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Perus e peruadas

terça-feira, 2 de julho de 2019

Atualizado às 07:37

Uma afeição dos estudantes que data dos primórdios da gloriosa Academia era dedicada aos galináceos em geral, em especial aos perus, embora não desprezassem o galo, a galinha, codorna, faisão, perdiz e outras.

Em face dos parcos recursos que a maioria dos acadêmicos contavam para as suas despesas ordinárias com locação, vestimenta, livros e as indispensáveis com os bares, bilhares, restaurantes e locais menos ortodoxos, nada sobrava para a satisfação de suas predileções culinárias e etílicas, que denotavam paladar sofisticado pelas iguarias e pelas bebidas de qualidade, inacessíveis a suas bolsas quase sempre vazias.

Da conjugação desses fatores, dureza e bom gosto surgiu o hábito da rapinagem. Instrumento para suprir as carências dos futuros bacharéis era utilizado com alguma frequência. Quintais de casas, pomares e hortas de chácaras, restaurantes e bares, mercado municipal e todo e qualquer outro local onde houvesse suprimentos para as suas necessidades, eram com frequência visitados por eles.

Frutas, legumes, bebidas, galinhas e perus e outros comestíveis quando apropriados qualificavam o furto de famélico, pois serviam para saciar a fome e a sede dos pobres jovens, cujas energias eram sugadas pelos estudos e, em maior dose, por outras atividades especialmente noturnas, voltadas para o culto da música - serenatas - do esporte - bilhar e carteado - da dança e outras...

No entanto, rapinagens havia que não eram qualificadas pelos objetos rapinados. Por exemplo, o veado de ouro estampado em painel que foi arrancado da porta da botica do mesmo nome. Caso se possa dizer, esse furto foi seguido de arrependimento eficaz e caracterizado como furto de uso, pois o veado foi devolvido ao seu habitat. É bem verdade que a devolução se deu em face de uma promessa de recompensa em dinheiro, que foi cumprida, com a omissão da identificação dos autores da proeza.

Rapinagens, ainda, tinham por objetivo suprir os serviços de mesa das repúblicas. Estas, embora estivessem, em sua maioria, mal conservadas, com um mobiliário precário e danificado, as mesas de refeições estavam ornadas por refinados serviços, com pratos, talheres, copos, que ornavam as mesas das mais aristocráticas residências. E, como explicar o contraste entre a pobreza dos imóveis e dos móveis, com o luxo das mesas. A rapinagem, ou melhor, as expedições de rapinagem feitas aos melhores restaurantes, cafés e hotéis de São Paulo. Eram eles os fornecedores compulsórios da prataria e da fina louça das mesas dos estudantes.

Outras rapinagens, que não de alimentos ou talheres tinham a possibilidade de serem qualificadas: rapinagens sacras. Sim, nem sequer o campanário da Faculdade foi respeitado. Furtou-se o badalo do sino que, várias vezes por dia, tocava alto e bom som. Outro símbolo da Igreja foi vítima da estudantada: uma cruz existente na rua da Cruz Preta, hoje Quintino Bocaiúva.

Não se pense que os estudantes podiam sempre usufruir dos frutos dessas apropriações. Havia decepções e frustações. Um exemplo ocorreu com o estudante Manuel de Almeida Melo Freire, o Almeidinha. Segundo disse aos seus amigos, havia ganhado um belo e suculento peru. Ninguém acreditou que o galináceo fosse um presente. Sabiam ser outra a sua origem. No entanto, aceitaram o convite para a ceia, após o término do teatro. Quando chegaram à casa, de pronto sentiram o agradável aroma do peru assado. No entanto, grande decepção. O peru não mais estava na bandeja, que fora depositada em um banquinho perto da porta da cozinha. Descobriu-se que uma quadrilha de gatos da redondeza se banqueteara com a cobiçada ave. Na verdade, os bichanos se vingaram dos estudantes, em nome de todas as vítimas de suas rapinagens.

Uma característica da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco é a continuidade de seus hábitos e costumes, que superam o tempo e são seguidos pelas gerações vindouras com as adaptações dos momentos históricos.

Assim se deu com os furtos dos perus. Após as primeiras, ocorridas por volta de 1830, sendo autores da façanha os estudantes Antônio José de Figueiredo Vasconcelos, Serafim de Andrade e Antônio Ricardo, outras e tantas outras foram perpetradas durante mais de um século.

Em 1948, uma grande empreitada para o surrupio de perus foi meticulosamente planejada e envolveu uns trinta estudantes. O audacioso projeto não poderia mesmo ser executado sem cuidadoso preparo, pois os galináceos seriam furtados à noite, do Parque da Água Branca onde se realizava uma exposição de animais. Divididos em grupos, cada um deles possuía com tarefas específicas, desde vigiar as ruas até a apreensão das aves. Nove gordos perus foram agarrados e levados para os carros de aluguel que esperavam nas imediações. Na noite seguinte houve uma memorável ceia no Centro Acadêmico, oportunidade em que foi criada a Ordem do Peru.

A peruada, célebre festa de recepção aos calouros, realizada após terem recebido os temíveis trotes, nada tem com os perus, e nem com a sua subtração tradicional pelos acadêmicos do Largo.

Trata-se de um desfile no qual imperam a graça, a ironia política, o sarcasmo, as vestimentas exóticas, por vezes sumárias, a música, os discursos, muitos sem nenhum conteúdo ou nexo, enfim as "palhaçadas" bem a gosto e no feitio tradicional da Faculdade, que denotam a inteligente criatividade dos moços que ao lado de agradarem pelo lado hilário, transmitem importantes mensagens de crítica social e política. Os acadêmicos sempre desde os primórdios da Faculdade o "ridendo castigat mores".