COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Meio de campo >
  4. A SAF, a histeria coletiva e recente decisão do TJ/SP

A SAF, a histeria coletiva e recente decisão do TJ/SP

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Atualizado às 12:26

Parece realmente que a circulação desenfreada de falsas notícias ou de opiniões pouco balizadas em mídias e redes sociais, prática esta que foi duramente criticada por Umberto Eco, passou a influenciar a conduta de pessoas que, ao contrário, deveriam prezar pela sobriedade e pelo respeito à informação.

Uma pena, pois as relações sociais e políticas se inserem, assim, numa arena sem regras, em que, além de exigir um monumental exercício de depuração da verdade, também se notabiliza por condutas individualistas e irresponsáveis. 

Nesse sentido, quem acompanha o ambiente do futebol, em especial relacionado à Lei da SAF (alcunhada, desde sempre neste espaço, Lei Rodrigo Pacheco), deparou-se com uma quase comoção decorrente de uma (mal interpretada) fala do investidor John Textor, da SAF Botafogo, amplamente divulgada pela imprensa e em redes sociais.

Ao primeiro contato, até poderia parecer que se iniciava, a partir do investidor, um movimento de ataque à estrutura legislativa viabilizadora do seu próprio investimento. Isto não ocorreu, porém.

Ouso afirmar que o pano de fundo da provocação consiste em um apelo por segurança jurídica, corolário do Estado de Direito. Aliás, a estrutura do Estado contemporâneo, consubstanciada na tripartição de poderes - legislativo, judiciário e executivo - decorre, justamente, de uma reação à insegurança jurídica promovida por monarcas absolutistas, que se confundiam com o Estado e, assim, ditavam normas em casos concretos de acordo com suas vontades.  

Não apenas investidores, locais ou internacionais, mas qualquer cidadão necessita de segurança, em sentido amplo, para projetar suas ações e calcular as consequências delas.

Toda nova norma, de qualquer hierarquia, costuma inaugurar, após sua inserção no sistema, certa maleabilidade, oriunda do natural processo de estabilização, que advirá da boa doutrina e da correta jurisprudência. Não será diferente com a Lei da SAF.

Esta lei, aliás, no âmbito do futebol, já demonstra, apesar de sua curta existência, seu caráter transformacional e, após aproximadamente 18 meses, já fez muito mais para abertura sistêmica e para viabilizar meios de financiamento da atividade futebolística do que todas as leis que a antecederam, incluindo-se as Leis Zico, Pelé e do Profut.  

Com efeito, mais de 30 sociedades anônimas do futebol foram anunciadas por clubes como Cruzeiro, Botafogo, Bahia, Vasco, Figueirense, dentre muitos outros, e outras estão a caminho.

Mas disso pouco se fala pois, na verdade, a torcida contrária (ou a sabotagem) advém, em especial, das forças históricas (inclusive de grupos de interesses que se aproveitam da fragilidade ou da politização de clubes) que converteram o futebol brasileiro - que deveria ser uma fonte inesgotável de geração de riqueza para sociedade como um todo - em atividade que se desenvolve quase à margem da própria sociedade, do mercado e do Estado.

É isso, pois, que está em jogo: o atraso secular de um modelo exportador de commodity, de um lado; ou a perspectiva de criação de um dos mais poderosos ambientes mundiais do futebol, de outro.

Para que esta criação ocorra, aliás, o Poder Judiciário terá papel fundamental. É nele que desaguam as teses, mais ou menos bem construídas, que pretendem, aí sim, "quebrar" a Lei da SAF e preservar direitos, não adquiridos, de castas que vivem à custa da falta de transparência e das relações muito peculiares estabelecidas no ambiente de associações sem fins lucrativos.

Nesse sentido, não se pode ignorar recente acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos de Agravo de Instrumento nº 2220944-39.2022.8.26.0000, em que figura como agravante o Botafogo de Futebol de Regatas ("Clube").

Em poucas palavras, resistia-se à tentativa de determinado credor que postulava a obrigatoriedade de direcionamento ao Regime Centralizado de Execução, instituído pelo Clube, de valores oriundos de contrato de patrocínio transferido para SAF; de modo que a SAF, e não mais o clube, se tornara parte da relação contratual.

Em "voto-aula" sobre a Lei da SAF, o Des. Relator Azuma Nishi pronunciou que "(...) a SAF é pessoa jurídica que não se confunde com o clube; destarte, em relação ao cumprimento de sentença, a SAF deve ser considerada terceiro, não podendo ter seu patrimônio constrangido, sob pena de ofensa à regra segundo a qual o devedor responde com seus bens (art. 789 do CPC)".

E, em suas conclusões, reforçou que o direcionamento de receita da SAF, para outra entidade - o clube - "é descabido e vai contra o texto legal, à medida que constitui constrição ao patrimônio da SAF Botafogo, cuja personalidade jurídica, como visto alhures, não se confunde com a do clube devedor".

Não se pretende, aqui, avaliar o processo judicial em si; apenas jogar luz sobre a preciosa decisão do Tribunal Paulista, mais uma dentre outras que se acumulam e que contribuem para formação do benfazejo mercado do futebol, sobretudo pelo fato de expressar com a necessária clareza o que é a Lei da SAF, para que se presta e como ela funciona.  

Mais do que isso, aliás: também se pretende jogar mais luz sobre a aparente falta de interesse da coletividade do futebol por fato tão relevante (que não lhe deu a importância e o mesmo espaço oferecidos às diversas interpretações de terceiros a respeito da fala de determinado investidor), o que, ao final, comprova as proposições inicias deste texto: menos do que informar, as reações desproporcionais, relacionadas àquele episódio, servem, na verdade, para tentar trazer o caos ao novo ambiente em formação.