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A governança do futebol em Portugal e o reacionarismo no Brasil

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Atualizado às 07:42

A Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro organizou, no mês de março do corrente ano, o XVII Seminário de Gestão Esportiva, em colaboração com a FIFA e o CIES. Os principais temas abordados no evento foram a SAF (Sociedade Anônima do Futebol) e o mercado que se está construindo a partir da promulgação da Lei da SAF.

Participaram dos debates profissionais de (realmente) altíssimo nível, dentre eles ministros de tribunais superiores, magistrados, secretário do Ministério dos Esportes, senadores da república, deputados federais, membros do COAF, a diretora do departamento jurídico do Banco do Brasil, a diretora de regulação da B3, presidentes da CVM e da CBF, advogados, professores e o ex-jogador Zico.

Estiveram presentes também: Domingos Soares de Oliveira, CEO do Grupo Benfica; Francisco Zenha, Vice-Presidente Executivo e CFO no Sporting Clube de Portugal; e Susana Dias, Diretora de Planejamento Financeiro e Controle de Gestão no Grupo Futebol Clube do Porto, que protagonizaram apresentações memoráveis, objeto do presente texto.

Notou-se, logo na partida das exposições, que existe uma distância quase oceânica entre as proposições formuladas pelos dirigentes portugueses e o reacionarismo brasileiro, que, mesmo após o advento da Lei da SAF, ao invés de contribuir com a formulação de propostas que visem o desenvolvimento do sistema, persiste na busca de meios para inviabilizá-la.

Assim, sociedade anônima, vias de financiamento da empresa futebolística, abertura de capital, governança, compliance, transparência e técnicas de controle interno são expressões, ou melhor, institutos que há muito tempo integraram a realidade do ambiente do futebol português; os quais, aliás, não desconfiguraram times como os próprios Benfica, Sporting e Porto, que continuam a ser e a representar, na sociedade local e perante seus torcedores, o que foram e sempre serão.

Nenhum dos três expositores apresentou qualquer dúvida ou arrependimento em relação à passagem para o modelo de sociedade anônima desportiva - SAD, tipo de companhia arquitetada para organizar o esporte no país.

Sobre ela e o acesso ao mercado de capitais, o CEO do Benfica indicou, como vantagens: acesso a investimento externo; estruturação de instrumentos de dívida adicionais; boa governança; transparência nos atos de gestão; informação regular e detalhada; rigor no nível de normas e processos; e controles interno e externo.

Mas como "nem tudo são flores", num ambiente evoluído, após a detecção de ineficiências, propõem-se ajustes, para melhoria do sistema - ao contrário do que, não raro, verifica-se na antiga colônia, pródiga em contrarreformas estabelecidas para restaurar privilégios - como se passou, por exemplo, em quase todas as mudanças operadas na Lei Pelé.

Naquele sentido, o Vice-Presidente e CFO do Sporting apontou que o Governo de Portugal irá avançar com reformas na Lei das SADs para: reequilibrar direitos na relação entre clubes fundadores e sociedades desportivas - algo que a Lei da SAF estabelece ao conferir prerrogativas exclusivas aos clubes enquanto permanecerem acionistas da SAF; reforçar requisitos de idoneidade; reduzir conflitos de interesses (ou incompatibilidades); reforçar a transparência; reforçar a publicidade; e criar um regime contraordenacional.

Esses movimentos afirmativos tendem a intensificar a posição no cenário futebolístico de times como o tradicional Porto, que passou, conforme conteúdo da palestra proferida por sua Diretora, pelas seguintes etapas:

- 1997: Constituição da SAD

- 1997: Aumento de capital da SAD

- 1998: Admissão em Bolsa de Valores

- 2000: Redenominação do capital de Escudos para Euros

- 2001: Novo aumento de capital

- 2014: Mais um aumento de capital, que passou para 112,5 milhões de Euros (algo em torno de, conforme cotação atual, R$ 604 milhões).

Susana Dias indicou, na linha do que fora dito pelo colega benfiquista, que constituem vantagens de uma SAD estar cotada em bolsa: acesso a fontes de financiamento externo; melhoria constante na operação e sujeição a procedimentos regulatórios que não podem ser protelados; proteção dos negócios e dos investidores; e credibilidade e transparência ao exterior.

Desvantagens também foram elencadas por ela: dualidade de relacionamento com os stakeholders; obrigatoriedade de cumprimento de "imensidade" de regras de governança; necessidade de comunicações frequentes ao mercado via CMVM (tais como fatos relevantes); necessidade de produção de uma série de relatórios periódicos.

Note-se que as desvantagens demandam, como regra, o emprego de pessoas e recursos para atendimento das exigências regulatórias, e não, muito ao contrário, a existência de aspectos que possam inviabilizar a SAD ou tornar o regime clubístico mais atrativo.

Não pareceu haver, na experiência portuguesa, apresentada pelos representantes dos mais tradicionais times locais, qualquer nostalgia ou pretensão de regresso ao passado. Por outro lado, sentiu-se - ao menos foi a minha percepção - uma certa surpresa com o fato de que um país com a dimensão, a população e o PIB brasileiros, que dispõe de mais de 20 times com mais de 1 milhão de torcedores e que corresponde a (aproximadamente) 11% dos negócios mundiais envolvendo jogadores, não protagoniza (ou, ao menos, participa em alto nível) o mercado do futebol.

A aparente surpresa (novamente, esta foi a minha impressão) se justifica, para quem tem mínimos conhecimentos do ambiente nacional, com alguma facilidade: ausência do Governo (minimamente preocupado com o tema); ausência de políticas públicas (em todos os níveis e esferas) com intuito de transformar o futebol em instrumento de desenvolvimento econômico e social; apropriação do bem futebolístico pelas arcaicas estruturas associativas; inexistência de vias de financiamento da empresa futebolística; e conflitos de interesses.

Por esses e outros motivos, a sensação de quem participou do evento - ao menos essa foi a minha -, ao final, era de esperança e melancolia: esperança pela perspectiva daquilo que o Brasil poderia (ou poderá) ser; melancolia por aquilo em que se transformou (em função de sucessivos equívocos públicos e privados).