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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Milei x AFA: Sociedade Anónima Deportiva (SAD)

Cerca de um mês após a eleição de Javier Milei à presidência da Argentina foi publicado, por meio do Diário Oficial da República Argentina, no dia 20 de dezembro de 2023, o polêmico DNU - Decreto de Necesidad y Urgencia 70/23. Intitulado como "Bases para la Reconstrucción de la Economía Argentina" e popularmente conhecido como "megadecreto", o DNU 70/23 foi composto por 366 itens, dentre os quais, alguns interessam ao propósito deste texto. Javier Milei tornou-se um defensor da instituição da SAD - Sociedade Anónima Deportiva no futebol argentino, possivelmente influenciado pelo modelo espanhol e, mais recentemente, incomodado com os resultados positivos que a Lei da SAF trouxe ao ambiente brasileiro e aos seus clubes. Daí a proposta de alteração e revogação de uma dezena de artigos da Ley de Deportes (Ley 20.655/74), inclusive alguns que geraram embate imediato com a AFA - Asociación del Fútbol Argentino e suas lideranças políticas: em especial, a possibilidade de clubes organizados sob a forma de associações civis se constituírem ou se transformarem em sociedades anônimas. Importante: Os estatutos da AFA proíbem a constituição e a existência de sociedades empresárias no ambiente do futebol argentino. Em reação às pretensões de Javier Milei, o atual (e recentemente reeleito) presidente da AFA, Claudio "Chiqui"  Tapia, comandou movimento que contou com esmagadora maioria dos clubes argentinos, e que resultou, no início do segundo semestre de 2024, na suspensão judicial dos efeitos do decreto presidencial, que, em sua redação original, previa prazo de um ano para que AFA e demais federações argentinas futebolísticas adaptassem seus estatutos para o recebimento da SAD. Javier Milei não aceitou o golpe e editou novo Decreto de Necesidad y Urgencia 730/24, publicado em agosto de 2024, no qual reiterou a possibilidade de os clubes argentinos passarem do modelo associativo ao empresarial, e reinseriu o prazo de um ano para adaptação dos estatutos das federações nacionais. Além disso, foi decretado que as entidades de administração do esporte não poderiam sancionar clubes que optassem pela adesão ao modelo empresarial. Após ajuizamento de medida cautelar pela AFA, a Justicia Federal de Mercedes ordenou a suspensão imediata dos efeitos do DNU 730/24 - impondo nova derrota ao presidente argentino. Parte da mídia nacional já considerava o assunto concluído até que, menos de um mês atrás, no dia 21 de outubro de 2024, o embate tomou novos rumos. Por via de outro decreto executivo, o DNU 939/24, Javier Milei dirigiu-se aos benefícios fiscais instituídos pelo então presidente Eduardo Duhalde (seguido por seu sucessor Néstor Kirchner), em meados de 2003, por meio do DNU 1212/03. Em síntese, o DNU 1212/03, diante de crescente crise financeira que culminou no aumento exponencial de endividamento dos clubes argentinos, instituiu regime tributário de cobrança e retenção do percentual de 2% da receita total da venda de ingressos, transferências de jogadores e direitos de transmissão para pagamento e quitação de valores referentes a contribuições pessoais e contribuições patronais dos funcionários dos clubes pertencentes à AFA - posteriormente elevado para 6,5% por Kirchner, em 2005, após melhora na situação de crise. Houve, ainda, em 2019, diante da administração executiva do ex-presidente Mauricio Macri, outro defensor declarado da SAD, novo aumento no percentual do regime de benefícios fiscais para 6,75% (incluindo também receitas de patrocínio dos clubes, previamente não incluídas na base de cálculo). O embate teve também capítulo protagonizado pelo ex-presidente Alberto Fernández com seu DNU 510/23, no final de 2023 (época na qual estava em campanha eleitoral contra Javier Milei), momento em que buscou a ampliação dos benefícios anteriormente reduzidos por Mauricio Macri, instituindo sistema para refinanciamento de dívidas acumuladas em decorrência das alterações de 2019. Agora, Javier Milei ataca ponto sensível aos clubes, o benefício tributário, e justifica a medida com argumento que afeta toda população - neste momento, abalada pelas intensas medidas promovidas pelo próprio Presidente: perda de ARS$ 7,1 bilhões (em torno de R$ 41 milhões) aos cofres públicos somente entre os meses de novembro de 2023 e abril de 2024, de modo que "portanto, é necessário modificar as condições atuais do regime para evitar a expansão do desfinanciamento do sistema". Parece, pelo exposto, que a disputa política entre Javier Milei e AFA está longe de se terminar. Enquanto isso, os clubes argentinos perdem a oportunidade de acessar os mercados financeiro e de capitais e de se reposicionar como grandes forças do futebol sul-americano - e mundial.
A Galeria Nacional de Arte de Washington ("Galeria Nacional") inaugurou1 uma interessantíssima exposição denominada Paris 1874, na qual explora a importância de outras duas exposições que ocorreram em Paris, em 1874: uma, promovida pela Sociedade Anônima dos Artistas Pintores, Escultores e Gravuristas ("Sociedade Anônima dos Artistas"), em um espaço comercial localizado no Boulevard dos Capuchinos; e, outra, realizada no Palácio das Indústrias, que hospedava o Salão Anual, considerado o mais importante evento permanente de arte da época - e que havia sido instituído, aliás, desde o século XVII.  A exposição promovida pela Sociedade Anônima dos Artistas apresentou em torno de 200 obras, concebidas por 31 artistas, e atraiu, durante o mês, número estimado de 3.500 pessoas; ao passo que a grande exposição oficial recebeu, em 2 meses, ao redor de 500.000 pessoas, que puderam apreciar 3.701 obras, produzidas por mais de 2.000 artistas2. Os artistas reunidos na Sociedade Anônima dos Artistas ofereciam, com suas obras e proposições, uma espécie de revisão dos conceitos que, há décadas (ou séculos), dominavam o ambiente artístico, como a glorificação do passado, temas espiritualmente superiores e/ou que, de algum modo, elevavam as tradições e os feitos franceses.  O vetor daquela sociedade artística - mais preocupada com temas da contemporaneidade como lazer (e prazer), cafés (e vida noturna) e homens e mulheres da sociedade; além da adoção de traços menos precisos, destaque à luz do dia (com pinturas feitas ao ar livre) e cores vivas -, que viria a ser identificada como impressionista, confrontava a própria essência do Salão e da elite econômica e cultural.  Apesar de as obras impressionistas não terem sido bem aceitas inicialmente, tanto no Salão (que as rejeitou), como na crítica e na sociedade consumidora, elas rapidamente revelaram valores técnicos, estéticos e éticos que transformariam, sem exagero, o cenário local e mundial.  Não deixa de ser impactante (e cruel), em tal sentido, a composição (e o resultado) da atual exposição em cartaz na Galeria Nacional. Apesar da apresentação de quantidade relevante de obras oriundas do Salão de 1874, muitas delas em maiores formatos do que as obras provenientes da Sociedade Anônima dos Artistas, o tempo fez muito bem aos impressionistas, mas parece ter reduzido as pinturas de Salão a um necessário momento evolutivo da história (sem desprezar a inegável técnica e beleza pictórica de algumas delas).  A comparação se mostra ainda mais cruel ao espectador que deixa a exposição e se dirige às salas opostas do mesmo corredor da Galeria Nacional, que abriga (nada mais, nada menos do que) a maravilhosa coleção permanente de obras impressionistas, representada, dentre outros (e outras), por Manet, Monet, Renoir, Cézanne, Degas, Pissaro, Sisley e Morisot.   A impressão que se dá, aliás, é de que, com exceção de poucas obras-primas impressionistas que se integraram à exposição Paris 1874, os realizadores preferiram mostrar obras não tão conhecidas, uma espécie de seleção reserva, para não humilhar os artistas do Salão. Mas não foi isso. O mote da exposição, o ano 1874, ditou o recorte, e, assim, se promoveu a comparação conforme produções de mesma época e para semelhantes finalidades.  De todo modo, os impactos são facilmente identificáveis: enquanto a importância dos impressionistas ainda se intensifica com o passar dos anos, os pintores daquele Salão de 1874 que resistiram ao tempo permanecem em salas pouco concorridas de alguns museus.  O relato pode, sem muito esforço, ser comparado à situação do futebol brasileiro e adaptado ao período que vai de 2021 a 2024.  Em 2021, a lei da SAF, de autoria do senador da república e presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, foi promulgada e o establishment a ignorou - e, dissimuladamente, a repudiou.  Forças reacionárias ainda tentaram desidratá-la, mas eventos como o investimento de Ronaldo Nazário, no Cruzeiro, de John Textor, no Botafogo e do City, no Bahia, anunciaram a sua irreversibilidade, de modo que, desde 2021, o sistema jurídico passou a propiciar o convívio de dois modelos: o clubismo, originado no século XIX; e o empresarial, plasmado na SAF (uma alternativa do século XXI).    Apenas três anos após o surgimento da lei da SAF (portanto, curto prazo para absorção de nova lei e de nova via de organização empresarial, e mais de 70 sociedades anônimas do futebol constituídas), o ambiente já demonstra uma transformação que, além de irreversível, talvez reduza ou apequene, no plano esportivo, times que, no passado ou no presente, foram ou são protagonistas.  Os resultados, até o momento, da edição 2024 da mais importante competição do planeta para sul-americanos, a Copa Libertadores, impressionam e reforçam a pertinência da comparação com a situação de 1874.  Duas SAFs bateram dois clubes brasileiros nas quartas de final e, na sequência, humilharam, em seus jogos de ida da fase semifinal, os respectivos adversários estrangeiros, que são, nada mais, nada menos, do que River Plate e Penarol, tradicionalíssimos clubes da Argentina e do Uruguai, principais rivais, em geral, dos brasileiros.  O enfrentamento não está concluído e pode, eventualmente, ser revertido. A despeito disso, as SAFs já começam a demonstrar força, planejamento, estrutura, recursos e consistência - inclusive as que não se propõem a ser protagonistas nacionais, mas relevantes localmente e competitivas, em plano maior.  Soa, pois, o alarme para os times que acreditam que, pelas suas glórias do passado e tamanho de suas torcidas, não deixarão de protagonizar o cenário do futebol (em especial para os que, apesar desses atributos, já são - ou estão - coadjuvantes).  Enfim, a arte, mais uma vez (e sempre), também por vias improváveis, revela os caminhos da humanidade (e do futebol).  _________ 1 A exposição foi apresentada, anteriormente, no Musée D'Orsay, em Paris.  2 As informações numéricas e cronológicas foram extraídas dos textos explicativos da exposição e de suas obras, bem como do catálogo: Paris 1874 - The Impressionist Moment, Dist: Yale University Press. 
A fenomenal obra épica Three Kingdoms1 narra os acontecimentos que levaram ao fim da Dinastia Han, cujos integrantes imperaram na China do ano 206 a.C. ao ano 220 d.C. Ao cabo do período, insurreições de diversas origens e naturezas abalaram o império que, "dividido há muito tempo, deve se reunir; reunido há muito tempo, deve se dividir". Chegara, aparentemente, o tempo de nova divisão, para posterior reunião. Em determinada batalha pela manutenção da Dinastia, um jovem guerreiro apoia, voluntariamente, um arrogante lorde e líder militar, e o ajuda a evitar iminente fracasso, diante de uma falange "messiânica". O apoio, que foi fundamental para o desfecho favorável ao lorde, não suavizou a sua arrogância, e o lorde, ao saber que o jovem não ostentava título de alta patente, não o reconheceu como salvador da batalha. Tempos depois, o mesmo lorde comandou um golpe para destronar o legítimo sucessor do império e para empossar, no lugar, o irmão mais novo do destronado, que provinha de uma relação extraconjugal do então Imperador (o conceito não é preciso, pois as relações do Imperador não eram consideradas incestuosas). O jovem guerreiro, convocado agora pelas forças de resistência para reverter o golpe, reclamou ao líder do movimento por tê-lo impedido, naquela oportunidade, de matar o lorde, que se convertera no traidor. E afirmou que o império estaria protegido, se o usurpador tivesse sido abatido quando a oportunidade se apresentou. O líder da resistência, então, respondeu: lide com o presente. No Brasil, o presente do futebol é a formação do sistema que tem, como núcleo, a SAF, criada pela lei 14.193, de 06 de agosto de 2021, de autoria do presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco. Mesmo os clubes que insistem em se manter no passado, sob a forma de associações civis, menos por convicção e mais por oportunismo (ou dificuldades políticas internas), não conseguem evitar, interna ou externamente, o debate. Não passar ao modelo de SAF é uma decisão tão relevante (e fundamental) como, ao contrário, decidir pela passagem. A aparente omissão significa, pois, uma ação negativa, com impactos que podem ser expressivos. Clubes tradicionais, que batalham há anos contra endividamentos crescentes, resultados insatisfatórios e, em alguns casos, contra o rebaixamento, viram, por outro lado, o ressurgimento (ou mesmo surgimento) de tradicionais ou novas forças, que já estão mudando o panorama do esporte no Brasil, dentre as quais o Botafogo, o Galo, o Cruzeiro e o Bahia. Como se repete neste espaço, já são mais de 70 SAF's no país e outras estão a caminho (inclusive algumas expressivas em relação ao tamanho da torcida). Não se teria iniciado a formação desse ambiente e, mais importante, ele não se desenvolverá, para se tornar, como se pretende, o maior mercado do futebol do planeta, sem a atuação do Estado, de um lado, como provedor de um arcabouço jurídico adequado e confiável, e, de outro, do Mercado, como provedor de capitais e financiador da empresa futebolística, atuante em ambiente adequadamente regulado. Nesse sentido, como a curta experiência já nos ensina, nada teria acontecido - apesar do passivo social e econômico que o futebol, historicamente, vem acumulando à conta da sociedade -, sem a participação do Estado, em seus papeis de legislador e regulador da atividade econômica do futebol. Não se trata, como muitas vezes também se repetiu neste espaço, de intervenção; ao contrário. O surgimento da lei da SAF e, na sequência, a publicação do Parecer de Orientação n. 41, de 21 de agosto de 2023, pela CVM, demonstram que a ocorrência de incentivos adequados pode contribuir para o desenvolvimento econômico e social da Nação, mesmo em setores que, injustificadamente, não fizeram ou fazem parte da agenda política prioritária. O mercado do futebol (ou do esporte, em geral) ainda é incipiente e pouco compreendido, no Brasil. Paradoxalmente, apesar da paixão clubística, ostenta uma certa antipatia, sobretudo no plano governamental, causada pelo antigo regime cartolarial - e seus injustificáveis benefícios -, que insiste em se agarrar no arcaico modelo associativo, como agente de organização e (sub)desenvolvimento empresarial.   Esse é o contexto do debate que ocorreu ontem, dia 22.10.24, em uma das mais prestigiosas universidades do planeta, a Georgetown University.   Sob organização do Brazilian Law Association, do Center on Transnational Business Law e da FGV, e com a presença do presidente da CVM e de representantes da SEC, os modelos brasileiros, tanto o antigo quanto o contemporâneo, foram expostos e debatidos, revelando que, com os direcionamentos e os aperfeiçoamentos que são propostos neste espaço, o país irá, de modo mais rápido do que se podia imaginar, atingir um nível de excelência legislativa e regulatória, sem precedente na história do mercado do futebol. _____ 1 Guanzhong, Luo: Foreign Languages Press, Beijing, China, 1995, p. 78.
O futebol não acabará, evidentemente. Mas passou e ainda passará por transformações que o levarão a um reenquadramento na sociedade. Coisas boas e ruins ficaram para trás; não voltarão, apesar de eventual saudosismo. Outras, também boas ou ruins, passaram a fazer parte do cotidiano.   Exemplos: A área popular, reservada aos torcedores que se integravam ao espetáculo, conhecida como geral; a arquibancada de concreto; e a hiper lotação em jogos decisivos, de times com grandes torcidas, restam apenas nas memórias de torcedores que, logo mais, por decurso de tempo, também não terão memórias. Aqueles hábitos, a bem da verdade, não fazem sentido nos dias de hoje. O desconforto, envolvendo o ato de participar de um evento esportivo, não tem sentido. Basta comparar um automóvel santana quantum (ou um monza), produzido nos anos 80/90, que foi símbolo de status, com um audi atual, mesmo de menor porte (portanto, que nem mesmo seja um carro considerado topo de linha). O hiato é intransponível. A mesma sensação, ou algo parecido, revela-se na comparação entre o antiquado estádio e a nova arena. O problema não é o conforto, mas a exclusão do torcedor comum, que escolhia o futebol como único (ou quase) único meio de lazer e de inserção social. Era lá, na geral ou na arquibancada, desconfortável para pobre e rico, que se integrava com a família (talvez em grande parte com membros do sexo masculino) e, em comunhão, extravasava. Faltou sensibilidade aos governantes para ditar normas que não impedissem o progresso, mas, ao mesmo tempo, impedissem, aí sim, a acentuação da exclusão e da desigualdade entre torcedores. Mais, ainda: a fidelização de torcedores abastados, atraídos pela transformação da experiência futebolística - propiciada pelos programas de sócio torcedor -, também criou níveis de preferencialistas que empurram para longe a chance de reintegração popular. Para parte relevante da população, portanto, a alegria de ir ao campo chegou, prematuramente, ao fim. A história, para ela, será contada a partir das telas de televisões espalhadas em bares, mercados e outros espaços públicos. Outra mania parece atentar contra a razoabilidade e o sentimento de orgulho e pertencimento: o uso da camisa do time de coração. Na esteira da proibição de torcidas rivais em estádios e arenas paulistas, que priva o torcedor de um dos mais lindos espetáculos da terra - o contraste de torcidas e os gritos de apoio e de provocação -, surge a mania, em alguns estabelecimentos, de proibir a entrada com camisas de futebol, exceto de times estrangeiros ou irrelevantes. É verdade que a razoabilidade não faz parte de todo ser humano, ao contrário, e, daí, advém a possibilidade de ocorrência de tensões pelo simples uso de uma camisa de time adversário, dentro ou fora de estádios, inclusive em ambientes neutros, como restaurantes e casas de show. Mas nada justifica, numa sociedade supostamente livre, a proibição de uso, como vem se espalhando por diversos locais da cidade de São Paulo. Recentemente, por exemplo, presenciei a contenção de um inofensivo adolescente, que levava sua namorada a um show de rock em importante (e cara) casa de espetáculo, que somente teve o acesso autorizado após outra pessoa emprestar-lhe um casaco para cobrir as cores do time. Não se trata, pois, de ambiente que exige certo código de vestimenta, mas que autoriza quase todos os estilos, eventualmente exuberantes, exceto camisas de futebol. Isso tudo me faz lembrar de uma conversa com importantíssimo ex-jogador, a respeito do impacto das mídias sociais e da extrema exposição de jogadores atuais. Em poucas palavras, ele disse que, no seu tempo (o saudosismo é inevitável), só se pensava em jogar bola. Entre partida e outra, o atleta jogava bola. Na folga, mais bola. E quando se encerrava a carreira profissional, o jogo de bola mantinha-se como referência e estilo de vida. Atualmente, ele completou, o aspirante pretende tornar-se jogador - e aproveitar as vantagens da posição -, e não jogar. O evento futebolístico, não raro, atrapalharia as campanhas publicitárias, as manifestações midiáticas, os romances e outras atividades pessoais. Claro que se abordavam, na conversa, os poucos escolhidos, que atingem o olimpo, e não o jogador cotidiano, que corre, em curta carreira, pela comida que colocará na mesa da família. Há, sem dúvida, excessos nessas proposições. Talvez um ponto de indignação com as distâncias salariais, entre gerações. Mesmo assim, também há uma inquietante verdade: o mundo mudou e, com as mudanças, o futebol, no Brasil, mantém-se no terceiro mundo, em relação à adoção de técnicas de organização da empresa futebolística e de campeonatos (ainda não se viabilizou a liga de clubes, organizada pelos clubes), mas flerta com o primeiro mundo na ligação com seus torcedores-consumidores e com as técnicas de propaganda e marketing. Enquanto isso, o torcedor comum fica fora do estádio (ou arena) e não pode vestir-se, em certas situações, com a camisa de seu clube; mas poderá ostentar, com orgulho ou complexo de vira-lata, a camisa do Real, do Barcelona, do PSG ou de outro apropriador das esperanças brasileiras (na posição de colonizador da contemporaneidade). Parece, enfim, que há muita coisa fora da ordem, no estranho mundo novo que habitamos.
quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Fair play financeiro indutor das boas práticas

Voltou à ordem do dia recentemente o debate sobre a adoção do Fair Play financeiro pelo futebol brasileiro, motivado dessa vez por manifestações da classe dirigente, em especial de Presidentes dos clubes e da SAF que ocupam as primeiras colocações no atual Campeonato brasileiro (Brasileirão 2024). Sejam por questões meramente esportivas, em razão de resultados e rendimento, como também sob aspecto essencialmente financeiro, notadamente por uma contratação de grande impacto feita por um clube com reconhecida dificuldade financeira, o fato é que o tema, ao menos para os cartolas que vimos se manifestar, novamente ganha corpo e desperta a intenção para que lhe seja dado tratamento com vistas à implementação. É verdade que o Fair Play financeiro é um instituto de fácil adesão, dificilmente alguém será contra sua adoção. Porém, simpático que é, passível de armadilhas, principalmente se a discussão não ocorrer de forma densa, criteriosa, sobretudo no interesse de todo o ecossistema e não casuisticamente no atendimento de um ou outro grupo envolvido. A questão por óbvio é complexa e exige de início o entendimento sobre as definições e os formatos que se pretende adotar, merecendo atenção basicamente o espírito que irá nortear sua aplicação no futebol brasileiro, os conceitos práticos que serão adotados e os mecanismos de controle, observando-se para tanto a realidade atual da indústria futebolística brasileira, com suas recentes evoluções e as antigas mazelas. Quando se fala do espírito a ser empregado para o Fair Play, quer se dizer qual será o viés a ser empreendido, isto é, tratando da maior competitividade por exemplo ou mais essencialmente da questão financeira e contratual, diga-se orçamento e o cumprimento pontual das obrigações sob pena de restrição no acesso ao mercado de transferências. É difícil encontrar uma modelagem que contemple ambos objetivos, o Fay Play não trata propriamente de um processo para tentar igualar os competidores, o viés financeiro é o aspecto de maior relevância para definições normativas, em um cenário que demandará cautela e profundidade na análise da atual estrutura dos agentes do mercado e as suas possibilidades e obrigações, visando construir um modelo seguro, justo e sustentável. Entre os desafios, a coexistência num mesmo ambiente de agremiações com diferentes características, já que operam no mesmo ecossistema os clubes associativos, as SAFs e também algumas organizações multiclubes, cada qual com suas especificidades: como por exemplo sujeitar uma associação civil que honra todos compromissos em dia e não tem obrigação legal de distribuir dividendos, tão só em reinvestir-se, ao teto de gastos? Como disciplinar as diferenças contábeis em transferências interclubes do mesmo grupo econômico sem ofensa aos princípios do Fair Play que vier a ser adotado? De que forma restringir movimentações no mercado para devedores, se de fato for considerado que qualquer dívida exigível e inadimplida é razão suficiente para sancionamento? Enfim, a abordagem é ampla, o economista César Grafietti, consultor e especialista sobre o tema, já propôs bons modelos para a CBF, dirigentes estatutários e executivos de futebol. Outro importante pilar da possibilidade de sucesso da pretendida adoção do Fair Play será a definição de meios e formas de controle do seu cumprimento se implementado, ou seja, a quem caberá a fiscalização e o possível sancionamento, e também a atuação dos próprios agentes diretos (os competidores), consideradas as suas idiossincrasias e a falta de coesão e tenacidade que sempre apresentam nas poucas vezes que se cotizam pretendendo construir qualquer processo em nome e em favor do seu próprio mercado. Obviamente, a atribuição fiscalizatória deverá caber a quem organiza, vale dizer, para o futebol brasileiro e sua realidade atual seria a CBF, e aqui já se identifica um entrave na medida em que com atuação notadamente política, dificilmente se disponibilizaria para intervir na qualidade de controladora, até um contra senso às suas fontes de receita. No mundo ideal, uma liga organizadora das competições teria, para além do interesse, a legitimidade necessária para liderar a função, o que no caso do atual futebol brasileiro exigiria a adaptação para a realidade de duas ligas, algo também sensível posto que cada qual conta com sua fonte de receitas próprias, bastante distintas entre si. Enfim, é claro que não é ou será fácil! A questão é sobre o tema avançar, especialmente que ele vislumbre e busque uma equação que traga equilíbrio ao ecossistema, que tenha seu fundamento no cumprimento das diversas obrigações de pagar sem que ocorram atrasos ou calotes, uma vez que a intenção deve ser a formatação de um mercado que opere financeiramente de modo sustentável e responsável, o que por si só fortalecerá o negócio trazendo-lhe credibilidade e, via de consequência, mais dinheiro e resultado econômico, tornando-o assim cada vez mais bem visto e desejado pelos investidores. É recomendável portanto que seja mirado como objetivo o controle do endividamento, a partir do qual poderá ser solidificado o modelo, naturalmente passível de revisões e ajustes tempos após implantado. O Fair Play financeiro do futebol, nesta toada, induzirá os clubes à adoção das boas práticas, fazendo valorizar o mercado, como já mencionado. Orçamentação, mapeamento dos riscos, integridade. Cumprimento rigoroso de todos compromissos, conformidade às normas e regulamentos. Adoção de novas políticas, incidência da agenda ESG à rotina dos clubes. É necessário o entendimento que a adoção do Fair Play financeiro poderá, entre outros benefícios, contribuir decididamente para a consolidação das boas práticas de gestão pelos competidores, algo que trará no tempo ótimos frutos para o novo mercado futebolístico brasileiro que está sendo desenhado.
quarta-feira, 2 de outubro de 2024

SAF, Botafogo, São Paulo, Galo e Fluminense

Em um hipotético campeonato brasileiro com vinte sociedades anônimas do futebol, apenas uma será campeã e, na outra ponta, quatro cairão para a divisão inferior. Assim, a simples passagem de modelo clubístico ao de SAF não garante resultado ou título. São necessárias, ademais, soluções para seis perguntas: o que o time foi; o que é; o que pretende ser; como atingirá o propósito; com quem; e com quais recursos. Daí se extrai a seguinte proposição: SAF não é condição suficiente para o protagonismo no âmbito do futebol brasileiro contemporâneo. Mas esta proposição não pode ser isolada de outra, que lhe completa (em uma relação simbiótica complementar): apesar de não ser suficiente, a SAF passou a ser condição necessária. Isso também não quer dizer que todos os times, para que sejam viáveis, devam abandonar o clubismo. Alguns, não muitos, ainda resistirão, pois, em ambiente historicamente desigual, a redução da desigualdade não se alcança com passe de mágica - ou com o advento de uma lei. Decorre de processo, eventualmente estimulado, aí sim, por uma lei. De modo que a comodidade, oriunda do poder econômico-futebolístico, justifica (ou justificará) os exemplares inerciais.  Aliás, anos (ou décadas) atrás, em função da limitação das fontes de receitas, os hiatos entre grandes e pequenos times eram menos perceptíveis - talvez exceto pelo tamanho da torcida - e, por isso, viabilizavam a existência, em certo plano de igualdade, de clubes periféricos: Guarani, Ponte Preta, Portuguesa e Juventus, em São Paulo; Bangu e América, no Rio de Janeiro; dentre outros. Entre os chamados grandes, a situação gerava uma maior percepção de pertencimento a um seleto e inabalável grupo de elite, que se manteria em pedestal a despeito de eventuais (ou constantes) desmandos cartolariais - e de outras condutas inomináveis, que abalaram os alicerces de alguns desses times. Quando a Lei da SAF surgiu, em 2021, o cenário, historicamente romantizado - da mesma forma que uma certa elite intelectual insiste em romantizar a pobreza - dera lugar a um palco de dívidas e crises políticas, patrimoniais e financeiras. Surgia, então, uma nova e democrática alternativa, que não exigia o rompimento com o modelo formal existente, mas apontava para o futuro, com uma solução já para o presente. Não devia ser uma surpresa que os clubes integrantes da elite, ou, talvez, seus dirigentes e controladores, hesitassem - como alguns ainda hesitam -, logo no início, em mudar os rumos de suas histórias; assim como também não devia surpreender o fato de os clubes mais carentes em recursos ou em situação de crise aguda se aproveitarem da novidade para reconstruir suas trajetórias. Pois, em linha com o que vem sendo defendido nesta coluna há alguns anos, em especial a partir do surgimento da Lei da SAF, as forças do "novo" futebol brasileiro tendem a se expressar pelos times que tiveram (ou venham a ter) capacidade de atrair apoio intelectual, financeiro e relacional, e de empregar esse conjunto de coisas em prol de um projeto reabilitador, libertador e transformador. De modo simplista, e isolando algumas pouquíssimas exceções como o Palmeiras e, apesar da crise momentânea, o Flamengo, os demais clubes podem se dividir em dois grandes grupos (por motivos não necessariamente voluntários): um, que luta para afirmar que o passado pode ser maior do que o futuro (com as mesmas técnicas arcaicas daquele período glorioso); e, outro, que, sem romper ou negar o passado, a tradição e a relação com a torcida, projeta um caminho (ou, ao menos, um propósito) de novas tecnologias - e conquistas. A fase de quartas de finais da Libertadores, coincidentemente, ilustra bem a situação: dos enfrentamentos entre brasileiros, duas sociedades anônimas do futebol venceram duas associações sem fins econômicos, dentro e fora de campo. Poderia ter sido diferente? Sim, mas não foi. Os motivos de campo podem ser demonstrados com maior autoridade pelos jornalistas e comentaristas especializados; já os motivos exteriores se associam, em grande parte, às técnicas providenciadas pela Lei da SAF. O Botafogo, que trafegava com desenvoltura e persistência pela parte baixa da tabela (e pela série B), tornou-se, desde o segundo ano de modelagem empresarial, umas das forças do país, e conseguiu, mesmo com a quebra de expectativa do campeonato de 2023, manter a estrutura para voltar a brigar pelo título que deixou escapar - além de atingir uma posição histórica na mais importante competição do planeta, com exceção, ou não, da Champions League: a Libertadores da América. O Galo, por via diversa, passou a trilhar o caminho traçado por bem-sucedidos empresários locais sem, contudo, perder a essência esportiva e a identificação com a torcida. Mais: além de nova arena, introduziu técnicas de direito societário e instrumentos de mercado de capitais ao ambiente do futebol. Seu protagonismo, no cenário atual, é incontestável.   Ganhem ou não seus próximos confrontos - para o futebol brasileiro e para o país seria bom que ganhassem -, Botafogo e Galo expressam a ponta do iceberg que poderá se revelar, com a intensificação e afirmação do benfazejo ambiente introduzido pela Lei da SAF. Algo que deveria alertar barcos e navios que o circundam, para evitar catástrofes de natureza "titânica".  
quarta-feira, 25 de setembro de 2024

CVM, o IBESAF e o futebol

Em evento que ocorrerá amanhã, quinta-feira, 26, na sede da Comissão de Valores Mobiliários - CVM, no Rio de Janeiro, será lançado o IBESAF - Instituto Brasileiro de Estudos e Desenvolvimento da Sociedade Anônima do Futebol. O local do evento e o momento do lançamento são significativos. Antes da apresentação dos motivos, resgate-se, de modo resumido, a cronologia da SAF. O ponto de partida foi o PL 5.082/2016, de autoria do deputado Otavio Leite. Naquele momento, a própria ideia de um subtipo societário, no centro de um subsistema voltado à criação do mercado do futebol, parecia uma proposta imaterializável. Ninguém, ou quase ninguém, acreditava que progrediria. Pior: no meio dos debates de convencimento a respeito da pertinência da proposta surgiu a Lava Jato, que parou o País - e o processo legislativo. O tema voltou à pauta legislativa em 2019, com o aparecimento de modelo alternativo à SAF, apoiado na figura do clube-empresa, previsto desde a Lei Zico. Foi nesse mesmo ano que o Senador da República Rodrigo Pacheco, atual Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, apresentou novo projeto de SAF, o PL 5.516/2019, que se converteria, anos depois, na Lei da SAF. Antes, porém, novo e dramático evento dominou a pauta legislativa (e governamental): a pandemia. Durante o período pandêmico não havia espaço e clima para tratamento da crise futebolística. Ao cabo do período, o Senador Rodrigo Pacheco se revelou uma liderança nacional e um quadro indispensável da política brasileira, e foi alçado, em 2021, à presidência do Senado Federal e do Congresso Nacional. E, já como Presidente, anunciou ao País que trataria da via de criação do novo sistema do mercado do futebol brasileiro. Logo após assumir a presidência, ele nomeou o Senador Carlos Portinho para relatar o PL 5.516/2019 e, ao final do mesmo semestre, o projeto foi aprovado pelo Senado Federal sem nenhum voto contrário. O resto, todos que acompanham esta coluna já sabem: aprovação por maioria esmagadora na Câmara dos Deputados; sanção, com vetos, pelo Presidente da República; e, finalmente, derrubada parcial de tais vetos. Após o advento da Lei 14.193, de 6 de agosto de 2021, a Lei da SAF, alguns movimentos institucionais reafirmaram a importância do tema para o desenvolvimento, em sentido amplo, do País. Um deles, proveniente da CVM, consubstanciado no Parecer de Orientação CVM n. 41, de 21 de agosto de 2023, que pretende "orientar os investidores e participantes do mercado sobre a utilização de instrumentos viabilizadores do acesso ao mercado de capitais pelas SAF, assim como transmitir a visão da CVM a respeito de como a Lei da SAF, a Lei das Sociedades por Ações e a regulamentação já editada pela Autarquia podem ser integradas harmonicamente". Aliás, a autarquia, sob a presidência do Prof. João Pedro Nascimento, abriu suas portas, desde o advento da Lei da SAF, ao debate. Foi em sua sede que ocorreram a 1ª e a 2ª edições do Seminário Brasileiro sobre Futebol, a Lei da SAF e o Mercado de Capitais, nos anos de 2022 e 2023, que contaram com presenças marcantes de legisladores, reguladores, professores, banqueiros, gestores, professores, advogados, dirigentes de clubes e administradores de sociedades anônimas do futebol, dentre outras. Mais: esses eventos nortearam parte das necessárias discussões a respeito do acesso das sociedades anônimas do futebol ao mercado de capitais, bem como sobre as precauções relacionadas a uma atividade que, além de carente de recursos para emprego na produção de riquezas, sujeita-se, como nenhuma outra, a um elemento imponderável, que consiste na relação afetiva do eventual investidor com o objeto de investimento. Aliás, ao longo do caminho, iniciado em 2015/2016, com a apresentação do anteprojeto da SAF, no livro "Futebol, Mercado e Estado1", até a realização da 3ª edição do mencionado Seminário, ideias surgiram, muitas se fixaram, outras se perderam e algumas continuam no centro das preocupações dos agentes envolvidos com o processo. Esse caldo justifica a criação do IBESAF, que se propõe a ser um think tank, de natureza não governamental, voltado ao estudo e ao desenvolvimento da SAF e do mercado do futebol no Brasil. Em sua missão, destacam-se as preocupações com a segurança sistêmica e com o respeito às normas e aos princípios contidos na própria Lei da SAF, como em outros diplomas que, a partir desta lei, passaram a integrar o sistema da SAF. Daí a iniciativa de criação imediata, no âmbito do IBESAF, de dois comitês especiais, que serão anunciados no 3º Seminário, tendo um deles o propósito de arquitetar e divulgar um guia de orientação e de melhores práticas para realização de investimento em SAF. O evento e o lançamento, na sede da CVM, simbolizam, pois, o esforço, realizado por instituição públicas e privadas, para formação e simultânea regulação de um novo mercado, que poderá contribuir, de modo expressivo, para o desenvolvimento social e econômico da Nação. __________ 1 Castro, Rodrigo R. Monteiro de; Manssur, José Francisco C. Futebol, Mercado e Estado - Projeto de Recuperação, Estabilização e Desenvolvimento Sustentável do Futebol Brasileiro: Estrutura, Governo e Financiamento. São Paulo: Quartier Latin, 2016.
O Brasil e o mundo em geral enfrentam um fenômeno de complexa dimensão: a indústria das apostas. Não se trata de algo novo, ao contrário, mas a capilaridade, decorrente das novas tecnologias, fez surgir, ou intensificou, situações novas, que não se acomodarão (e resolverão) apenas no plano privado. Em outras palavras, os reflexos do impulsionamento da atividade de jogo, que se movimentou livremente no território nacional até que se iniciasse, no atual Governo, um processo de regulamentação, transbordaram para setores sensíveis, como o da saúde (sobretudo mental pública) e o da economia. Em primeiro lugar, as barreiras históricas para desenvolvimento da atividade e, em segundo, após a derrubada delas, a inovação legislativa, não regulamentada - e pior, ignorada pelos governos - propiciaram a criação de um cenário complexo e preocupante. Não apenas isso: uma relação de dependência que poderia ser ao menos antecipada e tratada.   Os números do setor, para começar, são impressionantes. Conforme informações da EBC1, a Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda recebeu, até determinada data, 113 pedidos de autorização, formulados por 108 entidades (ou empresas), para operar e explorar apostas de quotas fixa.   O número, em si, já seria expressivo, pois representa mais de 100 empresas em atuação e concorrendo em determinado setor, não fossem as exigências para formulação do pedido que envolvem, dentre outras, o pagamento de taxa de R$ 30 milhões, que vale para um período de 5 anos. Ou seja, exigência que gerará, especificamente, uma imediata e bilionária arrecadação e uma receita recorrente periódica, sem contar os tributos que serão arrecadados com o exercício da própria atividade. Outro número merece atenção: o mercado local já é estimado em mais de R$ 100 bilhões em 2023, conforme dados da XP2. Já há, aliás, segmentos que, de algum modo, dependem ou são intensamente impactados pela atuação direta das empresas de apostas, como o futebolístico. Apenas na série A do brasileirão, 15 clubes mantêm, como patrocinador principal, uma dessas empresas3. Além disso, também há debates e desconfortos nos planos social e econômico, externados na imprensa, pela alta adesão da população a jogos, como meio de solucionamento de crises financeiras ou de esperança de enriquecimento, e de desvio de recursos do comércio e outras finalidades, justamente para o setor de apostas. Trata-se, portanto, de um cenário que exigirá do atual Governo uma atuação enérgica, no sentido da adequada regulação, para evitar um problema sistêmico de grandes proporções - e, no pior dos cenários, uma crise inédita de confiabilidade. Ademais, no plano empresarial, ou melhor dizendo, societário, o que se deverá ver, como já se iniciou, é um movimento, mais ou menos intenso, de aquisições e concentração empresarial, local, regional ou nacional, do mercado. Veja-se, em tal sentido, que, conforme noticiado pelo Pipeline4, o Flutter, que seria o maior grupo de apostas do planeta, associou-se no Brasil ao NSX, assumindo o controle do negócio integrado, que ultrapassa, em valor de mercado, a casa do bilhão de dólares. Sabe-se, ainda, que outras operações estariam em curso e que poderiam, consequentemente, gerar novas concentrações, entre empresas locais, apenas, ou entre empresas nacionais e internacionais, a exemplo do caso mencionado acima. Um aspecto que poderia (ou deveria) ser considerado, como fator estimulante ou não, de tais negócios, consiste no risco oriundo do eventual custo regulatório futuro, a ser promovido para ajustar o mercado e evitar as distorções próprias da novidade. Esse risco tende a ser minimizado quando um determinado negócio se opera entre agentes do mesmo mercado, que já o conhecem - ou deveriam conhecer - e o integram em seu cálculo empresarial; mas haverá de ser considerado quando um dos agentes pretende se inserir no mercado, como investidor, assumindo ou não o controle empresarial. Enfim, o mercado de apostas reguladas ainda é incipiente, mas já movimenta cifra expressiva, em torno de 1% do PIB5, com tendência de alta; já provocou, no plano social, um abalo comportamental perigoso; e deverá estimular, no âmbito empresarial, uma série de atos de concentração, com reflexos no mercado consumidor. Movimentos populistas e oportunistas bravejam soluções drásticas, como proibição de atividade, que seriam inócuas e inviabilizariam ações direcionadas ao tratamento do problema; mas o Governo, e as próprias entidades participantes do setor, com base em política pública inequívoca, deveriam rever e propor ações regulatórias e autorregulatórias voltadas à construção de um ambiente efetivamente respeitoso e preocupado com o consumidor e a população. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 16 de setembro de 2024. 2 Disponível aqui. Acesso em 16 de setembro de 2024. 3 Disponível aqui. Acesso em 16 de setembro de 2024. 4 Disponível aqui. Acesso em 16 de setembro de 2024. 5 Disponível aqui. Acesso em 16 de setembro de 2024.
quarta-feira, 11 de setembro de 2024

A Lei da SAF e o ensaio contra a cegueira

A Lei da SAF (lei 14.193, de 6 de agosto de 2021), de autoria do Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, trouxe mais do que uma nova perspectiva ao país; ela revelou o caminho para que o futebol cumpra funções que irão além do drama esportivo - e da alegria, evidentemente. Deixarei de lado, apenas neste texto, as outras funções, para concentrar a atenção na mais evidente (e, para muitos, não sem razão, também a principal): a passional. Pois, sim, a paixão explica (ou deveria explicar) a atração sobre quase 5 bilhões de pessoas. Quando se projeta esse sentimento para o microambiente brasileiro da SAF, ele revela a cegueira, ainda dominante, em parte relevante da sociedade, instruída ou não. Tem sido comum, neste sentido, o debate sobre o papel da SAF e, a partir daí, o esforço, em suas distintas variações, de desqualificação do movimento de resgate e reconstrução que se opera em diversos times. Ao final do ano passado, por exemplo, após a inexplicável recaída do Botafogo, que lhe tirou o título de campeão brasileiro, mesmo tendo ele garantido uma vaga na Libertadores da América - algo que não alcançava desde 2017 -, era comum se ouvir ou ler que a SAF fracassara. Isto, lembre-se, menos de 3 anos após o time voltar da segunda divisão e, tão ou mais relevante, de a entrada de seu investidor ter ocorrido apenas em 2022. Agora, novamente no topo do campeonato brasileiro, além da torcida velada para que o Botafogo caia novamente - e não seja a primeira SAF campeã da história -, os tiros se projetam sobre os recursos aplicados pelo investidor para montagem do elenco. Aliás, aí está uma característica que diferencia a SAF de um clube, ao menos da maioria deles: a possibilidade de financiamento de suas atividades, por distintos meios. Isso sempre foi dito, desde os primórdios do debate sobre a Lei da SAF, que o novo subtipo societário ofereceria caminhos que, quando bem trilhados, colocariam as sociedades anônimas do futebol em um outro patamar. A beleza do sistema consiste no fato de que todo e qualquer clube, em tese, pode escolher o seu destino. Inclusive mantendo-se onde está e da forma que está, em detrimento da SAF. Mas não custa lembrar: ano passado também houve quem afirmasse que a SAF do Bahia teria fracassado. Aqui se afirmou, em contraposição, que se tratava apenas do ano de reconhecimento; logo se veria o resultado de um projeto, com financiamentos talvez ilimitados, a contribuir para reformulação dos centros de força do futebol local. Mesmo que não ganhe o campeonato este ano - e não ganhará - ou no próximo, o Bahia dificilmente deixará de ser um time de elite e se afastará da luta pela ponta. Outra incompreensão envolve o Cruzeiro. A saída do Ronaldo precipitou mais uma leva de críticas, como se simbolizasse a vitória do capitalista sobre a paixão torcedora. Nada mais incorreto. Em uma empresa em crise, e isso vale para um time em crise quase terminal, os estágios de recuperação costumam atrair pessoas ou investidores com diferentes tipos de perfil e apetite a risco. Ronaldo fez o trabalho mais complexo, ao entrar em uma estrutura corroída e iniciar o processo de revitalização. Seu sucesso reconduziu o time a um patamar ainda baixo para a história do Cruzeiro, mas elevadíssimo para o que era no momento de sua entrada. E, aí, para o próximo passo, precisaria de mais dinheiro. E preferiu passar o bastão para um bilionário, com fluxo para sustentar as demandas de ressignificação e reposicionamento. Ganham todos no processo, inclusive o próprio Ronaldo, única pessoa que aceitou correr o risco que, até então, ninguém cogitara - e, sem ele, o time talvez ainda estivesse na segunda divisão. Ou na terceira.   Mesmo o Vasco, que vem sendo apresentado como caso de insucesso, não apenas subiu para primeira divisão como, no meio de uma batalha jurídica pelo controle da SAF, ainda se mantém na parte de cima da tabela. E ainda haveria outros casos para falar, como o Galo, que fez a sua SAF e, com a nova arena e uma possível abertura de capital no futuro (apenas intuição), deverá se afirmar como uma das grandes potências do continente. Além de outros que vêm sendo efetivamente preparados para grandes passos, como Athletico Paranaense e Fortaleza, e os que são especulados na imprensa, como o Fluminense. Tantos e bons exemplos, em apenas 3 anos de vigência da Lei da SAF, que ainda está em processo de amadurecimento - e será cada vez mais útil, no tempo, para os times que a adotaram -, deveriam abrir os olhos dos críticos e dos torcedores que ainda acham que são donos de seus times, pelo fato de serem comandados por clubes associativos que ostentam alguns poucos milhares de associados patrimoniais e um presidente eleito pelos mesmos associados, e não pelos próprios torcedores. E deveriam abrir os olhos de tais associados e de seus presidentes, pois, se não o fizerem, poderão perder o bonde da história.
Desde o advento da Lei da SAF (lei 14.193, de 6 de agosto de 2021), de autoria do Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, mais de 70 sociedades anônimas do futebol foram constituídas e outras logo serão anunciadas. O movimento não parará na próxima leva ou na outra (ou ainda na seguinte). A SAF, forma societária concebida para organizar a atividade futebolística, foi inserida e absorvida pelo sistema, e, nele, contribuirá para a ressignificação da importância do futebol, em seus diversos planos (esportivo, educacional, social e econômico). Trata-se, pois, de um fato da realidade, que já faz parte da vida do atleta, do torcedor, do jornalista e dos demais agentes que, por qualquer motivo, gravitam ao redor do futebol. Daí a importância de se promover uma constante avaliação do microssistema em que o mercado do futebol se insere e, se e quando houver necessidade, nele inserir mecanismos que, a um só tempo, incentivem seu desenvolvimento e reforcem a segurança jurídica sistêmica. O ambiente inglês pode servir como uma das referências. Origem do pensamento liberal clássico e das políticas expansionistas que propagaram ideais de liberdade e prosperidade, pelo livre comércio e eliminação de barreiras à circulação de pessoas e mercadorias, a Inglaterra, talvez coerente com a sua tradição, não criou, ao contrário de outros países (como Portugal, Espanha, Itália e Alemanha), leis específicas ou tipos societários para atração de investimentos no ambiente do futebol. Basicamente, a entrada no país, para realização de investimentos no setor do futebol, segue, no plano legislativo ou regulatório, a normatização aplicável a quaisquer atividades. O interesse global no mercado inglês se expressa pelo número de investidores estrangeiros que compõem o bloco de controle de times integrantes da Premier League: 16, dentre 20 competidores. Este número se revela ainda mais impressionante quando comparado à quantidade, por exemplo, de times alemães controlados por investidores estrangeiros: apenas 1[1]. O sucesso da Premier League talvez indicasse o conformismo com o modelo e a aposta no libertarismo. Não é assim, porém, que as coisas acontecem; e não é por aí que os debates atuais se intensificam. Na ausência de leis ou regulamentos específicos, a Premier League adota, por via de autorregulação, dentre outros mecanismos, o Owner's and Director's Test (OADT), que tem como propósito assegurar que a pessoa que detenha participação em um time (ou o administre), acima de determinado percentual, ateste o preenchimento de padrões, sem os quais não estará habilitada à consumação de uma aquisição (ou à posição de administradora). Tais padrões envolvem, dentre outros aspectos: (i) requerimento de confirmação de enquadramento, que se renova periodicamente; (ii) critérios de elegibilidade; e (iii) transparência. Com eles se pretende afirmar e reforçar a integridade e a reputação da liga e dos times que a integram. Um tal movimento autorregulatório não seria viável no Brasil, ao menos por enquanto, pela inexistência de uma liga de clubes, semelhante à Premier League, constituída pelos próprios clubes (e sociedades anônimas do futebol) para organizar, autorregular, desenvolver, exportar e transformar a principal competição nacional em um dos mais valiosos produtos de consumo interno e de exportação do país. Isso não significa que movimentos de proteção do ambiente e do mercado do futebol somente possam ocorrer a partir da tão aguardada criação da liga (que se viabilizaria com a unificação, sob alguma forma, da LFU e da Libra). Ao contrário. Mesmo na Inglaterra e com as normas internas da Premier League, debate-se, atualmente, a extensão de um movimento legislativo protetivo da história e da cultura do futebol - e, consequentemente, de seu mercado -, conforme se extrai, aliás, das palavras de seu maior representante, o Rei: "In his address to Parliament in early November 2023, King Charles III made a brief acknowledgment that 'legislation will be brought forward to safeguard the future of football clubs for the benefit of communities and fans'. The UK Government later confirmed that such safeguarding would be the responsibility of an Independent Football Regulator (IFR)".[2] O Brasil deu um passo extraordinário com o advento da Lei da SAF e outras iniciativas que se seguiram, como a publicação do Parecer de Orientação n. 41, de 21 de agosto de 2023, pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM. Em alguns aspectos, portanto, o incipiente modelo brasileiro está adiante dos demais e pode ser considerado o mais sofisticado do planeta. Mas ainda lhe falta realizar certos movimentos que o elevarão a um padrão sem precedente e comparação, e o afirmarão como instrumento de criação do maior mercado do planeta. Nesse sentido, e especialmente porque ainda não há 16 investidores (locais ou estrangeiros) controlando os times da primeira divisão, já é hora de se promover debate semelhante ao inglês, a respeito de critérios ou padrões de operações envolvendo SAF ou seus investidores, e, eventualmente, sobre a concepção de uma agência ou entidade de outra natureza, que contribua para higidez do sistema e consequente segurança social (e jurídica). É o que se fará, com frequência, neste espaço. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 03 de setembro de 2024. 2 Disponível aqui. Acesso em 03 de setembro de 2024.
quarta-feira, 28 de agosto de 2024

A Câmara dos Deputados poderá fazer um golaço

Apesar da ausência de uma política de Estado a respeito do futebol, atividade que poderia (ou deveria) ser o maior soft power do país, o Congresso Nacional, por iniciativa própria, vem assumindo, nos últimos anos, o protagonismo e, como consequência, entregando à Nação uma perspectiva transformadora, nos planos esportivo, econômico e social. Os resultados, que por enquanto se revelam sob a forma de um cume no horizonte, breve, muito brevemente, se abrirão como uma sólida e majestosa formação rochosa. A mencionada perspectiva partiu da iniciativa e do esforço do Senador da República e Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), consubstanciada no Projeto de Lei nº 5.516/2019 ("PL 5.516"), que soube, mesmo durante períodos tumultuados da história do país e do planeta (que envolveram, dentre outros, o poente da tensão lava-jatista e todo o drama pandêmico), dialogar e construir a Lei da SAF (ou Lei Rodrigo Pacheco), ponto de partida da transformação que se observa no ambiente futebolístico brasileiro. Num ambiente democrático, resultados como o operado pela Lei da SAF se devem, mesmo quando se identifica a autoria originária de algum parlamentar, à convergência de ideias, e, daí, à atuação de outros agentes. No plano do Senado Federal, quem acompanhou o trâmite do PL 5.516 deve lembrar da essencial e enérgica atuação do Senador Carlos Portinho (PL/RJ), indicado pelo Presidente Rodrigo Pacheco para relatoria do PL 5.516, durante o processo de debates públicos e de apreciação do projeto no âmbito da Casa. A iniciativa legislativa do tema teve origem, como se sabe, no próprio Senado Federal e, sobre ele, as luzes se projetaram com maior intensidade. Mas a tramitação na Câmara dos Deputados também deve ser enaltecida pois, lá, o processamento foi dinâmico e viabilizou a rapidíssima aprovação e posterior encaminhamento para sanção presidencial. Não por acaso. Coube ao Deputado Federal Fred Costa (PRD/MG) a relatoria e a articulação, em 2021, do então PL 5.516, que foi seguido por nada mais nada menos do que 429 Deputados Federais, e apenas 7 votos contrários.   Talvez não se saiba - inclusive no ambiente do futebol -, que a atuação do parlamentar Fred Costa, em benefício do esporte, não parou por aí. Ele teve uma participação fundamental, anos depois, em 2024, na defesa do sistema do futebol, por ocasião da reforma tributária. O tema, que surgiu mais uma vez no Senado Federal, sob a presidência do Senador Rodrigo Pacheco, elegia a atividade futebolística exercida por SAF como uma das que poderiam gozar de regime tributário especial e, assim, viabilizava a manutenção, com ajustes, do regime de tributação específica do futebol ("TEF"), previsto na Lei da SAF. O TEF, é sempre bom enfatizar, além de não impor qualquer espécie de renúncia fiscal (pois as receitas que o englobarão não integravam orçamentos públicos), viabiliza a existência do novo sistema (e do novo mercado) do futebol, que está em formação. Além disso, estimulará a expansão de relações jurídicas e econômicas que não apenas atrairão à incidência da norma tributária, como contribuirão para o desenvolvimento social e econômico (e, portanto, de modo sadio, para o aumento de riquezas e sua consequente distribuição). Além do reconhecimento da importância do tema na Câmara dos Deputados, sob a liderança do Presidente Arthur Lira (PP/AL), a atuação do Deputado Fred Costa, enaltecida em artigo publicado nesta coluna1, foi essencial para o adequado (e necessário) desfecho. Eis que, agora, a bola está novamente rolando na Câmara dos Deputados. Explica-se.  O Senado Federal aprovou, em 24.05.2024, uma proposta de reforma da Lei da SAF, de autoria do próprio Presidente Rodrigo Pacheco. A reforma tem como propósito aparar algumas arestas provenientes do processo legislativo original (que deu origem à Lei da SAF) e, com base na experiência acumulada desde o surgimento da lei, promover cirúrgicos ajustes que reforçarão a segurança jurídica do modelo. Após nova aprovação por unanimidade no Senado Federal, o projeto 2.978/2023 foi remetido para a Câmara dos Deputados onde, mais uma vez, a Casa poderá deixar sua marca histórica. O avanço da iniciativa e a sua consumação, com a necessária aprovação, implicarão, no plano figurativo, um golaço, para que o Brasil possa se manter no trilho do protagonismo mundial da maior atividade planetária, e que pode estimular a inserção das gentes desfavorecidas e o desenvolvimento social e econômico da Nação (além, evidentemente, do futebolístico). Afinal, desde o advento da Lei da SAF, já se constituíram mais de 70 destas sociedades e muitas outras estão por vir; inclusive, dentre as já constituídas, o Galo e o Cruzeiro, e, a caminho, como se noticia, o América (os três em atuação no Estado de origem do Senador Rodrigo Pacheco e do Deputado Federal Fred Costa). __________ 1 Disponível aqui.
quarta-feira, 21 de agosto de 2024

O Estado brasileiro insiste em ignorar o futebol

O diplomata (e outras coisas mais) norte-americano Henry Kissinger escreveu, em livro essencial para compreender a geopolítica contemporânea, que "[o] sistema político determina diretivas mas a execução é deixada, em grau ainda maior, para burocracias separadas tanto do processo político como do público, cujo único controle são as eleições periódicas, se tanto. Mesmo nos Estados Unidos, decisões legislativas importantes muitas vezes compreendem milhares de páginas que, para pôr em termos brandos, apenas pouquíssimos legisladores leram detalhadamente"1. Escancara-se, nessa passagem, o problema da representatividade nas democracias contemporâneas e, de maneira explícita, a dificuldade de implementação de políticas, a partir de uma decisão emanada de poder constituído (decisão que não necessariamente estará associada a um interesse coletivo, apesar de sua legalidade formal). Quisera, em relação à (inexistente) política pública voltada à formação do mercado do futebol, no Brasil, que o problema fosse de tal natureza. Não houve ainda um governo que compreendesse a magnitude que o tal mercado poderia - e pode - alcançar e, daí, os reflexos sociais e econômicos benfazejos que seriam gerados à Nação e sua população. Não houve - e não há - política de estado, tampouco uma política de governo; mesmo que, neste último caso, tal plano governamental se sobrepusesse ou ignorasse uma hipotética política estatal. Ao contrário, o cenário evidencia histórico desprezo, alternado por movimentações oportunistas ou populistas, em anos eleitorais ou de grandes eventos esportivos; desprezo que não se atribui a um ou outro Chefe, mas a todos, com maior ou menor intensidade (e responsabilidade). Não à toa a imagem do futebol ter decaído da posição de orgulho e identidade nacionais (cujo ápice posicional se deu no regime militar, que a manipulou em favor da manutenção do sistema que representava) para uma espécie de terra arrasada, malvista internacional e, em parte, também nacionalmente. Mais do que imagem: a relevância objetiva, em dois de seus pilares de sustentação, quais sejam, esportivo e econômico, também se esvai. Restaria a social, proclamada pelo povo, que ainda aposta no esporte como única forma de inserção e desenvolvimento - e, mesmo assim, sem eco nas esferas governamentais. Aliás, a história do país farta-se em apresentar eventos entreguistas, muitos pela sua própria origem e incapacidade de reação econômica à invasão colonialista, mas, outros, muitos outros, pela apropriação patrimonialista que marcou (e marca) o processo político local, inclusive - e especialmente - pós independência e instauração da República. É essa apropriação, e não mais a posição de colônia, que justifica o atual estado de coisas no ambiente futebolístico. Importa lembrar que, apesar do descaso de governantes anteriores, talvez não houvesse, até o crepúsculo deste século XXI, ambiente institucional, local e internacional, para um movimento estrutural, afinal: (i) o Brasil ainda se afirmava como Estado Democrático, após décadas de militarismo; (ii) seus mercados financeiro e de capitais se organizavam em compasso com a abertura da economia; (iii) não havia liquidez nos mercados globais (comparativamente ao que se revela nos tempos atuais); e (iv) o próprio futebol ainda não se posicionara como um negócio, local e globalmente. Todos esses elementos foram sendo espontaneamente (ou não) reorganizados para formar uma certa convergência e, assim, viabilizar o que poderia - e ainda pode - ser, como se vem afirmando nesta coluna, o maior mercado de futebol do planeta e operar, sem ufanismo, como o principal soft power do país. E se soma a esse cenário (quase ideal) a iniciativa do Senador da República e atual Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, consubstanciada na Lei 14.193, de 6 de agosto de 2021, conhecida como Lei da SAF que, em apenas três anos, iniciou uma profunda transformação na forma de organização, manejo e financiamento do futebol; a qual provocou ações extraordinárias (mas igualmente isoladas), como o Parecer de Orientação CVM n. 41, de 21 de agosto de 2023, sob a presidência do Prof. João Pedro Nascimento. A luz que surgiu, a partir da Lei da SAF - e que poderá se intensificar com (i) a absolutamente necessária formação de uma liga de clubes (e sociedades anônimas do futebol), dirigida no interesse dos times, dos torcedores e demais agentes que formarão seu sistema e (ii) o debate e encaminhamento da abertura de capital da CBF -, deveria permitir que o Governo enxergasse a oportunidade que lhe é apresentada, e, a partir do que já se vem construindo, pensar o futebol não apenas como um tema importante dentre os menos importantes, ou como tema de conversa de bar, mas com a importância que tem ou deveria ter (assim como os principais países desenvolvidos mantêm com os seus esportes mais relevantes e, se tivessem a perspectiva do futebol, o utilizariam como instrumento de inserção, desenvolvimento e dominação). Nenhum outro governo, como o atual, foi agraciado com um estado de coisas que lhe permitisse, com uns passes para cá, outros para lá, fazer um gol histórico, mediante a organização do sistema que pensará e estruturará, de modo perene e sustentável, a mais global das atividades humanas.   Basta aproveitar o momento e colocar a bola para dentro. __________ 1 Kissinger, Henry. Sobre a China; tradução Cássio de Arantes Leite. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 200.
Nenhum governo, de esquerda à direita, passando pelo centro, tratou o futebol como um tema realmente transformador, nos planos social e econômico. Tampouco sob a perspectiva da evolução esportiva, que, em conjunto com os aspectos anteriores, resultariam na construção de necessário programa afirmativo de softpower nacional. A indiferença governamental (ou as indiferenças governamentais), identificada na ausência de políticas de Estado centradas no ou voltadas ao tema (assim como existe em países desenvolvidos), justifica, não exclusivamente, a crise dos clubes de futebol e da seleção brasileira de futebol. Em outras palavras, a indiferença, que marcou todos os governos em todos os tempos (exceto como forma de afirmação de regimes ditatoriais ou populistas), autoriza e incentiva, sob o manto da autonomia organizativa de natureza constitucional, a apropriação do futebol pelo cartolariado. E, daí, a ocorrência de crises inaceitáveis, pois não decorrentes de diminuição de demanda ou do surgimento de novos concorrentes (porque o torcedor será sempre um consumidor potencial e não suscetível à propaganda alheia). Não se pretende, muito ao contrário, que o Estado interfira na organização futebolística. Mas, por outro lado, também não se compreende - e nem mesmo parece aceitável - que, dada a relação sui generis da população (e do torcedor) com times e seleção, se aceite, como parte da cultura, a histórica apropriação patrimonialista de algo, tangível e intangível, que não pertence ao apropriador. Essa proposição se amplifica no plano da seleção brasileira, que integra, de fato e de direito, o patrimônio de uma associação sem fins econômicos, a CBF, cujo poder interno deriva da orquestração de interesses de 27 federações estaduais (apesar de clubes de séries A e B também disporem de votos, seus interesses, mesmo unificados, não bastam para se sobrepor à vontade federativa). Ao cabo, a dominação se concentra, conforme a pragmática revela, em uma pessoa (ou em mais algumas que gravitam ao seu redor), e essa única pessoa (seja ela quem for) define, sem qualquer participação ou preocupação com a sociedade, os caminhos e os destinos da paixão popular (aliás, como se a associação representasse a própria vontade popular), sem conseguir criar empatia ou simpatia. Lembre-se, ademais: no âmbito da atuação confederativa, ou como fundamento de sua existência, a CBF: utiliza o nome e a as cores do país; seu principal produto, a seleção, se apresenta em representação do país e do povo; e ela ainda adota o hino nacional, como seu. Tudo para que o próprio povo - sem falar em potenciais torcedores internacionais - se vincule a ela e ao seu produto. Talvez se diga que essa apropriação integra a lógica esportiva mundial, e não envolve, pois, uma situação excepcional, da qual a estrutura brasileira, e somente ela, se beneficiasse. Talvez.  Mas isso não significa que, diante de uma nova perspectiva organizacional, o modelo não possa evoluir, para melhor, e em benefício coletivo (aí incluídos os grupos de interesses listados nos textos anteriores, como a própria CBF, federações, clubes, sociedades anônimas do futebol, mercado e o país). E, tão ou mais importante: para interromper e reverter o desnecessário processo de corrosão da relação torcida/seleção e impedir que um bem (ou ativo), que deveria contribuir para o desenvolvimento coletivo, se acomode como símbolo de incompetência e obsoletismo. A evolução, como se demonstra na presente série, se apresenta sob a forma de abertura de capital da CBF, movimento que beneficiará o país, em vários sentidos. A começar pelo ingresso de recursos na CBF S.A., em federações e clubes (e sociedades anônimas do futebol), que os aplicarão em suas atividades e, assim, gerarão negócios, empregos e renda. Ainda, como resultado do surgimento de uma companhia listada em bolsa, sujeita a sofisticados padrões de governação e divulgação de informações, novos negócios ou produtos se desenvolverão, inclusive no âmbito do mercado de capitais, fazendo a roda econômica e social girar com maior intensidade. Essa estrutura, reforçadora (e investidora) das qualidades esportivas, funcionará como embaixadora do país (no exterior), oferecendo e vendendo os atributos e os sonhos locais. Há mais, ainda: em função da passagem ao modelo empresarial, que, como em outras empresas, fará incidir a norma tributária sobre negócios da CBF S.A., será inaugurada a sua participação e contribuição para aumento da arrecadação pública - com a possibilidade de destinação de recursos para fomento dos setores educacionais e esportivos - como já se sujeitam, no Brasil, as sociedades anônimas do futebol (SAF's), que, desde o advento da Lei da SAF, recolhem tributos com base em suas receitas mensais.   E não é só: também viabilizará o debate e a instituição de royalties, pela utilização dos símbolos nacionais, e a aplicação da arrecadação igualmente em projetos educacionais e esportivos. Enfim, por qualquer ângulo que se olhe o projeto de abertura de capital, inclusive e em especial o do Estado - e sem que isso pressuponha ou justifique intervenção estatal -, os benefícios, de todas as naturezas (sobretudo sociais, econômicos e esportivos), se evidenciam e deveriam, portanto, ao menos atrair a curiosidade dos governantes (sobretudo os atuais) e unir o país (federações, clubes, sociedades anônimas do futebol, torcedores, imprensa, investidores, financiadores e governo) em torno de um programa ou de uma agenda comum.
O projeto de reorganização e ressignificação da CBF, que vem tomando conta desta coluna, envolve mais um aspecto fundamental, raramente lembrado (ou tratado) de modo efetivo e fora do plano da demagogia no futebol: O interesse social.  Preocupações com a sociedade alimentam narrativas em outros campos, como o político, e justificam a existência de correntes ou de pessoas que simbolizam esperança, inserção e desenvolvimento (e, também, continuidade de movimentos acertados, sobretudo inclusivos).  Talvez toda atividade humana, exercida profissionalmente, carregue, ao menos implicitamente ou ainda de maneira não latente, aquela característica (auto) questionadora, necessária para o seu próprio desenvolvimento; com algumas exceções.  A excepcionalidade, residente no futebol, decorre, de um lado, de sua estrutura monopolística paraestatal (de amplitude global), e, de outro, da relação de transcendência estabelecida entre o torcedor e seu time ou sua seleção.  Sim, pois, no plano da torcida, as diferenças de qualquer natureza se dissipam (ao menos ou apenas durante o ato de torcer) e, enquanto se torce, opera-se uma espécie de bloqueio físico e metafísico, de modo que, naquele momento, nada, além do evento futebolístico, importa (aí incluídas as mais intensas atividades e relações humanas, como familiares, de amizade e políticas).  Tal característica viabilizou a apropriação da relação clubística (e, consequentemente, do patrimônio clubístico) por pequenos e nada representativos grupos de interesse, que agem, na maioria das vezes, conforme interesses próprios e dos próprios grupos de sustentação, a partir da manipulação do time e respectivos torcedores.  Em outras palavras: A paixão foi sequestrada e utilizada como um (quase) intransponível muro que impede questionamentos sobre a dominação e os propósitos do clube e do futebol. Daí, no caso brasileiro, a profunda crise esportiva, evidenciada na pequena relevância que os times locais passaram a ter no plano mundial.  O mesmo cenário, e com maior intensidade, se reproduz na entidade de administração do futebol, a CBF, que consiste, sob o prisma de mercado, num monopólio, não natural, derivado de autorregulação, transnacional e paraestatal. A confortável posição monopolística, manejada, historicamente, por sobreviventes (e manipuladores) do processo político associativo, contribuiu para a construção de uma relação insensível com o torcedor, motivo único, aliás, da existência do monopólio.  O caminho de salvação do rendimento esportivo passa, assim e necessariamente, pela reaproximação do povo; não sob a forma de narrativas fantasiosas e marqueteiras, dentro de um modelo esgotado, mas pela construção jurídica de via participativa, que seja, ao mesmo tempo, viável economicamente.  É aí que o projeto de reorganização e ressignificação da CBF pode atender, além das legítimas demandas de federações, clubes, sociedades anônimas do futebol, investidores, financiadores e estado, também do torcedor (logo, da sociedade em geral).  Pois, conforme modelo proposto, a abertura de capital pressuporá a oferta de parte das ações ao torcedor, que poderá, ao se tornar proprietário de ações, participar (por via do voto em assembleia geral, se assim desejar), pela primeira vez na história, das deliberações da entidade proprietária da seleção brasileira, a CBF S.A., e, dela, sentir-se dono - sem contar os recursos que serão vertidos aos clubes e sociedades anônimas do futebol, paixões primárias dos torcedores em geral.  E não é só.  A planificação do esporte no país e o planejamento do emprego de recursos que jorrarão na companhia proprietária de um dos maiores "ativos" do planeta, a seleção brasileira, viabilizarão o resgate de uma outrora justificada paixão, que deveria contribuir para a formação: De pujante indústria futebolística; Da identidade nacional; e Do mais importante softpower do país - que interessam à sociedade.  Isso tudo, por fim, ainda contribuirá para geração e distribuição de riquezas, aumento de arrecadação, destinação de recursos para projetos esportivos e educacionais e criação de empregos; e, muito importante: Sem aumento de despesas públicas ou de tributos. 
quarta-feira, 3 de julho de 2024

A trilha da governança nos clubes de futebol

No último "par de anos", o futebol brasileiro se beneficiou da profusão de inovações legislativas que tem contribuído com sua ressignificação, como a Lei da SAF, a alteração do modelo das transmissões, e mais recentemente a lei de regulamentação das apostas esportivas, essa última com grande incidência sobre os clubes de futebol através dos contratos de patrocínio. A indústria vai assim se aperfeiçoando com o fortalecimento dos clubes e a aplicação de novas formas de gestão profissional, saltando aos olhos do mercado a impressão de uma dinâmica exitosa quanto à estruturação interna e desenvolvimento, situação para alguns clubes comprovada mas que para tantos outros é uma realidade ainda muito distante. Passa muitas vezes despercebido o fato de que o propalado profissionalismo do futebol brasileiro na quase totalidade dos casos se restringe à excelência dos departamentos de futebol dos clubes, especificamente as suas áreas técnicas, de saúde, de logística, de comunicações, entre outras correlatas, além da adoção de sistemas mais avançados para o controle dos seus departamentos de contas a pagar e receber. Mas e a jornada da governança propriamente dita, a quantas anda? A resposta é: ainda incipiente, é verdade, em boa parte dos clubes, mormente os associativos... Mesmo diante de toda essa recente evolução da indústria futebolística, a maior parte dos clubes ainda enfrenta grandes desafios para implementar uma governança eficaz. Na forma de associações civis ou sociedades anônimas, cada vez mais os clubes buscam se conduzir empresarialmente, seja por vontade ou só pelo dever legal: objetivamente, em se tratando de organizações esportivas com faturamento de dezenas ou centenas de milhões, é certo que suas chances de sucesso cada vez mais dependerão do modo como gerenciam os seus riscos e governam suas operações, algo que no panorama geral dos clubes aparenta ainda uma baixa maturidade. O enfrentamento desse cenário, em face da irreversível transformação da cadeia do "negócio futebol", é imperioso, e não existe projeto eficaz para o desenho e implantação de uma governança robusta sem que haja o comprometimento irrestrito da alta cúpula, circunstância que evidencia em grande parte a dificuldade para que possa ser trilhado pelas associações e também pelas SAF, quanto às últimas, além do quanto as regras da legislação de regência já lhes impõe diretamente.   Essa dificuldade enorme da alta administração clubística em assimilar os conceitos e reconhecer a necessidade de uma boa, efetiva e organizada governação, muito além tão somente de questões sociais, culturais e políticas dos próprios clubes, é caracterizada pelo velho reducionismo de costume e a forma como se desenvolve o futebol brasileiro em geral, invariavelmente calcado no improviso e na crença quanto à acomodação natural das coisas, somado à avidez pelos ganhos financeiros e esportivos que apenas acentuam as individualidades, relegando assim quaisquer planejadores apenas à teoria! Há muito o que fazer, seja no âmbito interno de cada agente (associação ou SAF), como também dentro do ecossistema e de suas relações; claro que se tem notícia de alguns atores dentro do segmento, em maior ou menor intensidade, já trilhando a jornada da governança, para a qual é exigida bastante tenacidade, a qual demanda o envolvimento de toda organização e o comprometimento efetivo da sua direção, além de estratégia e disponibilização de tempo, não só para o desenho de seu arcabouço mas especialmente para sua correta implantação, a ser continuadamente revista e aperfeiçoada a fim de alcançar os diversos estágios de maturação e efetividade. Os clubes e as disputas, que juntos compõem a razão existencial do mercado, conduzem suas atividades em franca exposição a riscos diversos de natureza esportiva, financeira, reputacional, entre outros. Torna-se premente assim que sejam mapeados, debatidos e classificados, com a adoção de estratégias para sua mitigação; para as entidades que contam e/ou se valem  de provedores ou "mecenatos", a assunção de políticas claras de transação com partes relacionadas visando minimizar os conflitos de interesses. De igual importância para uma jornada exitosa, a instituição e monitoramento de canais de denúncia, para muito além de tímidas e ineficazes ouvidorias ou balcões de reclamação. Por outro lado, a aderência às legislações próprias e o contínuo aprimoramento da instituição em face das normas, regulamentos e resoluções, requer o monitoramento dos controles internos e o cumprimento de boas práticas para elevação permanente do grau de conformidade e satisfatória governança com os órgãos e profissionais inerentes. Enfim, a busca pelo alinhamento às novas realidades e o enfrentamento dos constantes desafios do mercado, notadamente a evolução das tecnologias aplicadas e as constantes mudanças no ambiente futebolístico, nos revela a importância da implantação de um modelo de governança, riscos e compliance a um só tempo vigoroso e dinâmico, o que certamente trará mais valia e uma melhor percepção para os parceiros, criando também mecanismos mais eficazes para o gerenciamento de crises.   Cumpre finalmente deixar anotado dentro do atual radar da governança nos clubes, os coletivos de apoio que aos poucos se formam e consolidam, como por exemplo a Frente para Modernização do Futebol Brasileiro capitaneada pelo ex-Presidente do Flamengo e atual Deputado Federal Eduardo Bandeira de Melo, onde em conjunto com outros temas relevantes a questão da governança é um dos pilares, além especialmente do Movimento pela Integridade no Futebol, materializado a partir da reunião há cerca de um ano e meio de alguns clubes (associações e sociedades anônimas) brasileiros para a divulgação das boas práticas, em processo de incremento do número de participantes e perenização institucional, entes embrionários e inspiradores nessa (inicial) jornada da governança nos clubes de futebol.
No âmbito da apresentação e explicação do projeto de reorganização e ressignificação da CBF, que vem tomando conta desta coluna, tratou-se, nos dois últimos textos, da posição dos agentes financiadores e provedores de capitais, lá chamados, coletivamente, de mercado. A inserção, não de uma entidade abstrata e irreconhecível (o mercado), mas de agentes interessados em participar de uma companhia com vocação para ser protagonista mundial, é condição necessária para que o protagonismo se realize. A realização, como se vem demonstrando, beneficiará clubes, sociedades anônimas do futebol, CBF Associação e a sociedade civil em geral. Mas o tal mercado - ou os agentes dispostos a financiar o desenvolvimento da seleção brasileira - não viabilizará a promoção de benefícios sem contrapartidas. Não se trata de mesquinharia, ganância ou insensibilidade; apenas de motivação para alocação de recursos próprios ou de terceiros. Esse debate, aliás, já se travou por ocasião do advento do anteprojeto de lei que propôs a criação da SAF: como se justificava - e ainda se justifica - que a maior atividade de entretenimento do planeta (o futebol), no país que já foi justamente o do futebol (o Brasil), não atraísse interesse de financiadores e investidores? Pois havia uma espécie de muro entre dois mundos, o mundo do futebol e o de capitais, inviabilizador da benfazeja (e necessária) comunhão. A Lei da SAF, que completa o seu terceiro ano, viabilizou, em sentido inverso, a criação de um ambiente, minimante regulado, cuja própria regulação forma uma espécie de novo mundo (ou moldura), composto por aqueles agentes outrora estranhos uns aos outros, como se ilustra abaixo: Aquele estranhamento, com algumas diferenças, se estende ao secular e ainda atual modelo organizacional da CBF, que a apequena interna e externamente, apesar dos excedentes gerados a cada ano e do caixa sobre o qual está montada - justificados, sobretudo, pela sua posição monopolística. O Brasil dispõe, porém, de um dos mais relevantes ativos planetários e a perspectiva de transformá-lo em softpower, para o bem geral - inclusive da CBF. Os caminhos já foram apresentados nos textos anteriores e estão à disposição dos dirigentes da CBF Associação e de Federações, para que a roda comece a girar. A disponibilidade, para que se revele eficiente e efetiva, deverá atrair, como dito, interesse de agentes financiadores e investidores. E aí está, portanto, a pedra de toque: um modelo de abertura de capital arquitetado para construção de uma relação segura, transparente e previsível, em favor de todos os partícipes do sistema. O trinômio (segurança, transparência e previsibilidade) se traduz em vias e técnicas jurídicas aptas a preservar as regras que forem instituídas, em todos os planos construtivos: governação, informação, compliance, fiscalização e proteção. Soma-se a esse conjunto relacional interno a necessidade de manutenção, no plano legislativo, das regras instituídas, de modo a preservar o ato jurídico perfeito e o cálculo de risco na alocação de recursos em atividade empresarial. E se completa a receita com a sempre esperançosa atuação judicial, mediante provocação e sem ativismo, (apenas) para conter ilegalidades e abusos ou para afirmar direitos, derivados de lei ou de contratos.  Parece complexo, mas definitivamente não é. A experiência internacional, que vai além do futebol, afirma o interesse global pelo esporte, em especial - e por diversos fundamentos - pelo próprio futebol. O Brasil também confirma a proposição. Desde a Lei da SAF, aproximadamente 70 sociedades anônimas do futebol foram constituídas, e agentes de diversas procedências e com as mais variadas características embarcaram na tese. E a história está apenas se iniciando. No embalo de tal movimento, a abertura de capital da CBF, que se trata de ativo único, não apenas colocaria o país na vanguarda do esporte - e do entretenimento -, como, no âmbito de um projeto devidamente estruturado, poderia atrair investidores institucionais, locais e internacionais, convergentes na criação do maior projeto esportivo da história.
No âmbito da apresentação e explicação do projeto de reorganização e ressignificação da CBF, que vem tomando conta desta coluna, tratou-se, no último texto, da posição dos agentes financiadores e provedores de capitais, lá chamados, coletivamente, de mercado. O (relevante) posicionamento, que não se resume a uma mera atribuição de lugar, é ilustrado, uma vez mais, no seguinte gráfico: O papel (ou a função) do mercado é transformacional. Como já se afirmou, a CBF S.A. seria um ativo especial e único, sem comparação no planeta, pela história e as perspectivas da seleção de futebol (que seria, como explicado anteriormente, de propriedade da CBF S.A.). Mais: pelas riquezas que poderiam ser geradas em favor da própria CBF S.A., de seus acionistas (incluindo a CBF Associação, clubes, sociedades anônimas do futebol e federações) e do país. Sim, pois além de uma reunião dos melhores jogadores brasileiros, a seleção deveria servir, mesmo (ou especialmente) sob propriedade privada, como o mais poderoso soft power da Nação. Não há ilusão, utopia ou ufanismo nessa proposição; muito menos incompatibilidade entre a atuação privada, dirigida pelo mercado (em compasso com os demais acionistas da CBF S.A., que seriam, originalmente, a CBF Associação, as federações, os clubes e as sociedades anônimas do futebol), e o interesse público ou nacional, na disseminação cultural de um país. Repise-se o que Hollywood fez - e ainda faz - pelos Estados Unidos da América, mediante a inoculação cotidiana dos valores e interesses internos, que se projetam ao exterior e se fundem em praticamente todas as culturas, homogeneizando (para o bem e para o mal) manifestações outrora inconciliáveis. Essas conquistas, que no passado somente se viabilizariam por intermédio de mobilizações expansionistas, com uso da força ou de guerras, evidenciam a necessidade de aproveitamento de ativos únicos, espontâneos ou deliberadamente construídos, marcantes em certas culturas contemporâneas. É o caso, no plano da construção, do recente fenômeno do movimento pop sul-coreano (o K-pop), consumido planetariamente a despeito da dificuldade de compreensão linguística. Eis um bom exemplo, aliás, de como agentes privados podem, direta ou indiretamente, tornar-se embaixadores de seus países e lhes propiciarem influência, poder e renda. O futebol, muito além da música ou do cinema, é a mais global das atividades rotuladas como entretenimento, praticado em um número de países maior do que a quantidade de filiados à ONU, por exemplo. Esse fato, somado à incapacidade da CBF Associação de assumir funções de exportadora de produtos desejados em qualquer rincão do planeta - inclusive nos mais prósperos e propensos a consumi-los em larga escala - e de disseminadora de soft power, expressam o tamanho da oportunidade que se desperdiça. Não se pretende, aqui, atribuir a pessoas, passadas ou atuais, a responsabilidade por isto. Trata-se, apenas, de uma constatação: a CBF Associação jamais executará aquelas funções, pela sua natureza jurídica (e política) - motivadora de suas pequenas (e ao mesmo tempo grandes) querelas internas, regionais e político-administrativas. E é justamente aí que se reforça a pertinência do projeto de reorganização e ressignificação da CBF, no qual a CBF Associação se posicionaria não só como acionista da CBF S.A., mas também guardiã de tradições e história. Foi no mercado, ou mediante apelo aos capitais disponíveis, que, desde tempos longínquos, Nações se expandiram via comércio marítimo (Inglaterra, como melhor exemplo) ou, na contemporaneidade, por intermédio de suas ideias e produtos (Hollywood e K-pop, dentre outros). A abertura de capital da CBF S.A., oriunda de um ato de vontade da CBF Associação, com a participação das federações, dos clubes e das sociedades anônimas do futebol, e realizada no âmbito de um plano qualificado de legítima expansão e dominação, forneceria recursos financeiros, jurídicos, governativos, relacionais e humanos para reprodução e adaptação, ao futebol, de empreendimentos expansionistas bem-sucedidos. Em outras palavras: o mercado, com as suas imperfeições e tendências históricas à apropriação da maior quantidade de lucros em favor de interesses próprios, poderia, no entanto, no âmbito de uma proposta convergente de pretensões coletivas e individuais, previamente arquitetada, viabilizar a adequada distribuição de ganhos, inclusive (e necessariamente) ao próprio mercado, e, assim, impulsionar a criação do maior sistema de futebol do planeta: o brasileiro.
Após apresentação e explicação do projeto de reorganização e ressignificação da CBF, bem como da indicação das posições que federações, clubes (e sociedades anônimas do futebol) e CBF teriam no sistema, situam-se, desta vez, os agentes financiadores e provedores de capitais, aqui chamados, coletivamente, de mercado. No texto anterior da série, foram indicados dois caminhos. O primeiro deles parte da premissa de que a CBF Associação seria mutualizada, mediante a criação de títulos patrimoniais, para distribuição entre federações e clubes (e sociedades anônimas do futebol); na sequência, a CBF Associação seria desmutualizada, com a sua transformação em companhia (e aqueles títulos patrimoniais convertidos em ações); e, por fim, esta companhia, a CBF S.A., abriria capital, resultando na seguinte estrutura: O elemento de interesse deste texto, qual seja, o mercado, foi apresentado, portanto, como os outros acionistas que subscrevem ações, por ocasião da abertura de capital. No segundo caminho proposto, o organograma apresenta algumas diferenças, sendo a principal o fato de a CBF Associação não desaparecer. Isto porque ela constituiria uma companhia e subscreveria a totalidade das ações de sua emissão; depois, federações e clubes (e sociedades anônimas do futebol) subscreveriam novas ações da CBF S.A.; de modo que, ao fim e ao cabo, a CBF associação preservaria sua existência e manteria sua posição de acionista da CBF S.A., conforme indicado a seguir:   Na sequência, os acionistas aprovariam a abertura de capital para atração do mercado, conforme se apresenta abaixo: Esse movimento atrativo do mercado é o foco deste e do próximo texto. Sob a perspectiva do próprio mercado, a CBF S.A. seria um ativo único, sem comparação no planeta, pois proprietária da mais vencedora e, ao menos no plano popular, também a mais admirada seleção de futebol do planeta. Verdade que isso não seria motivo suficiente para que agentes supostamente racionais empregassem seus recursos na nova CBF S.A. Porém, os números também brilham; e atraem. Mesmo sendo administrada sob premissas político-associativistas, que dificultam a captura de oportunidades e de valores, e o desenvolvimento de tecnologias e produtos em escala global (fora de uma perspectiva de preservação grupal), a CBF Associação registrou, em 2023, receita da ordem de R$ 1,3 bilhão e superávit de R$ 238 milhões. O brilho se intensifica, pelas perspectivas futuras, ao se constatar que: - a seleção brasileira ainda é um produto local (apesar do seu potencial de internacionalização), consumido, essencialmente, por brasileiros, de maneira que resta um mundo de torcedores e consumidores a conquistar; - as receitas da CBF ainda são semelhantes às obtidas pelo Flamengo, por exemplo; ou seja, de apenas um time brasileiro; - os valores auferidos em 2023 com direitos de transmissão e propriedades comerciais, da ordem de R$ 538 milhões, são inferiores aos obtidos por times ingleses inexpressivos, como o Bournemouth e o Brentford, que auferiram, em 2023, £122 milhões (aproximadamente R$831 milhões) e £135 milhões (aproximadamente R$920 milhões), respectivamente1; - o volume de receitas da CBF com contratos de patrocínio, em torno de R$ 527 milhões, não engloba os grandes patrocinadores internacionais, ainda desinteressados na associação de suas marcas à seleção brasileira; e (além dentre outros fatores) - a natureza associativa da CBF problematiza (ou dificulta) o acesso a instrumentos e recursos disponíveis no mercado de capitais, que tendem a ser mais eficientes do que os acessados no mercado financeiro. Esse conjunto de coisas evidencia que, menos do que as cifras atuais, as perspectivas futuras devem atrair o mercado em um eventual chamamento promovido pela CBF, considerando que: - o modelo de negócio confirme a possibilidade de crescimento; - o modelo de governança confirme a passagem para uma estrutura de mercado; - a administração seja composta por profissionais ilibados, conhecedores da indústria futebolística e/ou oriundos de mercado, com independência para atuação no interesse exclusivo da CBF S.A.; - a CBF S.A. adote instrumentos de controle de condutas e de cumprimento de leis; e - a abertura de capital se realize em nível especial de listagem, como o novo mercado da B3, e com a assessoria de assessores de primeira linha, que seguirão as diretrizes do Parecer de Orientação CVM n. 41, de 21 de agosto 2023.  Esses são alguns argumentos que sustentam a viabilidade do ingresso do mercado no novo ambiente do futebol. O tema será retomado na próxima semana. __________ 1 Acessível aqui. Integram os números, além de direitos e propriedades, receitas oriundas do "match day". 
Os dois últimos textos desta série, que tem como propósito a apresentação e a explicação do projeto de reorganização e ressignificação da CBF, identificaram as posições finais das federações e dos clubes (e sociedades anônimas do futebol). Chegou a vez de situar a (relevante) posição da CBF Associação. No início da série, foi reapresentado o modelo que partia da premissa de que a CBF Associação seria mutualizada, mediante a criação de títulos patrimoniais, para distribuição entre federações e clubes (e sociedades anônimas do futebol); na sequência, ela seria desmutualizada, com a sua transformação em companhia (e aqueles títulos patrimoniais, convertidos em ações); e, por fim, submetida a processo de abertura de capital, resultando na seguinte estrutura:  Por tal caminho, como se nota, a CBF Associação deixaria de existir e toda a sua estrutura administrativa se conservaria dentro da CBF S.A.  Outro caminho, igualmente explorado na série, oferece uma solução, ao mesmo tempo, diferente e mais simples do ponto de vista jurídico: A manutenção da CBF Associação como acionista da CBF S.A., que receberia, daquela, o patrimônio relacionado à seleção brasileira e o desenvolveria, com exclusividade, esportiva e comercialmente.   O desenho seria o seguinte (após a superação dos passos precedentes, explicados nos textos anteriores, consistentes: na constituição, pela CBF Associação, da CBF S.A.; na transferência patrimonial, pela CBF Associação, em troca de ações da CBF S.A.; e na subscrição de ações emitidas pela CBF S.A., pelos clubes, sociedades anônimas do futebol e federações):  O quadro seria incrementado, após a abertura de capital da CBF S.A., com o ingresso de novos acionistas que subscrevessem ações em oferta primária ou que adquirissem ações em secundária (seja na própria oferta ou, posteriormente, em bolsa). A imagem a seguir ilustra o resultado deste movimento:  Como acionista da CBF S.A., a CBF Associação resguardaria certas atribuições relacionadas à preservação da história e da tradição, que seriam, aliás, inalienáveis. Apenas ela, portanto, poderia exercer, a qualquer tempo, tais funções, independentemente do tamanho de sua participação no capital social.  Aliás, esse é um ponto relevante: A CBF Associação, ao constituir a CBF S.A., subscreveria, em contrapartida à versão de patrimônio associativo relacionado à seleção brasileira, a totalidade das ações de emissão da nova companhia (a CBF S.A.). Na largada, portanto, a CBF Associação seria a única acionista.  Posteriormente, com a subscrição de ações pelos clubes (e sociedades anônimas do futebol) e federações, e, na sequência, pelos novos acionistas no âmbito da abertura de capital, a participação da CBF Associação seria reduzida, em função das rodadas de subscrição, chegando-se ao percentual de participação que houver sido definido pela CBF Associação, previamente. A redução nessas fases seria, assim, controlada pela própria CBF Associação, ao ditar a estrutura do projeto como um todo.  Apenas para ilustrar, imagine-se que, ao término das rodadas de subscrição e de abertura da capital, a CBF mantivesse, por exemplo, 20% do capital total. Deste percentual, uma ou algumas ações seriam especiais e atreladas à sua posição histórica e futura no ambiente futebolístico (assim como o Estado, eventualmente, mantém posição especial em companhias privatizadas). As demais ações poderiam ser livremente negociadas, ou não, a critério da diretoria da CBF Associação.  Partindo-se, ademais, do modelo atual de governação da CBF Associação - que poderia ser reformulado, ou não, conforme decisão de seus afiliados -, a eleição da diretoria continuaria a derivar da votação de federações e clubes (e sociedades anônimas do futebol), com observância da pluralidade de votos atribuída no estatuto da CBF Associação.  O estatuto haveria de ser reformado, porém, para adaptação à nova estrutura, demandante de previsões específicas, a respeito de, exemplificando: forma de indicação, pela CBF Associação, de membros do conselho de administração ou do conselho fiscal, da CBF S.A.; e forma de definição da construção da posição da entidade em matérias que, no plano da CBF S.A., exigissem a concordância necessária ou a possibilidade de veto, por parte da CBF Associação.  Em relação aos seus propósitos sociais, que continuariam a ser exercidos no âmbito associativo, a CBF Associação resguardaria, dentre outras, as seguintes atividades: A gestão do próprio investimento na CBF S.A. e aplicação de dividendos; O desenvolvimento regional do futebol, em parceria com as federações; A realização de pesquisas para melhoria do ambiente e o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas voltadas ao futebol; A gestão de copas e torneios que não fossem transferidos para ligas organizadas pelos clubes e sociedades anônimas do futebol;  Enquanto não fosse criada a liga de clubes e de sociedades anônimas para organizar o campeonato brasileiro, a organização deste evento.    Conclui-se, então, que a CBF Associação não apenas impulsionaria a formação do maior mercado do futebol do planeta (que gerará ganhos ao país, às federações, aos clubes e sociedades anônimas do futebol, aos torcedores, ao erário e ao povo em geral), como faria parte dele, com papéis significativos e essenciais. 
Após breve intervalo na série que tem como propósito a apresentação e a explicação do projeto de reorganização e ressignificação da CBF, retoma-se o tema e se passa a tratar da situação dos clubes e das sociedades anônimas do futebol no novo sistema. Importante relembrar, inicialmente, que, na estrutura atual de poder da entidade, as 27 federações estaduais ostentam, de modo permanente, 3 votos cada; os clubes ou sociedades anônimas do futebol que disputarem a série A, 2 votos cada; e os clubes ou sociedades anônimas do futebol que participarem da série B, 1 voto cada. O colégio é composto, portanto, de 141 votos (81+40+20). Conforme processo evolutivo descrito nesta série (que se iniciou com a proposição de movimento de mutualização, seguido de desmutualização para, em certo momento, tomar outra direção), o modelo que se vem abordando parte da constituição de uma companhia (a CBF S.A.) pela CBF Associação, conforme se indica abaixo: Ato contínuo, clubes e sociedades anônimas do futebol de séries A e B (portanto, com filiação esportiva ativa) e demais clubes de outras divisões (sem filiação esportiva ativa), subscrevem, em conjunto com as federações estaduais, novas ações de emissão da CBF S.A., mantendo-se, em relação ao primeiro grupo, ao mesmo tempo, filiação à CBF Associação e participação acionária na CBF S.A. Os integrantes do segundo grupo participam, enquanto permanecerem fora da série B, apenas da CBF S.A. O quadro abaixo ilustra o modelo: Ou seja, além das federações, que resguardam seus vínculos com a CBF Associação (conforme modelo apresentado na Parte IX da série), os clubes e as sociedades anônimas do futebol de séries A e B também podem (e devem) manter suas relações associativas e, assim, participar, no plano da acionista especial (a CBF Associação), das deliberações internas e das orientações de votos a serem proferidas nas assembleias (ou reuniões) da CBF S.A. Também participariam, mesmo que com quantidade menor de votos em relação às federações, da escolha da governação da CBF Associação. Além da participação no quórum deliberativo na CBF Associação, cada clube ou sociedade anônima do futebol de séries A e B disporia de votos em assembleias gerais da CBF S.A. equivalentes às ações que detivessem, observando-se a relação de um voto para cada ação titularizada. A distribuição de ações entre clubes, por exemplo, das séries A a D, observaria critérios que envolveriam fatores como torcida, títulos nacionais e audiência, respeitado certo coeficiente limitador da diferença entre o maior e o menor dos subscritores.  Após a subscrição de ações, a CBF S.A. abriria seu capital, oferecendo liquidez aos clubes e às sociedades anônimas do futebol que pretendessem vender, parcial ou totalmente, suas ações. A venda, se e quando o caso, viabilizaria a entrada de recursos (milionários e, em determinadas situações, multimilionários) para emprego no desenvolvimento da atividade futebolística, no investimento em formação e em estrutura, na contratação de atletas e no pagamento e renegociação de dívidas, dentre outras finalidades.  Por outro lado, as ações mantidas pelos clubes ou pelas sociedades anônimas do futebol incrementariam seus respectivos patrimônios, em função do (esperado) aumento do patrimônio líquido da CBF S.A. O ajuste se realizaria por equivalência. Exemplificando: se o patrimônio líquido dobrasse de um ano para outro, o valor da participação do clube, em seu balanço, também dobraria. E não é só. O clube ou a sociedade anônima do futebol também se beneficiaria do fluxo oriundo da distribuição de dividendos e, em momento futuro, de eventual venda parcial ou total de ações que não tivessem sido vendidas logo após a abertura de capital. Em outras palavras, o organograma seria o seguinte, em caso de venda total de ações: E o seguinte, quando a venda fosse parcial: E, na hipótese de venda total por alguns e parcial por outros, o resultado se apresentaria da seguinte maneira: Em nenhum dos modelos, o clube ou a sociedade anônima do futebol ostenta uma posição pior do que a que ostenta, atualmente, como (simples) associado (ou associada) à CBF Associação; muito pelo contrário, pois os ganhos são indisputáveis. Clubes, sociedades anônimas do futebol e, como visto na parte IX da série, também as federações ganham, e muito, com o processo, sem efeitos colaterais. Como ganham, também, o torcedor, os atletas, o país e o erário. Resta compreender a posição da CBF Associação, no sistema. É o que se fará no próximo texto.
quarta-feira, 22 de maio de 2024

Que país (do futebol) é este?

Semana passada foi, na falta de outro termo mais apropriado, animada para quem acompanha o desenvolvimento da SAF, subtipo societário criado pela Lei 14.193, de 6 de agosto de 2021, de autoria do Presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG). No mesmo dia que, em Brasília, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 2.978, de 2023 ("PL 2.978"), de autoria do próprio Presidente Rodrigo Pacheco, uma liminar foi concedida, no Rio de Janeiro, para afastar, como se verá adiante, o acionista controlador de uma SAF. O PL 2.987 tramitava em caráter terminativo e, com a sua aprovação, seguirá para Câmara dos Deputados. Seu propósito é inequívoco: aparar algumas arestas que naturalmente surgem em processos legislativos, evidenciadas, no caso, em disputas ocorridas nos quase três anos de vigência da lei, e, assim, oferecer ao país um ambiente ainda mais seguro para o desenvolvimento da atividade futebolística. Tal é, aliás, o sentido do parágrafo conclusivo da justificação apresentada pelo Presidente Rodrigo Pacheco: "Demos passos importantes para o crescimento do esporte, e o aprendizado é permanente. Estou seguro de que as alterações propostas irão fortalecer ainda mais a competitividade do setor futebolístico nacional em relação a outros mercados, trazendo mais investimentos, gerando mais empregos e renda, equilibrando os interesses dos envolvidos e, por fim, contribuindo para ampliar a qualidade do espetáculo aos torcedores". A pertinência e a precisão do PL 2.978, relatado pelo Senador da República Marcos Rogério (PL/RO), são reforçadas pela ínfima quantidade de propostas de emendas, ao contrário do que se costuma verificar em projetos de quase qualquer natureza. A única que foi corretamente incorporada ao texto, apresentada pelo Senador da República Carlos Portinho (PL/RJ) - que já havia relatado, no âmbito do Senado Federal, o projeto de lei que resultou, em 2021, na Lei da SAF -, autoriza a adoção do tipo organizativo de SAF também por liga de futebol, constituída ou organizada por entidades de prática desportiva. A elogiável inciativa reforça a perspectiva que a todos parece inexorável, consistente na unificação de pretensões, para formação de uma liga (unificada), composta por todos os times de séries A e B, semelhantemente às que dominam o ambiente global, como a inglesa. Enfim, naquele dia que deveria ser marcado (e comemorado) pelo novo passo que se dava no caminho para formação do mercado brasileiro, uma decisão liminar tomou o ainda incipiente mercado - e, seguramente, todas as pessoas que acompanham a Lei da SAF - de surpresa, transformando tal dia, como todos os seguintes, em puro suspense (outra vez, na falta de expressão mais apropriada).  Não se adentrará, aqui, em temas puramente jurídicos, visto que a própria decisão optou por abandonar esta premissa, que deveria informar o ato de julgar. Pinçam-se, dela, apenas alguns trechos reveladores (mantendo-se, neste texto, o emprego de termos imprecisos, pela falta de outros mais adequados).   Neste sentido, a matéria submetida à apreciação judicial esbordaria o direito puro, atingindo paixões e sentimentos que não poderiam ser desconsiderados. De modo que o alcance social da medida pretendida pelo clube seria mais amplo que o interesse contratual privado. Ela (a decisão) vai além, ao consignar que não apenas a gestão econômico-financeira importa no caso, sendo crucial o estabelecimento de um mutualismo benéfico, com entrega dos resultados esperados, tanto pelo clube que conferiu seu destino à SAF, como aos inúmeros torcedores, merecedores de respeito, carinho e amor pela instituição objeto de suas paixões. De modo que a SAF não se revelaria uma companhia (ou sociedade anônima) com objeto social limitado aos valores econômicos, mas incorporadora da necessidade de afeição entre os personagens que dela participam. Curioso que tais argumentos não serviram - e não servem - para promoção de intervenções salvadoras em clubes que, na mesma linha, não seriam meras associações civis com objeto limitado de organizar o futebol, e que, historicamente, foram geridos por políticos clubísticos que se apropriaram de instituições supostamente pertencentes aos torcedores (uma mentira secular, pois juridicamente, clubes pertencem aos associados, apenas, e não à coletividade da torcida), e as levaram, em conjunto com seus times, como no caso do próprio Vasco, à profunda decadência (e, também no caso, a 4 rebaixamentos num período de menos de 15 anos). Pois, no caso da recém-constituída SAF Vasco da Gama, encontrou-se fundamento para: suspensão dos efeitos do contrato e do acordo de acionistas celebrados entre clube e investidor; suspensão dos direitos societários (políticos e patrimoniais) do investidor; e afastamento dos conselheiros indicados pelo investidor. Espera-se, por fim (e apenas), que instâncias revisoras, assim como o sistema judicial, em qualquer localidade do país, julguem os temas que envolvam SAF em favor da parte que ostentar o bom direito, de acordo com a lei (e a constituição, para preservação do futuro da Nação), e não em conformidade com preferências ou, se a moda se inverter, com rancores clubísticos.
quarta-feira, 15 de maio de 2024

A Lei da SAF e a reação do clubismo

Mantenho a pequena pausa na longa série que vem tratando, nas últimas semanas, do projeto de reestruturação e ressignificação da CBF, para abordar certas situações que ocorrem no ambiente criado pela Lei da SAF. Desde o advento da Lei da SAF, mais de 60 projetos de SAF se estruturaram, em todas as regiões do país. Muitos, talvez a maioria, bem-sucedidos. Galo, Cruzeiro, Bahia e Botafogo são alguns exemplos. Sim, Botafogo. Não me cabe, aqui, falar sobre o controlador da SAF Botafogo, John Textor, e suas técnicas de tentativa de persuasão coletiva. Interessa-me, ao menos neste momento, a SAF da qual é controlador. Parece-me, então, que seja mesmo, sim (com o perdão da redundância), um sucesso. Há pouquíssimo tempo, o Clube Botafogo, antes da constituição da SAF Botafogo, brigava, ano após ano, para manter-se na primeira divisão e, com frequência, não atingia seu objetivo (caiu 3 vezes para 2ª divisão). Desde a entrada do empreendedor, a situação mudou. Para melhor. Ano passado, terminou em sexto lugar no campeonato brasileiro, posição que não foi comemorada - mas devia -, com acesso à copa libertadores, por conta da expectativa que se criou com a magnífica campanha durante grande parte da competição. Neste momento, aliás, a SAF Botafogo ocupa a 4ª colocação na atual edição do campeonato brasileiro, em melhor posição do que os demais clubes cariocas, exceto o poderoso Flamengo, que, na 3ª posição, contabiliza 1 ponto a mais. Além de Botafogo, mas por motivos diversos, a SAF Vasco, atualmente na 13ª posição do campeonato brasileiro - ou seja, a uma posição da vaga para copa sul-americana -, vem sendo exposta e tratada como um caso de insucesso. O resultado esportivo, por enquanto, não se pode negar, está aquém daquele esperado por torcedores, imprensa e, pode-se apostar, pela própria acionista controladora. Por conta do aparente (ou ainda prematuro) insucesso - lembre-se que, antes da constituição da SAF Vasco, o time frequentava a 2ª divisão (foram 4 rebaixamentos), não pagava jogadores e direitos em dia, perdera credibilidade para atrair talentos e realizar negócios, tinha dificuldade para liquidar obrigações cotidianas, dentre outras mazelas -, parece que ganha força um movimento para reafirmar e "canonizar" o clubismo, como se ele próprio, o clubismo, não fora, em passado recente e remoto, o responsável pela deterioração da história e da grandeza de seu futebol. Portanto, nada melhor do que a cautela e, em especial, a atenção, coletiva, em relação à reação do clubismo, dissimulado sob a imagem messiânica de mais um ex-jogador. Merece atenção, em tal sentido, o texto do jornalista Rodrigo Capelo, publicado na edição de 13 de maio, do jornal O Globo. Após expressar sua preocupação com a situação econômica e patrimonial da mencionada entidade, com um exemplo envolvendo a formação de uma frota de veículos de propriedade de jornalistas famosos, Rodrigo Capelo faz um alerta: se a 777 vacilar, será devorada por um agrupamento de "aliados [do clubismo] entre advogados e juristas", que, com apoio de torcida e comunicadores, estaria pronto para dar o bote. Ele parece antecipar, implicitamente, no último parágrafo do texto, outra preocupação, com as gravíssimas consequências para o futebol e para o país, de eventual movimento político desestabilizador de negócio jurídico realizado em conformidade com as regras vigentes. Em outras palavras, a preocupação com a quebra de confiança institucional. É isso, pois, que, aparentemente, está em jogo, e que se revela, em minha opinião, no texto do jornalista Rodrigo Capelo: a confiabilidade sistêmica. Sobre o sistema, vale lembrar - e a lembrança se estende e se aplica a qualquer situação de SAF -, que a Lei da SAF integra o microssistema das companhias, que se sujeitam à Lei 6.404/76. Ambas configuram, em conjunto, as normas primárias de regência da SAF. A Lei 6.404/76, que logo completará 50 anos, vem sendo testada e adaptada, em função de avanços tecnológicos, e representa um dos pilares de sustentação do ambiente empresarial brasileiro. Nela se encontram os instrumentos de contenção de atos abusivos, do acionista controlador ou da minoria acionária (pois sim, a minoritária também pode praticar atos configuradores de abuso), e nela também se indicam atos que, mesmo que aprováveis pela maioria, não podem ser praticados sem um prévio escrutínio assemblear. Ademais, em negócios societários como os que envolvem a SAF Vasco, a SAF Botafogo, a SAF Cruzeiro e muitos outros, as partes costumam contratar uma série de direitos e obrigações que, se eventualmente inobservados, por uma ou outra parte, ensejarão sanções, previstas no próprio instrumento contratual (ou na legislação civil, conforme a situação). Aí se forma, em princípio, o contorno dentro do qual desinteligências, resultantes de operação de SAF, devem ser resolvidas, pelas autoridades competentes, conforme, igualmente, as partes tenham estabelecido. Portanto, a perspectiva de afirmação de um pujante e possível maior mercado futebolístico do planeta está associada à percepção de que negócios jurídicos não serão abalados por motivações que não tenham amparo legal ou contratual.
Faço uma pequena pausa na longa série que vem tratando, nas últimas semanas, do projeto de reestruturação e ressignificação da CBF (ao qual retornarei em uma ou duas semanas), para abordar certo evento que causou alvoroço ao ser anunciado: a venda do controle da SAF Cruzeiro pelo empreendedor e investidor, Ronaldo Nazário ("Ronaldo"). Ronaldo, sobre quem eu já escrevi em outras oportunidades, foi o salvador da Associação Cruzeiro, que estava afundada em dívidas e a caminho da terceira divisão. Técnica e empresarialmente, também estava, por ocasião de sua entrada, falida. Aliás, sabia-se que seu passivo era bilionário, mas não se conseguia quantificá-lo com precisão, pelo descontrole gerencial e outros motivos mais graves. Importante lembrar, ainda, que, após o conselho deliberativo da Associação Cruzeiro aprovar uma operação em que ela mantivesse o controle da SAF a ser constituída, o sonho se desintegrou diante da falta de interesse de possíveis investidores nesse modelo. Os problemas e o riscos envolvidos não justificavam qualquer projeção de retorno. Daí a aceitação, ao final do processo, de uma posição acionária minoritária para a Associação Cruzeiro, negociada com Ronaldo; posição, aliás, que não foi objeto de cobiça de outros investidores (incluindo torcedores bilionários). Em suma, naquele momento, dizia-se que o novo controlador possivelmente se enrolaria num mar de lama e, dele, talvez não saísse. Nesse cenário, Ronaldo era - e realmente foi - o salvador da história do Cruzeiro. Algumas poucas vozes, é verdade, sustentavam que o negócio fora barato. Sim, talvez, se considerados os compromissos de investimento assumidos e o potencial de retorno de um time da dimensão do Cruzeiro. Mas ninguém, além do próprio Ronaldo, aceitou correr os riscos políticos e patrimoniais que ele encarou, em especial por conta do passivo, que já se sabia que era gigante, mas que poderia ser ainda maior do que se imaginava, naquele momento. Para ele, talvez, considerando o tamanho de seu patrimônio e de sua exposição, o negócio fosse caríssimo (à beira da insanidade). Com Ronaldo - e sua elogiável equipe, dentre ela, Gabriel Lima e Paulo André -, iniciou-se um inegável movimento de resgate, o qual ainda está em curso, importante ressaltar. E tomará algum tempo para atingir "nível de Cruzeiro". Tempo que se tomaria - e se toma - na reestruturação de empresa em crise, ainda mais falida, do ponto de vista técnico, como estava a Associação Cruzeiro. Em menos de três anos, o time deixou as páginas policiais e passou para as páginas econômico-empresariais, com a anunciação de um negócio expressivo, elogiado sob o prisma financeiro, mas questionado, no plano esportivo. Grande parte dos questionamentos - uns, compreensíveis; outros, maliciosos - decorre da falta de intimidade com um ambiente ainda em formação, e, por isso mesmo, sujeito a movimentos por ora inesperados. Ou aparentemente inesperados, pois Ronaldo jamais afirmou que não venderia sua participação na SAF; além de ser algo absolutamente comum, em outros mercados. Mas a sua saída é um problema? Ao contrário de alguns respeitadíssimos jornalistas, entendo que não. Justificarei a proposição pela ótica da Lei da SAF (e, portanto, do ambiente do futebol) e da SAF Cruzeiro (consequentemente, de sua torcida). Não abordarei a perspectiva do novo controlador, pois se trata de um problema (ou não) dele. A Lei da SAF foi recebida, no (e pelo) mercado, com incredulidade. Poucas pessoas ou instituições se mostraram, no início, interessadas. Curiosas, talvez; mas nada muito além disto. Os motivos envolviam o histórico de desmandos e de corrupção no setor, o apego cartolarial à apropriação clubística, a falta de percepção da segurança jurídica pretendida pela Lei da SAF, a dificuldade de precificação do ativo futebolístico e, dentre outros, a dificuldade de visualização de uma saída para o investidor, imediatista ou de longo prazo. A liquidez, derivada da probabilidade de saída de um investimento qualquer, justifica a existência, ou não, de um ambiente de trocas de posições; e quanto maior a probabilidade de saída, maior será a procura e, muito importante, maior será a atratividade para investidores institucionais ou mais conservadores. A venda do controle da SAF Cruzeiro sinaliza justamente a perspectiva, antes negada, de que investidores teriam (e terão) como liquidar suas participações e embolsar, se e quando quisessem, o produto da liquidação dos seus investimentos, lucrativos ou não (sim, pois, eventualmente, a venda ocorra com prejuízo). Mas não apenas isso. A venda sinaliza também que o acesso a financiamentos e capitais pode perfeitamente passar por estágios diversos de interesse, no decorrer de seu amadurecimento, com entradas e saídas de investidores com diferentes perfis e perspectivas de riscos, até que se consolide a participação em um investidor "final" (que pode ser o perfil do novo controlador da SAF Cruzeiro). Este investidor final, ou acionista referencial, terá maior propensão a manter sua posição por longos anos (eventualmente gerações), como ocorre com algumas famílias proprietárias de times de esportes norte-americanos. Paralelamente, sob a perspectiva da SAF e da torcida, a entrada, agora, de novo acionista, com sólida atuação no ambiente empresarial, sugere uma nova onda de energia (e de recursos), pois, sobre o entrante, não pesam os desgastes naturais de todo o esforço pretérito, que envolveu o processo político de constituição da SAF, a negociação com o investidor Ronaldo, a iniciação do processo de recuperação e os percalços enfrentados, não apenas no âmbito da própria reorganização, como também dos solavancos que foram causados pela ambientação da (ainda novíssima) Lei da SAF. Soma-se a isso o fato de que o novo acionista, pelo que se consta, tem patrimônio robusto e, tão ou mais importante, fluxo de caixa compatível com as necessidades de novos aportes e investimentos que serão demandados pela atividade futebolística. E há, ainda, outro (e intangível) fator: a rivalidade local, que poderá fazer com que esse novo acionista de origem empresarial olhe para o rival e pretenda, com bases sólidas, medir-se ou superar o que vem sendo feito, de maneira bem-sucedida, por outros acionistas empresários daquele lado. O que importa ao torcedor, no final das contas, é o sucesso de seu time. A imagem de Ronaldo foi útil, muitíssimo útil, na originação da SAF Cruzeiro, e na construção do seu processo de recuperação; mas o time do Cruzeiro construiu sua grandeza histórica por ser o Cruzeiro, e não pela dependência de uma ou outra pessoa. E aí está o ponto crucial, talvez único, que mereça atenção geral (da torcida, das instituições, do poder público e do país, pela relevância social e econômica do futebol): a certificação de que o novo negócio foi construído em bases sólidas, que reforçarão e eventualmente acelerarão o reposicionamento do Cruzeiro dentre as maiores potências do continente.  
As 27 Federações Estaduais mantêm papel crucial na estrutura de poder da CBF. Cada uma ostenta, no colégio eleitoral, de modo permanente, 3 votos, contra 2 votos dos times que disputarem, no momento de qualquer votação, a série A do campeonato brasileiro, e 1 voto dos que estiverem na série B. Portanto, o projeto proposto para reorganização da CBF não pode ignorar essa realidade e deve oferecer cenários para as federações estaduais, que continuarão, aliás, a exercer funções relevantes em âmbito regional, após a abertura de capital. Como indicado no texto anterior desta série, um dos caminhos que se pode seguir, no projeto de reorganização, e que aqui será adotado, envolve a constituição de uma companhia (a CBF S.A.) pela CBF Associação, seguida da subscrição de novas ações pelos clubes e federação estaduais - em substituição à mutualização e desmutualização da CBF. O caminho levaria ao seguinte quadro:  As federações não teriam vinculação direta com a CBF Associação e se ligariam, como acionistas, apenas à CBF S.A. Desta receberiam dividendos (direitos econômicos) e em suas assembleias gerais votariam (direitos políticos), enquanto mantivessem ao menos uma ação de emissão da CBF S.A. em seu patrimônio. Mas o vínculo com a CBF Associação não precisa terminar, de modo que cada federação estadual poderia sustentar duplo papel: um como acionista da CBF S.A., outro, como associada da CBF Associação. Nesta hipótese, o organograma seria o seguinte:  No plano associativo, as federações manteriam seus votos nas assembleias gerais da CBF Associação e poderiam ditar-lhe, como atualmente ditam, certas escolhas, dentre as quais a nomeação da diretoria e a forma como a CBF Associação se posicionaria em relação a determinados temas da CBF S.A. De fato, a CBF Associação seria acionista da CBF S.A. e acompanharia, nesta posição (portanto, de acionista), o andamento das atividades futebolísticas e empresariais. Teria o direito, como qualquer acionista, de participar de assembleias gerais e votar, além de dispor de direitos especiais, se implementados, sugeridos em texto anterior. Tais direitos especiais consistiriam em, por exemplo, vetos sobre matérias que afetassem a história e a tradição da seleção brasileira, dentre as quais alteração de cores, adoção de novo hino, mudança de sede para outro país, renúncia à participação em eventos internacionais e participação em campanhas políticas; e assento permanente em conselho de administração da CBF S.A., para exercício de veto sobre as matérias indicadas acima. As federações se tornariam duplamente beneficiadas com a reorganização da CBF porque: (i) em decorrência da subscrição de ações, as quais poderiam ser parcial ou totalmente vendidas, posteriormente, por ocasião da abertura de capital da CBF S.A., levantariam recursos robustos, advindos da própria venda, para emprego em suas atividades regionais e reforço dos campeonatos locais, e ainda receberiam dividendos das ações mantidas em sua propriedade; e (ii) guardariam a posição política, dentro da CBF Associação, que, além de acionista da CBF S.A., ostentaria direitos especiais pela sua atuação como guardiã da história e da tradição. O processo político de escolha de diretores da CBF Associação pelos seus associados (i.e., pelas federações) poderia ser adaptado do atual modelo ou reformulado, para trazer-lhe técnicas contemporâneas, concatenadas, inclusive, com a nova realidade da entidade, e assim oferecer-lhe um modelo de governação certificado. A escolha da governação deixaria, porém, de ser um problema dos times, da própria CBF S.A. ou do torcedor em geral, e passaria a ser um tema puramente privado, das federações. Parece, pelo exposto, que inexistem externalidades negativas para federações, no âmbito do projeto de reorganização da CBF; dele, ao contrário, somente se revelam positividades: econômicas, políticas e sociais.
O tema central da série não é novo. Ele foi apresentado no livro Futebol, Mercado e Estado (Quartier Latin), publicado no início de 2016. O livro continha, porém, um objetivo antecedente: a criação do mercado do futebol a partir da SAF. Retomou-se, posteriormente, a ideia de mutualizar e desmutualizar a CBF em algumas oportunidades, inclusive (e especialmente) nesta coluna, com o intuito, apenas, de manter a chama acesa, enquanto o debate acerca do PL da SAF se intensificava e, em alguns momentos, pegava fogo. O projeto foi convertido em lei e, desde então, vem promovendo uma benfazeja transformação no ambiente do futebol no Brasil. A SAF e a lei da SAF merecem e terão acompanhamento permanente, para promoção da defesa e do desenvolvimento do instituto. Passados quase três anos da promulgação da lei da SAF, já há espaço para a propositura de outros movimentos, complementares, que viabilizarão a inserção social das gentes, o desenvolvimento social e econômico da Nação e, claro, a eficiência esportiva, nos planos nacional e internacional. Dentre tais movimentos, destaca-se, pela grandiosidade, a reorganização (e consequente ressignificação) da CBF. A tese teve como fundamentos a mutualização e a desmutualização. Foi com base neles que se introduziu o debate pioneiramente no mencionado livro Futebol, Mercado e Estado, em 2016, e que ela reapareceu, semanas atrás, com a primeira parte da presente série.   Mas, no decorrer da construção da série, uma nova perspectiva se abriu. Pela obviedade e simplicidade teórica, passou a ser tratada, aqui, como o "Ovo de Colombo". Em suma, ela abre dois caminhos para que a CBF se transforme em companhia, sem a necessidade de prévia mutualização e posterior desmutualização. Um dos caminhos, que se desdobra em dois movimentos, foi apresentado no texto anterior.  De maneira sucinta, no primeiro movimento, a CBF Associação constitui uma sociedade anônima (CBF S.A.), da qual será proprietária da totalidade das ações: No movimento seguinte, a própria CBF Associação delibera o aumento de capital da CBF S.A. e faculta a subscrição das novas ações, por preço simbólico, pelas federações e pelos clubes: O segundo caminho, que agora se apresenta neste espaço de maneira inédita, consiste na transformação da atual CBF Associação em sociedade anônima (a CBF S.A.) e, no mesmo ato, na subscrição de ações, por preço também simbólico, pelos clubes e federações, de modo que, ao cabo, o organograma será o seguinte: Esse caminho afasta a necessidade de constituição de uma sociedade anônima pela CBF Associação, como ocorre no primeiro, e, pelas características da transformação da própria CBF Associação em companhia (CBF S.A.), elimina, da estrutura final, a figura de uma entidade associativa da composição acionária.  A permissibilidade, contida na lei das sociedades por ações, especialmente em companhias fechadas, de fixação do preço de emissão de ações com ágio ou deságio (e, assim, oferecendo o suporte para fixação do preço simbólico a ser pago no âmbito do aumento de capital da CBF S.A.), revelou-se, ao longo da série, uma técnica simplificadora do projeto de reorganização e uma alternativa à proposta original de mutualizar e desmutualizar a própria CBF ou uma associação por ela criada. Assim, chega-se ao seguinte desfecho, por ora: inexiste, do ponto de vista legislativo, obstáculo à implementação de reorganização da CBF, exceto a vontade política, ou a falta dela, de promover um amplo debate a respeito das vantagens e desvantagens da mudança do modelo associativo ao societário. A desinformação, possivelmente, talvez venha a ser a principal ferramenta de eventual reacionarismo, pois, considerando que (i) a própria CBF Associação pode permanecer acionista da CBF S.A., exercendo direitos políticos análogos aos que, por exemplo, o Estado exerce em uma companhia privatizada, inclusive mediante a titularidade de "golden share", (ii) as federações deterão ações da CBF S.A., que poderão ser vendidas parcial ou totalmente, e os recursos obtidos, seguramente milionários, destinados ao desenvolvimento regional do futebol, e (iii) os times de futebol, constituídos sob a forma associativa ou de sociedade anônima do futebol, também serão agraciados com ações, vendáveis no mercado; não há motivação plausível para o evitamento do debate e, ousa-se afirmar, a implementação do modelo, que repercutiria, nacional e internacionalmente, em função da distribuição, sem precedentes, de riquezas entre os integrantes do sistema.
Desde o início desta série de textos que pretende apresentar um grandioso projeto transformacional para a CBF - e, consequentemente, para o Brasil -, os temas tratados se sucedem, uns em função dos outros, em ordem lógica, no âmbito do modelo apresentado. Pela primeira vez, e pelos motivos que serão a seguir expostos, apresenta-se uma ideia lateral, que consiste, pois, em uma alternativa a uma ideia já apresentada anteriormente nesta série, e que se enquadra, com maior fidelidade, como uma variação de mesmo tema. Daí o subtítulo: Parte 7.2. A classificação faz todo sentido. No texto anterior, identificado como Parte 7.1, apontou-se determinado caminho no processo de mutualização, desmutualização e abertura de capital da CBF, que passava pela manutenção da atual associação civil existente, aqui denominada CBF Associação, a qual, porém, constituiria outra associação, que seria, posteriormente, mutualizada para, na sequência, ser desmutualizada (transformando-se em companhia: a CBF S.A.). Os gráficos abaixo ilustraram, naquele texto, as proposições: Gráfico 1:  Gráfico 2: Afirmou-se, ademais, que a manutenção da entidade original serviria para que fossem preservadas, na CBF Associação, (i) a organização de atividades não profissionais e (ii) as funções de interesse nacional e social, além das funções de guarda e de controle da história e da tradição da seleção e do futebol brasileiro. A CBF Associação seria, ainda, acionista da CBF S.A. A variação que se apresenta, aqui, revela-se como um outro caminho para chegar ao mesmo destino. Assim, no lugar da criação de uma nova associação, que seria, posteriormente, mutualizada e desmutualizada, a CBF Associação constituiria, diretamente, uma sociedade anônima, da qual seria, na largada, a única acionista, conforme se indica a seguir: Logo após, os times e federações que, no modelo anterior, receberiam, gratuitamente, títulos patrimoniais, subscreveriam novas ações e as integralizariam (ou seja, pagariam o preço de emissão), mediante a transferência de recursos para formação do capital social da CBF S.A. As quantidades de ações a serem subscritas pelos times e federações seriam idênticas aos títulos patrimoniais que receberiam no modelo anterior.   O preço de emissão das ações (e, consequentemente, o montante a pagar e transferir para CBF S.A.) seria fixado em parâmetro simbólico, de modo a evitar saída expressiva de caixa dos subscritores (e novos acionistas da CBF S.A.). A proposição é ilustrada a seguir: Como derradeiro passo, seria promovida a abertura de capital da CBF S.A, e, assim, chegar-se-ia, de maneira mais simples, ao modelo final, apresentado no texto anterior: Isso porque, no modelo anterior - que não estava e não está equivocado, e ainda pode, por diversos motivos, ser implementado, se assim os decisores do processo definirem -, a viabilidade dependeria de uma atuação estatal; atuação essa que, neste novo modelo proposto, torna-se prescindível. Explica-se. Primeiro, porque seriam dispensados os movimentos de mutualização - atribuição de títulos patrimoniais - e consequente desmutualização - conversão dos títulos em ações de uma sociedade anônima. Segundo porque, no âmbito da mutualização, isto é, da atribuição de títulos patrimoniais a times e federações, os beneficiados apurariam um acréscimo patrimonial, e, daí, sentiriam (a depender da natureza jurídica de cada um), em razão deste acréscimo, o peso da norma tributária, incidente sobre o evento. Por isso a proposta, contida na Parte II da série, de edição de nova lei que deslocasse (ou diferisse) o pagamento do tributo para o momento da venda dessas ações (oriundas da conversão dos títulos patrimoniais).    Paralelamente, optando-se pelo caminho de constituição de uma companhia pela CBF Associação, proposto neste texto, o mesmo objetivo seria atingido, mas sem que fossem enfrentados certos obstáculos ou demandadas participações estatais. Mesmo assim, e para que o jurisdicionado tenha opções, porém, com reflexos tributários semelhantes, a ideia de uma lei que incentivasse, aliás, não apenas a mutualização e desmutualização da CBF, mas de outras federações, permanece posta, válida e de pé. Seriam caminhos, ou variações temáticas, para se promover o fortalecimento da CBF e a valorização do futebol no (e do) Brasil.
Nas Partes 2 e 3 desta série de textos, em que se ousa propor um grandioso projeto para CBF, tratou-se da mutualização e da desmutualização da CBF, consistentes, respectivamente, na atribuição de títulos patrimoniais da própria CBF a times (clubes e SAFs) e federações, e na transformação da CBF, hoje ainda uma associação sem fins econômicos, em sociedade empresária (no caso, uma sociedade anônima), de modo que aqueles títulos patrimoniais seriam, consequentemente, convertidos em ações de emissão da nova CBF S.A. Ao cabo desses passos, a estrutura societária da recém-constituída companhia seria a seguinte, já indicada na Parte 4 da série:  Além dessa estrutura, já abordada previamente, vislumbra-se outra, que também poderia ser utilizada no âmbito do projeto. Ao contrário da anterior, em que a CBF tem sua natureza modificada - de associação sem fins econômicos para sociedade empresária, ou seja, uma entidade com finalidade econômica -, na estrutura que será indicada a seguir a natureza associativa é mantida. A manutenção da entidade original serve para que se preserve, na CBF Associação, a organização de atividades não profissionais, além da configuração daquela como acionista da CBF S.A. Em resumo, previamente à mutualização, a CBF Associação (portanto, a entidade que existe atualmente) constituiria outra associação sem fins lucrativos e lhe transferiria ativos ligados ao futebol profissional. Em decorrência da transferência, a nova entidade se tornaria responsável por todas as atribuições conferidas pela FIFA e pela Conmebol, além de organizadora de copas e campeonatos, enquanto a Liga Brasileira (introduzida no texto anterior) não estiver formada. Por outro lado, na antiga associação, ou seja, na CBF Associação, ficariam mantidas as funções de interesse nacional e social, além das funções de guarda e de controle da história e da tradição da seleção e do futebol brasileiro, pelos fundamentos que serão expostos ao final deste texto. O gráfico abaixo ilustra a proposição: Na sequência, títulos patrimoniais da nova associação seriam atribuídos à própria CBF Associação, às federações e aos times (processo de mutualização); ato contínuo, a nova associação seria transformada em sociedade anônima (CBF S.A.) e aquelas entidades receberiam, como já se sabe, ações de emissão da CBF S.A. (desmutualização). O resultado é ilustrado pelo seguinte gráfico: Nesse processo, seriam atribuídos direitos especiais de acionista à CBF Associação, que passaria a ser acionista da CBF S.A., conferindo veto sobre determinados temas, a exemplos de (i) reformas de estatuto para modificar número máximo de ações que poderão ser detidas por um acionista e número máximo de votos por acionista, (ii) alteração de denominação, (iii) modificação de signos, cores e outros elementos de identificação da seleção, (iv) cessão ou alienação de propriedade industrial e (v) transferência da sede para o exterior. Também poderia ser assegurado à CBF Associação assento permanente no conselho de administração da CBF S.A. para, em nível administrativo, exercer, quando o caso, os direitos previstos no parágrafo anterior; ou para exercício de voz e voto, mesmo sem veto, em outras matérias sujeitas à deliberação colegiada. A CBF Associação, ademais, na posição de acionista da CBF S.A., receberia dividendos, que podem ser fixados, no estatuto, em montante correspondente a, no mínimo, 25% do lucro apurado. Com tais fluxos de recursos, além de outros oriundos de ativos próprios ou licenciados, a CBF Associação reunirá condições para manter relevância social e econômica, no plano do desenvolvimento do esporte - além, conforme indicado acima, de preservar condições para executar sua função de guardiã de certos elementos culturais e históricos, petrificados estatutariamente. Por fim, com a abertura de capital, a CBF Associação passa a ter opção de (i) vender parcialmente suas ações de emissão da CBF S.A. e verter os recursos para suas finalidades próprias, sem perda dos vetos, ou (ii) mantê-las e perceber, por conta da manutenção, os resultados econômicos correspondentes. O gráfico abaixo ilustra a estrutura alternativa apresentada neste texto:
Como se vem apresentando nesta série de textos um projeto de (e para a) CBF, não se poderia deixar de avaliar suas próprias funções históricas (e atuais) e, conforme as premissas que venham a ser estabelecidas, propor novos caminhos. De modo resumido, a CBF se dedica, no plano do futebol profissional, (i) à gestão da seleção brasileira e (ii) à organização de campeonatos e copas. Dentre ambas as atividades, a principal, mais rentável e glamourosa, é a primeira. Dela se extrai parcela majoritária da receita, do lucro e do poder de influência local e internacional. A segunda, do ponto de vista pragmático, tornou-se, há tempos, um fardo; um fardo porque envolve a gestão de clubes de diversas regiões e divisões, com preocupações e necessidades distintas, em sua maioria sujeitos a crises permanentes, demandadores de recursos e favores. Pior: que deixaram de fornecer, de modo direto, os jogadores, que são as matérias essenciais ao desenvolvimento do principal produto da CBF: a seleção. Afinal, os selecionados costumam vir do exterior, onde terminam a sua formação e abrocham para o profissionalismo. Aliás, a incapacidade de gerir as necessidades locais do futebol - algo que, é sempre bom lembrar, não tem a ver com o atual Presidente, Ednaldo Rodrigues, mas com o arcaísmo secular, do qual ele e qualquer outro será refém - se reflete na performance dos times brasileiros, que deixaram de ter força econômica, tecnologia e tática para competir no plano global. O resultado, apesar do apego do torcedor, que lota estádios para acompanhar jogos independentemente da qualidade e da posição de seu time, não raro em ambientes pouco confortáveis (algo que não se confunde com a problemática elitização do espetáculo), consiste, de um lado, na crise sistêmica, evidenciada pela dívida coletiva da ordem dos bilhões, e, de outro, na oligopolização, produtora de três ou quatros agentes hegemônicos. Ou seja, o futebol no Brasil virou as costas às suas características continentais, que produziram forças locais e regionais e alta competitividade esportiva, e adotou um processo autofágico, indutor de uma outra espécie de competição, de natureza existencial, que estimula condutas individualistas e patrimonialistas, em detrimento de todos os demais pares. Parece evidente, assim, que já não faz mais sentido, no atual estágio do esporte, que se globalizou e se inseriu na indústria do entretenimento, que uma entidade associativa, sem fins econômicos, submetida a um processo político exacerbado, continue a gerir e definir o futuro dos times de futebol, os quais, na prática, são empresas futebolísticas.   Os times, em especial sob essa perspectiva mercantilista, podem (ou devem) se auto-organizar e, mediante a criação de estruturas próprias, específicas e profissionais, promover um profundo processo de reestruturação e reposicionamento de seus produtos. Tal movimento ainda traria um efeito positivo à CBF, que se dedicaria, de modo prioritário, também sob novo estatuto jurídico (resultante do processo de mutualização, desmutualização e abertura de capital), à motivação contemporânea de sua existência, que consiste, como indicado acima, na gestão, com primor, da seleção brasileira. Trocando em miúdos, a CBF "perde valor" com a administração, por exemplo, do campeonato brasileiro e, ao mesmo tempo, os clubes e sociedades anônimas do futebol não conseguem gerar valor, ao menos o verdadeiro valor que têm, e remanescem enjaulados num modelo que, conforme informações veiculadas pela imprensa, não vale praticamente nada no exterior (neste sentido, os direitos de transmissão internacional da série A, em 2023, teriam sido negociados por ridículos US$ 8 milhões). O caminho pressupõe, então, o desmembramento da CBF e a retenção e alocação de especialidades. Consequentemente, a CBF focaria e desenvolveria a seleção brasileira, que deveria ser um dos principais exemplos de softpower do país; enquanto os times, de outro lado, impulsionariam ligas fortes e pujantes, em especial a que chamarei aqui de Liga Brasileira, fruto da reunião e união dos times de primeira e segunda divisões. A Liga Brasileira também deveria se transformar num produto de exportação, influência e posicionamento do Brasil; e não há exagero nessa proposição. A Premier League serve como exemplo. Ela se tornou uma espécie de Hollywood inglesa, que se insere nos lares de cidadãos de aproximadamente 90 países e expressa - melhor do que a Família Real, envolta em crises mundanas -, a cultura e a ambição do país.   De modo suscinto, o gráfico abaixo ilustra como ficaria o modelo acima proposto: Nota-se, no modelo, a relação de cooperação entre CBF e Liga Brasileira, para fortalecimento do sistema como um todo, que geraria, ao final, impactos esportivos, sociais e econômicos, de modo generalizado. Para tanto, as estruturas de controle e societária da CBF, seu papel de guardiã da tradição e da cultura, assim como a função atribuída pela FIFA a uma entidade de administração do esporte, devem ser ressignificadas e compreendidas. E sobre isso se tratará no próximo texto.
O grande dilema da teoria da governação de companhias (ou da governança, conforme termo mal traduzido do inglês), consiste na aderência de proposições de gabinete às realidades de entidades heterogêneas. Aliás, mais do que isso: também envolve a necessidade de adaptação de formulações estrangeiras, construídas para problemas locais, à realidade dos ambientes em que serão introduzidas, como o brasileiro. A falta de sensibilidade, ou melhor, a utilização dogmática da matéria, inclusive por quem a conhece, mas que pretende encobrir uma série de imperfeições por detrás de um conceito mercadológico abstrato, vem contribuindo para falsear realidades complexas ou insustentáveis. Daí a falibilidade, ou melhor, o fracasso, ainda não admitido no âmbito do mercado, dessa tentativa de construção de um padrão (ou conjunto) de práticas uniformes que sejam extensíveis, de modo geral, aos agentes que dele (mercado) participam. Isso não existe e jamais existirá. Por outro lado, não se pretende, com tais alertas, negar a relevância - ou mesmo a indispensabilidade - da autogovernação das sociedades (bem como de associações sem fins econômicos), que pode ser construída a partir da boa doutrina, local ou internacional, isenta e não capturada por interesses específicos. Nesse sentido, um botequim de esquina - sem qualquer demérito, ao contrário, dos pequenos estabelecimentos que hospedam a alegria de trabalhadores (ou notívagos) - pode, eventualmente, implementar, dentro de sua realidade, uma governação que lhe propicie uma perspectiva de perenidade; enquanto uma enorme companhia que fornece os produtos ao mesmo botequim, eventualmente, estará sujeita a um modelo interno superficial, que a levará, no tempo, ao desaparecimento. Partindo dessas premissas e, novamente, levando-se em conta os reais avanços propiciados por uma teoria independente, a governação da CBF (de modo amplo e com abrangência sobre todos os órgãos ou estruturas de poder), no âmbito da proposta que vem sendo apresentada nesta série de artigos (envolvendo, pois, sua mutualização, desmutualização e abertura de capital), teria um papel relevante em sua transformação, estabilização e projeção planetária. Em primeiro lugar, com relação à estrutura de capital e às consequentes restrições à apropriação societária por uma ou outra pessoa, mediante, como já se aventou, a oferta de ações a pessoas integrantes de programas de sócios torcedores ou assinantes, apenas como exemplo, de planos de transmissão de jogos de campeonatos disputados no Brasil. Além disso, por meio da imposição de limite de votos por acionista, independentemente do número de ações de que seja titular. E, ainda, a eventual fixação de número máximo de ações por acionista. Em segundo lugar, mas não menos importante, com relação à estrutura interna, mediante a arquitetura de órgãos de administração, consubstanciados em conselho de administração (com ou sem membros independentes), comitês executivos (ou de aconselhamento) do conselho de administração, diretoria (e gerências, inclusive regionais), área de relações com investidores, canais de transparência, comitês temáticos, auditores independentes e conselho fiscal, que reflitam, basicamente, os seguintes aspectos (ou interesses) fundamentais: (i) o desenvolvimento do futebol no Brasil; (ii) o desenvolvimento da seleção brasileira - que, conforme se depreende da realidade atual, está descasado do futebol no Brasil, pois a grande maioria dos atletas selecionados sai cedo do país, é formada fora e "importada" apenas para satisfazer os desejos da CBF (de modo que, em tese, para ela, a própria existência atual de campeonatos profissionais seria desnecessária, desde que brasileiros em fase de formação continuassem a ser exportados para alimentar times europeus); (iii) o desenvolvimento regional por via das federações, que passariam a ter um papel desenvolvimentista inequívoco e atrelado a um projeto nacional; (iv) o desenvolvimento do futebol brasileiro no exterior; (v) a utilização do futebol como instrumento de incentivo à educação formal e à inserção social das pessoas integrantes do sistema; (vi) a afirmação do futebol brasileiro como instrumento de divulgação e de softpower; (vii) a afirmação da atividade como setor prioritário, empregador e distribuidor de renda; e   (viii) o interesse nacional (assim como Hollywood, NBA, K-Pop ou Bollywood exercem em relação aos seus países). No âmbito conceptivo da arquitetura do projeto, para posterior edificação da estrutura, e adequada distribuição de atividades e prioridades, a própria função da CBF e de suas atuações seriam revisadas e ressignificadas, considerando-se dois eixos principais: separação de atividades profissionais e essenciais de outras, auxiliares ou complementares; e atribuições e separações envolvendo interesses da seleção brasileira e interesses dos times de futebol. O tratamento desses dois eixos será objeto do texto da próxima semana.
Os três textos publicados nas semanas anteriores apresentaram, de maneira resumida, os passos sugeridos para implementação de um grandioso projeto de CBF, consistentes, cronologicamente, na sua mutualização, desmutualização e abertura de capital. Os gráficos abaixo indicam a situação atual e os efeitos de cada passo: Além de tais passos, há uma série de aspectos, apresentados no último parágrafo do texto da semana anterior, que devem ser apreciados antes e durante o processo, em especial para que o resultado beneficie a própria CBF, os times, os jogadores, os torcedores, as federações e a sociedade em geral - de modo a evitar a apropriação, por poucos e pequenos grupos de interesse, da riqueza que se produzirá. A mutualização, como explicado em texto anterior, implica a atribuição de títulos patrimoniais, hoje inexistentes, aos clubes ou sociedades anônimas do futebol (e federações). Promove-se, com ela, uma (quase) alquimia jurídico-econômica (expressão inexistente e atécnica), pois se cria, do nada, um patrimônio distribuível e protegido juridicamente, com valor estimável e realizável, em favor dos times e federações. Além - e isso é muito importante - do ingresso de recursos na própria CBF, que poderá utilizá-los para: (i) reforçar o investimento na seleção e na sua expansão como softpower; e (ii) passar a ser uma legítima distribuidora de novos recursos à sociedade, provenientes da geração de lucros da sua atividade. Daí a importância, em primeiro lugar, de fixação de critérios democráticos de atribuição de títulos patrimoniais aos clubes, para que não se promova uma concentração ou um reforço da elitização do futebol no Brasil. Não se propõe, de modo inverso, que clubes sem tradição histórica e com pouca perspectiva de contribuição social e econômica sejam contemplados de modo desarrazoado; apenas se sugere o encontro de fórmulas sensatas e contributivas para a higidez do sistema. Critérios como tamanho de torcida, títulos internacionais, títulos nacionais e outros podem ser levados em conta, dentre, por exemplo, os times que participem ou tenham participado das séries A, B, C e D do Campeonato Brasileiro ou da Copa do Brasil, no ano da própria atribuição dos títulos patrimoniais e nos últimos 5 anos. Ademais, levando-se em conta que a implementação do projeto depende de atuação estatal, em sua função legisladora (algo que não se revela uma novidade ou exotismo brasileiro pois, em todos os países que avançaram em seus modelos de organização do futebol, como Alemanha, França e Espanha, o Estado cumpriu inevitável e legítimo papel de fixador da moldura jurídica essencial à segurança dos agentes e do sistema), certas contrapartidas podem (ou devem) ser arquitetadas. Uma delas envolve a utilização de parte dos recursos futuros, oriundos da venda de ações da CBF, para eliminação parcial, e com desconto, de obrigações tributárias, e alocação de outra parte na melhoria das estruturas de formação de jovens jogadores. Na outra ponta, relativa à estrutura societária da CBF, após sua abertura de capital, alguns aspectos também devem ser considerados. Primeiro, eventual incentivo para retenção e liberação parcial de venda de ações, para evitar movimentos imediatistas e prejudiciais aos times, sem que, com isso, se impeça a obtenção de liquidez imediata. Segundo, no âmbito da subscrição primária, ou seja, na aquisição, por terceiros, de ações da CBF, a escolha de critérios de preferência aquisitiva das ações, que seria atribuída, por exemplo, aos próprios times que pretendam comprar mais ações, a torcedores inscritos em planos de sócio torcedor dos times beneficiários e a cidadãos brasileiros. Terceiro, determinação de limite máximo de ações por acionista, incluindo os times e demais ofertados preferenciais, para evitar concentração de poder ou exercício de controle indesejado. Quarto, obrigatoriedade de revelação do nome do beneficiário final da titularidade de ações de emissão da CBF que superem determinado percentual do capital social da entidade, quando o proprietário for pessoa jurídica, local ou internacional (e, neste caso, obrigatoriedade de indicação de procurador local, com amplos poderes, inclusive de representação). E, quinto, instituição de critérios de vetos quanto à aprovação de matérias que impliquem interesse nacional, cultural ou de outras naturezas, que podem ser exercidos por entidades ou grupos de acionistas (inclusive uma CBF associativa, acionista da CBF S.A., sobre a qual, aliás, se discorrerá em texto específico). Essa estrutura haveria de ser estabilizada por meio da arquitetura de um modelo próprio de governação, que será objeto do próximo texto desta série.