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O fim da história do futebol no Brasil

quarta-feira, 28 de março de 2018

Atualizado às 08:10

Causou certo furor a matéria do jornal Estado de São Paulo, de segunda-feira, 26 de março de 2018, estampada na p. A22, intitulada "Alemanha cria o 'Vale do Silício' do futebol". O comentário mais comum gravitava ao redor da idealização de um projeto semelhante no Brasil, que poderia, com os seus "recursos humanos" (ou seja, com a sua formação quase espontânea de talentos), criar um centro acelerador e aperfeiçoador sem precedentes.

Ao contrário do que pode parecer, esse caminho, considerando a estrutura organizacional do futebol local, poderia sacramentar o fim da história do futebol no Brasil. Por isso, o tema merece reflexão.

O futebol brasileiro está fissurado. De um lado se posiciona a poderosa CBF, administradora de um dos maiores ativos do planeta, a seleção nacional; de outro, os times, de todas as divisões, da mais alta às mais baixas, atolados em problemas, dívidas e falta de perspectiva, pela ausência de um projeto sustentável e viável de desenvolvimento da empresa futebolística no país.

A penúria dos clubes foi escancarada, em cadeia nacional, pelo ex-jogador e atual comentarista, Casagrande. Indignado, ele afirmou, durante a transmissão do jogo entre São Paulo e Corinthians no Morumbi, no dia 25 de março, por ocasião da semifinal do Campeonato Paulista, que o futebol jogado no país não tinha qualquer relação com o futebol praticado na seleção; seriam realidades de diferentes dimensões. E não parou aí: também disse que jogadores de primeiro e de segundo níveis, atuavam fora, prejudicando a qualidade da prática interna.

O panorama da atividade futebolística local confirma a irresignação: estádios vazios e de má qualidade, com raras exceções; campeonatos regionais desinteressantes que prejudicam a preparação para os verdadeiros desafios da temporada; campeonato nacional sem visibilidade internacional; êxodo de jogadores em idade precoce e ainda em formação; escassez de grandes ídolos locais ou internacionais; produtos e serviços de baixa qualidade; ausência de oferta de patrocinadores sólidos; inexistência de instrumentos de financiamento da empresa do futebol; falta de governança... O diagnóstico poderia prosseguir.

Enquanto isso, a CBF encontrou em Tite um instrumento de resgate da confiança e do orgulho de ser torcedor brasileiro, ou melhor, torcedor da seleção.

Ali convivem, paradoxalmente, duas realidades, duas empresas, duas CBF's: uma maculada pela história de atos nada republicanos, e outra que, desgarrada dela própria, exala frescor, ética, trabalho, disciplina, governança, planejamento, respeito e sucesso. A situação é tão fantástica que turva a realidade: afinal, uma é a outra, mas, perante a sociedade, perante o torcedor, a outra não é a uma.

O drama surge exatamente aí: o êxito, até o momento, da campanha de Tite - aliás, apesar do merecido reconhecimento, até agora não fez nada de excepcional, pois o Brasil jamais ficou fora de uma Copa do Mundo - não tem qualquer vinculação com o futebol praticado no Brasil e, muito menos, com a organização e a atuação da CBF. Os jogadores, em sua maioria, se formaram fora e se tornaram ídolos internacionais, e esse processo de "terceirização" e internacionalização beneficiou - e beneficia - justamente a CBF e seu principal produto, a seleção.

Apenas a seleção, e não os times nacionais.

Daí as inevitáveis (e tristes) conclusões: os jogadores brasileiros são commodities destinadas à exportação e, dentre os produtos exportados, sempre se formará uma equipe de 23, apta a disputar o título mundial. Logo, o êxito da seleção se dissociou da qualidade interna do futebol.

Assim, a concepção de um centro de ponta desenvolvido pela CBF, a exemplo do que se planeja na Alemanha, intensificaria esse modelo fissurado, e reduziria o futebol local a um enorme fornecedor de matéria prima mundial.

Como resolver esse dilema?

Deveria ser muito simples. Aliás, a Alemanha serve como referência, pois, antes de anunciar o seu Vale do Silício futebolístico, ela arquitetou outro projeto, este sim, grandioso, de resgate e desenvolvimento do futebol local, a partir das escolas e dos times nacionais. Envolveu toda a sociedade, inclusive o Estado, o Mercado e a Confederação local. Com isso, criou-se um processo sustentável que deverá formar gerações e gerações de jogadores, que se substituirão sem a necessidade de surgimento de um Salvador da Pátria.

Consumado e estabelecido esse projeto, aí veio a proposição de se criar um centro tecnológico, que permitirá à seleção preparar jogadores para que executem o projeto de dominação.

A base de tudo, portanto, é a própria base, e não o topo.

Daí a visão cética a respeito da inversão de valores (e de poder) no futebol brasileiro. Os jogadores, os times e os campeonatos são irrelevantes para manutenção do controle da CBF. O insucesso dessas estruturas alimenta o poder central.

Por isso que as ligas não voam.

Por isso que os times não se desenvolvem e não se beneficiam de um modelo que permita o financiamento de suas atividades.

Por isso que o Brasil precisa de um projeto que resgate o seu futebol, para que a atividade se torne um poderoso meio de desenvolvimento econômico e social.