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Para o torcedor brasileiro sonhar - e comemorar

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Atualizado às 07:25

Jorge Ben Jor compôs Fio Maravilha em homenagem a João Batista de Sales, jogador imprevisível, que entortava marcadores com a mesma facilidade que, dizem, perdia gols feitos.

Em partida disputada no Maracanã, em 1972, o atacante saiu do banco para fazer o único tento do confronto que opôs o Flamengo ao Benfica. Maravilhado com a façanha, o compositor (flamenguista) imortalizou-a:

"Foi um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa / E a magnética agradecida se encantava (...) / Fio Maravilha, nós gostamos de você / Fio Maravilha, faz mais um pra gente vê (...) / E novamente ele chegou com inspiração / Com muito amor, com emoção, com explosão e gol / Sacudindo a torcida aos 33 minutos do segundo tempo / Depois de fazer uma jogada celestial em gol (...)"

A composição ajuda a explicar o fascínio que o futebol exerce sobre as gentes, que o tomam, a depender da relação estabelecida com os times (ou seleções nacionais) de preferência, como (i) simples esporte, (ii) manifestação contemporânea de enfrentamento (ou ato de guerra), (iii) arte, (iv) entretenimento, (v) veículo de inserção social e econômica e/ou (vi) instrumento de alienação das massas.

O futebol é tudo isso e muito mais (e pode ser instrumentalizado para um ou mais desses propósitos). Daí a dificuldade de formulação de uma explicação abrangente do fenômeno, ao menos no plano factual. De lá, também decorre o fracasso de qualquer tentativa de enquadrar (ou domar) algo que, por natureza, mantém-se em permanente processo de expansão.

A aceitação dessa proposição apazigua a alma - assim como também se sente em paz a pessoa que aceita Deus, mesmo sem conseguir demonstrar cientificamente sua presença (ou existência); ou aquela que, confrontando-se com milagres inexplicáveis do ponto de vista científico, assume deliberadamente a impossibilidade do Ser divino.

O fato de o futebol ser grandioso e inexplicável não significa que não possa ser, de algum modo, atacado ou prejudicado - ou mesmo destruído.

Nesse sentido, a destruição imposta pelo ser humano (no Brasil ou no exterior) a determinados ambientes - ou ecossistemas - revela a urgência de reversão do processo destrutivo do futebol brasileiro, pois, a partir de determinados pontos de destrutividade, a reversibilidade se torna inviável, por motivos naturais ou econômicos.

Pois bem.

Historicamente, apesar de algumas vozes dissonantes, o establishment futebolístico aproveitou-se da inadequação legislativa e do pouco interesse dos grandes grupos midiáticos para perpetuar práticas que, por coincidência ou não, são contemporâneas ao colonialismo escravocrata.

Por isso, deve-se sempre lembrar: a Casa Grande não nutria afeto ou apreço pela Senzala, que era explorada para geração de lucros ou para satisfação de interesses egoísticos.

No futebol, afastadas as diferenças temporais (e estruturais), o Cartolismo - sistema criado para justificar e preservar o controle dos ativos futebolísticos por pessoas que não detêm a sua propriedade - recorre a dogmas seculares para evitar a reformulação estrutural e a revisão de práticas que já se demonstraram insustentáveis nos planos esportivo, social e econômico.

Não à toa o estado calamitoso em que os clubes se encontram. Não à toa, também, o fato de o Brasil ter passado à condição de exportador terceiro-mundista de matéria prima (no caso, de pé-obra), em detrimento da adoção de uma política de desenvolvimento e disseminação de tecnologia do futebol (como, também não por acaso, adotou-se nos países europeus protagonistas - os mesmos, aliás, que, no passado, extraíram as riquezas naturais encontradas no território brasileiro).

Esse ambiente, de certa forma entreguista, pode, enfim, começar a mudar.

Do Senado Federal chegam notícias alvissareiras: o senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG) postou, semana passada, o seguinte: "é prioritária a edição da lei do clube empresa no Brasil, seja com o projeto que veio da Câmara, seja como o de minha autoria, no Senado. Na próxima semana (...) iniciarei o debate dessa matéria para chegarmos a um consenso sobre o melhor texto para o futebol brasileiro".    

Na sequência, soltou nota pública em que ele, autor "do projeto de lei que cria a Sociedade Anônima do Futebol (SAF), em tramitação no Senado (...) que, além de criar a SAF, estabelece regras específicas, normas de governança, controle e transparência (...)", pretende, considerando também a tramitação, no Senado Federal, do projeto do clube-empresa, do deputado Federal Pedro Paulo (DEM/RJ), "ampliar o debate dos dois projetos para, se houver consenso, construir um texto único, com critérios mais transparentes, seguros e que estimulem o funcionamento dos clubes de futebol no país".

Essa é a senha, ao que tudo indica, para consumação de um processo realmente republicano de convergência em torno de um marco regulatório, derivado de ambos os projetos, sem precedentes em qualquer país ocidental, visando à reconstrução de uma atividade associada à brasilidade e à capacidade de uma Nação - sem qualquer pretensão ufanista - de se afirmar (ou reafirmar).

Enfim, o torcedor brasileiro deve torcer, de modo unificado, sem divisão clubística, para que a atual legislatura seja merecedora da placa mais relevante da história do Congresso Nacional (relacionada ao futebol, evidentemente).