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Campos da várzea

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Atualizado às 08:57

Os dicionários dão à palavra várzea o significado de extensas áreas situadas nas planícies ou, ainda, o de terrenos cultivados e localizados à beira dos rios e dos riachos.

Pois bem, estranhamente, a maioria omite o significado de maior interesse e alcance pelo menos para nós que habitamos as cidades. Várzea é o local aonde se pratica futebol fora dos estádios destinados a esse esporte. Não só o futebol, pois é um local destinado a outras atividades de esporte e de lazer.

Lembro-me, na minha infância e juventude, no nosso "campinho", o do Olímpicos do Paraíso, situado na rua Stella com Oscar Porto, nós nos ocupávamos de práticas de outras naturezas. Jogávamos taco ou casinha. Com três pequenos pedaços de madeira, presos na ponta superior, fazia-se duas "casinhas", uma em cada ponta de um espaço determinado que deveriam ser derrubadas, com as tacadas ou arremessos da bolinha. 

Empinar papagaio, soltar balões e outras brincadeiras, como "lasca romeu", "mãe da lata", "malha" e até "bocha", também ocupavam esse espaço.

Aliás, por vezes, a sua destinação era desvirtuada. O campo se transformava em campo de batalha. Turmas rivais marcavam dia e hora para um confronto físico. Havia regras e normas que deveriam ser seguidas, como se obedece a um código de honra.

Havia um número certo de contendores que não poderia ser ultrapassado. Riscava-se uma linha horizontal. Cada grupo ficava postado em frente ao outro, assim que alguém ultrapassasse a linha a contenda tinha início. Outra regra sagrada, nada de armas ou de qualquer instrumento que fizesse às vezes de tapas daqui, tapas dali, por vezes um soco e um pontapé e nada mais. Naqueles tempos as brigas eram incruentas, não se feria não se matava. Não raras vezes selava-se a paz, em um bar.

O futebol era a destinação original desses campos. O futebol brasileiro muito deve a eles e aos "olheiros" que os frequentavam.

O campo da várzea possui uma indiscutível relevância para a própria sociedade, especialmente para as suas camadas menos favorecidas. Espaço de lazer e de sociabilidade, democrático espaço.

As agremiações de futebol localizadas nos bairros de São Paulo reuniam em torno de si não só jogadores como parte de seus habitantes. Os jogos especialmente os de domingo pela manhã atraiam adeptos do futebol, mas não só. Ali se confraternizava, bisbilhotava, flertava, namorava, petiscava e nos dias festivos ou dos grandes jogos, havia as célebres churrascadas, acompanhada de chope. Lembro-me que não havia "serpentina" para gelá-lo. Os barris eram cobertos por barras de gelo, envoltas em estopa para não que não se derretessem.

O campo de várzea é uma instituição nacional, e com ele não se deve brincar. Centros de sociabilidade principalmente nas periferias, carentes de espaços públicos, torna-se imprescindível a sua manutenção criação em terrenos abandonados. Temos que resistir à voracidade da cidade que engole os seus espaços de liberdade, congraçamento e harmonia bem como a sua própria memória.

Eles, embora em número bem menor do que no passado, ainda sobrevivem à ganância imobiliária. Certa vez, do andar alto de um prédio, algum barão do cimento, olhando para um conjunto de campos, exclamou suspirando: "que desperdício", estava se referindo-se aos prédios que ali poderiam ser construídos. Tempos depois aqueles campos foram substituídos por um parque. O barão teve que digerir a sua frustação.

Abro um parêntese, para lembrar que o futebol de várzea não precisa necessariamente ser praticado em um campo e nem jogado por vinte e dois jogadores. Também não é preciso nem ao menos uma bola. Pratica-se o futebol em qualquer lugar onde aja um espaço. Uma rua; um quintal; um beco; uma vila; um buraco qualquer com duas extremidades.

Aliás, por vezes se joga apenas com um "gol". Trata-se da chamada "meia linha", que em Santos é o "lelê". Um só goleiro. Bola fora é gol dele. Por vezes, bastam dois jogadores, um em cada gol. É o "gol a gol". Eles chutam e defendem. Sobre os gols, claro que são improvisados, com traves da mais diversa procedência. Pedaços de pau; latas; sapatos; tijolos. Bem se vê que as traves são só as laterais e imaginárias quanto à altura.

Resta a bola. Para se jogar na várzea basta algo que se pareça com a bola. O mais comum são as meias, que tomam a sua forma.

Quem gosta do futebol faz muitas concessões. E, ele por sua vez, tudo aceita, até para não ser esquecido.