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O Brasil não é um país para amadores (e os reflexos no futebol e na seleção)

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Atualizado às 07:58

Ouve-se, por aí, que o Brasil não é um país para amadores. A afirmação encobre, na verdade, vários sentidos mais complexos (e pejorativos) relacionados às nossas mazelas (estruturais ou conjunturais).

Amadorismo, burocracia, corrupção, conflito ético, conchavo, partidarismo, negacionismo e outras condutas podem ser justificadas pela frase.

Sim, pois o que se revela não é um excesso de profissionalismo - ou de sofisticação -, inacessível ao agente amador; mas, ao contrário, um ambiente imprevisível e, em algumas situações, inviável, por conta de posturas inexplicáveis (tendentes ao favorecimento de pessoas ou grupos de interesses).

Mesmo assim, ousarei apropriar-me da frase para, dando-lhe mais um significado, tratar do tema central da coluna.

O ponto de partida é a relação que parcela dos brasileiros, especialmente os supostamente mais informados e educados, estabelece com o futebol.

Desde criança ouço que o futebol é um instrumento a serviço do poder para alienar as massas. Acho que essa proposição estava associada, naquela época, à utilização da seleção brasileira pelos governos militares.

A incompreensão do fenômeno, que foi ressignificado nos governos seguintes (de esquerda ou de direita), contribuiu para que parte do patrimônio nacional se esvaísse ou fosse capturada por pequenos grupos de cartolas (e por outros agentes que sangram o esporte), que se tornaram espécies de donos daquilo que não lhes pertencia - e não lhes pertence - em detrimento do verdadeiro dono: o povo (ou o torcedor).

Resultado: alienante ou não, tornou-se o maior espetáculo de entretenimento da terra; e as riquezas produzidas passaram a circular e a se acumular no velho continente, enquanto o Brasil assumiu o papel de fornecedor de matéria-prima (i.e., de jovens jogadores em estado de formação).

Dois outros eventos recentes também me fizeram sugerir uma relação com a mencionada frase.

O primeiro envolveu a recente final da Copa América e o enfrentamento de dois rivais (e não inimigos) históricos: Brasil e Argentina.

Muita gente esclarecida (e culta) torceu contra a seleção nacional porque, dentre outros argumentos, (i) os jogadores que ali estavam representariam o discurso do atual governo (ou, especificamente, do presidente da república); e (ii) seus principais jogadores, em especial Neymar, refletiriam uma visão futilizada, exibicionista e alienada de mundo.

Não podemos nos esquecer que, ao contrário da maioria - ou da totalidade dos bem formados críticos -, os homens - e mulheres, também - que vestem a camisa da seleção de futebol enfrentaram e venceram obstáculos estruturais, sociais e pessoais, em relação aos quais nós, torcedores (ou críticos), não contribuímos em absolutamente nada (ou quase nada) para superação. Ele são vencedores pelo simples fato de, em sua esmagadora maioria, sobressaírem em sociedade que, de modo geral, não os valoriza como seres humanos ou profissionais - exceto, eventualmente, a partir do momento em que se tornam estrelas.

Isso tudo, é verdade, não justifica posturas egoísticas; mas também não legitima, em minha opinião, a apropriação do fato para construção de uma narrativa maniqueísta - a qual, aliás, vem contribuindo para o afundamento do país em todas as suas esferas.

Até porque, do outro lado, naquela final, havia uma seleção representativa de um país que enfrenta, historicamente, dilemas políticos, éticos e sociais semelhantes aos nossos, o que não impede que as desavenças clubísticas ou políticas sejam momentaneamente recolhidas para que se unifique a torcida pelo time nacional. Mais ainda: também havia, do lado de lá, Messi, jogador que, ao menos que eu saiba - apesar de não se expor como Neymar -, também não é um exemplo de cidadão engajado.

O segundo evento emerge a cada quatro anos, por ocasião dos jogos olímpicos, e se manifesta como um reconhecimento de representatividade (e orgulho) dos atletas de todas as modalidades, exceto os futebolistas masculinos, porque: a sua maioria (ou totalidade) já atingiu o alto profissionalismo; eventualmente, joga ou jogou na seleção principal; é rica; e assim por diante. 

Um ou outro, talvez. Assim como um ou outro, praticante de outras modalidades, também. E proveniente de qualquer país competidor.

Mas a generalização e a aversão não contribuem com nada. Ao contrário: apenas estimula o sentimento segregacionista que se inaugurou entre a sociedade e a seleção, a meu ver a partir dos fracassos das emblemáticas seleções de 1982 e 1986, e se intensificou com o advento do (fracassado) pragmatismo simbolizado pela seleção de 1990.  

Ninguém é obrigado a gostar de esporte ou de futebol. E muito menos a torcer por atletas ou seleções nacionais. Porém, a campanha contrária, para justificar ideologias, valida, também, as proposições ideológicas dos grupos opostos, que se distinguem apenas, em regra, pelo ponto de vista.

Por fim, não se diga que a aversão decorre do sistema de controle centralizado e da ojeriza aos desmandos e dos escândalos envolvendo a politicalha na CBF ou no COB.

Sempre houve uma entidade situada entre os esportistas e o torcedor - mesmo nas ocasiões em que a seleção encantava o Brasil e o mundo -, e sempre houve uma casta cartolarial, eventualmente bem-intencionada, mas em geral preocupada com os seus projetos de poder, responsável pelo atual estado de coisas. Os abusos dessas pessoas não se confundem com a função dos jogadores que vestem a camisa amarela.