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Viver é preciso. Morar também

terça-feira, 30 de maio de 2023

Atualizado às 08:00

Um dos mais angustiantes problemas da atualidade são os moradores de rua. Não se pense serem eles os responsáveis por esses problemas. Em verdade representam a sua consequência, vitimados por uma histórica situação de injustiça social. Constituem as suas vítimas e em nada contribuíram para a sua ocorrência.

Um acúmulo de fatores levou às ruas milhares de paulistanos, para nos fixarmos apenas na cidade de São Paulo. Todos eles convergem para um denominador comum: a histórica e crônica desigualdade social, que nos acompanha desde sempre. Ela é fruto da má distribuição de rendas; da ausência de empregos; da baixa escolaridade; da inexistência de políticas públicas, dentre tantas outras causas, que foram agravadas pela pandemia do COVID. Ademais, a iniquidade é refletida na carência em áreas como as da saúde e do saneamento básico; da habitação; da alimentação; do vestuário; da violência; da criança abandonada.

Essa desigualdade, cujas razões e efeitos foram exemplificados acima, é marcada por um aspecto que lhe empresta uma situação de permanência e imutabilidade, qual seja a insensibilidade das chamadas elites.

O mais arguto e atento observador dessa tragédia, a ausência de moradia para milhares de pessoas, não consegue assimilar e, portanto, transmitir o sofrimento que acomete essas pessoas. Trata-se de uma situação inenarrável. Para se chegar perto da realidade é necessário que se tenha extremada sensibilidade, ausência e egoísmo, e acima de tudo amor ao próximo.

Aqueles sentimentos, no entanto, estão ausentes de parcelas consideráveis da nossa sociedade. Caso tenham um dia se sensibilizado com o angustiante problema, logo se acostumaram a com ele conviver. Vale dizer, se ele não causar nenhum incômodo, as pessoas pouco ou nada se importarão. O ideal é que as "habitações" não fiquem no seu campo de visão, assim a situação será esquecida. Esquecida não, desprezada.  

Poder-se-á indagar, em face da situação qual diferença faria o maior interesse da sociedade. Talvez essa indagação se justifique especialmente nos dias de hoje, quando o individualismo se tornou marcante na sociedade brasileira. Embora os meios de comunicação e de informação tenham sido aprimorados e agilizados, estamos diante de desafiador paradoxo:  as pessoas podem se ver e se comunicar com mais facilidade, no entanto, estão mais voltadas para si e mais distantes das questões coletivas.

Caso houvesse um despertar geral para os problemas que afligem comunidades e segmentos específicos, com certeza a rede de solidariedade conseguiria minimizar consideravelmente os sofrimentos dos seus integrantes. Ademais, a sociedade como um todo, uma vez mobilizada poderia ser um instrumento de pressão junto aos governos cujas ações de enfrentamento do problema são parcimoniosas, pouco eficientes e normalmente possuem um caráter meramente midiático.

Um exemplo da natureza dessas ações, é aquela desenvolvida pela Prefeitura em relação às barracas existentes na Praça da Sé e adjacências. Pela manhã, as "moradias" são retiradas para que haja uma limpeza nos respectivos locais. Denomina-se essa conduta de "zeladoria". Depois de um determinado horário à noite as mesmas barracas são respostas. Suaviza-se o problema de forma meramente estética, plástica, visual, durante o dia até o anoitecer. Pergunta que se impõe: e as pessoas para onde vão, onde ficam, o que fazem durante essas longas horas? Perambulam pelas ruas, com certeza. Estamos falando de seres humanas: homens, mulheres, idosos, crianças, doentes, grávidas, viciados, todas as espécies que compõe esse vergonhoso universo de desvalidos, que nem sequer possuem um teto durante o dia, ao menos de lona.

A vergonha deveria ser nossa. Talvez ela nos impulsionasse, em nome da solidariedade humana, a sair da inércia e a imitar o apelo do grande historiador Capistrano de Abreu, no sentido de que a Constituição da República deveria ter uma única norma de comando "Todo brasileiro deverá ter vergonha na cara".

Entenda-se a expressão vergonha como o sentimento de honradez, decência, pudor, dignidade, cuja ausência denota, além da carência daquelas qualidades, uma absoluta falta de sensibilidade, solidariedade e como já dito de amor ao próprio. O "outro pouco se me dá como pouco se me deu".

Para amenizar a cruel situação dos habitantes das ruas, da sociedade se exige reconhecer o problema e não permanecer inerte. Já há algumas ações concretas de auxílio e amparo, mas são insuficientes, precisam ser ampliadas. Como a questão necessita de medidas que atinjam a sua raiz, do Estado se espera, na verdade se exige, planejamento, recursos e vontade política para ele fazer o que tem que ser feito: disponibilizar moradias, construindo-as ou adaptando imóveis já existentes. Morar, não nas ruas, é preciso, para se viver com dignidade.