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Futebol, pão e circo

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Atualizado às 08:35

A Folha de São Paulo promoveu, na edição de sábado, 22 de agosto, debate escrito em torno da seguinte provocação: "com atletas contaminados e jogos suspensos, o Brasileirão deveria ser paralisado?". Respondeu afirmativamente o jornalista Juca Kfouri, segundo o qual "nem deveria ter começado". Em sentido contrário, manifestaram-se os dirigentes do Corinthians, Vicente Cândido e Ivan Grava, os quais entendem que a "retomada ocorreu após inúmeras discussões entre especialistas".

Não se pretende, aqui, invadir a polêmica, que nem deveria existir, diante do quadro de incertezas e de falta de estrutura do futebol brasileiro para oferecer a necessária proteção a jogadores que se distribuem e se deslocam por um território de dimensões continentais - e, não raro, em condições precárias de transporte, alimentação e higiene.

Chama atenção, no entanto, a argumentação da dupla corintiana, apresentada no mencionado texto: "(a)pesar dos obstáculos a serem superados, acreditamos fortemente que, com os devidos cuidados, podemos, para além da retomada econômica, ser também um veículo de mensagem positiva e de entretenimento para milhares de brasileiros que admiram e desfrutam o futebol".

Aparentemente inofensiva, a mensagem é, a um só tempo, incoerente e assustadora.

Quisesse a casta cartolarial apresentar-se, ou melhor, apresentar o futebol como referência e veículo de algo positivo para o País, já teria, há muito tempo, reconhecido a degeneração do modelo associativo como núcleo organizacional e proprietário da atividade futebolística. Teria feito mais, aliás: a promoção da necessária reformulação, visando à sua sustentabilidade, para, aí sim, oferecer, além de um ambiente integrativo, produtos e espetáculos de qualidade.

Lembre-se, a propósito, que os principais clubes brasileiros acumulam endividamento bilionário, causado justamente pelos cartolas que se aproveitam da paixão do torcedor e da natureza não econômica das associações, visto que elas não podem requerer recuperação judicial ou falir, e agem de modo irresponsável e consoante propósitos pessoais.

Não à toa que os beneficiários (e mantenedores) do sistema resistem a participar da luta encabeçada pelos Congressistas Rodrigo Pacheco (Senador da República, DEM/MG) e Pedro Paulo (Deputado Federal, DEM/RJ), que trabalham na convergência de um novo marco regulatório organizacional do futebol, cujo conteúdo reabilitador não tem precedentes na história do Brasil - e, até onde se conhece, também sem comparação com qualquer modelo implementado em países ocidentais.

Ademais, a mensagem contida naquela proposição assusta pelo reconhecimento - provavelmente involuntário, assim se espera - de que, apesar da potencialidade econômica e social do futebol, os seus donos, i.e., os dirigentes eleitos por motivos político-associativos, que dominam as relações no interior dos clubes ou federações,  tratam-no (ou buscam tratá-lo), na verdade, como meio de (i) realização de negócios, não necessariamente ligados ao interesse da coletividade e (ii) contenção e manipulação das massas, à conta dos jogadores.

Por isso, como afirma a dupla de dirigentes, "em casa, cumprindo o isolamento social, esses torcedores terão também no seu cardápio uma boa opção de lazer e de combate ao estresse".

Na Roma antiga, como se sabe, gladiadores eram expostos a outros rivais, eventualmente a animais ferozes, para satisfação e entretenimento geral; eventos de confronto compunham, pois, o leque (ou o cardápio) de medidas relacionadas à manutenção da ordem e ao aliviamento do estresse social, à conta de seres humanos que se batiam pelas suas vidas - e pelo relaxamento das ansiedades alheias.

É verdade que o texto publicado na Folha pretende demonstrar, sem atingir seu objetivo, que as medidas preventivas, impostas pelas entidades organizadoras do futebol, evitarão, justamente, a atração e o alastramento de doenças - logo, que vidas não estão - ou estarão - em jogo. Evitando-se, novamente, a entrada no debate, fato é que ele faz emergir a natureza desumana da relação do cartolariado com o objeto que cartolaria.

Nele se afirma, a propósito, que "a absoluta necessidade de sobrevivência levou uma maioria alargada dos dirigentes do futebol a defender a volta dos jogos sem público o quanto antes, já que este setor da economia praticamente não contou com nenhuma ajuda do poder público (...) Daí a necessidade de dar continuidade aos certames".

A ausência de preocupação com o principal motivo da existência do futebol, o jogador, é inaceitável.

De resto, vale reforçar que, em primeiro lugar, o Estado e a sociedade em geral ajudam e subsidiam os clubes associativos há mais de um século, com imunidades, isenções, parcelamentos, leniências, patrocínios e outros meios, e recebem, em troca, dívidas, má administração, falta de transparência e ausência de investimento efetivo na formação de um ambiente sustentável, capaz de reduzir desigualdades e inserir crianças, jovens e adultos, desfavorecidos economicamente.

Em segundo, a necessidade de sobrevivência clubística só se revela absoluta, se tiver um fim social, e daí econômico, concatenado com certos valores, que pressupõem o enaltecimento do ser humano - e não a sua coisificação, justificadora, aliás, das péssimas condições de trabalho da absoluta (aqui a expressão é válida) maioria dos atletas profissionais, empregados em clubes sem expressão nacional.

Em terceiro, mas não menos importante, a crise sistêmica não foi causada pela pandemia, que a potencializou, sem dúvida, mas a precede, em décadas, e muito menos pelos jogadores, que lutam, bravamente, pela dignidade profissional.

O discurso, enfim, em defesa da inevitabilidade da entrega de lazer e entretenimento à população infeliz, pela via do futebol, afirma, apenas, a sua utilização, manipulada, pelos seus donos: a casta cartolarial.