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A judicialização da política: Diálogos possíveis

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Atualizado em 21 de novembro de 2025 08:47

Não é nova a discussão a respeito da (im)possibilidade de o Poder Judiciário intervir em políticas públicas regulamentadas e executadas pelos demais Poderes da República, sobretudo pelo Poder Executivo e seu aparato administrativo. Estão no cerne desse debate reflexões mais do que pertinentes sobre democracia, separação de poderes e discricionariedade administrativa. Em tempos de intensa polarização ideológica, a judicialização da política - ou seu "primo" mais (im)popular, o ativismo judicial - é vista por uns como autoritarismo e por outros como uso legítimo do Direito. Indo ainda mais fundo, escondem-se por debaixo das camadas do constitucionalismo moderno os dois protagonistas dessa contenda: a política e o Direito.

Se há política e se há Direito, ou seja, se há entre eles diferenças substanciais que justifiquem uma existência autônoma, é possível presumir que ao Poder Judiciário, integrado apenas por operadores jurídicos não eleitos pelo voto popular, competiria atuar nos estreitos limites do Direito, livre das interferências políticas de governos ou parlamentos de composição transitória. Pelas mesmas razões, os demais poderes (Executivo e Legislativo), cujos membros submetem-se ao escrutínio eleitoral, estariam autorizados a agir politicamente, regulando e executando políticas públicas nas mais diversas searas da vida.

Ocorre que tal conclusão, ainda que correta, não tem se revelado capaz de abarcar a totalidade do mundo, tampouco explica com profundidade a missão do Poder Judiciário. Há nela a falsa sensação de que a Política, apoiada pela adesão das maiorias, agiria com ampla liberdade na condução de políticas públicas e de que ao Direito restaria uma atuação estritamente técnica e pontual, exercida por experts das ciências jurídicas. 

Tal perspectiva, além de normalizar problemas estruturais mais abrangentes - que ficariam à margem da atuação judicial -, parece ignorar, a pretexto de se agarrar à visão de Montesquieu de que juízes não seriam mais do que seres inanimados (ou a boca da lei), o fenômeno da constitucionalização de direitos, com destaque para aqueles de índole social, surgidos após os horrores da II Guerra Mundial, os quais passaram a exigir do Estado prestações sociais capazes de garantir uma vida digna ao cidadão; noutras palavras, a presença de direitos constitucionais que exigem da política, independentemente de governos e parlamentos transitórios, a construção de políticas públicas voltadas à sua efetivação alterou substancialmente o papel do Poder Judiciário, que passou a ter a incumbência de cobrar dos demais poderes ações concretas viabilizadoras desses direitos.

Tal postura, longe de ser, em tese, antidemocrática, confere normatividade ao texto constitucional, evitando, com isso, transformá-lo em mera alegoria desprovida de eficácia jurídica. Foi assim que o Poder Judiciário, ao longo dos últimos 75 anos, ajudou a enfrentar graves problemas estruturais no mundo: já não há mais escolas e vagões para negros nos EUA, há maior participação da cultura francesa na política educacional do Canadá, famílias refugiadas em cidades da Colômbia em razão da violência dos cartéis de drogas (desplazados) foram melhor amparadas, houve também redução dos níveis de poluição do Rio Matanza-Riachuelo na Argentina (um dos cursos d`água mais poluídos do mundo), ampliou-se a rede de proteção de populações indígenas e quilombolas no Brasil e tantos outros problemas estruturais puderam ser exitosamente enfrentados pelos tribunais nesse tempo.

Mas nem tudo é tão simples quanto parece. Em políticas públicas, Direito e política confundem-se intimamente. A análise em lupa desses processos não os torna imunes a críticas. Os tribunais, confiantes de que manuseiam apenas a matéria-prima do Direito, podem, de boa ou má-fé, chamar de Direito aquilo que, em verdade, é pura política. Em tempo de constituições e legislações abertas, interpretar politicamente o Direito, encobrindo preferências político-ideológicas, morais e até religiosas, não é das tarefas mais difíceis. Na era da ponderação de princípios, é possível defender juridicamente, com alguma habilidade retórica, a (des)proporcionalidade de quase todas as iniciativas promovidas pelos entes estatais, desqualificando-as para se fazer uso de sua própria estratégia. A vagueza de certas expressões constitucionalmente positivadas constitui verdadeiro trunfo nas mãos de juízes solipsistas, interessados em reduzir o Direito à expressão de suas próprias vontades.

Diante disso, o que fazer? Tolerar sistemas prisionais superlotados? Fechar os olhos para a carência de vagas em hospitais, creches e escolas? Ignorar o massacre de povos indígenas e quilombolas, vítimas da ação de garimpeiros, madeireiros e grileiros? Admitir a morte de jovens e crianças de maioria preta em operações policiais? Negar a epidemia de violência contra a mulher? A resposta deve ser negativa. Contudo, ela não basta para fazer frente aos problemas estruturais da realidade. Em políticas públicas, Direito e política sempre andarão lado a lado, misturando-se, não raro, sem grande clareza. Reconhecer isso parece ser um primeiro grande passo. O tempo em que juízes "governavam" por meio de argumentos "jurídicos" e que governantes, de braços dados com Montesquieu, negavam o caráter vinculativo de constituições generosas em direitos enfim passou. Na impossibilidade de transformar juízes em gestores públicos, a solução parece partir da abertura de canais de comunicação entre as instituições; o diálogo interinstitucional entre os tribunais e a burocracia estatal, com a utilização de mecanismos de abertura de escuta à sociedade civil como forma de incorporá-la politicamente ao processo de tomada de decisões, tem se apresentado como a melhor solução para evitar que certa tensão entre políticos e juízes perpetue problemas sociais infelizmente emoldurados na vida em sociedade. 

O STF brasileiro, ao julgar diversos processos ditos estruturais, com destaque para o Tema 698 e algumas ADPFs, já sinaliza nessa direção. De um lado, reconhece que o Poder Judiciário, em políticas públicas, deve cobrar a elaboração de planos abrangentes de ação, abstendo-se de intervir pontualmente nessa matéria a fim de evitar com suas ações desestruturar estratégias já traçadas pelos poderes legitimamente eleitos; por outro lado, o tribunal também reafirma o caráter normativo da Constituição e seu compromisso com o desenvolvimento de políticas públicas dirigidas à garantia de uma vida mais digna ao cidadão, reconhecendo, a partir de tais premissas, a necessidade de o Poder Público movimentar de forma eficiente a máquina pública na direção do projeto constitucional brasileiro. Definidos os papéis, a Corte entende que apenas um diálogo profícuo será capaz de tornar possível posicionar a burocracia estatal - respeitados os limites envolvidos, a saber, limites orçamentários, fiscais, econômicos, políticos, técnico-científicos etc. - na direção do estado de coisas idealizado pela Constituição brasileira. Talvez inspirado em Eduardo Galeano, o STF brasileiro aposta, com acerto, em diálogos possíveis e na sua capacidade de impulsionar políticas públicas na direção da utopia brasileira.