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Rilke, Vila-Matas, Paris e mais um alerta aos membros do Congresso Nacional: o futebol brasileiro é grandioso, mas tem fim

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Atualizado às 08:25

O poeta Rainer Maria Rilke nasceu no ano de 1875, em Praga, estudou na Alemanha, impressionou-se pela Rússia, morou em Paris, onde trabalhou com Auguste Rodin, mudou-se para Trieste, depois voltou a morar na Alemanha e, por fim, estabeleceu-se na Suíça.

Influenciou autores das gerações seguintes, como o espanhol Enrique Vila-Matas, nascido em Barcelona, em 1948, que manteve intensa atuação como jornalista, mas se notabilizou como escritor - sobretudo ficcionista.

Na sedutora obra "Paris não tem fim", o catalão cita ou transcreve o poeta em algumas oportunidades. Numa delas, para apresentar versos dedicados por Rilke à artista Paula Modersohn-Becker, morta precocemente aos 31 anos, intitulada "Réquiem para uma amiga". A composição é inspiradora: "há em algum lugar uma antiga inimizade entre a vida e a grande obra...".

O livro, aliás, narra o prelúdio da carreira de um jovem espanhol que, pretendendo consagrar-se como escritor, muda-se para Paris e lá estabelece, no início da década de 1970, contato com algumas das figuras, francesas ou não, que marcavam a cena intelectual (trata-se, pois, de uma espécie de fusão entre ficção e autobiografia).

A narrativa não se restringe aos contemporâneos, flutuando, com elegância, por outras personalidades que transitaram, anos ou décadas antes, pela cidade - como Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald.

Ao lembrar Marcel Proust - autor parisiense, criador da monumental "Em busca do tempo perdido" -, anota que, para ele, o "passado (...) não só não é fugaz, como não se move de lugar. Com Paris se passa o mesmo, jamais saiu de viagem. E ainda por cima não tem fim, não acaba nunca".

Ao lado da beleza arquitetônica, da fartura gastronômica e da luminosidade, os notáveis que habitaram aquela cidade contribuíram - e ainda contribuem - para mitificá-la, tornando-a, no plano do desejo, infindável - e insuperável.

Assim, quem vai à capital francesa busca mais do que ela pode entregar em seu tempo; também procura alguma Paris eternizada na literatura, na pintura, na poesia ou no cinema (ou todas elas, como o fez Woody Allen em seu delicioso "Meia Noite em Paris").

Era sobre isso, pois, que Proust escrevia: a impossibilidade do fim lírico, ou poético, por conta do movimento preservacionista e ao mesmo tempo renovatório imposto pelas gentes; e não o desaparecimento físico de uma metrópole que, somente em decorrência de evento apocalíptico, seria varrida do mapa.

É justamente nesse ponto que se pode formular uma comparação com o futebol brasileiro.

A riqueza de sua história, envolvendo times e jogadores (muitos míticos, como o Botafogo de 1957, o Santos de 1963, o Internacional de 1979, o Flamengo de 1981, o São Paulo de 1992; ou Arthur Friedenreich, Leônidas da Silva, Garrincha, Pelé, Rivelino, Zico, Sócrates, Careca, Raí, Romário e os dois Ronaldos), contribui para que, ao se falar do que se joga na atualidade, e por quem se joga, sobrevenha uma nostálgica e importante carga histórica, como que para relembrar a responsabilidade das pessoas que aceitaram manter a tradição.

Entende-se, pois, por futebol brasileiro, a soma das experiências pretéritas, que se inserem num processo evolutivo e renovatório contínuo, revelador e afirmador das práticas atuais.  

Ocorre que, com o advento de novas técnicas de (i) detenção da propriedade futebolística e (ii) financiamento empresarial, adotadas sobretudo pelos países europeus, a formação espontânea de jogadores e a viabilidade competitiva dos clubes associativos foram colocadas à prova e, conforme os resultados em competições multicontinentais indicam, reprovadas.

Não apenas isso, aliás: a própria situação financeira e patrimonial dos clubes locais também reforça a inviabilidade do modelo defendido, de maneira conflituosa, justamente pelas pessoas que pretendem mantê-lo.

Apesar desse diagnóstico, que ninguém se habilita a refutar, a nova ordem do futebol, implementada nos principais centros mundiais, continua a ser resistida no Brasil.

Chegou-se, assim, ao estágio em que os donos do futebol, ou seja, os dirigentes formados e eternizados no ambiente clubístico-associativo, não têm mais condições - e legitimidade, tamanho o estrago causado ao patrimônio histórico-cultural brasileiro -, para determinar o ritmo e o conteúdo das mudanças que devem ser implementadas.

Resta, em contrapartida, apenas uma saída: a devolução do destino do futebol ao povo: ao Congresso Nacional, portanto.

Mas não se iludam os congressistas; ou não iludam o povo, que representam. Apesar de o futebol não ter "saído de viagem" e de se manter por aqui - conforme metáfora proustiana -, ninguém mais, fora do Brasil, e mesmo no Brasil, o contempla, como o contemplava no passado. E como o futebol é momento (ao contrário de Paris, que oferece sensações híbridas), as realizações do passado são insuficientes para manter o interesse global na produção futebolística brasileira - exceto de mercadores de jogadores, que enriquecem de modo inversamente proporcional à derrocada clubística.

Daí a missão - e a responsabilidade - do Congresso Nacional. Daí, também, a oportunidade de devolver ao povo o que é do povo - e não de uma casta cartolarial que, conforme demonstram os resultados práticos, é dirigida por interesses próprios. Daí, por fim, a urgência de desmentir Rilke: afinal, a grande obra não precisa ser inimiga da vida; ela pode transformar e enaltecer a vida. E o futebol, como nenhuma outra atividade, pode, neste País de desigualdades, de modo grandioso, contribuir para construção de uma sociedade mais tolerante e igualitária.

O caminho está posto: a conclusão do processo de convergência dos projetos de lei 5.082/16 (relatado pelo deputado Federal Pedro Paulo, DEM/RJ) e 5.516/19 (de autoria do senador da República Rodrigo Pacheco, DEM/MG), ambos em tramitação no Senado Federal; e a entrega, pelo Congresso Nacional, do marco regulatório condizente com a grandeza da história e do futebol do Brasil.