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Propondo o jogo: reposicionamento do time em campo

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Atualizado às 08:29

Texto de autoria de Savério Orlandi

"A coisa que é a mais importante entre as coisas menos importantes" das vidas de milhões de brasileiros está sobrestada, e nem poderia ser diferente... Ainda que vejamos isoladamente a petulância do futebol carioca, verdade é que não há clima para a disputa, vemos hospitais de campanha lindeiros a praças esportivas, vidas ceifadas, cenários de flagrante indefinição.

Mesmo sem bola, muita coisa está em jogo fora do eixo sempre óbvio e estático da discussão sobre o calendário, o profissionalismo, o flair play financeiro, etc., até porque imperiosa, antes de tudo, a necessidade dos clubes já combalidos pré-crise se recomporem do "soco no estômago", em face do abalo substancial na geração de suas receitas orçadas para o exercício de 2020.

Na "mesa", são as seguintes as cartas postas: a MP 984, recém-editada, concernente (em especial) à mudança na regra do direito de arena, e três Projetos de Lei em tramitação, sendo um deles destinado ao socorro circunstancial do PROFUT, além de outros dois que cuidam da forma de organização da atividade futebolística através da adoção de modelos empresariais.

Quanto ao PL 2.125/20, com os ajustes que sofrerá pelo processo legislativo, trata em verdade de norma concebida e cingida pela circunstância da crise atual, versando uma ação antecipatória e benevolente do Poder Público em favor das associações no enfrentamento dos seus problemas (pré-existentes, diga-se) para o cumprimento das obrigações contraídas quando de suas adesões ao PROFUT, isto é, em nada que de fato importe além da dilação temporária do "cheque especial", ou nada além de uma situação presente que insiste em reinventar o passado.

Por outro lado, no tocante às discussões abarcadas pelos demais temas atualmente submetidos ao crivo legislativo, deparamo-nos com matérias que veiculam formas de financiamento dos deficitários clubes e que poderiam, em tese, funcionar como vetores para a transformação do mercado futebolístico, adquirindo feição de miríade e demandando atenção ou envolvimento.

A MP 984 carrega de partida o descrédito de ter sido editada sob açodamento e sem consulta aos atores envolvidos, além de identificada como se carimbada por uma associação esportiva, bem assim com o aparente interesse de retaliação direcionada pelo Chefe do Executivo ao grupo detentor da maior parte dos direitos de transmissão; mas o debate fica raso se consideradas apenas tais ilações, sem incidirmos no seu pano de fundo, de suma importância, que pode servir de lastro para disciplinar novas relações comerciais, com enorme potencial de êxito econômico.

É possível admitir que este assunto específico tratado na MP é revestido do caráter de urgência e relevância, todavia, não na sua acepção jurídica como fundamento para autorizar o permissivo legal do artigo 62 da Constituição Federal; sim, é relevante, já que altera o "status quo" e fornece meios para uma nova e sadia realidade, é urgente, pois clubes mendicantes reclamam receitas!

Talvez um debate amplo e mais acurado, contando com os agentes lotados em todas as pontas da cadeia, fosse mais profícuo... recomendável também que as associações esportivas tivessem desde logo um denso entendimento do "instituto", das suas oportunidades e consequências, validando entre si o denominador comum mínimo para após sair a mercado tendo no horizonte a formação de um bloco (ou a sonhada Liga), criando também nesta formatação os mecanismos indispensáveis à defesa dos interesses de todos, sejam maiores ou menores, através de escalas definidas e objetivas, sempre observando condições de visibilidade, performance, percentual de venda, entre outros afetos; esse debate deve ainda se conectar com os geradores de conteúdo e transmissão partindo do primado de respeito aos atos jurídicos perfeitos, de tal sorte que, pela própria complexidade inerente, não pode e nem deve realizar-se em sede de Medida Provisória.

A "lenda viva" do formato empresarial, tratada nos dois outros projetos de lei aqui citados, pode encontrar guarida para seu avanço na reunião das duas propostas em um texto normatizador único, com plena capacidade de significar o desejado marco de regulação deste novo mercado. De um lado, a SAF - Sociedade Anônima Futebolística, de outro o Clube Empresa, através de variados modelos societários, além de outras disposições catalogadas em cada um dos projetos.

Importante reconhecer, para fins de conceituação e encaminhamento, que as proposições não são entre si excludentes, sendo certo que para a futura adoção da classe empresarial, se o caso, será lícito à cada associação definir, segundo critério de conveniência e oportunidade, qual será o formato a ser escolhido; caberá aos clubes no seu exclusivo interesse e sintonizados com suas coletividades compostas de conselheiros, associados e aficionados, a opção, seja pela sociedade anônima com o rigor das suas obrigações de transparência, da sua governação disciplinada e demais ônus incidentes, ou de outro modelo, que pode ser até mesmo o mais singelo obtido por exemplo com um contrato social padrão e um acordo escrito qualquer feito em separado, o que se chama pela alcunha de "contrato de gaveta": quer se dizer, cada um vai decidir o que melhor lhe aprouve, a decisão tanto pela sociedade de capital aberto com acesso ao mercado de ações, sujeito às publicações legais e as demonstrações cristalinas de resultado, como algum tipo de sociedade fechada, gerida até mesmo como se uma "confraria" fosse. Enfim... cada clube sabe por si só melhor do ninguém, "onde é que o seu calo aperta".

Assim, é evidente que os clubes devam peremptoriamente decidir quem são, o que pretendem ser, e em qual mercado intencionam operar no futuro: o CNC - Conselho Nacional dos Clubes, de aparição fugaz e propósito louvável no início desta crise, aos olhos do grande público revelou-se como efêmero, traduzindo-se mais como um guarda-chuva que "curou dos seus" em ato de solidariedade recíproca diante do pânico criado, com os seus participantes, assimilado o susto, voltando-se novamente aos seus problemas domésticos, ao modo particular de dar um "jeito aqui e outro ali", em resumo, aos seus vícios e vicissitudes... Com a pretensão de ser o que deseja, o CNC precisa mostrar a que veio, e aqui atrevo-me de plano a afastar o eufemismo de vocábulos como pauta ou agenda e sugerir que seja imposta uma verdadeira "Ordem do Dia" que possa tratar, além da pandemia, de como pode ser aperfeiçoado e adiante adotado o novo modelo do direito de arena com percepção de futuro quanto aos meios sociais, e reivindicar o pronto estabelecimento de um marco regulatório, para o qual o mais aconselhável seria a fusão dos dois projetos em curso, que dispõem sobre o "clube empresa" e as suas derivações.

Como vimos, o maior desafio dos clubes neste momento de reflexão, não bastasse a superação dos problemas financeiros e esportivos, é o de promover o seu reposicionamento de mercado com a criação de um novo habitat, através de formulações para o futuro que alterem efetiva e irreversivelmente o estado das coisas, a fim de permitir às associações clubísticas que deixem de ter que esperar passivamente, ano após ano, pela ocorrência de eventos miraculosos... ou de ter que se valer dos expedientes de antecipar receitas, realizar precocemente seus ativos, judicializar passivos, faltar com compromissos.

A pandemia feriu quase de morte o exercício financeiro de 2020 e certamente irá transcendê-lo alcançando o ano de 2021, seguindo-se em 2022, dentro de condições normais, um ano de Copa do Mundo onde pouco se faz e/ou produz (em geral e no próprio futebol, excetuado o torneio); então, mesmo com a premência de superar o estrago atual, o "projeto" do futebol brasileiro há de ser contemplado a médio e longo prazo, mormente pois deve se conjugar uma série de ações e modificações para as quais é preciso um certo decurso de tempo, contudo, deve ser pensado e implementado desde o presente, vale dizer, a partir de amanhã!

Como afirmou Alex Bellos, sendo o Brasil "o único país a ter participado de todas as Copas, o estado nação é passível de ser conferido em saltos de quatro anos"1; fica assim por derradeiro a última sugestão, qual seja, para que o trabalho se inaugure e tenha como horizonte, no limite, a época do Mundial na América do Norte a ser realizado em 2026, quem sabe tenhamos até lá esse novo mercado estruturado e vigente. Vamos ver... ou melhor, será que quem viver, verá?

Savério Orlandi é advogado militante em SP, sócio filiado e consultor jurídico da ABEX (Associação Brasileira dos Executivos de Futebol), membro vitalício do Conselho Deliberativo, Membro Efetivo do Conselho de Orientação e Fiscalização e ex-diretor de Futebol Profissional 07/10 da Sociedade Esportiva Palmeiras, pós-graduado em Direito Empresarial pela PUC/SP, onde também se graduou.

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1 "Futebol: O Brasil em campo", trad. de Jorge Viveiros de Castro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003, p.57.