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A aplicação da justa causa a um empregado não vacinado pode ser entendida como um ato discriminatório?

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Atualizado às 08:43

Vacinas salvam vidas, isto é um fato inquestionável.

Contudo, o presente artigo tem por finalidade refletir sobre ser ou não um ato discriminatório a demissão por justa causa de um empregado não vacinado, tudo sob a chancela pelo Poder Judiciário.

A Constituição Federal, nos incisos III e IV de seu artigo 3º, afirma constituir como objetivo fundamental da República a erradicação da pobreza, redução de desigualdades, e a promoção do bem geral sem preconceitos de origem, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O inciso I do artigo 7º da Constituição Federal diz que é direito do trabalhador a proteção da relação de emprego contra despedidas arbitrárias.

Outras duas proteções constitucionais que posso citar neste sentido são aquelas previstas nas alíneas "a" e "b" do inciso II do artigo 10 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), onde o legislador visou a proteção do emprego de trabalhadores eleitos para cargos da "CIPA" e da empregada gestante, impedindo sua dispensa arbitrária.

Pode-se concluir, portanto, que a proteção da relação de emprego e sua manutenção são objetivos primários contidos na Constituição Federal, que fixa como preceito fundamental da República a vedação de qualquer tipo de discriminação ou limitação à pessoa humana.

A Convenção da Organização Internacional do Trabalho - OIT nº 111, promulgada pelo Decreto nº 62.150 de 19 janeiro de 1968, proíbe toda e qualquer tipo de discriminação no emprego ou na profissão. Neste sentido, foi editada a Portaria nº 1.246, de 25 de maio de 2010, do Ministério do Trabalho e Emprego, que proíbe que empresas do país exijam teste de HIV, de forma direta ou indireta, em exames médicos admissionais, demissionais, avaliações periódicas ou em decorrência de mudanças de função do trabalhador. Por esta Portaria, ficou vedada a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de emprego ou à sua manutenção.

A Lei nº 9.029 de 1995, por sua vez, diz que fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de emprego, seja ela por motivos de sexo, origem, raça, cor, estado civil ou situação familiar. Referida norma aduz ser crime a exigência de teste, exame, perícia, laudo, atestado ou qualquer outro meio que indique o estado de gravidez ou induza à esterilização.

Essa lei tipifica como sujeitos ativos desse crime o empregador, mas também o dirigente, direto ou por delegação, de órgãos públicos e entidades das administrações públicas direta, indireta e fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Vê-se que o intuito desta lei, portanto, é garantir o acesso e a manutenção no emprego, sendo vedada qualquer prática discriminatória ou limitativa, seja pelo particular, seja pelo ente público.

Assim, entendo que nosso ordenamento jurídico sempre buscou impor medidas que impedissem a prática de qualquer tipo de discriminação ou limitação ao trabalhador, para o ingresso ao emprego ou para sua manutenção, seja por motivos de origem, raça, cor, sexo, posições política ou religiosa, ou qualquer outro tipo, tipificando essa prática como crime e tendo, inclusive, o ente público como agente ativo do tipo penal.

Neste diapasão, com todo o respeito devido, penso ser muito delicado o posicionamento adotado pelo Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP), quando do julgamento do Recurso Ordinário interposto pela reclamante nos autos a Reclamação Trabalhista nº1000122-24.2021.5.02.0472, pois pode ser tido como uma prática limitativa ao emprego.

No caso em epígrafe, a 13ª Turma do E. TRT/SP, por unanimidade de votos, negou provimento do Recurso Ordinário interposto pela reclamante que visava reverter a justa causa que lhe fora aplicada pela empresa, pelo fato dela não ter sido vacinada contra a Covid-19.

Fundamentou o colegiado, de forma resumida, que "é público e notório que a Organização Mundial da Saúde tem afirmado e reiterado que para conter a propagação do vírus e evitar a propagação de novas cepas e variantes ainda mais contagiosas, é necessária a adoção de diversas medidas práticas concomitantes, tais como: o distanciamento social, higienização de mãos, correto uso de máscaras e, principalmente, a vacinação em massa da população".

Ainda, em sua fundamentação, utilizou-se a Colenda Turma julgadora da lei 13.979 de 2020, mais especificamente do quanto disposto no artigo 3º, inciso III, que diz sobre a determinação de vacinação compulsória.

 

Ocorre que, no meu entender, o v. acórdão proferido viola a Constituição Federal, a Convenção da OIT nº 111, a lei 9.029/1995 e os termos da Portaria 1.246/2010 do MTE, pois claramente limita a manutenção do emprego e acaba por discriminar e segregar parte da população que, por motivos diversos, ainda não se decidiu pela vacinação.

No meu modesto entender, a decisão em comento pode ser entendida como uma validação para a prática de atos discriminatórios, limitativos e segregacionistas, sob a pretensa conclusão de que as vacinas criadas para enfrentamento da Covid-19 seriam a única solução para a evitar a propagação do vírus.

Mesmo se assim o fosse, o que sabidamente não é, pois é fato público e notório que mesmo as pessoas vacinadas podem contaminar e serem contaminadas, impedir que uma pessoa permaneça em seu emprego por não ter sido vacinada é sim uma prática discriminatória e limitativa que fere toda a legislação acima apontada, em total colisão com os princípios norteadores do Direito do Trabalho.

A decisão em comento equipara-se a um "Passaporte da Imunidade/Vacinal" para o trabalho, criando uma norma ou uma exigência para a obtenção ou manutenção do emprego, contrariando princípios norteadores do Direito do Trabalho, como, por exemplo, o Princípio da Continuidade da Relação de Emprego.

A Organização Mundial da Saúde é contra a criação de tal medida. Em 6 de abril de 2021, um porta-voz da OMS defendeu que não é o momento para países adotarem o tal passaporte da Covid-19, baseados na vacinação, pois ainda existem incertezas sobre a eficácia dos imunizantes em barrar a transmissão da doença. Ainda segundo a OMS, pesquisas apontam que as vacinas impedem casos graves da doença, mas os imunizados ainda podem transmitir ou desenvolver a doença.

Ora, se a própria OMS ainda não tem certeza sobre a eficácia das vacinas quanto à imunização e à transmissão do vírus, desaconselhando a criação do passaporte sanitário, então, sim, a decisão proferida pelo Egrégio Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo é, no mínimo, prematura e temerária, pois. s.m.j, abre caminhos para a realização de atos discriminatórios, limitativos e, sobretudo, segregacionistas.

Validar a dispensa de um empregado por justa causa pelo fato dele não ter se vacinado, pode dar ensejo a uma série de violações de direitos e liberdades individuais, tudo sob o manto legal.

Concordar com essa modalidade de dispensa, fundamentando tal situação no fato do empregado não estar vacinado, é ir contra os princípios basilares do Direito do Trabalho que visam a proteção do emprego e a dignidade do trabalhador. Fere princípios constitucionais e limita direitos estabelecidos por meio de normas internacionais.

Penso que a solução para esse dilema deve ser mais aprofundada, cabendo ao Poder Judiciário, em especial à Justiça do Trabalho, promover o debate e a troca de ideias nos mais diversos ramos da sociedade, a fim de buscar alternativas para a questão.

Ainda é muito cedo para se cravar posições tão radicais quanto ao tema. A pandemia tem pouco tempo e a ciência ainda não conseguiu nos dar todas as respostas.

Ao empregador, por outro lado, cabe adotar as medidas de segurança que são de conhecimento geral, como, por exemplo, a conscientização, o fornecimento de álcool em gel no ambiente de trabalho, a fiscalização do uso de máscaras e do distanciamento social, a implantação de barreiras físicas que impeçam ou limitem a troca de gotículas de saliva entre pessoas, a higienização e desinfecção constantes do ambiente de trabalho, a realocação do trabalhador para outro posto, se possível, o teletrabalho ou o home office, dentre outras.

A rescisão contratual por justa causa ao não vacinado é medida de extremo rigor e, no meu entender, desproporcional e fora do alcance legal.

Diante de tantas incertezas provocadas por essa por essa pandemia, a certeza que temos é que empregos devem ser preservados para que o trabalhador, hipossuficiente que é, não se veja desamparado por aquele que tem o dever de lhe proteger.

Devemos ter paciência e bom sendo na tomada de decisões.

*Thiago Monroe Adami é advogado. Sócio do escritório Adami, Gaspar e Torini Advogados Associados. Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade Legale. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela escola Paulista de Direito.