta. Em seguida assalta-me um questionamento em relação ao tempo: fala-se que o tempo "fechou"; que o tempo "abriu"; que o tempo "passou"; que o tempo é "implacável". Ah! Como eu gostaria que me dissessem que o tempo "parou".  Parou e não levou ninguém. Os nossos eternos presentes jamais estariam ausentes.     Esse meu anseio está ligado a uma marca do envelhecimento, melhor dizendo, do passar dos anos, que são as perdas. Claro, quanto mais marcha o tempo mais ele carrega consigo os nossos queridos. Como todos eles deixaram rastros aflora o sentimento de suas perdas. Mas, paradoxalmente, as suas ausências nos trazem as suas presenças. É muito bom que assim seja.
quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Saudoso comilão

O meu convívio com Delfim Netto sempre esteve ligado à mesa. Não nos unia nenhuma tese econômica, até porque de economia eu nada entendo. Afinidade política partidária também não existia, em face dos nossos posicionamentos antagônicos, embora ele tenha emprestado importante respaldo, em suas áreas de atuação, ao Presidente Lula, em quem eu votara. O meu primeiro encontro com ele se deu nos idos de 1968, quando eu trabalhava como foca na sucursal paulista do jornal O Globo. Participei de uma sua entrevista coletiva como ministro, tendo sido essa a minha primeira experiência como jornalista. Eu me limitei a anotar as perguntas dos colegas e as respostas do entrevistado, sem fazer nenhuma pergunta. De economia, como disse, nada sabia, como nada sei razão da minha omissão. Nenhuma impressão, negativa ou positiva, me causaram as suas respostas, em face da minha confessada ignorância da ciência econômica. No entanto, satisfez-me a ponto da admiração, uma manifestação do Ministro ao final da entrevista. Ele indagou dos presentes qual o local das redondezas onde se poderia tomas um bom chope. Verifiquei nesse seu questionamento que o professor, pensador e teórico da economia, por vezes sisudo ministro de Estado se escondia um homem do mundo, ligado às boas coisas que a vida nos oferece. Esta minha agradável constatação veio confirmar-se ao longo dos anos, durante os quais pude com ele conviver. Durante mais de cinquenta anos cruzávamos com não em palestras, reuniões acadêmicas, congressos, mas sim em restaurantes por ambos frequentados, em especial no Máximo e no Gero, onde chegamos a almoçar algumas vezes. Lá, aprendi a apreciar uma sobremesa talvez de sua criação: sorvete de limão com vodca servida em prato fundoagnífica. Anteriormente eu o encontrei várias vezes no Gigeto no Giovani Bruno. O último restaurante por nós frequentado foi o Roma. Lá ele organizava almoços com vários amigos para que pudessem degustar ostras especialmente encomendadas por ele, vindas de Cananéia. Estive pela primeira vez em um desses almoços na companhia do grande jornalista e historiador Elio Gaspari, figura especial e tão ligada à culinária quanto Delfim. Estávamos os três à mesa e para meu espanto após comermos um número incalculável de ostras, um disse ao outro, em tom de cumplicidade pelo pecado da gula: agora vamos comer o macarrãozinho? Inacreditável, mas verdadeiro. Veio à mesa uma saborosa massas no alho e no óleo. Imaginei que a mistura com as ostras fosse provocar uma revolução estomacal. Mas, neles não houve alteração. Já em mim. . . Eu registro esse aspecto humano desse extraordinário economista e homem público que jamais abandonou a sua preocupação pelo país, defendendo teses nas quais possuía crença e esperança. Convidado a escrever um texto no livro "Liberdade", editado para comemorar os cinquenta anos da Advocacia Mariz de Oliveira, afirmou que os economistas por meio de conhecimentos sociais poderiam ajudar a fazer "florescer uma sociedade justa". 
terça-feira, 30 de julho de 2024

A fome desprezada

Andava eu por uma rua de São Paulo quando mais uma vez presenciei uma enorme fila de mulheres, crianças, velhos, moços, aguardando que lhes dessem comida. São vários os pontos da cidade onde se distribuem alimentos aos carentes. A sua subsistência depende exclusivamente dessas iniciativas de pessoas, famílias e instituições. Mesmo as entregas individuais feitas aos sem teto minimizam os efeitos de uma trágica realidade, que é a fome vitimando milhares de brasileiros. Um ato de solidariedade que representa o mínimo a ser feito por aqueles que possuem um mínimo de sentimento de humanidade, compaixão e amor ao próximo. Compreende-se o bem feito a quem necessita. Até o mal produzido a alguém pode ser entendido, embora não compactuado. Difícil de compreensão, no entanto, para mim, é a indiferença diante do sofrimento alheio. Com maior razão quando essa indiferença é causada pela sobreposição de um interesse pessoal àquele de quem necessita de amparo.        Exemplo acabado de insensibilidade social foi dada recentemente por vereadores da Câmara Municipal de São Paulo ao apoiarem um projeto, que em boa hora foi retirado. Ele proibia a entrega de algum alimento a morador de rua. Um prato de arroz com feijão, um pão ou uma simples banana custaria ao doador uma multa de elevado valor. Incrível, inacreditável, mas verdadeiro. Vereadores impedem a caridade, a benemerência, impedem que se mate a fome de quem tem fome. Não se imagine que tenha sido uma iniciativa isolada de um vereador. Claro que antes de apresentar o projeto obteve o prévio apoio de vários colegas para apresenta-lo em conjunto. Todos eles, na verdade, conscientes ou não estavam sendo caixa de ressonância de um desejo de parcela da sociedade paulistana. Parcela insensível e portadora de um egoísmo atroz.  Não imagino que o egoísmo chegue ao ponto de se desejar o pior para os sem teto. Parece-me que o seu desinteresse pela dor alheia  os leve a não querer  o sofrimento, ou melhor, não querer apenas presenciá-lo, vale dizer: tirem do meu campo de visão e fica tudo bem.    Mesmo com a ressalva acima, a gravidade da dolorosa questão aumenta de intensidade quando se sabe que sua existência não estava apartada de um querer coletivo. Ao contrário, embora não haja pesquisa a respeito, ao menos que seja do meu conhecimento, não tenho dúvida da aquiescência da opinião pública, parte dela, à deplorável ideia. Eu não estou com suposição, com alguma cisma, com mera hipótese do acolhimento da absurda proposta legislativa. Falo com base em uma experiência real. Ao comentar o malfadado projeto com um colega, velho e experiente advogado, ele teve a desfaçatez de dizer-me que a iniciativa não era "das piores". Explicou que enquanto fossem alimentados, os ocupantes das ruas delas não sairiam. Raciocínio que parece refletir um pensamento não isolado, mas adotado pelos insensíveis, desprovidos de humanidade, integrantes de uma elite econômica que parece viver apartada da realidade. Para eles basta que as mazelas sociais não sejam vistas, não se situem próximas. Saindo das ruas para onde deveriam ir os seus moradores? Essa pergunta teria resposta imediata se dispuséssemos de abrigos para todos os sem teto. Mas não existem. O Poder Público mais uma vez é negligente. Repito: qual o destino desses infelizes que só possuem a rua para acolhe-los?  Fora ela, apenas imagino a última e definitiva morada para abriga-los, local que os nivelaram a nós, pois para lá também iremos.
quarta-feira, 3 de julho de 2024

Poética e corajosa canção

Como disse em artigo anterior, a arte, especificamente a música, foi utilizada como meio de protesto e de combate ao regime militar ditatorial. As composições tiveram o condão de manter acesa a chama da resistência que foi se espalhando paulatinamente para despertar consciências e acordar espíritos desavisados ou alienados. Ouvia-se uma canção composta por autores já conhecidos e consagrados e nela prestava-se atenção. A atenção devia ser redobrada, pois as letras continham mensagens políticas nem sempre explícitas. Para vencer a censura tinham os compositores que recorrer a estratagemas linguísticos nem sempre fáceis de percepção. Eles contavam com a modesta inteligência de alguns censores, que muitas e muitas vezes passavam batidos, não percebiam o que continha nos versos musicais. No entanto, várias canções foram censuradas e seus autores converteram-se em mágicos da palavra para poder manter mesmo conteúdo voltado para as denúncias e para o protesto que eram camuflados por construções semânticas de elevada inteligência e criatividade. Em crônica anterior citei uma emblemática composição de Chico Buarque e Gilberto Gil, "Cálice", talvez a mais inteligente e sutil música de protesto contra a ditadura militar composta no país. Agora, vou abordar uma outra canção também daqueles tempos, igualmente engajada no rico rol daquelas denotadoras do inconformismo que dominava a sociedade brasileira. Esta melodia, ao contrário de "Cálice", na verdade "Cale-se", apresentava mensagens mais explícitas extraídas de uma realidade visível e inegável, contra a qual se fazia um apelo ao enfrentamento. Enquanto a composição de Chico e de Gil revelava uma angústia existencial provocada pelo cerceamento das liberdades, especialmente a de expressão, a música de Geraldo Vandré, "Caminhando" ou "Para não Dizer que não Falei das Flores", representava uma conclamação para a resistência coletiva que partiria das escolas, das ruas, dos campos. A estrofe do chamamento "vem, vamos embora que esperar não é saber quem sabe faz a hora não espera acontecer" tornou-se um poético e belo grito de guerra, contra o imobilismo e a apatia. A união é pregada logo no início para que todos caminhem cantando "seguindo a canção", dando-se os braços ou não, pois todos são iguais, e o importante é seguir em frente, rumo à "certeza na frente" tendo "amores na mente" e a "história na mão". Uma explícita mensagem de amor mostra que a luta pode não ser cruenta, pois apesar da fome nos campos e nas plantações os "indecisos cordões ainda fazem da flor seu mais forte refrão e acreditam nas flores vencendo canhão". Uma contundente crítica à formação militar é feita quando dizem os versos que há soldados armados "amados ou não" perdidos e de "armas na mão". Ensinaram-lhes que deveriam morrer pela pátria e "viver sem razão". Observa-se que a canção "Caminhando" traz no seu bojo uma multiplicidade de mensagens, apelos, conclamações, versos de esperança marcados por expressões de união e de igualdade "somos todos iguais braços dados ou não". Palavras ligadas à beleza como "canção", "flores" "caminhando e cantando" são utilizadas para conclamar o povo a resistir contra a névoa ditatorial que encobriu e obscureceu os nossos horizontes. A canção se tornou um hino de aclamação que emocionou e estimulou a sociedade, especialmente por meio do refrão "vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer".
terça-feira, 18 de junho de 2024

A música como arma: 1º

Embora eu não possua fontes para uma pesquisa fiel e nem dados de qualquer natureza que possam confirmar a minha suspeita, eu creio que o Brasil tenha sido um dos países, sob regime ditatorial, no qual mais se tenha utilizado a música como instrumento de protesto. Com certeza outros usaram e usam esse recuso, mas em nosso país a intensa atividade musical de caráter político foi extraordinária. Na história da humanidade a arte sempre esteve presente como meio de protesto e de resistência. Quer por meio da poesia ou da prosa, os escritores expuseram as suas ideias libertárias. Ademais, os períodos de abstinência democrática sempre encontraram na música eficiente meio de contrariedade e de apelos pela liberdade. Durante a ocupação da Polônia o grande Chopin compôs a Polonaise, um dos clássicos mais aclamados e de maior prestígio do mundo. O hino francês, La Marseillaise igualmente foi criada em momento de grande ebulição política, a revolução francesa. Os dois únicos exemplos citados, mas há inúmeras outras músicas clássicas do mesmo sentido e natureza, trazem uma carga expressiva de patriotismo e de louvar a nação. Mantinha um cunho de protesto e de exaltação patriótica  em seus acordes e letras. Voltando ao Brasil, devemos lembrar que os alvos dos protestos são de duas naturezas. De um lado temos aqueles de cunho social, onde surge com clareza o inconformismo e mesmo a revolta em face da crônica desigualdade social  em  nosso país. De outro os de conteúdo político.  Diferentemente dos primeiros, as músicas com apelos libertários não podiam explicitar os sentimentos de revolta e a ânsia pelo retorno democrático. As razões eram óbvias. Imperava a censura a tolher a criatividade. As mensagens políticas eram postas com grande cuidado e sutileza. Logo após a eclosão do golpe militar de 1964 os compositores de maior envergadura intelectual se dedicaram a transmitir suas opiniões, suas críticas, apreensões e esperanças, por meio de letras muito bem elaboradas, que continham metáforas, figuras de linguagem, sutis comparações, recursos que muitas vezes alcançavam os seus objetivos: não eram captados pelos censores e a mensagem contida atingia o corpo social. Considero a composição de Chico Buarque e de Gilberto Gil, "Cálice", como a mais significativa, inteligente e, ao mesmo tempo, poética música de protesto que contêm o mais significativo brado conta a ditadura milita. O seu título, por si só, representa uma inteligente criação semântica por meio de uma expressão, que na fonética é idêntica a outra, tendo elas significados absolutamente diversos. "Cálice", título da música, é o copo, a taça, o recipiente para se ingerir líquidos. No entanto, a sua pronúncia induz o significado de calar, silenciar, estar proibido de falar, de  externar o pensamento. O "Cálice" se transforma em "Cale-se". Uma autoritária voz de comando tão própria em períodos despóticos. A genial criação dos dois geniais compositores inspirou-se no sofrimento de Cristo crucificado. Queriam eles o afastamento do cálice "de vinho tinto de sangue". No entanto, alertaram que apesar do cálice, lido aqui como cala-se, e "mesmo calada a boca, resta o peito. Silêncio na cidade não se escuta".
quarta-feira, 5 de junho de 2024

Noel Rosa hilário

Há pitorescas e interessantes narrativas sobre Noel Rosa, que demonstram o seu extraordinário senso de humor. Talvez a sua humorística revelada em sacadas extraídas de fatos e de episódios específicos possua a mesma origem da excelência de suas letras musicais. A sua inteligência, a sua aguçada capacidade de observação e a sua criatividade.  São narrativas feitas por seus contemporâneos, como Almirante, Aracy de Almeida, Ary Barroso, Vadico,  e tantos outros, bem como daqueles que lhe pesquisaram a vida, como André Diniz, João Máximo e Carlos Didier. As fontes, portanto, ou são presenciais ou daqueles que estiveram cronologicamente muito perto dos fatos e fizeram cuidadosas pesquisas. Em uma madrugada, período do dia de sua preferência, encontrava-se na Av. 28 de Setembro parado na calçada, quando parou uma belo automóvel guiado por dois amigos. Perguntaram a Noel o que fazia naquela  hora na rua deserta tomando  friagem. Com certeza lembraram-se que ele tinha problemas pulmonares. Noel sem nenhum constrangimento, após olhar o carro por dentro e observar que possuía bebidas e um balde com gelo, respondeu, "estou esperando um botequim passar".     Era notável a capacidade de Noel Rosa transformar episódios em músicas. Retratava a cena com graça e ironia de tal sorte que poderia se dizer tratar-se de uma anedota. No entanto o fato ocorrera e ele o musicava e ilustrava com as suas impressões sempre postas de forma engraçada.  Certa ocasião foi ele levado por amigos à casa de uma senhora que muito o queria conhecer. A dona da casa, no entanto, ao vê-lo não escondeu a sua decepção. No lugar de um galã, de um carioca da praia, típico, bonitão, charmoso, ali estava um rapaz raquítico, mal ajambrado e com um grave defeito no rosto. Noel, talvez já acostumado com o espanto das pessoas ao vê-lo pela primeira vez não mostrou constrangimento, mas perguntou se ela estava se sentindo mal, ao que ela respondeu que não. Era um ligeiro mal estar.  Como fazia com frequência o ocorrido se transformou na música denominada "Mentir". Justificou o ato de mentir como necessário para " esconder a mágoa que ninguém deve saber.", pois  saber mentir "é  prova de nobreza." Para Noel "mentir não é crime é bem sublime. Após completar a apologia que fez da mentia, arremata dizendo que no "campo do amor a mulher que não mente não tem valor".  O talento do poeta da vila de musicar fatos do cotidiano, especialmente os ocorridos com ele, nos legou músicas magistrais, todas a merecer a reiteração dos registros das composições e dos episódios que as inspiraram.
quarta-feira, 8 de maio de 2024

Música e fases da vida

Não  deve haver ser humano que não tenha na infância sido embalado por músicas. Canções  de ninar; cantigas de roda; músicas natalinas e músicas juninas. Com o passar dos anos as melodias nos acompanham e sua variação se dá de acordo com as fases da vida. Claro que na juventude os acordes coincidem com o estágio de nosso envolvimento sentimental. Difícil existir um casal que no início do namoro não possua uma música inspiradora, adotada como a "nossa música". Não é necessariamente uma única, pois depende do número de romances que cada um teve. No curso da existência se faz a correlação de  pessoas, acontecimentos, locais, com algumas composições. Por vezes, desconhece-se  a razão dessa ligação. Ouve-se a melodia e lembra-se de alguém ou de um fato sem se saber exatamente o porquê. No meu caso certas músicas recordam-me o dia em que ocorreu isso ou aquilo, ou me trazem à mente a figura de um parente ou antigo amigo. Indago a razão e não tenho a resposta. Minha mãe afirmava que eu sempre lhe dizia que certa música tocara no dia do meu nascimento. Vá entender!!!   Canções que ficaram gravadas em minha memória desde sempre, a começar da infância são todas de roda; além de "Casinha Pequenina" ; "Meu Limão meu Limoeiro";  " Tristeza do Jeca"; "Felicidade"; "Sereno"; "Malvada Pinga" "Lampião de Gás; "Rancho Fundo"; "Luar do Sertão"; "Feitio de Oração"; "Naquela Mesa", entre muitas outras.   Quando temos alguma desilusão amorosa gravamos na memória sambas canções e as chamadas "dor de cotovelo" essas com a evocação imediata do compositor Lupicínio Rodrigues. Locais e cidades nos remetem a certas melodias. Melhor dizendo, melodias trazem à lembrança cidades e lugares. Os exemplos mais eloquentes são " Cidade Maravilhosa" e " Lampião de Gás", que respectivamente evocam Rio e São Paulo. Mas há outras e muitas outras, que cantam bairros, como o Brás, Vila Esperança, Santa Efigênia, Copacabana, a Lapa, e tantas outras evocativas dos bairros e das praias de outras cidades como Salvador.   Nesse setor de músicas que cantam cidades e bairros, devem ser destacados Adoniram Barbosa, Dorival Caymmi e Inezita Barroso e outros. O Brasil obviamente não ficou fora do alcance de nossas composições. Destaca-se Ary Barroso, com a "Aquarela do Brasil" e outros chamados samba exaltação. O compositor Alcyr Pires Vermelho também se dedicou a esse gênero.  A partir de 1964 com o golpe miliar, mais especificamente nos anos setenta surgiram as excepcionais músicas de protesto, juntamente com excepcionais compositores da época : Caetano Veloso; Chico Buarque; Gil; Sérgio Ricardo; Aldir Bosco; João Bosco; e inúmeros outros compuseram letras inteligentes, repletas de sutilezas e argúcia para enganar os censores, todas elas verberando a falta de liberdade que nos fora imposta.   Na sequência desses singelos escritos sobre música popular brasileira irei abordar temas, compositores e composições fazendo uma conjugação com fatos, comportamentos, locais, episódios históricos, sentimentos os mais variados, personalidades, enfim vou procurar fazer uma junção da música com  vida em seu sentido mais amplo.     
terça-feira, 30 de abril de 2024

Bar de samba, samba sobre bar

Desde os seus primórdios o samba procurou retratar em suas letras a realidade social e cultual das respectivas épocas. Os vários aspectos da vida brasileira foram fixados em canções que espelham o pensar do homem médio, os seus hábitos, idiossincrasias, venerações, mazelas, carências sociais, a vida nos morros, enfim, todas as nuances de uma sociedade plural, multifacetada e marcada por uma grande diferença social. Importante realçar que os locais de exibição dos sambistas sempre constituíram espaços de importante sociabilidade, congraçamento e construção de amizades. Claro que, como em todo conglomerado humano, discórdias e conflitos  também surgiam. Um dos locais marcados como centro de cantadores, compositores e executores do samba foi a Praça Onze, no Rio de Janeiro. Os morros igualmente abrigavam núcleos dedicados às batucadas, sambas de roda, samba do partido alto, sede das escolas de samba. As favelas em São Paulo também reuniam autores e batuqueiros.  Posteriormente, na época da ascensão da bossa nova, o samba migrou para a classe média e locais por ela frequentados. Ele não mais era exclusividade dos morros, das favelas e dos cortiços. A zona sul do Rio e os Jardins, em São Paulo, passaram a ouvi-lo e a divulgá-lo. Na pauliceia, nas décadas de cinquenta e sessenta, bares como Jogral, Bossinha, Igrejinha, João Sebastian Bar, Nick Bar, Baiuca, dentre outros, passaram a difundir a bossa nova e a mesclavam com o samba canção. Os bares se transformando em instrumento de disseminação do samba. Ao lado dos bares e, anteriormente, das gafieiras, destacando-se o Som de Cristal e o Paulistano da Rua da Glória, os bares dos hotéis, como o Jaraguá e o Othon, se tornaram também instrumentos da ampliação do universo do samba. Para não se cometer injustiça, não se pode esquecer do teatro. O chamado teatro rebolado, teatro de revista e as peças musicais igualmente tiveram papel fundamental na expansão do samba. Os sambistas, por sua vez, sempre elegeram os bares como tema de várias composições. De uma forma desordenada eu cito "Naquela Mesa"; "Conversa de Botequim"; "Dama do Cabaré"; "Garota de Ipanema"; "Café Nice"; "Pistom  de Gafieira" ; "Botequim do Martinho"; "Ronda" sem esquecer de vários CDs denominados "Samba de Barzinho" com algumas músicas se referindo aos botequins e aos bares.          Deve ser feita referência a um bar que encarnava a profunda identidade entre bares e samba. Trata-se do Café Nice, no Rio de Janeiro, onde compositores, músicos e cantores diariamente se reuniam para apresentar suas novas músicas, discutir o permanente problema dos direitos autorais, celebrar contratos para apresentações e gravações. Enfim, o Café Nice concentrou e transformou um simples bar no universo musical do Rio de Janeiro  durante anos. É importante realçar que também por anos não só o Nice como outros bares, especialmente os situados na Lapa, foram o centro de uma prática corrente naqueles tempos. A compra e venda de sambas. Compositores, que em regra viviam em estado de penúria financeira, vendiam as suas composições. Na outra ponta, outros não tão inspirados, mas mais abonados, compravam as músicas para que os discos estampassem os seus nomes, como se fossem de sua autoria. Há um samba de Gonzaguinha, gravação dele e de Alcione, de 1985, que reflete com fidelidade todos os encantos de um bar e as inúmeras vertentes da vida que por ele passam. Logo no início já afirma que na mesa de bar "é lugar para tudo que é papo da vida rolar". Tudo rola do futebol até a "danada da tal da inflação". A cerveja é cantada para matar o calor e brindar "àqueles que já não vem mais". A bela poesia diz que em torno de um copo a gente inventa uma vida melhor, pois em uma mesa de bar todo o mundo "é sempre o melhor", e "a água da mágoa se enxuga no pano daquela toalha". O samba tem no bar o seu berço, o seu espaço de culto e especialmente o seu  ambiente de harmonia  com a vida.
quarta-feira, 10 de abril de 2024

O sofrimento e a ternura em Adoniram

Um dos compositores que melhor retratou realidades sociais específicas foi Adoniran Barbosa. As letras de suas músicas, na verdade crônicas musicadas, souberam ingressar com fidelidade no cotidiano de pessoas que constituíram segmentos sociais de relevância na vida de São Paulo.  Os imigrantes italianos, os habitantes das regiões periféricas e de alguns bairros paulistanos constituíram os temas de sua preferência. Soube reproduzir toda uma cultura que marcou aquelas populações, inclusive utilizando um linguajar característico. Os erros cometidos na pronúncia são correntes no palavreado comumente utilizado. As notórias carências sociais que atingiam essas pessoas eram reproduzidas em suas canções de uma forma espirituosa, bem-humorada e complacente.   Interessante notar que em todas as "tragédias" narradas há uma manifestação de aceitação e de conformismo. É como se o destino dessas pessoas estivesse pré-traçado e fosse inevitável. A temática social de Adoniram sempre veio acompanhada de uma palavra de conforto e aceitação em contraposição às posteriores músicas de protesto compostos por inúmeros autores. Duas formas de denunciar uma realidade que nos acompanha há séculos. Na célebre "Saudosa Maloca" quando "Mato Grosso quis gritá mas em cima eu falei os homi tá cá razão nós arranja outro lugar", o Joca completou o consolo "Deus dá o frio conforme o coberto" e foram pegar "praia nas grama de jardim". O tema da morte também surge acompanhado do apelo de conformismo. Em "Iracema", após narrar o atropelamento de sua futura esposa na Avenida São João e de quem ele apenas ficou com "suas meias e seu sapatos", ele conclama "paciência, Iracema, paciência" não sem antes isentar o chofer de "curpa". A revolta diante do sofrimento ficou fora das composições de Adoniran. Na realidade, o conformismo posto em  suas músicas reproduz o conformismo do próprio povo brasileiro em face das dificuldades e das injustiças sofridas.  Trata-se de mais uma característica de nossa gente que ele soube transpor com exatidão para as suas obras. "Despejo na Favela" e "Aguenta a Mão João" são duas outras narrativas de desvalidos que ficam privados de seus tetos, tal como em "Saudosa Maloca". A primeira se refere  aos despejos de moradias em uma favela. Os moradores têm dez dias para sair de seus barracos e não possuem local para se abrigar. A outra também reflete uma desgraça que se abateu sobre um habitante de barracão que foi destruído por um temporal. Fala para ele não reclamar, pois "a chuva só levou a sua cama" sendo que com o Cibide foi pior, pois a "enxurrada levou seus tamanco e o lampião" Ao lado desse viés voltado para desgraças e sofrimentos, há melodias com letras suaves, amorosas, que denotam ternura e meiguice, sempre dentro de contextos simples de pessoas humildes.  Por exemplo, "Prova de Carinho", na qual ele "faz uma aliança para ela" com a "corda mi do meu cavaquinho". Confessa ter feito muito sacrifício, pois "o cavaquinho já não pode mais gemer", para dar a prova "do meu bem querer". "Trem das Onze" ; "As Mariposas" ; "Samba do Arnesto" ; "Torresmo à Milaneza"; "Vila Esperança"; "Samba Italiano" e muitas outras repletas de comicidade e espírito crítico, demonstram uma inteligência vivaz e uma excepcional capacidade criativa e um invulgar senso de observação do cotidiano  desse magnifico  cronista da pauliceia que ele tanto amou.  
terça-feira, 26 de março de 2024

Adoniram Barbosa: Espelho de São Paulo

Houve época em que o coração do paulistano pulsava de orgulho, com maior intensidade, quando chegava ao marco zero de São Paulo, a Praça da Sé. De lá se irradiavam todas as ramificações de uma cidade pungente, possuidora de um esplendor crescente em todas as áreas das atividades humanas. Ela abrigava a Catedral e, no seu entorno, estavam os tribunais e fóruns do Poder Judiciário: a faculdade do Largo de São Francisco; a Câmara Municipal; a Prefeitura; anteriormente a Assembleia Legislativa, e um intenso comércio que atendia a todas as necessidades de consumo da população. Não havia shopping centers. A Praça da Sé ainda continha o quarteirão que abrigava o Edifício Santa Helena, destruído na década de setenta, por razões até hoje não bem claras. Todo o quarteirão veio abaixo para que a Praça ficasse unida a uma outra, a Clóvis Bevilaqua. Não só os prédios foram derrubados, mas a história ruiu, uma história voltada para as grandes atividades culturais de São Paulo, que ainda poderia estar sendo escrita. Vem-me à lembrança a enorme contribuição dada pelo chamado Grupo Santa Helena às artes plásticas. Volpi, Rebolo, Pennacchi, dentre outros, mantinham os seus estúdios no citado Santa Helena. Lá havia um teatro e um cinema. Um pouco acima, em uma rua transversal, a Felipe de Oliveira, Monteiro Lobato possuía escritório, sede de sua editora. Palco de manifestações cívicas desde sempre, a nossa Praça também era o observatório de um dos maiores compositores brasileiros, Adoniram Barbosa. Foi ele na verdade um extraordinário expositor dos nossos hábitos e costumes, pois soube captar com perfeição aspectos e nuances marcantes do povo paulistano. A sua atenção voltava-se em especial para os habitantes de origem italiana e para aqueles desprovidos de melhores condições de vida. Certa manhã, eu vi Adoniram em cima das escadarias da Sé, observando as centenas de transeuntes que se entrechocavam. Já narrei esse fato. No entanto, hoje o menciono porque me ocorre uma observação não referida anteriormente. A permanência do compositor nas escadas da Catedral, além de poder inspirá-lo como músico, dava-lhe ensejo de olhar o povo. A partir do mero olhar, imaginar e analisar todo um conjunto de sentimentos e emoções que habitam e movem milhares de seres. Há pessoas que sem estudo específico possuem uma inata vocação para desvendar a alma e a mente humanas. Observadores astutos conseguem decifrar o que se passa no íntimo do outro. Dotados de inteligência intuitiva, perspicácia e o chamado sexto sentido por vezes erram nas análises que fazem, mas, em regra, conseguem retratar com fidelidade a vida de pessoas, especialmente as marcadas por dificuldades imensas, em estado quase de penúria, mau relacionamento interpessoal, tragédias de um cotidiano árido e sofrido. Essa realidade foi exposta em suas músicas com graça, leveza e irreverência, fruto de uma vida intensamente vivida que ele transpôs para a sua arte, não só na música, como no cinema, no teatro e na rádio. Eu pretendo, nos próximos escritos, focar algumas dessas composições que encerram preciosas lições de sociologia e de psicologia e, acima de tudo, expõem um acendrado amor pela cidade de São Paulo, por seus bairros e por seu povo.
quarta-feira, 20 de março de 2024

A música retrata diversidades

Quando se escreve ou se fala sobre música, o enfoque é em regra a própria composição, o compositor, o cantor, a orquestra, o arranjo, enfim, as abordagens relacionadas à própria criação e à sua execução. No entanto, tão importante quanto ou, talvez, mais relevante é a temática que reflete a realidade histórica e sociológica de um momento determinado. No caso específico do samba, especialmente nos seus primórdios até os anos cinquenta e sessenta, foram retratadas as grandes mudanças operadas nos costumes, na cultura, no relacionamento interpessoal, no seio da família. As mutações operadas na sociedade brasileira, que de rural passou a se transformar em urbana, assim como as alterações nos perfis das cidades, as migrações para os morros e favelas, e tantas outras novas características passaram a compor a temática musical brasileira. A rica variação dos temas não se refere aos inúmeros  gêneros musicais. Quando falo na existência da interligação entre temas diversos, estou me referindo ao mesmo gênero, especificamente ao samba.   Como exemplo, posso citar a pobreza e a riqueza. A carência e a opulência. O malandro e o trabalhador. O morro e a cidade. A favela e o palácio e inúmeros outros motes que aparentemente se contrapõem, mas mostram realidades imperantes que vieram à tona por meio da música. São composições de cunho sociológico, extraídas, muitas vezes, das experiências pessoais de seus autores.   Importantes são os sambas que retratam hábitos,  costumes, a cultura de épocas determinadas, especialmente os cultivados nos setores sociais mais afastados dos núcleos de poder das elites. "Cabritada Mal Sucedida"; "Pistão  de Gafieira"; " Conversa de Botequim"; "Boas Festas"; "Lata D'Agua" "Favela"; "Feitio de Oração"; "Acender as Velas" e centenas de outros são magníficos sambas que trazem ao nosso conhecimento aspectos de um cotidiano por nós não vivenciado.       Noel Rosa, Assis Valente, Ismael Silva, Cartola, Zé Keti, Adoniram Barbosa, Chico Buarque, Caetano e outros souberam criar, por meio do samba, pontes entre dois mundos separados por quase intransponíveis barreiras sociais. Dois extraordinários compositores, um paulista e um carioca, transformaram os seus sambas em crônicas fidedignas das nuances e características de segmentos marcados por carências de todas as espécies. As ligadas à cultura foram de forma inteligente e hilária postas por Adoniram Barbosa que reproduziu em suas letras o falar do povo paulistano, notadamente das pessoas de origem italiana.  Algumas verdadeiras tragédias impostas pelas injustiças sociais igualmente receberam um tratamento fidedigno por parte do compositor do bairro do Bixiga. Como exemplo pode-se citar "Saudosa Maloca" . Outras mostram com graça as agruras de um povo sofrido, mas não desprovido da capacidade de superar os percalços para tentar viver com alegria, principalmente não abdicando do seu gosto pela música.    O Poeta da Vila, Noel Rosa, também retratista de   realidades específicas, soube abordar cenas da vida carioca, comuns nos bairros de Vila Izabel e da Lapa. A malandragem; os cabarés;  a preservação da língua pátria; os seus próprios defeitos físicos; alguns costumes sociais; a empáfia e a hipocrisia das elites; as dificuldades de relacionamento com pessoas chatas, são alguns dos seus temas. Foram tratados de forma veraz, irônica, maliciosa, denotadora de uma inteligência invulgar e uma grande capacidade de captar a verdade social e a própria alma humana. Essas são caraterísticas comuns aos dois magistrais compositores, Adoniram Barbosa e Noel Rosa. 
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Samba: espelho da realidade

O samba surgiu e se desenvolveu como importante   instrumento de registro da nossa realidade social e não como exclusividade musical. As suas raízes estão vinculadas às questões sociais que marcaram os últimos cem anos da história do Brasil. Os seus personagens, no seu nascedouro, já denotavam a sua origem. Eram  tidos como   desocupados, malandros, batuqueiros, habitantes dos morros e das favelas. Os locais onde o samba é tocado, por vezes composto, cantado e dançado, historicamente se tornaram  ambientes de sociabilidade. Sempre constituíram redutos de confraternização para uma parcela colocada à margem da sociedade. Nos seus primórdios, na cidade do Rio de Janeiro, em torno da Praça Onze, surgiram as casas das Tias, destacando-se a da Tia Ciata. O samba do partido alto, o samba de roda, batucadas e os desafios foram criando e sedimentando uma cultura musical que, não com pouca dificuldade, foi se espalhando pela cidade. Os primeiros sambas dali passaram a ser cantados pela cidade. Mas ouve demora e resistência das elites. Já nas primeiras décadas os seus compositores, notadamente Noel Rosa, retratavam a realidade a partir do meio em que o samba se desenvolveu. Muito dessa realidade ecoava suas próprias vidas, marcadas pelas carências advindas da desigualdade reinante, que obrigava a muitos recorrerem a expedientes de duvidosa legalidade para poder sobreviver. Não é sem razão que os conceitos de malandragem, vadiagem, ociosidade, boêmia os marcaram.  O seu inato dom musical possibilitava que  os compositores transformassem em música e em poesia o cenário que os rodeava, com as suas mazelas, alegrias, vicissitudes, hábitos e costumes de uma sociedade em rápida transformação. Com a restruturação urbana do Rio de Janeiro, a Praça Onze desapareceu. O samba migrou para alguns bairros, Estácio, Vila Izabel, Lapa e subiu os morros. Nenhum desses locais representava algum bairro aristocrático da Zona Sul. Nessa o samba chegou anos depois na forma de espetáculos exibidos nas boates e nos cassinos. A sua penetração definitiva junto à burguesia ocorreu com a bossa nova, uma importante variante, que se apresentava com contornos melódicos e poéticos acentuadamente diverso do samba de origem.      As composições de Chico Buarque de Holanda "Gente Humilde" e "Malandro quando Morre", embora da década de sessenta, reiteram um quadro que se alonga no tempo de forma imutável. A primeira mostra a dignidade na pobreza, pois sendo uma gente simples e humilde não abdica de manter no frontispício de suas casas "Aqui é um Lar". Dignidade e humildade que nos dá "vontade de chorar". Em "Malandro quando Morre" Chico revela o dramático panorama do morro com a ausência de um mínimo de amparo a não ser o consolo de se saber que "menino quando morre vira anjo", assim como "mulher vira uma flor lá no céu" e malandro quando morre 'vira samba". O samba de Zé Keti  "Acender as Velas"  parece ter surgido  para confirmar e complementar o "Malandro quando Morre", pois explica que a morte no morro se dá porque o "doutor chegou tarde demais", pois no morro carro não  sobe e não tem "telefone para chamar". A consequência é que "a gente morre sem querer morrer".   São dezenas as composições com cunho social que bem demonstram ser o samba um espelho fiel da nossa realidade.
terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Noel Rosa: Retratista do Brasil

O seu curto tempo de vida possivelmente não possibilitaria para qualquer outro compositor legar mais de duzentas e cinquenta músicas tal como Noel Rosa nos legou. Viveu 26 anos, de 1910 a 1936, tempo suficiente para, com a sua genialidade, criar um acervo musical que se transformou em um fiel painel da realidade social dos anos trinta.  Sua vida desprovida de regras e de limites, desfrutada com extraordinária intensidade, possibilitou a Noel adquirir uma experiência multifacetada sob o aspecto humano e social. Conheceu o homem, as suas misérias e grandezas, e espelhou em suas composições os vários segmentos sociais, do morro e do asfalto, das classes menos privilegias à alta sociedade, abrangendo todas as raças e todos os credos. Colocou a nu as mazelas e as fraquezas de uma sociedade em plena mudança de valores e de costumes, que já apresentava os claros sinais de empobrecimento acelerado de uma parcela inculta e carente ao lado do enriquecimento de outra, esnobe e pseudoaristocrática. Esse segmento, sem apreço pela nossa cultura, adquiria hábitos importados da França e logo após dos Estados Unidos. Noel verberou com uma hilária composição o mau costume, até hoje imperante, da utilização de palavras estrangeiras em substituição aos nossos vocábulos. Em "Não Tem Tradução" declara que "tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia, "é brasileiro já passou do português". No excepcional samba "Filosofia" retratou de um lado o seu sentimento em face às dificuldades e penúrias do homem comum, desprezado por sociedade que dita as regras. Nessa mesma música louvou a liberdade de poder cantar o seu samba, embora "nessa prontidão sem fim". As últimas estrofes trazem uma crítica às consideradas elites, que, apesar de endinheiradas, não podem comprar alegria e viverão escravos "dessa gente que cultiva a hipocrisia." As suas dificuldades financeiras foram cantadas em magníficos sambas que são divulgados até hoje, passados noventas anos. "O Orvalho Vem Caindo" e "Com que Roupa" com fino humor mostram o drama de quem não possui um teto e nem sequer tem um terno para ir a um samba. O boêmio na primeira canção tem como cortinado "o vasto céu azul" e como cama "uma folha de jornal". Já na segunda, o sambista não pode ir ao samba para o qual foi convidado, pois não possui uma roupa decente. Em "João Ninguém" faz uma apologia da felicidade que independe da fortuna, tal como já fizera em "Filosofia". Ele declara no final da composição que muita gente que ostenta luxo e vaidade "não goza a felicidade que goza João Ninguém". O "Conversa de Botequim", por sua vez, retrata um homem de bom gosto, que exige em um bar uma média com pão e bastante manteiga, água gelada, mas impede que o garçom fique limpando a mesa, pede palito, caneta e cartão e termina querendo "uma revista, um tinteiro e um isqueiro", não sem antes mostrar que é um pobretão, pois pede dinheiro emprestado ao garçom e ao gerente que "pendure essa despesa no cabide ali em frente."  Ele retratou o malandro inteligente, que com picardia, sagacidade e esperteza conduz a sua vida vencendo obstáculos e percalços. A versatilidade de Noel Rosa nos deixou músicas ligadas a áreas do conhecimento às quais não esteve ligado. Ingressou no campo do direito compondo "Habeas, Corpus" onde utiliza com correção termos jurídicos e adequa com perfeição o instituto ao enredo da letra. Também invadiu o setor da medicina ao criar "Coração", deliciosa música que exalta o nobre órgão como propulsor e transformador do "sangue venoso em arterial" e, também, como o "cofre da paixão". Segundo Noel, coração de sambista brasileiro "faz a batida do pandeiro". O samba termina satirizando quem tem "mania de grandeza" e que vive procurando alguém que "conseguisse encher-lhe as veias com azul de metileno" para ficar com "sangue azul". Em "Seja Breve", "Prazer em conhecê-lo" e "Rapaz Folgado" expressa quanto é desagradável conviver com pessoas inconvenientes, que criam situações constrangedoras.  Na primeira composição narra uma "conversa fiada", interminável. Na segunda, cumprimenta à força quem não gosta. E, na última, o personagem é um aproveitador sempre em busca de vantagens. Antes de terminar esse singelo escrito cumpre realçar a capacidade de Noel Rosa de rir de si mesmo. Em "Gago Apaixonado", "Filho do Tarzan ou Filho do Alfaiate" com saborosa ironia, fineza de espírito e fulgurante inteligência mostra não ter nenhum sentimento de inferioridade com suas características físicas que não seguiam os padrões estéticos comuns.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Reação musical

Há mais de dez anos abordei o assunto em um despretensioso escrito. O tema era a interferência da língua estrangeira, sobretudo o inglês, em nossa comunicação cotidiana. Volto a mencionar esse nosso vício, pois ele ainda persiste. Continuamos a praticar essa incompreensível "macaquice", que nada mais significa do que um profundo desapreço pelas nossas coisas, especialmente língua pátria.  Um dos setores que mais usam palavreado estrangeiro, em substituição ao correspondente vocábulo pátrio, é aquele responsável pelo anúncio e publicidade de produtos de qualquer natureza. Os folhetos, cartazes, faixas, veiculam, inclusive na imprensa escrita, falada ou televisionada palavras e frases em línguas de fora em detrimento da nossa. Em verdade, esse cacoete nacional representa uma sensação de inferioridade que secularmente nos acompanha. À guisa de ilustração, nas ruas de uma cidade do interior, encontra-se  escrita a expressão STOP ao invés do nosso PARE. Até na pia batismal essa tendência se diz presente. Basta que se observe o nome dado a alguns jogadores de futebol, Richardson, Welington, Cleverson, Washington e tantos outros em substituição aos nomes genuinamente nacionais e aos saborosos apelidos que tornaram conhecidos grandes craques, notadamente do passado quando o mau hábito não era adotado: Pé de Valsa; Cabeção; Diamante Negro; Pequeno Polegar e outros.   Eu indago qual teria sido a motivação dos pais ao escolher esses nomes ? Será que imaginam que ao fazer essas escolhas estariam garantindo o sucesso  aos filhos em suas futuras atividades. No caso do futebol deveriam saber que o êxito estaria nos pés e não nos nomes.   A música popular brasileira como fiel retratista de nossa realidade não poderia mesmo deixar de registrar essa deplorável  deturpação, essa inexplicável agressão ao nosso idioma. E o fez por meio de grandes compositores e cantores como forma de reação ora hilária, ora mais contundente, mas sempre com muita força e poder de penetração social. O compositor Assis Valente deixou claro em sua "Tem Francesa no Morro" que a francesa é bem recebida mas deve "Entrê na virada e fini pur samba". A sua mensagem mostra que aceitamos o estangeiro desde que ele se adapte à nossa cultura. A música inclusive conclama a francesa a frequentar a macumba "Si vu frequente a macumba". Trata-se propositadamente de uma letra sem muito nexo, exatamente para mostrar que a mistura dos idiomas não espelha pensamentos lógicos. Nessa mesma linha encontramos uma composição de Lamartine Babo, "Canção para Inglês Ver", na qual com o seu refinado senso de humor o compositor mostra o "non sense" que resulta do uso desnecessário de expressões inglesas. Em uma outra melodia, "Good Bye" , o mesmo  Assis Valente coloca o  homem simples a falar inglês , sem ter a mínima noção do que fala. Por tal razão o aconselha a abandonar a "mania do inglês" pois "fica feio para você mulato frajola que nunca frequentou as aulas da  escola" . Ainda segundo a canção, hoje não é mais bom dia nem boa noite "e sim good morning e good night". No entanto, na voz de Carmen Miranda a música assume um compromisso com a nossa língua : "ensinaremos cantando a todo o mundo be e bê, bi i bi e b-a-ba" antes que a vida se vá" . Noel Roa não ficou insensível ao avanço dos estrangeirismos. Compôs o "Não Tem Tradução" onde verbera o uso do inglês, dizendo que as rimas do samba não são "l Love You" e que o "alô boy, alô Jony só pode ser conversa de telefone". A reação musical somada à valorização da cultura nacional nos campos das artes plásticas e da literatura representaram uma quebra dessa tendência adventícia. No entanto, há dois setores que foram impregnados pelo estrangeirismo e dele não se desprenderam : o da publicidade e o das músicas tocadas em festas, casamentos e recepções, onde se ouve em regra somente melodia americana.     
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Assis Valente: Vitória da tragédia

Talvez tenha sido o compositor brasileiro que revelou a sua vida interior com mais transparência e clareza, com  as suas angústias, esperanças, desencantos sempre com um pano de fundo relacionado à busca incessante pela felicidade e pela alegria nunca encontradas. Não pense que suas letras eram lamuriosas, chorosas, repletas de queixas e de sofrimentos. A sutileza que empregava em letras por vezes até hilárias encobria a sua melancolia e as frustações que a vida  lhe proporcionou.   A melodia era primorosa, quer dos sambas, quer das marchas e de algumas que lembram valsas. Havia uma sintonia perfeita entre os acordes e os versos. Era fácil gravá-los e fixá-los na memória. Assis Valente não possuía nenhum conhecimento teórico de música, era o puro dom que a natureza lhe dotou. Aliás ele possuía uma outra aptidão que lhe deu alguma notoriedade no respectivo meio : era um protético de excelente qualidade. Fazia dentaduras e próteses com o mesmo esmero que se dedicava às suas composições. Alguém disse que ele era um artista no desempenho dessas funções. Ademais, tinha grande habilidade para o desenho tendo, inclusive, sido premiado em concurso público. Foi um fiel retratista do Rio de Janeiro de seu tempo, pelos anos de 1934. No entanto, não se limitou a musicar hábitos e costumes cariocas. Trouxe para as suas composições fatos da sua época que estavam no centro dos interesses sociais. Havia, por exemplo, uma grande apreensão com as notícias sobre uma grande catástrofe que poderia atingir a humanidade. Sensível a esse temor coletivo compôs a magnífica "E o Mundo Não se Acabou". A crença no fim do mundo teria levado alguém a fazer coisas incomuns, como beijar a boca de quem não beijaria, gastar com antigos desafetos, para no fim concluir que o "mundo não se acabou". Várias de suas músicas denotam a sua verve humorística e irônica. "Recenseamento"; "Uva de Caminhão", "Tem Francesa no Morro", "Camisa Listrada", "Maria Boa", "Isso Não se Atura", e outras. Enalteceu o samba e as coisas do povo simples como poucos compositores o fizeram. Trouxe para suas composições as festas brasileiras, especialmente a junina. "Olhando o Céu Todo Enfeitado" e "Cai Cai Balão ", nas quais já mostra uma tendência à melancolia.   A composição "Isso não Se Atura", uma inteligente apologia do samba de morro, satiriza os críticos desse ritmo. Das suas músicas românticas a mais expressiva e poética é a maravilhosa "O Vento e a Rosa".    Ao lado do Assis Valente hilário, romântico, cantador das nossas coisas, há um homem melancólico, angustiado, decepcionado com a vida que via com olhos ingênuos e esperançosos, mas que lhe provocou frustações e mágoas. Várias de suas músicas descortinam claramente essas características, ao lado de sua constante busca de alegria e da felicidade. Duas canções exprimem essa sua ânsia, nunca satisfeita. Na "Alegria" conclama ao samba, pois quem samba " tem alegria". A sua gente que era "triste e amargurada" passou a batucar para "deixar de padecer". Ele também padecia com a tristeza, por isso iria "deixar a cruel nostalgia" para, "esperando a felicidade" pensar que fosse melhorar "fingindo alegria" para "a humanidade não me ver chorar." O mesmo sentimento de frustação pelo não alcance da felicidade e da alegria ele retratou em "Minha Embaixada Chegou". Nela ele pede ao povo "na batucada desacatar" e vir "vadiar no meu coração" e diz à amada "cair na folia" para esquecer a tristeza "mentindo à natureza" e "sorrindo à tua dor". Em ambas as canções ele coloca o samba e a batucada como instrumentos para atingir o seu tão almejado estado de felicidade.     A sua composição emblemática, síntese do seu sofrimento, angustiante busca da felicidade e sua decepção por não a encontrar foi "Boas Festas". Enquanto "a gente ficou feliz a rezar" ele pediu a Papai Noel "a felicidade para você me dar". Fez esse pedido, pois pensou "que todo mundo fosse filho de Papai Noel" e que a felicidade fosse "brincadeira de papel". Decepcionado e solitário  concluiu que " o meu Papai Noel não vem" , pois com certeza ele já morreu ou então a "felicidade" é um brinquedo" que ele " não tem".   Esse magistral músico/poeta depois de duas tentativas de suicídio, uma delas atirando-se do Corcovado, obteve êxito ao tomar veneno, sentado em um banco de jardim. A tragédia venceu a ingenuidade, a alegria e a felicidade.   
terça-feira, 23 de janeiro de 2024

A ternura de João Valentão

A música, seja ela de que gênero for, clássica, popular, nacional, estrangeira, nos provoca assim que é ouvida, uma sensação de agrado ou de desagrado. Salvo os musicistas e os críticos que analisam a melodia, o seu andamento, os acordes, o ritmo e demais aspectos, nós, os mortais, nos limitamos a gostar ou não, independente das razões das nossas preferências. Apreciamos ou não e ponto final. No entanto, há algo nas canções populares que nos chama a atenção, por vezes mais do que a melodia. Trata-se das letras. Essas merecem uma análise que ultrapassa os limites do gostar ou não, e, obviamente, não implica em se ter melhor ou pior ouvido musical. Nesse ponto me permito uma observação. Eu sempre fui desprovido de bom ouvido. Minha mãe era, ao contrário, dotada de excelente aptidão musical. Tocava violão, piano, durante algum tempo harmônica. Aliás, qual é a diferença entre harmônica e sanfona? Eu nunca soube. Meu irmão, José Eduardo, seguiu os passos de minha mãe. Dotado de dom musical, que não se adquire, por ser inato, com seis anos dedilhava um piano. Tocava de ouvido, pois talvez não soubesse ler partituras. Do meu pai herdei a desafinação. Ele não conseguia distinguir uma nota de outra, assim como eu, e sequer sabia assobiar, eu idem. Gostava muito de música e tinha as suas preferidas. As cantava alto e em bom som, agredindo os ouvidos de quem estivesse por perto. Dentre elas lembro-me de "Maria Bonita"; "Maringá"; "A Marcha do Expedicionário"; "Chão de Estrelas" e vários tangos, dentre esses "Adios Muchachos". Devo esclarecer que as minhas dificuldades musicais não se davam por falta de esforço e de empenho da minha mãe. Ela sempre foi uma entusiasta esperançosa de que o filho um dia despertasse para a música. Suas esperanças duraram até o dia em que me deu um pandeiro e eu mostrei-me inepto até para esse instrumento. Voltando às letras das músicas. As brasileiras nos apresentam facetas vinculadas às nossas realidades do passado, do presente, das várias regiões do país, dos nossos hábitos, feitos históricos, personagens, cidades, locais específicos, carências, mazelas, política. Enfim, todas as nuances e características do homem brasileiro e da sua sociedade foram e são retratadas por letras que abordam uma grande diversidade de temas. Românticas,  de exaltação nacional, hilariantes, de apologia ao  trabalho ou à malandragem,  cantando as belezas de uma cidade, de um bairro, do sertão, das favelas, uma diversidade  que abrange a vida em sua integralidade.  Eu pretendo, em outros escritos, tecer comentários sobre músicas específicas. Começo hoje. Trata-se de uma canção de Dorival Caymmi, "João Valentão". Traça o retrato de um briguento com perfil desafiador e experiência nos confrontos físicos, não possui preocupação com a vida e com o futuro. "Não presta atenção em nada" e "a todos intimida", as proezas de João e o seu jeito de ser compõem a identidade da música. No entanto, existe uma parte de puro lirismo, sobre os seus sonhos embalados pela beleza de sua terra. Há um momento, fim do dia "quando o sol vai quebrando lá pro fim do mundo" e obriga "João a sentar" em companhia da morena quando a "noite é de lua" e ele tem vontade de "contar mentira e de se espreguiçar". A canção termina com a belíssima mensagem de  que João "nunca precisa dormir para sonhar" porque "não há  sonho mais lindo do que a sua terra não há".
quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Envelhecer é um castigo?

O velho de cinquenta anos atrás era mais velho do que o velho de hoje. É verdade. Outro dia examinei uma foto de meus avós paternos. Ele com 60, ela com 62. Sentados em um banco, ambos vestidos com roupas pretas, circunspectos, aparentavam uma idade visivelmente superior a real. Não eram os únicos a involuntariamente esconderem a idade, não no sentido de diminui-la, ao contrário, mostravam um envelhecimento físico superior ao etário, isso ocorria com todos de sua geração e das anteriores. Em verdade, hoje a aparência reflete um estado de espírito não vigente à época. Explico: o envelhecimento antes de ser físico era psíquico. Envelhecia-se primeiro mentalmente e como consequência surgiam marcas no corpo, no modo de vestir, no comportamento em geral, impondo restrições conforme os padrões da época. Era comum ouvir-se "não fica bem na minha idade" fazer isso ou aquilo. Atualmente, deixa-se que a vontade se sobreponha às convenções. A autenticidade impera. Desta forma, as regras não são mais ditadas pela sociedade, o indivíduo sim é quem as impõe ao corpo social, por meio da reiteração de condutas até então consideradas impróprias. Talvez essa mudança seja fruto de um impulso vital que dominou a consciência coletiva: o querer ter uma vida integral, sem restrições, independente da idade. Não se aceita mais o "colocar os chinelos" como uma passagem da   vida que se levava para aquela que se apresentava   necessária e inevitável. Esta era uma vida de restrições de atividades, de opções consideradas inadequadas, de escolhas tidas como impróprias. Estou dizendo que a idade já não é um marco de mudanças obrigatórias, como um imperativo social. As alterações de comportamento com o correr dos anos são de natureza física, permanecendo incólume a ânsia de viver, o entusiasmo e as aspirações futuras. Não se deixar abater pelas naturais limitações no campo da saúde e manter disposição voltada para a satisfação de novos anseios e alcance de novas metas é um estado de espírito hoje comum e inexistente em gerações passadas, quando o desinteresse e o imobilismo imperavam.    Desde sempre o homem preocupou-se com o envelhecimento. Na verdade, o envelhecer nos coloca em contato com a morte. Talvez o maior argumento para se levar uma vida saudável, útil e produtiva seja exatamente a perspectiva do fim. Não devemos antecipar o inevitável. Ao contrário, devemos sim demonstrar o nosso apreço à vida, vivendo intensamente o tempo que nos será concedido. Envelhecer não é castigo, é crescimento e possibilidade de revisões, reiterações e aprimoramentos de pensamentos e de comportamentos.  
quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Natal: benquerença e solidariedade entre os homens

Fato que sempre me surpreendeu em relação ao Natal foi a ausência de uma reflexão sobre o seu significado. Com exceção de algumas religiões que por meio de suas entidades e respectivas igrejas e templos cultuam a data, a sociedade, de um modo geral, influenciada e instigada pela propaganda, vai às compras, enfeita as casas e a cidade, realiza as ceias e troca abraços. Pouco ou nada reflete sobre a essência natalina. Predomina o viés argentário e festivo do Natal.     Eu não me refiro à uma reflexão exclusiva sobre o nascimento de Cristo, embora o sentimento natalino parta desse fato, mas não se esgota nele. Há mais, muito mais para ser meditado e assimilado sobre esse fato de grande relevância para a humanidade. Na verdade, a essência do Natal reside num comportamento que deveria ser fielmente adotado, pelos que creem, pelos agnósticos e ateus, por aqueles que abraçam essa ou aquela ideologia, enfim, trata-se de um comando para o comportamento de todos, voltado para a concórdia e para o amor entre os homens. A data celebra há dois mil anos o nascimento Dele. Celebra o seu aniversário. Interessante que somos presenteados por Ele, por meio de um seu representante, Papai Noel. E tem início uma fase do comando natalino: a troca de presentes entre amigos e parentes tem um eloquente sentido: o da confraternização e da comunhão. Claro que esses sentimentos são devidamente explorados pelos apelos comerciais. No entanto, a sua essência permanece íntegra: o gesto de presentear é gesto de amor. Uma vez ao ano o desprendimento, a entrega, a generosidade parecem substituir o egoísmo e a ganância. Abraça-se com afeto o semelhante, que nesse momento é mesmo um semelhante. Esse significado deveria estar entranhado na mente de todos. Não é o presentear que importa, é o ato de amor nele contido. O Natal desperta a criança que eu ainda carrego. Adoro abrir presentes, dá-los também muito me agrada. As luzes da árvore, as bolas, o presépio me fascinam. A ceia me aguça o pecado da gula. E peco sem arrependimento. Quero confessar: o que mais me emociona no Natal é a passagem do dia 24 para o dia 25. O ponto alto são os abraços. Já disse, adoro abraçar e ser abraçado. Abraços e beijos, beijos de mulheres e de homens. Terminou o bobo preconceito de que homem não beija homem. Quando soa a meia noite em casa nós rezamos. O fazemos de mãos dadas e com os nossos pensamentos voltados para Ele, o Aniversariante. Eu exaltei os presentes, a ceia, os abraços, as orações, restou mencionar um outro elevado aspecto do Natal: as crianças. A alegria, o riso, a emoção das crianças. O êxtase que delas se apodera quando ouvem seus nomes para receberem os presentes. O fascínio ao abri-los e ao descobrir o conteúdo. Eu não só me emociono, como me identifico com cada uma delas. Viro criança. Ao eventual e paciente leitor eu faço um apelo: recebam esse escrito como uma manifestação de um homem de setenta e oito anos que crê nos valores inerentes ao Natal, especialmente na singeleza e na pureza de seus atos exteriores, como formas de benquerença e solidariedade entre os homens.
terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Laços que não se rompem

Eu creio ser coisa rara a manutenção de amizades que romperam o tempo e o espaço, e se perpetuaram. O tempo não consegue reduzir-lhes a intensidade e o espaço não cria barreiras que impeçam o convívio, ainda que esparso. Não me refiro às amizades que beiram o simples conhecimento ou as que ficam restritas às normas da sociabilidade. Falo daquelas que possuem raízes profundas e sólidas e remontam épocas e situações arraigadas nas nossas memórias. Um fator responsável pelo nascedouro desses afetos é a escola. Pelo menos parte das minhas foi gestada nos bancos escolares da infância e da juventude. Uma outra fonte é a rua. A rua na qual se morou ou aquelas por nós frequentadas. Ambos os locais, escola e rua, constituem um fértil campo para que germinem as amizades que se solidificaram no decorrer dos anos. Lá nós aprendemos a conviver, vale dizer saímos de nós para enxergar o outro e com ele interagir. Nós somos retirados do casulo do nosso interior. Passamos do interior para o exterior, da imagem para a realidade.           Na escola há o aprendizado, que vai sendo adensado à medida que ele evolui. Em todos os estágios amigos surgem, amigos ficam e amigos se vão. Do primário até à Faculdade a fonte é reabastecida continuamente. Uma vez terminado um ciclo entra-se em outro, de natureza profissional onde as amizades anteriores são sedimentas e outras nascem.   O outro espaço para se constituir laços de amizade é a rua. Ela era mais adequada para se construir e manter amigos quando por ela se transitava e se permanecia com mais frequência. Hoje se tem os carros a nos isolar e impedir o contato com o outro. Dos prédios para os carros sem  se ter  que dar  necessárias caminhadas. Com efeito, tempos atrás tinha-se que andar para pegar condução, para se fazer compras, as visitas eram mais frequentes e ia-se a pé a lugares menos distantes. As pessoas se viam mais e um simples "dedo de prosa" constituía um fermento para alimentar e fazer crescer as amizades. Eu tive e tenho amizades dos locais de ensino que frequentei e das ruas pelas quais perambulei e flanei durante toda minha juventude, diria até que na infância eu já ia para as ruas. A Stella, localizada na confluência dos bairros do Paraiso e da Vila Mariana era o meu reduto, meu e de tantos outros jovens habitantes  das redondezas. Recentemente amigos editaram um livro em minha homenagem. Pois bem, ao seu lançamento foram conhecidos das mais variadas épocas e circunstâncias. Os das escolas, os da advocacia e, claro, os velhos amigos da rua Stella lá estavam. A amizade com os mais antigos, data de setenta e três ou setenta e quatro anos. Foram três colegas do Externato Paraiso,  tínhamos quatro ou cinco anos quando cursamos juntos o jardim da infância. A vida não nos separou, nos uniu. Esse texto singelo foi escrito em louvar à amizade, e para dar graças por não me incluir no poema de Cassiano Ricardo : "Só tenho três amigos / meu eco, minha imagem e minha sombra."  
quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Faculdade franca, mas não tão risonha

Em texto anterior mostrei que a vida acadêmica do meu tempo se desenvolvia em vários setores com muita intensidade e participação abrangente. Difícil apontar um colega que não tenha tido atuação em algum desses setores: cultura; esporte; artes; política acadêmica ou externa; boemia. A Faculdade nos proporcionava enormes oportunidades para termos múltiplas experiencias na vida em sociedade. Ao lado da formação profissional adquiríamos valioso conhecimento do mundo e dos homens. Os eventos políticos da minha época na Faculdade  impulsionaram os estudantes para uma rica atividade voltada para a redemocratização do país. Em verdade a nossa luta ainda era para que a democracia não sucumbisse. A luta foi em vão. Após 1964 o regime militar, implantado mercê de um golpe, foi se consolidando e as franquias do regime constitucional foram sendo aniquiladas, até que em 1968 veio a derrocada com o ato institucional nº 5. Havia na Católica duas correntes que divergiam sobre os métodos de combate à ditadura. Uma delas pregava um ativismo que poderia chegar até a luta armada. Os seus integrantes constantemente saiam às ruas em passeatas e para  comícios que em várias ocasiões terminavam com a intervenção da polícia. A outra corrente, à qual eu pertencia, entendia que a oposição ao regime recém implantado deveria ter como foco os meios de comunicação, os que escapavam da censura, a assembleias e, especialmente, o contacto com entidades profissionais, sindicatos, clubes, associações culturais e outros agrupamentos. Nós criticávamos as demonstrações de violência pois entendíamos que elas estariam dando ensejo ao endurecimento do regime. O nosso vaticínio foi cumprido, com o ato institucional de 1968. Nas assembleias e reuniões internas, esses dois grupos se opunham,  mas o adversário comum que era o regime ditatorial os unia, pois ambos o combatiam com ardor embora de forma diferente. Houve uma ocasião em que nós "tomamos" a Faculdade impedindo que houvesse aulas. Nosso gesto quis mostrar que era impossível a normalidade da vida universitária sem a liberdade que nos fora subtraída. Os colegas do Largo de São Francisco também ocuparam a Faculdade na mesma ocasião. Apesar dos tempos sombrios de repressão, prisões, censura, tortura, cerceamentos e limitações  de toda ordem os acadêmicos não perderam as suas tendências para brincadeiras, galhofas, divertimentos. A alegria, no entanto, não substituiu as preocupações com a redemocratização do país.  Como disse, o empenho pela volta à normalidade democrática possuía duas vertentes, representadas pelas duas facções que se utilizavam de métodos diversos. A mais agressiva quando da "tomada" da escola, colocou no sótão alguém armado, para talvez defender o prédio de eventuais invasores dos aparelhos das forças da repressão. Imaginem se isso seria possível? . . .   Eu mesmo testemunhei o empenho bélico de alguns estudantes. Certa manhã, no centro acadêmico 22 de agosto localizado em frente à Faculdade, abri um carrinho de Fanta para tomar uma, quando me deparei não com os refrigerantes, mas sim com coquetéis "molotov". O carrinho transportava garrafas com pano na borda embebido de álcool ou gasolina.  Esse foi um tempo no qual os estudantes de direito assumiram a vanguarda do movimento pela redemocratização do país. Não obstante a desigualdade de armas o combate foi permanente e aguerrido, pouco importando os métodos utilizados, todos nós lutamos e eu muito me orgulho por ter participado dos embates em prol da liberdade.
terça-feira, 31 de outubro de 2023

Faculdade risonha e franca

Em outros escritos expliquei as minhas ligações afetivas com a Faculdade do Largo de São Francisco, embora tenha me formado na Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em verdade, todos aqueles que são vocacionados para atuar na área do Direito sofrem uma influência natural do espírito acadêmico das arcadas, independente da Faculdade em que se formaram. No meu caso específico há um componente diria que hereditário. O meu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior formou-se no Largo, foi um ardoroso propagador das tradições da Velha Academia, das histórias de seu tempo como acadêmico e especialmente dos feitos da Turma de 1946, por ele considerada a melhor de todas. A Paulista de Direito, por sua vez, fincou raízes irremovíveis no meu espírito, nas minhas memórias e no meu afeto. Lá cultivei e aprimorei duas tendências talvez inatas. Uma para a advocacia e a outra para a política, não a política partidária ou eleitoral, mas aquela que objetiva o conhecimento dos problemas sociais e institucionais de maior alcance, com o objetivo de contribuir para a sua solução. Política participativa, como cidadão e profissional do direito. Pude, na Faculdade, tendo em vista, especialmente, o momento histórico, participar intensamente da política acadêmica, unindo-me quanto aos fins, nem sempre quanto aos métodos, a todos os colegas e correntes que se colocavam contra o golpe militar de 1964. Foi no antigo convento da Monte Alegre que conheci Ângela, colega de turma com quem me casei; fui aluno de magníficos professores; tornei-me amigo de companheiros de toda a vida; aprendi a conviver com os contrários e tive uma vida acadêmica intensa, diria rica de emoções, momentos de boêmia, esfuziantes alegrias vividas em bares, restaurantes, na sede do Centro Acadêmico e nas memoráveis choupadas no campo de futebol, não mais existente.  Ao lado de uma esmerada formação profissional, de uma intensa atividade de política universitária, a Católica nos proporcionou memoráveis situações hilariantes, decorrentes  do convívio com professores, colegas e até com estranhos aos bancos escolares. Desses últimos lembro-me de um simpático andarilho apelidado por nós de "Vermelho". Perambulava pelas imediações da Faculdade e, por vez, estacionava na sua porta e lá permanecia. Conversando conosco ou discursando, insuflado pelos alunos por ele considerados colegas, Vermelho fazia parte do nosso cotidiano.  Nem sempre o nosso "colega" estava sozinho. Por vezes se apresentava com uma companheira. Jovem, mas judiada por uma  vida cruel marcada por infortúnios.  No entanto, sentíamos que a atenção que dávamos a ambos os alegrava a ponto de se sentirem integrados na nossa comunidade. Em nome dessa integração certa ocasião resolvemos levar Vermelho e sua companheira para assistir à uma aula de Direito Internacional, ministrada pelo Professor Dalmo Belfort de Matos. Homem de rara cultura, profundo conhecedor dos meandros do direito e das relações internacionais, mas um mestre talvez excessivamente complacente conosco, os seus alunos. Havia um dia da semana que o Prof. Dalmo ia à feira existente nas imediações da Faculdade e da casa em que morava também ali perto. Passava pela calçada do lado oposto à Escola, empurrando o carrinho com as suas compras. Educado que era, respondia aos inúmeros cumprimentos dos alunos postados do outro lado. Ficava aflito com tantos "bom dia professor" que tirava o seu indefectível chapéu para responder às saudações e se esquecia do carrinho. Este velozmente descia a Monte Alegre, derrubando verduras e frutas que se espalhavam pelo chão. Creio que mudou o seu itinerário, ou desistiu de fazer feira,  pois após algumas repetições da cena nunca mais o vimos empurrando o carrinho.      Mas voltamos ao casal de "colegas". Antes do início da aula do professor  Belford de Matos pusemos ambos sentados em carteiras da sala de aulas. Na primeira, a moça e o Vermelho mais atrás. Esse comportou-se bem. Ela, no entanto, assim que teve início a preleção, começou a mexer-se e, mais e pior, não parava de arrumar a sua blusa que por defeito de fabricação não cobria por inteiro os seus seios. Incomodado com aquela cena, repetida várias vezes, o Ilustre e querido Professor não se conteve e sempre mantendo a sua fidalguia disse: "Senhorinha, por favor, comporte-se". Sem nada entender a "senhorinha" ainda tentava aprumar-se. Dois lúcidos colegas, para evitar maior constrangimento ao professor, a retiraram da aula. Vermelho, no entanto, permaneceu atento até o seu final. 
terça-feira, 17 de outubro de 2023

O centro que para mim não morreu

Eu sou avesso ao conceito corrente entre os mais velhos de que em seu tempo as coisas eram melhores, fluíam com mais facilidade, o convívio entre as pessoas  tranquilo, enfim que a vida era melhor para ser vivida. Não concordo. Há aspectos melhores sim, mas há também outros que surgiram para nos beneficiar, com o correr dos anos. Deve-se, em regra, viver o presente com os olhos voltados para o porvir. Viver do passado ou viver no passado em verdade impede a evolução, o aperfeiçoamento, a fruição do que o presente nos oferece. Pode-se sim viver com as lembranças do passado que nos são gratas. Nesse sentido, valho-me da memória para recordar aspectos marcantes de minha vida ligados à cidade de São Paulo, especificamente ao centro da cidade. As minhas lembranças remontam aos anos cinquenta até início ou meados dos anos dois mil. Dizem respeito não só às experiências lá vividas, mas sobretudo ao que ele representou para a própria da cidade e para a sociedade. O centro de uma cidade em nosso país sempre representou o local de confluência de pessoas, de concentração do comércio e do acúmulo dos interesses sociais, financeiros e culturais. Compras, negócios e lazer se desenvolviam em lojas, restaurantes, teatros, livrarias, bancos, escritórios, enfim todos os aspectos que materializam as múltiplas atividades de uma população citadina,  eram exercidas em suas ruas e praças. Nas cidades do interior ainda as praças do centro possuíam os coretos e eram palco dos tradicionais footings. As minhas primeiras idas à cidade se deram quando criança. Eu acompanhava minha mãe que ia fazer compras. Lembro-me de uma confeitaria chamada Campo Belo, na rua São Bento, onde tomava ice cream soda. Interessava-me o Mappin, onde também tomávamos lanche. Ficaram em minha memória lojas como a Genin onde minha mãe ia comprar novelos de   lã, pois era uma exímia tricoteira. Loja da China e a do Ceilão vendiam de tudo para festas de aniversário, salvo engano ficavam na rua José Bonifácio. Eu a  frequentaria muito no futuro, especificamente para ir ao restaurante Itamarati e à livraria Saraiva. As sapatarias estavam na rua Quintino Bocaiuva. As lojas de tecidos e de livros religiosos na Benjamin Constant. Essa região, denominada centro velho, era bem sortida de restaurantes. Estudantes do Largo de São Francisco, advogados, juízes, promotores, funcionários do fórum e do Tribunal de Justiça, além dos comerciantes compunham a lista de assíduos frequentadores do Corso; do Campestre; do Gouveia; do Mon Ami; do Bar do Zé; do Amarelinho; dos Japoneses da rua da Glória e vizinhança; do Ouro Velho; do primeiro Jardin de Nápoli; do Barsorti; do Guanabara; da Brasileira; do Terraço; e inúmeros outros.           Havia um expressivo número de livrarias. As jurídicas eram a Saraiva; a Forense; a Revista dos Tribunais; a Buchascki e vários sebos que também possuíam livros de Direito. Dentre os sebos havia o Floresta; o Messias; o Orfali e outros localizados na Praça João Mendes e nas ruas Rodrigo Silva e Álvaro Machado. Na mesma Praça João Mendes uma livraria que era muito frequentada por mim chamava-se Livraria do Povo, dirigida por um livreiro que  tinha pleno conhecimento dos livros expostos, seus autores, conteúdo e outros detalhes. Um autêntico livreiro. Freitas Bastos, na 15 de novembro, Brasiliense, Teixeira, Livraria Francesa, essas no "Centro Novo" e outras que me escapam atraiam ao centro intelectuais, escritores, poetas e leitores em geral. Aliás, iam ao centro artistas de todas as categorias. Os musicistas compravam instrumentos e partituras na Casa Manon, na 24 de maio. Os pintores se abasteciam de tintas, telas, pinceis na Casa Miquelangelo, na Líbero Badaró. A diversidade do centro como o principal centro comercial da cidade atraia os mais variados consumidores. Os chamados "passarinheiros" frequentavam a Casa Orestes, salvo engano esquina de Benjamin Constant com Largo de São Francisco. Os profissionais da medicina se socorriam da Casa Fretin, no Largo do Patriarca com São Bento. Aliás, e me perdoem as lembranças esparsas e desorganizadas, agora me veio à mente na  mesma rua São Bento a Casa California, especializada em magníficos sanduiches de linguiça  e sucos. Lá pela hora do almoço quando saia do cursinho do Professor Tolosa eu tomava uma batinha de maracujá, com alguns colegas. Os restaurantes do Centro Velho eram menos sofisticados do que aqueles situados do outro lado da cidade, atravessando o Viaduto do Chá. Paddock; Bistrô ; Baiuca; Bar Redondo; Marcel; Gigeto; Vienense; Churrascaria República; La Casserole; Gato que Ri; Ponto Chic; Bar Brahma; Papai; Salada Paulista. Círculo Italiano. Em nome da fidelidade ao que havia de mais significativo no centro da cidade, não posso me esquecer dos boêmios e dos locais que frequentavam, além dos bares e das choperias. Refiro-me às boates, aos chamados inferninhos e aos "taxi danças", instituições hoje inexistentes. Dacar; Clube de Paris; Avenida Danças; Chuá; Paulistano da Rua da Glória; Som de Cristal, eram alguns dos lugares noturnos obrigatórios para jovens e homens maduros. Mas também a eles acorriam os ainda adolescentes que alteravam as suas idades em documentos, para ter a entrada permitida. A Praça da Sé e vizinhanças representam os locais das minhas mais marcantes recordações do centro da cidade. Depois de haver trabalhado na rua Boa Vista, no 3º Tabelionato de Notas fui para o escritório de meu pai, na Praça nº 399, 5º e depois 6º andar. O quadrilátero formado pelas Praças da Sé, Clóvis Bevilaqua, João Mendes e Av. da Liberdade reunia o maior número de advogados por metro quadrado talvez de todas as grandes Capitais do mundo. Todos os prédios nelas localizados e mais os das ruas ao redor eram ocupados por escritórios de advocacia. Ademais, os Tribunais de Justiça e os de Alçada, os Foros  Cíveis e Comerciais, o Ministério Público e as várias Procuradorias do Estado e do Munícipio funcionavam nas imediações. As sedes da Ordem, da Associação e do Instituto dos Advogados estiveram ali situadas.  As ruas eram locais de encontro de bacharéis e de estudantes do Largo de São Francisco. Esse contacto permanente e inevitável dava a todos uma agradável sensação de pertencimento. Sabia-se integrante de uma comunidade. O título desse texto reflete uma realidade que me é presente, qual seja a da perpetuidade do centro de São Paulo. Talvez esse apego exista porque o único sentimento que nunca se apossou dos que lá frequentavam era o de solidão. Até hoje, mesmo com ele abandonado e degradado, os que lá estiveram não se sentem sós.
quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Leite de cabra e outros leites

Em verdade, minha intenção não é escrever sobre o leite, nem sobre os seus predicados nutricionais e obviamente sobre a pecuária  do leite. Quero me referir a um tipo de leite, o de cabra e o sobre aqueles que vinham em garrafa e eram ou comprados nos armazéns ou postos no portão das casas. Mas, devo esclarecer que a menção que faço ao leite é para tê-lo como gancho de um outro tema que parece não guardar nenhuma relação com o leite. Como se verá guarda sim. O tema de fundo é a sociabilidade provocada pelas entregas e serviços feitos nos domicílios de antigamente. Além do leite, os jornais eram entregues. As casas eram visitadas pelo tintureiro, pela lavadeira, encanador, marceneiro,  chaveiro, limpador de vidros, eletricista, engraxate que ia buscar e entregar os sapatos o afiador de facas, o consertador de panelas e  outros prestadores de serviços fundamentais. As minhas lembranças  ficaram  marcadas por cada um deles que nos atendiam na rua Cubatão, na Vila Mariana, onde morávamos. Alguns se tornaram amigos de casa, figuras incorporadas não só nas nossas lembranças como nas nossas memórias  afetivas. O leite de cabra  não me marcou nem pela senhora que conduzia o animal e nem pela cabra.  Mas sim pelo leite, por isso o título. Ah! O leite. Espumoso, quente, sim saia quente. Não pensem que era fervido, não. Saia quente da generosa cabra, diretamente para o copo. Tinha   um sabor característico, inigualável. Era gorduroso, isso é verdade. Mas, e daí? Falo do leite não só pelo seu sabor, que só por si já bastaria. Mas, quero me referir ao seu entorno. Em primeiro lugar à  minha avó paterna, pois era em sua casa que a cabra passava. Morava ela na esquina de Stella com Cubatão. Nos dias de visita da representante da raça caprina eu ia à casa da avó. Quando a senhora chegava eu descia com dois copos que eram enchidos. Pagava e subia com minha avó para deliciar-me. Ia esquecendo de um aspecto : a cabra anunciava a sua chegada tocando um simpático sininho colocado em seu pescoço. Sentávamos minha avó e eu, em duas cadeiras de balanço. Velhas cadeiras, que a acompanhavam há mais de cinquenta anos. Eram de palhinha. Passávamos longo tempo sorvendo o leite. Vovó, então,  contava-me histórias de seu tempo de jovem. As histórias sempre eram as mesmas. Cada narrativa, no entanto, apresentava aspectos novos ou que modificavam os descritos antes. Eu me deliciava. Saibam, no entanto, que as nossas conversas e as suas narrativas não eram só regadas a leite. Não. Quando não havia leite, nós tomávamos um detestável martini branco, acompanhado de uma latinha de castanha de caju. O leite de cabra e todos os produtos e serviços originários dos magníficos artesãos que batiam às nossas portas simbolizam uma época na qual o homem comandava atividades essenciais ao nosso dia a dia e criavam sólidos laços de afeição e de amizade. Por mais que possa a tecnologia não poderá substituí-los.
terça-feira, 12 de setembro de 2023

Ele se foi. A sua alma ficou. Ele é imortal

Todos nós, em algum momento da vida, ou em vários, ou durante ela toda, tivemos algum amigo que nos auxiliava e amparava, em situações específicas ou permanecia atento e alerta para intervir quando necessário fosse. Laços de amizade formavam um elo entre essas pessoas a nós de forma absolutamente desinteressada. Essa afeição nem sempre correspondida a um estreito relacionamento no nosso cotidiano. E, nem era preciso, pois bastava haver uma necessidade para que o protetor dissesse presente.   Durante a minha já longa existência - quero que ela mais se alongue - eu encontrei um expressivo número de amigos prontos a dar estímulo e colaboração à uma empreitada ou para estender-me a mão em alguma situação de dificuldade.   Um desses amigos foi-se recentemente. Seu nome, Antônio Ivo Aidar. A característica mais marcante do nosso relacionamento foi o seu desprendimento. De mim nada quis, mas muito me deu.   Era notável o seu entusiasmo pela Ordem dos Advogados e por sua política. Logo nos primórdios de sua carreira profissional talvez antes até de formar-se, empenhou-se na instalação da subseção da OAB na sua amada cidade natal, Olímpia. Os colegas de lá devem ser gratos à sua insistência e pertinácia, responsáveis pela subseção local. Não pararam aí  as postulações de Ivo em prol de sua cidade. Anos depois, foi inaugurada a Casa do Advogado, que leva o nome de Henri Couri Aidar, saudoso advogado, homem público e dirigente esportivo de escol,  também de Olímpia. Creio também que se não fosse a sua   obstinação os advogados locais não teriam a sua Casa. Quanto a mim, creio dever a Ivo boa e significativa parcela da minha trajetória junto à OAB. A subseção de Olímpia foi instalada quando a Ordem de São Paulo era presidida por Mário Sérgio Duarte Garcia. A pedido de Ivo fui designado para fazer o discurso na solenidade de inauguração. A partir desse evento, creio eu em 1980, trilhamos juntos uma longa e exitosa trajetória na política de classe. Quando em 1986, fui candidato à presidência da entidade lá estava ele me apoiando, estimulando e trabalhando intensamente em toda a sua região. Foi grande a sua indignação e inconformismo em relação à votação de Olímpia: dois advogados não votaram em nossa chapa. Ivo passou vários anos para descobrir quem foram os insubordinados, que não obedeceram à sua voz de comando. Nos anos seguintes, seguramente durante trinta e poucos anos ele participou intensamente das campanhas de Ordem, apoiando os candidatos lançados por nosso grupo que originariamente denominava-se Tempos Novos. Nos anos em que o grupo não apresentou candidato o seu inconformismo era grande. Ligava-me constantemente para reclamar, pois entendia que eu era o "chefe", o responsável único pelas decisões do grupo. Essa sua impressão a meu respeito  muito me lisonjeava. É preciso acentuar que Ivo não era apenas um entusiasta da política,  exercida por ele com grande maestria. Tinha muita percepção não só dos fatos da política como decifrava os homens que dela participavam. Irônico e sagaz não perdoava aqueles pouco dotados de inteligência, e com finura de espírito produzia tiradas  hilariantes a respeito de suas vítimas.   Ivo possuía características peculiares que lhe emprestavam um natural charme expresso por suas  pitorescas observações e condutas, sempre marcadas pelo seu agudo senso de humanismo, solidariedade e bondade.   Não posso deixar de invocar o testemunho daqueles que acompanharam a sua carreira como advogado e o assistiram nas audiências. O grande advogado de família era  respeitado e  temido pelos adversários,  por alguns  juízes, pois não perdoava os desvios éticos dos colegas e os abusos dos magistrados. Reagia com enérgicas e sarcásticas intervenções. A defesa intransigente de seus clientes assegurava a esses uma assistência eficiente e corajosa numa área delicada e sensível da profissão.    Ivo atuou em vários setores e departamentos da Ordem, tendo se destacado na presidência da Comissão do Advogado Deficiente. Nessa oportunidade, demonstrou toda a sua sensibilidade humana e o seu poder de cativar as pessoas. Ivo foi amado por quem o conheceu. Meu amigo de sempre e sempre amigo, da minha parte  ficam a minha gratidão, a minha saudade e a minha permanente lembrança dos momentos  de vida compartilhados com ele. Como disse o poeta Fernando Pessoa,  a morte é como a curva do rio, apenas não se é mais visto. Você viverá, Antônio Ivo Aidar, na memória de todos nós, por isso você se tornou imortal.
quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Descobrindo o Brasil

Escrevi em certa ocasião que "Quem gosta do Brasil é estrangeiro". O título talvez conduza à generalização no sentido contrário: o brasileiro não gosta do Brasil. Há compatriotas que obviamente amam o país em que nasceram. Diria que, em regra, esses pertencem às camadas menos privilegiadas da sociedade. São homens e mulheres simples que herdaram dos seus pais e dos ensinamentos escolares o respeito pelos símbolos da pátria; o culto pelos que se destacaram nos campos da literatura, da música, das artes plásticas e em outros setores; a admiração por alguns eventos históricos como a independência, a inconfidência mineira, a libertação dos escravos e muitos outros motivos de estima que o país nos fornece.   Lamentavelmente, o mesmo sentimento de apreço pelo que é nosso nós não encontramos em alguns setores mais sofisticados pertencentes às elites, especialmente aquelas melhor posicionadas financeiramente. Há uma indisfarçável tendência dos seus integrantes em supervalorizar tudo que é oriundo de fora em detrimento do que é nosso. São pessoas que ao obterem êxito econômico e posição social destacada passam a negar as suas raízes e principalmente olvidar as razões desses êxitos, todas elas vinculadas ao país em que nasceram. Trocando em miúdos, quero dizer que ganham dinheiro no Brasil e o desprezam. Mais do que isso, sonham em deixar o país, ou ao menos desejam mandar seus filhos para outras plagas.      Esse desapego talvez se deva ao fato de termos sido uma colônia durante três séculos. Mesmo após nossa independência não adquirimos com clareza e com firmeza uma identidade nacional. Nos deixamos influenciar por culturas alienígenas a ponto de usarmos outros idiomas como linha auxiliar de nossa língua.   E isso, em uma escala alarmante. Tivemos primeiro o francês e, posteriormente, o inglês impregnando a nossa fala cotidiana e substituindo o português na publicidade, na marca de produtos e na denominação de estabelecimentos comerciais. Esses e outros aspectos representam um nítido complexo de inferioridade.  Nelson Rodrigues afirmou que nós padecemos do complexo do cão vira lata e somos verdadeiros Narcisos ao inverso. Olhamos para o espelho e não gostamos do que vemos. Eu ousaria contestar o grande teatrólogo para dizer que o cão vira lata, como aliás afirmou Eduardo Giannetti possui uma grande capacidade para improvisar, criar soluções e superar obstáculos tal como nós brasileiros. Esses atributos do vira lata permitem que ele sobreviva a todas as agruras da vida.  Esta comparação feita por um ângulo positivo mostra que se somos como o cão que vira as latas tanto como ele temos condições de resolvermos problemas e de construirmos o nosso próprio futuro, com as aptidões que nos são inatas. Portanto, "herdeiros" ou não dessas características caninas, não há razões para essa depreciativa noção que alguns possuem. O atávico desamor nacional que marca certos segmentos sociais constitui sem dúvida um fator importante de atraso civilizatório em vários setores da vida nacional. Eu fiz toda essa digressão como sinalização para essa questão da baixa estima que nos acompanha, parece que desde sempre. Na verdade, quero exatamente contar algo que nos dá orgulho e envaidece. Escrevo sobre isso, pois chegou a hora de enaltecermos o positivo e não ficarmos presos ao depreciativo, ao reprovável. É pouco aquilo que vou discorrer brevemente. Mas, de pouco em pouco vamos descobrir que temos uma infinidade de aspectos dos quais nos orgulhamos. Vou me referir a um museu que visitei na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se do Museu Histórico Nacional. Está instalado num adorável conjunto arquitetônico que imagino ter sido uma fortaleça. Posteriormente, um palácio que deve ter tido inúmeras serventias. Localizado na região central do Rio, perto do Aeroporto Santos Dumond e quase encostado à antiga Casa de Misericórdia, ele não fica devendo a qualquer museu do mundo se for feito um cotejo. As obras: pinturas esculturas, peças decorativas, louças, moedas, armas, móveis, quadros de personagens, estão expostos e organizados cronologicamente e seguidas por explicações colocadas ao lado de cada uma de molde a nos dar informações completas sobre cada uma e, sendo o caso, sobre os seus autores. Inclusive sobre a nossa pré-história há obras e valiosas explicações. Toda a nossa história está descrita e exposta de forma pedagógica, ilustrativa e abrangente dando-nos, tanto quanto um museu pode dar, noções valiosas das nossas origens, da nossa cultura e de como construímos o país que temos. Eu citei apenas um dos nossos museus. Inúmeros outros devem ser realçados: Museu do Amanhã; Museu do Ipiranga; Museu de Belas Artes; Museu da República (Catete); Museu de Petrópolis; Museu da Quinta da Boa Vista; Museu do Futebol; Museu da Língua Portuguesa; os vários Museus de Imagem e de Som e outros tantos de Arte Moderno e Arte Contemporânea espalhados pelo Brasil. O destaque agora foi para os museus. No entanto basta que nos despojemos do preconceito inferior e adquiramos autoestima para enxergar nossas qualidades e nossos valores. Precisamos entender definitivamente que não somos piores nem melhores do que outros povos, somos sim diferentes. Salve essa diferença.  
segunda-feira, 3 de julho de 2023

Precisamos defender o habeas corpus

Uma série de fatores sociais, políticos e jurídicos transformaram substancialmente as relações interindividuais, assim como aquelas que envolvem os cidadãos e o Estado. Um desses fatores foi o aumento da criminalidade e, como consequência , a ação repressiva do Estado. O sistema jurídico nos mostra que, se de um lado, o crime deve ser reprimido, de outro, a sociedade precisa estar protegida contra o arbítrio e o abuso de poder. O arcabouço jurídico foi construído tendo em vista esses dois objetivos. Sendo assim, nós temos os Direitos, Penal e Processual Penal, voltados não só para a atividade punitiva como  para a garantia  da dignidade e da liberdade do homem. No direito pátrio o instrumento mais eficiente de proteção individual é o Habeas Corpus. Mercê de sua simplicidade procedimental, pois não prevê uma fase probatória e um contraditório amplo, a sua impetração leva a decisão rápida que visa pôr fim a uma coação ilegal. No entanto, nos dias de hoje,  estamos assistindo a uma diminuição sensível no acolhimento por parte do Poder Judiciário desse fundamental instrumento de proteção aos direitos individuais. Em nome do acúmulo de processos  o âmbito de sua  aplicação está sendo gradualmente reduzido, assim como a atuação dos advogados impetrantes está cada vez mais sendo dificultada e mitigada. Em face da sua importância, tradicionalmente o Habeas Corpus é chamado de "remédio heroico". Pois bem, aproveitando a analogia médica, pode-se afirmar que se está atacando a doença com a morte do doente. Em nome da tentativa de se desafogar os Tribunais,  está se deixando que  pereçam os direitos que deveriam ser amparados pelo remédio tido como heroico. O nosso país sempre teve em seu ordenamento jurídico, desde a Constituição de 1824, normas de proteção aos direitos individuais. Não explicitamente, mas de forma clara e precisa, a Carta da Monarquia impunha obrigações  a toda autoridade que efetuasse a prisão de alguém. Posteriormente, a legislação ordinária passou a utilizar a expressão Habeas Corpus como meio de defesa contra uma coação ilegal. Em 1889, a Constituição Republicana deu ao instituto uma amplitude que alcançou não só o direito de ir e vir, como quaisquer outros que não poderiam ser exercidos em face de uma coação ilegal. As Constituições posteriores, inclusive a de 1988, mantiveram o Habeas Corpus, ao lado do mandado de segurança, ambos como eficazes instrumentos para a salvaguarda de diretos atingidos por uma ilegalidade. Houve um momento da nossa história recente que o Habeas Corpus sofreu uma sensível diminuição em sua amplitude, especialmente com o ato institucional nº 5, de l969, que praticamente o suprimiu. Como já dito, atualmente, obstáculos estão sendo impostos à impetração e ao julgamento de Habeas Corpus. Deve-se apontar, incialmente, a constante quebra do princípio do colegiado, na sua  apreciação por parte dos Tribunais. Uma das características que inclusive justificam a  existência desses órgãos é exatamente possibilitar a revisão das decisões de 1º grau, por meio de julgamentos coletivos, proferidos por Magistrados mais antigos na carreira e, portanto,  mais experientes. A  regra do colegiado, no entanto, vem sendo sistematicamente desobedecida. O Habeas Corpus não está sendo polpado.  No mesmo dia da impetração os autos são distribuídos e nos dias subsequentes, quando não no mesmo, recebem uma solução individual. Os advogados não têm oportunidade sequer de entregar memoriais e o Ministério Público de se manifestar. Tem-se pleno conhecimento da enorme quantidade de processos acumulados nos Tribunais. Ademais, sabe-se eu o número de sustentações orais por sessão de julgamento é excessivo. Esse fato muitas vezes leva os Magistrados à exaustão no final dos dias. A necessidade e a qualidade de algumas sustentações, por outro lado,  deixam muito a desejar. A partir de tais constatações vários advogados estão em contacto com Ministros dos Tribunais Superiores para que, em conjunto, sejam encontradas soluções que conciliem as dificuldades dos Magistrados com os direitos dos jurisdicionados. Uma das medidas aventadas é a organização da advocacia em carreira, tal como ocorre na maioria dos países. Será adotado um critério temporal que venha a possibilitar aos profissionais após cinco anos de militância em 1º grau, oficiar perante os Tribunais localizados nos Estados e após outros cinco postular junto às Cortes Superiores em Brasília. Deseja-se minimizar as agruras provocadas pelo excesso de litigiosidade com, no entanto sendo preservados o direito dos cidadãos terem as suas postulações integralmente examinadas pelos Tribunais, por meio de decisões obrigatoriamente colegiadas, após a livre manifestação dos advogados nas tribunas, em respeito ao pleno exercício do sagrado direito de defesa.
quinta-feira, 22 de junho de 2023

Povoar o centro para ressucitá-lo

Não me impressionam no centro da cidade os moradores de rua, pois esses infelizmente habitam São Paulo em todos os seus bairros e cantos. É o reflexo de uma trágica situação de desequilíbrio social que se agrava há anos e encontra a imutável insensibilidade por parte expressiva da sociedade e a quase inércia absoluta do Estado como respostas. Ações esporádicas de solidariedade e providências governamentais de pouca efetividade ficam muito além das necessidades reais da população de rua e permanecem distantes da solução do problema, que só se dará quando todos tiverem um teto que os abrigue em condições dignas de habitação. Abstraindo-se essa trágica questão social, assim como o estado de deterioração de inúmeros imóveis, e também o  precário estado das calçadas e do piso das ruas, o fato que mais me aflige e chama a minha atenção é o abandono físico das ruas do centro. Entenda-se esse abandono como a ausência de pessoas circulando por espaços anteriormente quase intransitáveis, como diriam os antigos apinhados de gente.  Quer o chamado "centro velho," quer aquele ligado pelo Viaduto do Chá, o "centro novo" que já é vetusto, as ruas abrigam poucas lojas abertas e um número cada vez menor de transeuntes. Essa característica empresta a certas regiões um triste ar de desolação, na verdade a aparência de um corpo desprovido de alma. O que ainda permanece são as histórias de um centro pungente no qual fervilhavam todos os sentimentos de um povo que emprestava à cidade características de um burgo em permanente crescimento industrial, financeiro e cultural. As velhas ruas que circundavam a Praça da Sé, tais como  Riachuelo, Senador Feijó, Benjamin Constant, Quintino Bocaiuva, 15 de Novembro, Direita, São Bento, Largo de São Francisco, um pouco mais abaixo José Bonifácio, Líbero Badaró, Páteo  do Colégio, Alvares Penteado, Boa Vista, do Comércio, Patriarca carregam uma carga repleta de eventos históricos e de lirismo, plantado pelos vates,  estudantes da Velha Academia. Sobre cada um desses espaços foram debruçadas epopeias que marcaram a história de São Paulo, cada uma delas como reflexo de sonhos e de ideais que impulsionavam e davam razões de viver para as respectivas gerações. Na Praça da Sé, os inesquecíveis comícios das Diretas Já. Anteriormente, os apelos cívicos de trinta e dois, as campanhas eleitorais e até um sangrento evento que envolveu integralistas e comunistas, na chamada Guerra da Praça da Sé, dentre inúmeros outros. Os acadêmicos do Largo de São Francisco marcavam a cidade com as suas fanfarronices, críticas, zombarias, troças, por meio dos "trotes" e das "peruadas". Por outro lado nas passeatas que ocupavam as ruas acima citadas procuravam levar à população mensagens em prol da redemocratização do país, durante a ditadura Vargas; na Revolução de 1932; clamaram pela participação do Brasil na 2º guerra mundial ao lado dos aliados; proclamaram a necessidade da anistia aos presos políticos e ajudaram a levantar a Nação em prol das eleições diretas.    Voltando às ruas e às suas efemérides: a Líbero Badaró assistiu ao assassinato do Jornalista que lhe emprestou o nome; o Largo de São Bento presenciou a aclamação de Amador Bueno como Rei dos Paulistas, título não aceito; a Rua de São Bento possuía uma cruz em sua extremidade, que segundo a lenda teria sido furtada pelos estudantes. A verdade é que ela desapareceu. O mesmo destino teve o badalo do sino da Faculdade, que foi furtado para que não mais fosse acionado para chamar os alunos às aulas.   No final da hoje rua Cristovam Colombo, lateral ao Largo de São Francisco, havia um barranco que produzia um eco muito forte e nítido. Consta que o poeta Olavo Bilac quando estudante se dirigia à sua beira e gritava "boa noite" para ouvir de volta a retribuição da gentileza "boa noite". Essas mesmas ruas e aquelas situadas após o Viaduto do Chá eram ocupadas pelos estudantes que com grande frequência faziam serenatas àquelas que desejavam conquistar. Como regra não despertavam o interesse das donzelas, mas sim ganhavam baldes de água fria acompanhados do próprio balde arremessado pelos futuros ex-sogros. Acadêmicos vestidos de mulher perambulavam pelas vias da cidade alguns portando armaduras medievais e outros armados de palmatória prontos para castigar algum notívago que era mandado para casa. As hoje abandonadas vias do centro abrigavam bares e restaurantes que se fixaram na memória degustativa e sentimental de todos os que, como eu, os frequentavam diariamente, impossibilitados de ir fazer refeições em suas próprias casas, especialmente em razão do horário do expediente forense. Gouveia; Corso; Campestre; Itamarati; Ouro Velho; Amarelinho; os japoneses da Liberdade; Mon Ami; Bar das Sardinhas; Terraço e outros eram locais também de confraternização e comemorações. Abrigavam especialmente advogados, promotores, juízes, estudantes, funcionários do Poder Judiciário, enfim acolhiam toda a família forense e possibilitavam um congraçamento que tornava ameno e agradável um convívio muitas vezes, durante os trabalhos judiciais, marcados, não raras vezes por contrariedades e alguns dissabores. Imagino que o Centro de São Paulo possa um dia voltar a ser um expressivo núcleo de sociabilidade para os paulistanos numa conjugação de pessoas com uma cidade marcada por história, arquitetura extraordinária e um acendrado simbolismo sentimental e afetivo.