O retrocesso da nova interpretação que limita os recursos da Lei de Incentivo ao Esporte (LIE) para as SAF's
quarta-feira, 5 de novembro de 2025
Atualizado às 07:25
Os clubes constituídos como Sociedades Anônimas do Futebol ("SAFs"), que propuseram projetos no âmbito da Lei de Incentivo ao Esporte - LIE (lei 11.438/2006) em 2025, buscando autorização para captar recursos incentivados em projetos de alto rendimento, foram recentemente surpreendidos pelo Ministério do Esporte, com a exigência de alteração no objeto e natureza dos projetos, para transformá-los em projeto com natureza de desporto educacional.
A diferença é essencial, pois um projeto de rendimento permite destinar recursos para a formação dos melhores atletas da modalidade, enquanto na modalidade educacional, deve beneficiar apenas estudantes e não permite seletividade. Como fundamento para essa exigência, que restringe drasticamente a possibilidade de utilização de recursos incentivados pelas SAFs, está o novo entendimento da Consultoria-Geral da União, constante do parecer nº 00160/2025/CONJUR-MESP/CGU/AGU ("Parecer"), emitido em 26/8/25.
Alterando drasticamente a interpretação que prevalecia desde 2021, quando o art. 30 da lei 14.193/2021 expressamente permitiu que as SAFs fossem proponentes de projetos incentivados, sem qualquer restrição quanto ao segmento de atuação, ou seja, podendo abranger esporte de rendimento, de participação ou educacional, o Parecer foi muito mais restritivo, concluindo que somente projetos do segmento educacional poderiam ser propostos.
De acordo com o entendimento do Parecer, como a Lei de Incentivo ao Esporte não incluiu a SAF no rol taxativo de possíveis proponentes - nem mesmo nas alterações legislativas subsequentes -, haveria um suposto "silêncio eloquente" do legislador, o que demonstraria uma intenção de excluir tais entidades da possibilidade de proposição de projetos, exceção feita apenas para execução de projetos educacionais.
Sustenta-se que o fato de o art. 30 estar inserido na mesma "seção" do artigo 28, que trata da obrigação da SAF financiar algum "Programa de Desenvolvimento Educacional e Social" ("PDES"), obrigaria que os referidos projetos tivessem "seu objeto restrito à manifestação educacional", impossibilitando a aprovação de Projetos que tenham "por objeto a captação de recursos para custeio de projetos envolvendo a manifestação rendimento".
No entanto, além de ser totalmente extemporâneo, pois já foram aprovados dezenas de projetos propostos e executados por SAFs, envolvendo esporte de rendimento nos últimos quatro anos, o novo entendimento não encontra respaldo em nenhuma técnica interpretativa, além de contrariar a vontade expressa do legislador, que desejou colocar a SAF na mesmo condição de um clube associativo, justamente para não desestimular a transformação do futebol em sociedade empresarial, exatamente como ocorreu com o regime especial de tributação da SAF, também semelhante ao que uma associação paga de tributos.
Limitar a SAF a propor projetos apenas com natureza educacional, pela suposta impossibilidade de utilização de recursos públicos em projetos com natureza de alto rendimento, inverte totalmente a finalidade da norma. A exigência legal de investimento no PDES constitui obrigação expressa da SAF, como contrapartida de parte pelas vantagens fiscais que recebeu do legislador, como foi Regime de Tributação Específica do Futebol.
Ainda que constituídas como sociedades empresárias, as SAFs desempenham papel relevante na formação de atletas e no desenvolvimento social e econômico do esporte. Por isso, quando o PL 5516/19, que originou a Lei das SAFs foi aprovado pelo Congresso Nacional, o seu art. 30 previa expressamente a possibilidade de as SAFs captarem recursos oriundos da LIE, tendo sido inserido por emenda, justamente para não gerar desigualdades com os clubes associativos.
Contudo, o dispositivo foi inicialmente vetado pela Presidência da República sob o argumento de que acarretaria renúncia de receita sem a devida compensação orçamentária e estimativa de impacto financeiro1. Além disso, o veto apontou que o texto original contrariava o interesse público por gerar insegurança jurídica, uma vez que a redação seria vaga ao permitir que as SAFs captassem recursos incentivados em "todas as esferas do governo", dificultando a compreensão do seu alcance.
O veto, entretanto, foi posteriormente derrubado pelo Congresso Nacional, reconhecendo-se que a inclusão das SAFs como proponentes na Lei de Incentivo ao Esporte não implicava renúncia fiscal, mas apenas ampliava o rol de legitimados a utilizar o mecanismo de incentivo, sob os mesmos parâmetros já aplicáveis a clubes, associações e demais pessoas jurídicas de direito privado.
A derrubada do veto refletiu a compreensão legislativa de que o art. 30 não criava benefício tributário adicional, mas apenas harmonizava a política pública de fomento esportivo com o novo modelo jurídico das SAFs, assegurando que estas pudessem acessar recursos incentivados para projetos de interesse social e esportivo - inclusive de rendimento - em igualdade de condições com as entidades associativas tradicionais2.
Assim, consolidou-se a permissão de captação incentivada, sem restringir modalidades de projetos, reforçando o estímulo à profissionalização e a integração entre setor privado e Estado na promoção do esporte como instrumento de inclusão social e desenvolvimento, inclusive para formação de jovens atletas e desenvolvimento do futebol feminino.
A Portaria nº 424/2020 do Ministério do Esporte, ao definir os requisitos mínimos para habilitação de proponentes no Programa Incentivado, adaptando-se à Lei da SAF determina no § 6º do art. 6º que os projetos apresentados pelas SAFs devem observar as mesmas exigências da Lei de Incentivo ao Esporte, sem qualquer restrição de natureza ou finalidade esportiva.
Ou seja, o cerne da controvérsia não é a legitimidade das SAFs como proponentes de projeto incentivados, vez que expressa na Lei de Incentivo ao Esporte e reconhecida pela Portaria regulamentadora, mas sim a interpretação indevida que vincula sua atuação exclusivamente aos projetos de natureza educacional - desvirtuando tanto a LIE quanto a própria lógica do PDES.
O Parecer do CONJUR sustenta que o fato de o legislador não ter incluído referência explícita às SAFs nas recentes alterações da Lei de Incentivo ao Esporte, promovidas pelas leis 14.439/22 e 14.933/24, indicaria a intenção de impedir que essas entidades fossem proponentes, sob a lógica do chamado "silêncio eloquente". Além disso, o Parecer recorre a um argumento topográfico para justificar a conclusão - igualmente insustentável - de que o art. 30 da Lei das SAFs deveria ser interpretado como acessório ao art. 28, que trata do Programa de Desenvolvimento Educacional e Social, o que limitaria a captação de recursos a projetos que tivessem natureza educacional.
Trata-se, porém, de dois graves equívocos hermenêuticos. Primeiro porque a lei não é silente sobre a possibilidade de as SAFs serem proponentes de projetos incentivados, Ao contrário, o artigo 30 da Lei 14.193/21 foi expresso ao afirmar que "é autorizado à Sociedade Anônima do Futebol e ao clube ou pessoa jurídica original captar recursos incentivados em todas as esferas de governo, inclusive os provenientes da lei 11.438, de 29 de dezembro de 2006".
É evidente que não há silêncio algum do legislador, mas manifestação expressa e clara autorizando a captação, sem qualquer restrição. O fato de a autorização ter sido feita na própria Lei da SAF e não diretamente na Lei de Incentivo ao Esporte é irrelevante, primeiro porque as duas normas têm mesma natureza e geram efeitos semelhantes, cabendo ao intérprete conhecer todo o ordenamento e analisar conjuntamente as disposições que se relacionam nas duas normas. E, segundo, porque não faria sentido exigir que fosse previsto na Lei de Incentivo ao Esporte, em alterações posteriores a 2021, aquilo que já constava expressamente na lei 14.193/21.
Portanto, incabível a justificativa de que haveria "silêncio eloquente" do legislador, como fundamento para criar restrições inexistentes no texto legal. A disposição autorizadora sempre existiu e era tão clara que o próprio Ministério do Esporte reconheceu essa possibilidade e aprovou dezenas de projetos com escopo de esporte de rendimento, propostos por SAFs desde 2021.
E melhor sorte não cabe ao argumento da limitação da autorização, conferida pelo art. 30 da Lei a SAF, apenas para projeto de natureza educacional, pelo fato de o dispositivo ter sido inserido justamente na Seção da Lei que trata do Programa de Desenvolvimento Educacional e Social, conforme art. 28 da norma especial.
Ainda que fosse desejável que, nas legislações divididas em capítulos e seções, como ocorre com a Lei da SAFs, todos os artigos estivessem, de alguma forma, relacionados com o tema da Seção em que estão inseridos, tal cuidado nem sempre é observado pelo legislador, especialmente quando há alteração do texto ou inclusão de artigos por emendas, durante o processo legislativo, como ocorreu com o art. 30. Além disso, não existe qualquer disposição legal que obriga essa vinculação, a ponto de justificar alteração no sentido do texto legal.
A Lei Complementar nº 95/1998, que dispõe sobre as regras a serem observadas pelo legislador para elaboração, alteração e redação das leis, embora estabeleça como os textos normativos devem ser divididos (subseção, seção, capítulo, título e livro), ao explicar como deve ser a ordem lógica das normas, apenas determina, em seu artigo 11, inciso III, que a reunião dos artigos dentro das chamadas "categorias de agregação", como são as "seções" ou "capítulos", por exemplo, deve observar "apenas as disposições relacionadas com o objeto da lei", sem determinar que os artigos de determinada categoria devam estar relacionados ou vinculados.
O máximo que se poderia exigir seria a necessidade de a interpretação dos parágrafos de um artigo ser feito em harmonia com o tema tratado no caput. Nesse sentido, inclusive, apenas quando trata da técnica de ordenação dos artigos é que a Lei Complementar 95/98 determina que "por meio dos parágrafos" que deve ser expresso "os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida".
Como se vê, cada artigo de uma lei possui sua autonomia normativa, de modo que a localização topográfica do art. 30 na mesma seção do PDES (art. 28) não autoriza ao intérprete restringir seu conteúdo àquela matéria. A tentativa de impor tal vinculação representa um equívoco metodológico que extrapola os limites da melhor hermenêutica, pois se funda em uma suposta estruturação de sentidos que não encontra respaldo nem mesmo na norma que orienta a produção legislativa, além de desconsiderar a redação expressa do artigo 30 (interpretação literal), a manifesta vontade do legislador em equiparar a SAF aos clubes associativos (interpretação teleológica) e até mesmo a interpretação sistemática da Lei da SAFs, que faz a mesma equiparação entre SAF e clube associativo quando estabelece o regime especial de tributação.
Ademais, se houvesse qualquer exigência de interpretar o art. 30 da Lei das SAFs de acordo com os demais artigos da Seção II, do Capítulo II, daquela lei, dever-se-ia, por óbvio, exigir o mesmo do art. 29, que se encontra na mesma Seção, exatamente entre o art. 28 (que prevê o PDES) e o art. 30, que autoriza as SAFs a proporem projetos incentivados.
Mas o apontado art. 29 dispõe sobre obrigações que as SAFs deverão observar, além daquelas já previstas para os demais clubes associativos, para eventuais atletas em formação que residam em alojamentos, mantidos pelos clubes, tais como: (i) a certificação de suas instalações físicas, por órgãos e autoridades competentes; (ii) a disponibilização de monitor responsável durante o dia; (iii) a garantia de convivência familiar; (iv) a participação dos atletas em atividades culturais e de lazer em horários livres; e (v) a assistência religiosa aos que desejarem.
Obviamente que tais obrigações, embora previstas em artigo inserido na mesma Seção do PDES, não está vinculada a qualquer Programa de Desenvolvimento Educacional, pois estudantes atendidos em projetos esportivos e educacionais obviamente não são formados nem ficam alojados nas instalações das SAFs. Nesse contexto, evidente que os artigos da apontada Seção II, não se referem apenas a PDES, nem devem assim ser interpretados.
A formação de atletas, prevista no art. 29 da Lei das SAFs e integrante do próprio objeto social das SAFs, vai muito além da iniciação escolar, abrangendo todo o processo de profissionalização esportiva. Afinal, a formação visa, naturalmente, o alto rendimento.
Além da ausência de base legal, a interpretação proposta pelo Parecer gera consequências práticas incompatíveis com os objetivos da política pública de fomento esportivo. Restringir a possibilidade de captação de recursos apenas aos projetos de caráter educacional impede que a profissionalização trazida pela SAFs, quando comparado ao modelo dos clubes associativos, tenha o apoio e estímulo necessários, comprometendo a função social das categorias de base e a própria etapa de formação do esporte nacional.
Ao contrário, ao concluir que o art. 30 deve ser interpretado de forma integrada com o art. 28 da Lei das SAFs, permitindo que as Sociedade Anônimas do Futebol captem recursos incentivados somente para projetos de natureza educacional, justamente para implementar seus Programas de Desenvolvimento Educacional e Social, a que são obrigadas, o Parecer acaba por desvirtuar todo o sentido do próprio art. 28 e da apontada Seção II, do Capítulo II, da Lei das SAFs.
Afinal, ao obrigar todas as SAFs a investirem em Programas de Desenvolvimento Educacional e Social o legislador claramente buscou que as SAFs efetivassem, por meio de investimentos de recursos próprios, uma contrapartida social e educacional, o que caracteriza clara compensação ao fato de as SAFs terem sido contempladas com evidentes benefícios tributários pelo Regime de Tributação Específica do Futebol, pois resulta em pagamento de tributos muito aquém do praticado por qualquer outra sociedade empresária.
Permitir que as SAFs se utilizem de recursos públicos, captados via LIE, para custear as ações educacionais e sociais do PDES, gera um verdadeiro contrassenso jurídico, qual seja: permite utilizar recursos extraídos do orçamento público para atender ao ônus de realizar políticas sociais obrigatórias, mas que deveriam ser custeadas por recursos privados, esvaziando tanto o alcance da LIE, quanto o sentido do PDES.
Ao condicionar eventuais projetos de SAFs, pela LIE, apenas à execução de programas do PDES, o Parecer de uma só vez afastou a possibilidade de SAFs implementarem projetos de esporte de rendimento, inclusive de formação - o que contrária a redação do referido art. 29 e 30 da mesma lei - como acabou permitindo que os investimentos em PDES (art. 28) sejam feitos com recursos públicos, contrariando a lógica da imposição de contrapartidas a essas entidades.
A própria LIE é inequívoca ao dispor que o incentivo se destina a projetos, não a entidades. Se o foco é o projeto, não há justificativa legal ou lógica para excluir as SAFs apenas por sua natureza societária, pois expressamente autorizadas a serem proponentes e captarem recursos. O próprio Parecer reconhece que o objeto social das SAFs inclui a formação de atletas profissionais, homens e mulheres, o que reforça o absurdo de tratá-las de forma desigual em relação aos clubes associativos, que exercem idêntica função social.
O resultado de toda essa interpretação é um tratamento desigual, injusto e anticompetitivo: clubes associativos com ampla capacidade financeira - como Flamengo, Palmeiras ou Corinthians - continuam aptos a propor projetos de rendimento pela LIE, enquanto SAFs de menor porte, que dependem desses recursos para desenvolver suas bases e próprio futebol feminino, são impedidas de fazê-lo.
Por fim, é importante lembrar que a própria Lei das SAFs inclui, expressamente, o futebol feminino entre as atividades obrigatórias dessas sociedades. Se a LIE não puder ser utilizada para fomentar tais equipes, cria-se um contrassenso normativo: exige-se a prática do futebol feminino, mas se retira uma das principais ferramentas de financiamento para torná-lo viável e mais próximo do que é oferecido aos atletas de futebol masculino.
Se a motivação da limitação estiver na preocupação com eventuais abusos de SAFs, que solicitam recursos incentivados, mas distribuem lucros aos seus acionistas, o controle pode ser feito pela própria Comissão Técnica da LIE, que analisa cada projeto, considerando a demonstração da capacidade de obtenção de outros recursos pelo proponente, e não pelo simples fato de se tratar de uma SAF.
Quando avaliar um projeto proposta por uma SAF a Comissão Técnica da LIE poderá avaliar não apenas os documentos que comprovem a capacidade técnica, a infraestrutura e o histórico de execução de programas sociais e esportivos do proponente, como também exigir a demonstração financeira, por meio do balanço e de pareceres de auditoria, para verificar qual SAF realmente precisa de recursos e qual SAF tem capacidade de utilizar recursos próprios, especialmente se distribuiu lucros aos seus acionistas.
Afinal, as sociedades anônimas do futebol de pequeno e médio porte provavelmente necessitam da LIE para consolidar suas estruturas e profissionalizar suas categorias de base, inclusive para o futebol feminino, enquanto clubes milionários frequentemente recorrem ao incentivo apenas para aliviar despesas ordinárias. Punir as primeiras e privilegiar os segundos é o oposto da finalidade da política pública de incentivo ao esporte.
Como se observa, portanto, o Parecer incorre em equívocos hermenêuticos e cria distinções injustificadas. Ao vincular a atuação das SAFs exclusivamente ao PDES, desvirtua tanto a Lei da SAFs quanto a própria Lei de Incentivo ao Esporte, comprometendo a coerência e a efetividade da política pública de fomento esportivo.
Em vez de fortalecer o sistema de incentivo, impõe uma barreira artificial às SAFs - justamente as entidades que mais têm investido na profissionalização do futebol feminino e na formação de atletas de base. A interpretação correta deve garantir tratamento isonômico entre clubes associativos e SAFs, em consonância com a lógica central da Lei de Incentivo ao Esporte: fomentar projetos esportivos, não privilegiar formas jurídicas.
Se mantida essa interpretação restritiva, o país corre o risco de inviabilizar o desenvolvimento de novas gerações de atletas e de enfraquecer de forma irreversível o avanço do futebol feminino e de base. Cabe ao Ministério do Esporte e a própria AGU corrigirem a distorção instaurada, restabelecendo a segurança jurídica e a finalidade social da Lei de Incentivo ao Esporte, sob pena de consolidar um grave retrocesso esportivo e social.
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