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Jô Soares um brasileiro

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Atualizado às 08:06

Há figuras humanas que se imagina serem imortais. Não é a imortalidade dos que permanecem na memória e na saudade daqueles que ficam. Eu me refiro à imortalidade no sentido literal. O ser que jamais se ausentará. Jamais morrerá. Jamais será enterrado. O seu corpo permanecerá e sempre será visto. Essa sensação de eternidade física se deve à importância e à imprescindibilidade de certas pessoas. Não se admite a vida sem elas.

Assim, eu imaginava que ocorreria com o Jô Soares. Ele nunca nos deixaria. Como diziam os antigos ele ficaria para semente. No entanto, ele partiu, mas com certeza as suas sementes germinarão e darão frutos.

Quais sementes? Várias, e correspondem às suas qualidades e características. Inteligência, cultura, rapidez de raciocínio, alegria, humor, fidelidade às suas origens, por vezes sagacidade e ironia. Essas e tantas outras.

No entanto, eu quero testemunhar um relevante aspecto que foi para mim revelado nos últimos tempos. Especificamente nos quatro anos anteriores a essa data. A sua brasilidade. A sua preocupação com o país. A sua apreensão de estar assistindo a um Brasil atormentado pela intolerância, pelos riscos de ruptura institucional, pelas pregações destrutivas, pelo estímulo às armas, pelo esmaecimento de sua imagem perante o mundo, pela destruição das matas etc. etc.

Padecia com a irracionalidade de um governo que não ele via governar e se afligia com a crescente  desarmonia instalada no seio da sociedade, por um discurso voltado à destruição e  ao ódio.

Talvez poucos homens de comunicação tivessem conhecido o Brasil e os brasileiros como ele, mercê de sua profícua atividade de entrevistador, durante sessenta anos. Conheceu o homem brasileiro de todas as classes sociais, categorias culturais, atividades profissionais. Explorou com argúcia e profundidade todos os  escaninhos e labirintos do pensamento, da vida, dos fatos ligados a cada entrevistado. Desta forma ele esmiuçava a sociedade. Dissecava os seus meandros, levantava o tapete de suas escondidas mazelas. E tudo fazia com refinado humor, com absoluta liberdade e independência  jornalística.

Jô tornou-se um retratista fidedigno do Brasil e do seu povo, eu diria ter sido ele um historiador do nosso presente. Os tipos que encenava  nos programas de humor representavam os vários brasileiros habitantes dessa terra diversificada, plural, miscigenada. Uma terra quase incompreendida, que, no entanto,  ele retratava com a fidelidade possível.

Semanalmente conversávamos. Possuidor de uma memória extraordinária deliciava-me com histórias de fatos e de gentes. Remontava à época em que começara na televisão com Silveira Sampaio, considerado por ele como mestre das entrevistas televisivas. Outra figura por ele enaltecida, na área dos programas humorísticos, foi Max Nunes. Citava também um antigo colaborador da TV Tupi, canal 3, Tulio de Lemos. Deixava ainda patente a sua gratidão ao jornalista Matinas Suzuki, responsável pelas suas memorias.

Era muito discreto quanto à sua vida pessoal. Não falava de seus amores. E, foram muitos. Mas, não escondia o seu afeto e a sua gratidão pela Flavinha, que o amparou até os últimos dias. Mesmo após o término do romance a amizade de ambos não os separou.

Como disse, a situação do país o preocupava sobremodo. Indagava-me sobre medidas judiciais que poderiam ser adotadas para barrar a escalada autoritária e antidemocrática em marcha. Queria saber dos movimentos de resistência da sociedade. Ações coletivas ou isoladas lhe davam esperança e alento.  

Jô se foi, para minha decepção, pois o julgava imortal. Partiu o Jô brasileiro. O insubstituível  Jô Soares. Ficou o vazio, a tristeza, mas, especialmente ficaram as suas lições de amor ao próximo e ao Brasil.