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Democracia, futebol, Lugano, Maradona, Sócrates e o Congresso Nacional

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Atualizado às 08:12

Diego Lugano exerceu o segundo cargo público mais importante do Uruguai: a capitania da seleção nacional de futebol, honraria atribuída ao cidadão (sim, cidadão, antes do jogador) que representa, talvez mais até do que o Presidente daquele país, o estado de espírito integrativo que incorpora a determinação por uma sociedade, apesar de plural, una.

No Brasil, a posição do capitão da seleção não tem a mesma importância - ou dela se foi tirando a relevância, por motivos pragmáticos ou políticos. Aí está, aliás, um tema a ser estudado, em especial quanto à prática do rodízio, entre os atletas, da faixa de capitão. Isso faz incidir sobre pessoas que, às vezes, sequer possuem a aptidão do comando, o peso simbólico de liderar a equipe, subtraindo, assim, dos verdadeiros comandantes, o protagonismo da liderança que lhes é inerente.

Não apenas por isso - mas esse não deixa de ser um reflexo -, a relação do povo com o time nacional vem se tornando cada vez mais pálida e a indiferença atinge níveis preocupantes.  

Preocupa porque, como diz Diego Lugano, o futebol é um esporte democrático, para cuja prática basta um objeto redondo - eventualmente produzido com meias, até - que se transforma em bola, e uma criança sonhadora ou um bando delas, que corre sobre qualquer superfície - mesmo que seja um apertado corredor de apartamento residencial ou um terreno acidentado.

Diante de uma bola, ricos e pobres, brancos e negros, ou quaisquer diferentes se igualam, ou, mais ainda, invertem, constante e pacificamente, as posições que costumam ocupar na segregada sociedade brasileira.

Em países marcados pela desigualdade - como a maioria, senão todos, os sul-americanos -, o enfraquecimento do futebol implica a redução, em mesma proporção, da perspectiva real de ascensão de pessoas de classes menos favorecidas econômica e socialmente, que somente poderiam competir, com os mais favorecidos, de forma igualitária, no campo de jogo.

Essa perspectiva assusta e justifica o esforço empregado pelos donos do futebol para tentar ocultar ou minar a importância social e econômica daquele esporte, mantendo-o sob secular dominação.

No ambiente futebolístico, a liberdade e a igualdade são princípios que costumam ser corrompidos com o propósito de preservar privilégios. E quando gênios, como Diego Maradona ou Sócrates, ameaçam transgredir o sistema, acabam sendo transformados, involuntariamente, em peças indesejadas, mas necessárias ao próprio sistema, apesar de, aparentemente, representarem o antissistema.   

Assim se descobre o motivo da inexistência de políticas públicas efetivas que projetem o futebol à condição de um dos pilares da sociedade brasileira. Não se trata, portanto, de aversão à disseminação de uma atividade que se presta, supostamente, à alienação do povo, mas de imposição de obstáculos ao oferecimento de vias redutoras de desigualdade e de falta de oportunidades.

Algumas referências demonstram a relevância do tema - e como o futebol se insere na sociedade contemporânea e como poderia contribuir para o desenvolvimento do País: no plano mundial, é acompanhado por aproximadamente 4,5 bilhões de pessoas; o campeonato inglês (Premier League) arrecadou, na temporada encerrada em 2019, 5,845 bilhões de euros1, além de seus clubes participantes terem movimentado, apenas com reforços, o montante de de 831 milhões de euros2; segundo o relatório "Football Money League" da Deloitte3, em sua edição publicada neste ano, o Barcelona obteve, em 2018/2019, o maior faturamento do planeta, da ordem de 841 milhões de euros, aproximadamente; e de todos os negócios com jogadores realizados na janela de transferências até julho de 2020, mais de 11%(!) envolveram jogadores brasileiros4.

No plano local, os números também são expressivos: a seleção brasileira foi a única a se classificar para todas as Copas do Mundo e ainda ostenta o título de maior campeã de todos os tempos (pentacampeã); o maior jogador da história é brasileiro: Pelé, o rei; a maior jogadora também: Marta, a rainha; o Brasil é o único país do planeta, com dimensões continentais, que tem tradição no esporte; os times considerados grandes nacionalmente, e os vários grandes regionais, além de tradição, possuem potencial para se tornarem líderes de mercado (partindo do país ao continente, e do continente para o mundo): afinal, têm torcida, camisa e receptividade de um fiel público consumidor, além do espectador eventual, formando um contingente em torno de 150 milhões de pessoas.

E o que se tem feito para preservar esse patrimônio (material e imaterial) e transformá-lo, enfim, em riqueza e distribuição de renda? Ou para concorrer no bilionário mercado global? Nada. Absolutamente, nada.

Ao contrário, tem-se empreendido há mais de um século um esforço político, à conta do contribuinte e do torcedor, para manter a concentração de poder nas mãos de uma casta cartolarial que se sucede e se protege e, ao mesmo tempo, simboliza o desprezo à inclusão e à distribuição.

Não há mais espaço para que tão poucos - algumas dezenas de pessoas, dentre milhões - concentrem tanto privilégio, em desfavor de uma Nação inteira.

A conivência não se justifica em uma Democracia, como a brasileira, que, apesar de ferida, por conta de tantos ataques sofridos nos últimos anos - sobretudo a partir da temerária (e irresponsável) instrumentalização e politização da Lava-Jato, que consumiu empresas e milhões de empregos -, resistiu por meio da resiliência de suas instituições (e do seu povo).

Agora, chegou a vez de o Congresso Nacional, um dos pilares do Estado de Direito, escrever mais uma página do necessário movimento de revisão de desajustes que se sustentam, desde a proclamação da República, e impedem a construção de um País realmente justo.

Isso será feito, no plano futebolístico, por meio da rápida e necessária convergência entre o PL 5.082/16, relatado na Câmara dos Deputados, pelo deputado Federal  Pedro Paulo (DEM/RJ), e o PL 5.516/19, de autoria do Senador da República, Rodrigo Pacheco (DEM/MG).

Algo que, ao que tudo indica, poderá ocorrer ainda este ano - e, justamente num ano tão complicado, virá a ser um presente ao torcedor brasileiro. 

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1 Premier League faturou R$ 33 bilhões e foi campeonato mais rico de 2019, mas tem ameaça bilionária com Covid-19.

2 Mercado da Bola movimenta R$ 18,8 bi: veja os 10 campeonatos mais gastões.

3 Football money league 2020.

4 Mercado da Bola já movimentou R$ 8 bi; conheça os 10 brasileiros mais caros.