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Migalhas de Direito Privado Estrangeiro

Questões interessantes de outros países e de entidades transnacionais em Direito Civil e em Direito Notarial e Registral.

Carlos Eduardo Elias de Oliveira
Em colunas anteriores, explicamos a adaptação stricto sensu e a substituição. Passamos, agora, à transposição. Transposição Assim como a substituição, a transposição também envolve discussão de equivalência ou não entre dois institutos de direito material de leis distintas. A diferença está na causa. Na substituição, a causa é uma relação de prejudicialidade. Já, na transposição, a causa é a própria dinâmica da relação jurídica. A transposição é mais um problema de direito comparado do que propriamente de direito de conflitos. É, grosso modo, buscar traduzir juridicamente um direito estrangeiro. A transposição (recognition, em inglês) é a transformação de um direito em outro que deveria ter o mesmo efeito, conforme Bram Akkermans e Eveline Ramekers1. Na transposição, responde-se à seguinte pergunta: o instituto jurídico da lei de um país pode ou não traduzir-se no instituto da lei chamada a regular certa situação jurídica transnacional? O instituto da lei estrangeira pode ou não ser transposto para o instituto da lei escolhida para regular a situação plurilocalizada? Exemplos envolvendo deslocamento, para outro país, de coisas móveis oneradas por direitos reais costumam atrair debates de transposição. Cuida-se de hipóteses de conflitos móveis, as quais são férteis em discussões sobre transposição2. Essas questões são mais comuns em direitos reais menores (os direitos reais sobre coisa alheia), especialmente os de garantia3. A doutrina costuma acenar que não é tão comum esses problemas envolvendo o direito real de propriedade, por se tratar de um direito admitido em quase todos os países do mundo4. Já manifestamos nossa ressalva pessoal quanto a essa afirmação, calçado no argumento de que, se o regime jurídico do direito de propriedade difere de um país para o outro, há necessidade de adaptação lato sensu (na modalidade da transposição), ainda que essa operação possa ser mais simplificada (ut item 2.3.2.5.). Suponha um penhor de uma valiosa pintura situada na França, sem que haja a entrega da coisa. A lei francesa (que é a lei aplicável ao caso por força do elemento de conexão lex rei sitae) admite essa espécie de penhor. Se essa pintura for levada a Portugal - cuja lei não admite penhor desacompanhada da entrega da coisa -, indaga-se: a garantia real será ou não extinta? A pergunta surge pelo fato de que a lei que regula os direitos sobre a coisa é a da sua localização (lex rei sitae ou lex situs). Com o deslocamento da coisa para Portugal, a lei portuguesa passa a ser a competente para a regular os direitos reais. E essa lei não admite penhor sem entrega da coisa (tradição) nem admite a criação de direitos reais por vontade das partes (numerus clausus). A resposta à pergunta depende do manuseio da técnica da transposição, por meio da qual será investigado se o penhor sem tradição pode ou não ser "traduzido" (transposto) em outro direito real previsto na lei portuguesa, de modo a conservar, em favor do credor pignoratício, uma garantia real sobre a coisa. A transposição é a espécie de adaptação lato sensu destinada a viabilizar essa operação de Direito Internacional Privado. Um outro caso de transposição merece averbação. A referência é o Colorado case, fruto de acórdão da Court of Appeal of England and Wales Colorado, de 12 de fevereiro de 19235. Trata-se de hipótese que se valeu da figura da transposição antes mesmo da publicação da principal e pioneira obra doutrinária sobre o tema da adaptação: a obra Règles Générales des Conflits de Lois, de Hans Lewald (1939). O caso versava sobre definir uma hipoteca marítima (hypothèque maritime) constituída sob a égide da lei francesa. Pela lei francesa, o credor hipotecário - que era o banco Credit Maritime et Fluvial de Belgique - tinha prioridade em relação a outros credores na excussão da coisa. O navio foi penhorado e vendido em hasta pública na Inglaterra por conta de ação judicial de cobrança dívidas da empresa proprietária da embarcação. A lei inglesa não previa essa hipoteca marítima. Surgiu discussão acerca da prioridade creditória entre o credor hipotecário e outros credores (que haviam feito reparos no navio e não haviam sido pagos). A Corte inglesa entendeu que, em relação à prioridade creditória, deveria ser aplicada a lei inglesa em respeito à lex rei sitae e à lex fori. E, para tanto, é preciso traduzir (transpor) a hipoteca marítima francesa para uma figura próxima do direito inglês. É preciso, pois, realizar uma transposição. E, ao realizar essa transposição, a hipoteca marítima francesa deve ser considerar como um direito de garantia com prioridade creditória em relação a outros credores. Deve ser considerada como uma figura com prioridade creditória similar a um penhor marítimo (maritime lien) ou uma hipoteca inglesa (English mortgage). Portanto, feita a transposição da hipoteca marítima francesa para uma figura similar do direito inglês, é de reconhecer-se a prioridade creditória do banco Credit Maritime et Fluvial de Belgique na excussão da coisa. Outros exemplos de aplicação da transposição merecem averbação. Um deles é o Acórdão do Tribunal da Justiça Federal da Alemanha (Bundesgerichtbof - BGH) de 20 de março de 1963. Nesse caso, a Corte alemã transpôs um penhor de direito instituído à luz da lei francesa para uma propriedade fiduciária regida pelo direito alemão6. Outro exemplo é o caso do Banco da Tanzânia, que já tratamos em outro artigo publicado nesta coluna. __________ 1 AKKERMANS, Bram; RAMAEKERS, Eveline. Free Movements of Goods and Property Law. In: Maastricht European Private Law Institute (M-EPLI) Working Paper 26/2011, European Law Journal, Forthcoming, May 28, 2011 (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022), p. 4. 2 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150. 3 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150. 4 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150; LEWALD, Hans. Règles générales des conflits de lois. In: Recueil des cours, Tome 69, III, 1939, p. 129. 5 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150; CASE BOOKS. Court of Appeal, 12 February 1923: The Colorado. Data: 12 February 1923 (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022). 6 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 150.
Na Coluna anterior, explicamos a adaptação stricto sensu. Vamos tratar agora da substituição, outra espécie de adaptação lato sensu. 6. SUBSTITUIÇÃO A substituição lida com problemas de equivalência de institutos jurídico-materiais dentro de uma relação de prejudicialidade1. Cuida de definir se o instituto da lei de um país pode ou não servir de condição prejudicial (ex.: filiação) para um efeito produzido por uma questão principal (ex.: sucessão mortis causa) da ordem jurídica de um outro país pressupondo figuras distintas. A substituição destina-se a definir se o instituto de uma lei pode ser considerado equivalente ao instituto que, à luz da lei de outro país, é questão prejudicial à resolução de uma questão principal. A substituição visa a responder a esta pergunta: o instituto da lei de um país é ou não equivalente à condição jurídica referida pela lei de outro país2? Há quem defenda que a substituição só se aplica quando se trata de uma questão prejudicial para a lex fori3. Afonso Patrão, com razão, discorda dessa necessidade de se envolver a lex fori4. Basta que haja uma relação de prejudicialidade entre questões de leis diferentes, sem que necessariamente uma dessas leis seja o do foro. Ex.: sucessão mortis causa (questão principal) disciplinada por uma lei e filiação (questão prejudicial) disciplinada por outra lei. Não necessariamente essas leis envolvidas são as do foro. A substituição exigirá do jurista enfrentar um problema de interpretação das regras materiais envolvidas. Citamos um exemplo: o caso da sucessão mortis causa de um brasileiro residente no Brasil com dois filhos adotivos: um adotado de acordo com a lei brasileira e que mora no Brasil; e outro adotado à luz da lei da Arábia Saudita e que mora nessa nação do Golfo Pérsico. A lex successionis é a lei brasileira. Ela disciplinará a questão principal: a sucessão mortis causa. A lei brasileira reconhece os filhos adotivos como herdeiros. O problema é que, para resolver a questão principal, é necessário resolver uma questão prejudicial: o que é filho adotivo? A rigor, a lei brasileira (lex successionis), ao estabelecer que filho adotivo é herdeiro, parte da premissa de que o instituto da adoção é igual ou semelhante ao da lei brasileira. Em relação ao filho adotivo brasileiro, não há complicações: ele é herdeiro. O instituto da adoção é dado pela própria lei brasileira. No tocante, porém, ao filho saudita, teremos um problema: não há propriamente um conceito de adoção na lei árabe. Há, sim, uma figura parecida: a kafâla, a qual gera consequências jurídicas diferentes do instituto de adoção conhecido dos países ocidentais em geral5. Daí surge a pergunta: é ou não viável considerar a kafâla da lei saudita equivalente à adoção da lei brasileira para efeito sucessório? A resposta a essa pergunta é decisiva para definir se o filho adotivo saudita é ou não herdeiro. Adoção e kafâla são figuras diferentes. É preciso definir se elas são ou não equivalentes para efeito de definir quem é herdeiro. Em outras palavras, é fundamental estabelecer se ambas as figuras são substituíveis para efeito da questão principal: a sucessão mortis causa. A substituição é técnica do direito internacional privado destinada a avaliar essa equivalência entre institutos de leis de países diferentes tidos como questão prejudiciais para a aplicação de uma lei. Para definir se os institutos são ou não equivalentes, há necessidade de averiguar a função de cada um deles, segundo Hans Lewald6. Tal exigirá um aprofundamento do jurista no estudo de cada figura7. Não se pode confundir o problema da substituição com o da questão prévia em Direito Internacional Privado, apesar de haver quem confunda os termos8. Substituição consiste em averiguar a equivalência entre institutos jurídico-materiais como uma questão prejudicial. Já a questão prévia consiste em escolher a lei competente para regular uma questão prejudicial (ex.: a filiação). Nesse ponto, um julgado que merece citação é este, da Cour de Cassation (França, de 1931): o caso Ponnoucannamalle vs Nadimoutoupolle9. É mais adequado defender que, nesse caso, cuidou-se de uma questão prévia (definição qual lei regularia a validade de uma adoção), e não de uma substituição. Em suma, nesse precedente, discutiu-se se a adoção validamente feita à luz do direito hindu deveria ou não ser admitida diante do direito francês (que invalidaria essa adoção). Essa questão era prejudicial para o desate da questão principal: a definição dos herdeiros na sucessão mortis causa. De modo mais específico, o falecido tinha vários filhos legítimos e, mesmo assim, adotou outro, indiano, de acordo com o direito indiano. A lei francesa, que era aplicável à sucessão mortis causa dos imóveis deixados pelo falecido10, proibia a adoção quando o adotante já possuísse filhos legítimos. Foi o caso concreto. Assim, à luz da lei francesa, a adoção do filho indiano foi inválida e, por consequência, esse filho não poderia ser herdeiro. Já a lei indiana - sob a qual foi feita a adoção - não continha essa restrição. A adoção era válida à luz dessa lei. Como se vê, para definir a questão principal (sucessão mortis causa), é necessário definir uma questão prévia: qual a lei regerá a validade da adoção11, a francesa ou a indiana. A Cour de Cassation entendeu que deve prevalecer a lei francesa para a questão prévia: a adoção é nula e, por consequência, não há direito sucessório12. Esse julgado representa um problema de questão prévia no Direito Internacional Privado, e não propriamente de substituição. Não se discutiu, propriamente, a equivalência jurídico-material de institutos para efeito de definir uma questão prejudicial. Na próxima coluna, cuidaremos da transposição, outra espécie de adaptação lato sensu. _____________ 1 JAYME, Erik. La substitution et le principe d'e'quivalence en droit international prive'. In: Annuaire de l'Institut de droit international - Session de Santiago du Chili, volume 72, p. 2007; PAREDES PÉREZ, José Ignacio. Alcance y contenido de la noción de equivalência em el derecho internacional privado. In: AEDIPr, t. XII, 2012, pp. 91-126; ROZAS, José Carlos Fernández; LORENZO, Sixto Sánchez. Derecho Internacional Privado. Navarra/Espanha: Editorial Arannzadi, 2018; PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 147. 2 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 148. 3 GODERCHOT-PATRIS, Sara. Retour sur la notion d'équivalence au service de la coordination des systems. In: Revue critique de droit international privé, nº 2, 2010, pp. 271-312. 4 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 147. 5 Considerar a Kafâla como uma adoção nos países ocidentais é fruto de uma espécie de adaptação lato sensu: a substituição. Sobre essa espécie, deitaremos holofotes mais à frente. Para um aprofundamento sobre a kafâla, ver: CORDEIRO ÁLVAREZ, Clara Isabel. Adopción en Europa y Efectos de la Kafâla em el marco del convenio europeo de derechos humanos. In: AEDIPr, t. XII, 2012, pp. 455-489. 6 LEWALD, Hans. Règles générales des conflits de lois. In: Recueil des cours, Tome 69, III, 1939, p. 132. 7 Jorge Alberto Silva faz interessante análise sobre o reconhecimento, no México, de casamento religioso celebrado no exterior. Considera que, à luz da lei mexicana, o casamento religioso não gera efeitos civis: no máximo, indica um concubinato "o un simple amasiato". Pondera, porém, que a jurisprudência mexicana reconhece casamentos religiosos celebrados no exterior por questões de direito internacional privado (ALBERTO SILVA, Jorge. Reconocimiento del matrimonio religioso contraído en el extranjero (perspectiva mexicana). In: Boletín Mexicano de Derecho Comparado, nueva serie, año XLVII, núm. 141, septiembre-diciembre de 2014). Assim, seria possível, pela técnica da substituição, considerar o casamento religioso celebrado em um país que o admite como equivalente ao casamento civil mexicano, se essa questão for prejudicial. 8 FERRER CORREIA, Antonio. Da questão prévia em Direito Internacional Privado. In: Revista Portuguesa de História, tomo XII, volume II, Coimbra/Portugal, 1971, p. 231. 9 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 148; FERRER CORREIA, Antonio. Da questão prévia em Direito Internacional Privado. In: Revista Portuguesa de História, tomo XII, volume II, Coimbra/Portugal, 1971, p. 235; ALBERTO SILVA, Jorge. Aplicación de Normas Conflictuales: La Aportación del Juez. México: Editora Fontamara, 2010. 10 Os imóveis situavam-se na Cochinchina (região sul do atual Vietname), que foi uma colônia francesa até 1948. 11 Há quem trate esse julgado como não sendo um tema de questão prévia propriamente dito. 12 No caso concreto, o neto do autor da herança (o filho indiano adotivo do autor da herança) pleiteava o direito hereditário por direito de representação. É que o filho indiano adotivo era premorto ao tempo da abertura da sucessão. O neto - que foi representado por sua mãe (a Sra. Ponnoucannamalle) - pleitou sua participação da herança como herdeiro necessário (que tem direito à legítima) diante do fato de que o autor da herança havia feito um testamento excluindo-o totalmente da herança. Antes de morrer, o autor da herança havia feito um testamento excluindo totalmente esse neto da herança. O neto, a seu turno, pleitou a nulidade do testamento por este ter violado a legítima, que é assegurada aos herdeiros necessários.
Na coluna anterior, explicamos a adaptação stricto sensu. Vamos expor mais exemplos práticos, além dos já mencionados. João Baptista Machado (1960, pp. 331-332) dá outro exemplo convidativo da adaptação. O exemplo retrata o quadro normativo dos países envolvidos na década de 19601. Suponha um casal alemão que tenha obtido a nacionalidade sueca. Suponha que o marido faleça. Indaga-se: o outro terá direito à meação dos bens comuns? E terá também direito sucessório? A rigor, pelos elementos de conexão indicados por João Baptista Machado na década de 1960, a viúva nada herdaria (direito sucessório) nem nada mearia (direito de família). É que o direito sueco haveria de disciplinar a sucessão mortis causa e, à luz dele, a viúva nada herdaria. E nada herdaria por um motivo: a lei sueca parte da premissa de que a viúva já terá sido beneficiada com a meação por regras de direito de família. O direito alemão daria as regras de direito de família e, sob sua ótica, a viúva não teria direito algum a meação. E não teria direito à meação, porque, sob a lógica da lei alemã, a viúva seria herdeira. Tanto na lei alemã quanto na lei sueca, a regra de meação (direito de família) está umbilicalmente conectada à regra da herança (direito sucessório) na lei alemã. Fragmentá-las no caso concreto geraria um resultado inadmissível no exemplo acima. Não é admissível que, por regras tradicionais de conflito de normas, a viúva não tenha qualquer direito patrimonial. Trata-se de uma situação que, a nosso sentir, envolve tanto uma contradição teleológica (a finalidade das leis se contradize no caso concreto) quanto de incompatibilidade material (o conteúdo das normas não é compatível). Cabe ao jurista corrigir esse resultado inadmissível por meio da adaptação stricto sensu. João Baptista Machado2 fornece outro exemplo similar. O exemplo retrata o quadro normativo dos países envolvidos na década de 19603. Dois ingleses, domiciliados na Inglaterra, casam-se sem uma convenção antenupcial. Posteriomente, mudam-se para a França. Morre o marido. Indaga-se: a viúva terá direito à meação (direito de família) ou direito à herança (direito sucessório)? À luz das regras tradicionais de conflito de normas em direito internacional privado, nada tocaria à viúva. É que a lei inglesa seria aplicada para o direito de família. Segundo ela, o regime de bens de quem casa sem pacto antenupcial é o da separação de bens. Essa regra de direito de família inglesa justifica-se pelo fato de que, futuramente, o viúvo terá direito hereditário. A opção legislativa de direito de família está umbilicalmente conectada à opção sucessória no direito inglês. Assim, no exemplo acima, a viúva não teria qualquer meação, portanto. Acontece que a sucessão mortis causa não será disciplinada pela lei inglesa na hipótese acima, segundo as regras tradicionais de conflito de normas. Aplicar-se-á aí o direito de francês, em virtude do qual, no exemplo acima, a viúva não terá nenhum direito na sucessão mobiliária. Essa opção legislativa sucessória francesa conecta-se intrinsecamente com a regra francesa de direito de família em assegurar o direito à meação sobre os bens adquiridos ao longo do casamento. Ao aplicar a lei inglesa apenas quanto à meação (direito de família) e a lei francesa em relação à herança (direito sucessória), chegaremos a um resultado inadmissível: a viúva, no exemplo acima, não terá direito a qualquer proveito patrimonial4. É mister corrigir esse contrassenso lógico e essa incompatibilidade material das normas oriundas da aplicação distributiva das duas ordens jurídicas. A ferramenta adequada para tanto é adaptação stricto sensu. Conflitos entre o estatuto real também podem atrair a adaptação stricto sensu. A lei que rege a constituição, a modificação e extinção dos direitos reais (geralmente, a lex situs) nem sempre é a mesma lei que rege o título gerador desse direito (ex.: lex sucessionis, lex contractus etc.). Ao aplicar as regras conflituais tradicionais, um resultado inadmissível ou impossível pode ser obtido, o que convocará a incidência da técnica da adaptação strcito sensu. João Baptista Machado (1960, p. 334) cita um julgado de 1986, do tribunal de Dresden, capital do Estado5 alemão da Saxônia.  A esposa herdou um imóvel situado na Saxônia. O regime de bens era regido pela lei de outro local, da antiga região de Westfália6. Por esse regime de bens, haveria comunicação do imóvel em razão do regime de bens em favor do marido. Acontece que a lei da Saxônica, que regrava o estatuto real, estabelecia que a transmissão do bem por força de regime de bens não pode ser automática; não é ex vi legis. O "simples jogo de normas de conflito" desaguou em um resultado inadmissível ou impossível: o marido tem direito ao imóvel pela comunicação decorrente do regime de bens à luz da lei de Westfália, mas a efetivação desse direito (a transmissão imobiliária) encontra obstáculo na lex situs. Para corrigir esse contrassenso teleológico e essa incompatibilidade material, o Tribunal de Dresden valeu-se de uma adequação stricto sensu: obrigou a esposa a criar uma situação jurídica próxima à do estatuto matrimonial, conferindo ao marido um direito de disposição sobre o imóvel. Na próxima coluna, trataremos das outras espécies de adaptação lato sensu. __________ 1 Como o objetivo aqui é expor exemplos atrativos da adaptação stricto sensu, os exemplos em pauta são suficientes, ainda que vinculados ao quadro normativo da década de 1960. 2 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 333-334. 3 Como o objetivo aqui é expor exemplos atrativos da adaptação stricto sensu, os exemplos em pauta são suficientes, ainda que vinculados ao quadro normativo da década de 1960. 4 João Baptista Machado (MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 332-333) lembra exemplo absolutamente similar nos EUA, levando em conta o quadro normativo da década de 1960. A lei do Massachussets adota o regime da separação de bens como regra, mas, em compensação, garante direito sucessório ao viúvo. Já a lei da Califórnia elege o regime da comunhão de bens como regra e, como contrapartida, nega direito hereditário ao viúvo. 5 Bundesland. 6 Integrante atualmente do Estado alemão de Renânia do Norte-Vestfália.
Na coluna anterior, estávamos a tratar da adaptação stricto sensu, a qual é utilizada para resolver acidentes técnicos de conflitos de leis em situações transnacionais. Esses acidentes técnicos podem consistir em contradições (lógicas ou teleológicas) ou em incompatibilidades materiais. Já tratamos das contradições. Agora, passamos a cuidar das incompatibilidades materiais No tocante às incompatibilidades materiais, elas consistem em hipóteses em que as normas convocadas a disciplinar uma situação transnacional geram, na prática, um resultado que denota uma incompatibilidade do conteúdo de ambas e a insuficiência dos critérios tradicionais de conflitos de normas. A adaptação stricto sensu é a via para afastar essa incompatibilidade material entre as normas. O exemplo clássico é da comoriência1. Suponha um pai português residente em Portugal, com um filho inglês residente na Inglaterra. Suponha que ambos morram em uma mesma ocasião, sem que se possa saber quem morreu em primeiro lugar (comoriência)2. Para disciplinar a extinção da personalidade jurídica (momento da morte) e a sucessão mortis causa, deve-se aplicar a lei do domicílio do falecido, conforme elemento de conexão preponderante no caso. Assim, aplica-se a lei portuguesa para a extinção da personalidade e para a sucessão mortis causa do pai português. E aplica-se a lei inglesa para a extinção da personalidade e a sucessão mortis causa do filho inglês. Acontece que esse critério tradicional de conflito de normas (a de elementos de conexão) acabará gerando uma incompatibilidade material entre as leis lusitana e inglesa. É que, à luz da lei portuguesa, a comoriência faz presumir que a morte foi simultânea (extinção da personalidade jurídica). Desse modo, nenhum dos comorientes herdaria nada do outro (sucessão mortis causa). No exemplo acima, o pai português presumidamente teria morrido no mesmo momento do filho e, portanto, nenhum seria herdeiro do outro. Todavia, a lei inglesa tem solução diferente para a extinção da personalidade jurídica no caso de comoriência. Ela faz presumir que o comoriente mais velho morreu em primeiro lugar3 (extinção da personalidade jurídica). Desse modo, o filho inglês teria morrido em segundo lugar. E é aí que surge uma incompatibilidade material entre a lei portuguesa e a lei inglesa. Pela lei inglesa, a presunção de precedência da morte do comoriente mais velho está umbilicalmente ligada à sua regra sucessória de que o comoriente mais novo poderá ser herdeiro daquele. Já pela lei portuguesa, a presunção de morte simultânea dos comorientes está intrinsecamente conectada à sua regra sucessória de que nenhum dos comorientes será herdeiro um do outro. As leis não são compatíveis no seu conteúdo quando são fracionadas para disciplinar aspectos diferentes de uma mesma situação jurídica transnacional. Essa incompatibilidade material entre as duas normas exigiria que o jurista se valesse da adaptação stricto sensu para encontrar um resultado admissível e que sincronize as regras. Problemas como esse ocorrem, porque cada ordenamento jurídico possui uma coerência lógica e sistemática interna. É um todo unitário dentro de si mesmo. Uma norma encontra justificativa em outra do mesmo ordenamento por serem frutos de um jogo de compensações de justiça do legislador. Praticamente nenhuma norma pode ser "isolada da 'sintaxe' desse todo sem perder a significação jurídico-material que lhe é própria"4. Por isso, ao se deparar com problemas como esses, o direito internacional privado precisa dar uma solução por meio da técnica da adaptação stricto sensu. O objetivo do direito internacional privado é estender o "sentido de justiça material da legislação competente"5. Esclarecemos que, no caso da União Europeia, o exemplo acima não seria aplicável, porque o art. 32º do Regulamento nº 650/2012[6] evitou, na raiz, essa incompatibilidade material. O referido dispositivo comunitário estabelece a presunção de morte simultânea no caso de comoriência e, portanto, os comorientes não serão herdeiros uns dos outros. Considerando, porém, que o Reino Unido não é mais Estado membro da União Europeia em razão do Brexit, o exemplo acima voltou a ser atual. A realidade é que nem sempre é nítido definir quando há um caso de contradições (lógicas ou teleológicas) ou um de incompatibilidade material. Há hipóteses que misturam as duas situações. E nem nos parece tão relevante uma obsessão por categorização diante da proximidade entre as hipóteses. O que importa mesmo é identificar se o "simples jogo das normas de conflito" (as regras tradicionais de conflitos de normas) gera ou não um resultado impossível ou inadmissível. Se gerar, o caso é de o jurista valer-se da técnica de adaptação para corrigir esse resultado, interferindo no conteúdo material das regras. Prosseguiremos tratando de exemplos de problemas práticos de adaptação stricto sensu na próxima coluna. __________ 1 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 142. 2 A propósito, o art. 21º, item 1, do Regulamento (UE) nº 650/2012 indica a lei do local da residência habitual do falecido como a competente para regular a sucessão mortis causa. 3 Sec. 184 do Land Property Act, de 1925. 4  MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 338. 5 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 338. 6 Confira-se (Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 4 de julho de 2012; disponível aqui): Artigo 32.º Comorientes Sempre que duas ou mais pessoas cujas sucessões são regidas por leis diferentes morram em circunstâncias em que haja in­ certeza quanto à ordem em que os óbitos ocorreram e que essas leis regulem esta situação de forma diferente ou não a regulem, nenhuma destas pessoas tem direito à sucessão da outra ou das outras.
Damos continuidade ao tema tratado na coluna anterior. 4. Espécies de adaptação lato sensu Em situações jurídico-transnacionais, é comum ocorrer o problema de um direito de um país (país de origem) não ser conhecido total ou parcialmente em outro (país de destino1). Até o presente momento, empregamos a expressão "adaptação" em seu sentido amplo: a adaptação lato sensu. Há, porém, espécies desse tipo de adaptação, a saber: a) adaptação stricto sensu2; b) substituição; e c) transposição. Doutrina minoritária inclui a transposição dentro da substituição. Não é essa a melhor corrente Mais adequado é separar as figuras, apesar de haver certa proximidade entre elas3. A adaptação4, em qualquer uma das suas espécies, é caracterizada por implicar uma aplicação parcial de uma lei estrangeira a uma situação plurilocalizada. Esse é o ponto em comum entre elas5. A diferença está nos tipos de problemas a serem enfrentados. A adaptação lato sensu é empregada em situações de insuficiência das regras tradicionais de conflitos de normas em direito internacional privado. Estas não logram resolver todos os problemas conflituais. A adaptação é "o expoente paradigmático de algumas insuficiências do método conflitual"6. É uma amostra da necessidade de haver certa flexibilidade nas técnicas de soluções conflituais em direito internacional privado para obter resultados adequados. 5. Adaptação stricto sensu A adaptação stricto sensu dá-se quando há um "acidente técnico", na expressão de João Baptista Santos (1960, p. 328). O acidente técnico ocorre quando, para uma situação transnacional, duas leis de países diferentes são consideradas competentes para regulá-la e entram em conflito a ponto de gerar resultados impossíveis ou inadmissíveis7. A adaptação stricto sensu é a técnica do direito internacional privado para conciliar essas duas normas que foram convocadas para regular a questão privada internacional e que, por si sós, acarretariam contradições (lógicas ou teleológicas) ou incompatibilidades materiais. O objetivo da adaptação stricto sensu é encontrar uma congruência lógica ou teleológica diante da insuficiência dos métodos tradicionais de conflitos de normas, como os elementos de conexão. É corrigir o resultado inadmissível ou impossível que o "jogo de normas de conflito"8 acarreta em um caso concreto. As contradições (lógicas ou teleológicas) e as incompatibilidades materiais são resultados impossíveis ou inadmissíveis que a adaptação stricto sensu busca desmanchar. Cabe ao jurista tal tarefa em respeito à necessidade de preservar o vínculo natural que há entre os diversos ordenamentos jurídicos, dentro de uma ideia de unidade do sistema jurídico mesmo no plano internacional9. O fato de inexistir uma regra de conflito para essa situação específica é irrelevante: cabe ao jurista preencher essa lacuna, adotando, por vezes, uma postura de legislador para ajustar o conteúdo material das normas estrangeiras envolvidas. O jurista, porém, precisa ter cautela para não subverter as normas envolvidas. Tem de ser minimalista e cauteloso no manuseio da técnica da adaptação stricto sensu no caso concreto, com a acuidade própria de um neurocirurgião na fase mais sensível de uma operação no cérebro. João Baptista Machado10 destaca, in verbis: Ao juiz não será lícito aceitar de braços cruzados um tal resultado: terá de o corrigir, ao decidir a hipótese litigiosa, procurando guardar respeito, na medida do possível, àquela interconexão de sentido que solidariza e argamassa as normas no ordenamento respectivo. Tem de preencher as lacunas que apareçam - tal como se lhe impõe para hipóteses internas -, tem de eliminar os contrassentidos e ajeitar a coatuação das diferentes leis, por forma a obter um "mosaico ilacunar" (Wengler) e harmônico. Por isso se reconhece hoje em geral a necessidade de recorrer, em certos casos, a um procedimento de adaptação das normas materiais aplicáveis. Na expressão de Wengler, o juiz terá de proceder como se se tratasse de construir um automóvel com peças de marcas diferentes: passando além da simples função "constatadora" de normas de conduta dadas, o juiz avançará no sentido de uma conformação concreta das relações jurídicas através da sua decisão, no uso de uma faculdade quase-legislativa. É caso para dizer-se que ele atua não só secundum legem mas também de legibus. Essa atividade requer, por parte do juiz, um bom conhecimento do direito estrangeiro a adaptar, e o interesse da segurança jurídica pede que se limite ao mínimo a alteração introduzida no conteúdo da lei estrangeira. Tratemos das contradições e das incompatibilidades. A rigor, contradição lógica e contradição teológica são diferentes, nas palavras de Antônio Marques dos Santos11, que se apoia em G. Kegel. Contradição lógica dizem respeito a casos "assim não pode ser". Contradição teleológica já aludem a casos "assim não deve ser". Apesar de ser didático pensar assim, temos por mais didático tratá-las em globo dentro do termo "contradições", pois o resultado de ambas é o mesmo: a utilização da técnica da adaptação stricto sensu. Quanto às contradições lógicas ou teleológicas (também chamadas de contrassentidos lógicos ou teleológicos), elas ocorrem quando a aplicação das duas leis competentes para disciplinar o caso gera um resultado incompatível com a finalidade de ambas as leis. Dá-se quando a aplicação pura das regras tradicionais de conflito internacional de normas cria uma contradição teleológica: colide com a ratio de ambos os ordenamentos jurídicos envolvidos. O exemplo clássico da doutrina é do pai biológico português em conflito com o pai adotivo marroquino12. Suponha que A (português residente em Portugal) tenha um filho biológico C. Suponha que C tenha sido adotado por B (marroquino residente em Marrocos) à luz da lei marroquina. A adoção em países muçulmanos não corresponde propriamente à adoção comum nos países ocidentais. É chamada de kafâla e acarreta consequências jurídicas diferentes13. C, portanto, é filho biológico do português e filho adotivo de B. A lei portuguesa exclui o filho biológico que foi adotado por outrem da herança do pai biológico. Pressupõe que o filho biológico, ao ser adotado por terceiro, participará da herança deste último. No caso acima, à luz da lei lusitana, se o pai português (A) morresse, o seu filho biológico (C) não seria seu herdeiro, pois já foi adotado por outrem. Acontece que a lei marroquina parte de lógica diferente. Ela exclui o filho adotivo da herança do pai adotivo. Escora-se na premissa de que o filho adotivo se beneficiará da herança do pai biológico. Na hipótese em pauta, à luz da lei marroquina, se o pai marroquino (B) morrer, o seu filho adotivo (C) não lhe será herdeiro. Pelas regras tradicionais de solução de conflito (especificamente a de elementos de conexão), a lei portuguesa disciplinará a sucessão mortis causa do pai português, e a lei marroquina, a do pai marroquino. É que, nesses casos, o elemento de conexão é a lex domicilli: aplica-se a lei do domicílio do falecido para disciplinar sua sucessão mortis causa. Dado esse cenário, suponha que ambos os pais faleçam. Nessa hipótese, se aplicarmos isoladamente cada uma das leis em tela, C não receberá herança alguma: nem do pai português, nem do pai marroquino. Trata-se de uma contradição teleológica: a finalidade de cada uma das leis em conflito está sendo frustrada. Cada uma das leis colimava que o filho recebesse uma herança. Mas, na espécie, C não receberá herança alguma se aplicarmos as duas leis isoladamente. No exemplo acima, percebe-se que a aplicação dos métodos tradicionais de solução de conflitos de normas estrangeiras desaguará em um resultado inadmissível diante da contradição teleológica. A adaptação stricto sensu é a técnica de direito internacional privado destinada a dissolver essa contradição lógica. Deixaremos para a próxima coluna o tratamento das hipóteses de incompatibilidades materiais. __________ 1 Empregamos as expressões "país de origem" e "país de destino" para facilitar a compreensão. 2 Há autores, como Luis de Lima Pinheiro, que adotam nomenclatura diferente: no lugar de "adaptação lato sensu" e "adaptação stricto sensu", emprega respectivamente os termos "adaptação-problema" e "adaptação-solução" (Lima Pinheiro, 2019, pp. 540-545; Patrão, 2016, p. 139). No mais, admitem os termos substituição e transposição. Preferimos, porém, as expressões mais tradicionais para evitar dispersões taxonômicas que mais confundem do que esclarecem. Melhor, portanto, é referir-se à adaptação stricto sensu. Embora não se encontre na doutrina a expressão adaptação lato sensu, utilizamo-la aqui por entendermos estar implícita na escolha da doutrina em empregar o termo "adaptação" como um grande gênero dentro do qual a "adaptação stricto sensu" é uma espécie (Monaco, 2019, p. 153). Há, ainda, autores, como Giorgio Cansacchi, que deram sentido muito mais amplo ao conceito de adaptação, mas é adequadamente criticado por misturar o tema com problemas diferentes de direito internacional privado, como qualificação e reenvio (PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 140). 3 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 126 e 146. 4 Quando utilizarmos o termo "adaptação", a referência é ao sentido amplo (lato sensu). 5 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 140. 6 ROZAS, José Carlos Fernández. "Coordinación de ordenamientos jurídicos estatales y problemas de adaptación". In: Revista Mexicana de Derecho Internacional Privado y Comparado, nº 25, 2009, p. 11. 7 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 140-142. 8 Expressão de João Baptista Machado (MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 338). 9 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 330. 10 MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 330-331. 11 MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, P. 570. 12 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 141. 13 Considerar a Kafâla como uma adoção nos países ocidentais é fruto de uma espécie de adaptação lato sensu: a substituição.
1. Esclarecimentos iniciais Em artigo anterior, tratamos de um exemplo de adaptação lato sensu de direito estrangeiro (https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-direito-privado-estrangeiro/393052/julgado-da-suprema-corte-da-holanda). Naquele caso, a Suprema Corte Holandesa adaptou a garantia flutuante instituída segundo a legislação da Tanzânia para o penhor silencioso da legislação holandesa. Expusemos que esse caso poderia ser estendido ao Brasil, com eventual adaptação lato sensu da garantia flutuante para a propriedade fiduciária em garantia. No presente artigo, passaremos a tratar um pouco mais desse que é um dos principais institutos de Direito Internacional Privado: a adaptação lato sensu. E, nesse ponto, registramos nossos elogiosos à produção de um dos principais internacionalistas brasileiros atuais que se dedicam ao tema: o Professor Gustavo Ferraz de Campos Mônaco. Em um primeiro momento, exporemos o tema de modo mais superficial para facilitar a compreensão de leitores de primeira viagem nesse tema. Em artigos futuros, aprofundaremos o instituto. 2. Noções gerais Em situações jurídico-transnacionais, é comum ocorrer o problema de um direito de um país (país de origem) não ser conhecido total ou parcialmente em outro (país de destino[1]). Por desconhecimento total, designamos a situação de o ordenamento do país de destino não admitir o direito do país de origem. Por desconhecimento parcial, batizamos a situação em que o ordenamento do país de destino admite o direito do país de origem com ressalvas. Essas ressalvas referem-se a diferenças de regime jurídico ou a diferenças de nomen iuris. Em sucessões mortis causa envolvendo bens situados em diferentes países, é potencial o problema de a lei do lugar do bem (lex rei sitae ou lex situs) não conhecer total ou parcialmente o direito real que a lei sucessória outorgue a um herdeiro. Lembramos que, na maioria dos países, a lex situs é o elemento de conexão adotado para disciplinar direitos reais sobre bens, especialmente no caso de imóveis. Se, por exemplo, uma lei sucessória ou um testamento defere um direito real de habitação a um herdeiro, indaga-se: o que se fará se a lex rei sitae não conhecer total ou parcialmente esse direito real dentro de sua legislação? Seria viável onerar o bem com um direito real totalmente desconhecido pela lex rei sitae (desconhecimento total)? E como ficaria essa questão na hipótese de o direito real ser apenas parcialmente conhecido pela lex rei sitae, como na situação em que o direito real é sujeito a um regime jurídico diferente (com, por exemplo regras de transmissão e de extinção diversas)? Para situações como essa, discute-se se seria ou não cabível a adaptação lato sensu do direito estrangeiro para sua admissão no país de destino. 3. Conceituação geral O tema da adaptação de direitos estrangeiros é tratado pela doutrina do direito internacional privado. Hans Lewald é tido como um dos pais desse instituto por ter implantado a discussão sobre essa figura no seu artigo Règles générales des conflits de lois, na Recueil des cours de 1939 (Lewald, 1939). Outros juristas cuidaram do assunto a partir dessas reflexões de Hans Lewald[2].  No presente artigo, tratamos da adaptação lato sensu, assim entendido gênero do qual são espécies a adaptação stricto sensu, a transposição e a substituição. Deixaremos para aprofundar cada uma dessas espécies em outro artigo posteriormente. Assim, quando nos referirmos ao termo "adaptação", estaremos fazendo alusão à adaptação lato sensu. A doutrina costuma seguir essa convenção taxonômica. De um modo simples, mas bem impressivo, a adaptação de direito estrangeiro pode ser vista como uma tradução, nas palavras de Gustavo Ferraz de Campos Monaco[3]. Nas palavras de Afonso Patrão, é o "conjunto de mecanismos aptos a solucionar os problemas derivados da aplicação parcial de várias leis"[4]. É um expediente técnico para que o julgador possa resolver esses problemas. Esses problemas ocorrem quando estamos diante de situações jurídicas plurilocalizadas, ou seja, de situações jurídicas transnacionais. Nesses casos, a adaptação é a técnica do direito internacional privado destinada a lidar com questões claramente sujeitas a distintas leis e a distintas normas de conflito[5]. A necessidade de resolver esses problemas por meio da técnica da adaptação decorre da ideia de unidade do sistema jurídico. No plano internacional privado, há um vínculo natural entre as diversas regras jurídicas. Por vezes, esse vínculo natural pode ser abalado "no jogo das normas em conflito"[6]. Para dissolver esse abalo ao vínculo internacional das normas, pode ser necessário ajustar a própria solução material das leis em conflito[7]. A doutrina majoritária do direito internacional privado admite a figura, embora ainda esteja tateando na sua aplicação nos casos concretos. Não há muitas normas chancelando expressamente a figura. As principais são em caso de adaptação de direitos reais. É o caso, por exemplo, do art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões[8] e também do art. 15 da Convenção de Haia de 1985 sobre a lei aplicável ao Trust e ao seu reconhecimento[9]. Este último estabelece a necessidade de o trust ser adaptado em outro direito admitido pelo ordenamento local com efeitos similares[10]. Mesmo sem previsão normativa expressa, entendemos que a adaptação pode ser admitida no Brasil com base nos princípios gerais de Direito Internacional Privado. Em artigo posterior, aprofundaremos as espécies de adaptação lato sensu.   [1] Empregamos as expressões "país de origem" e "país de destino" para facilitar a compreensão. [2] Entre outros, citamos: ROZAS, José Carlos Fernández. "Coordinación de ordenamientos jurídicos estatales y problemas de adaptación". In: Revista Mexicana de Derecho Internacional Privado y Comparado, nº 25, 2009, pp. 9-44; PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016; PATRÃO, Afonso. Reflexões sobre o reconhecimento de Trusts voluntários sobre imóveis situados em Portugal. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  87, 2011; MARQUES DOS SANTOS, António. Breves considerações sobre a adaptação em direito internacional privado. In: Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha. Lisboa/Portugal: Faculdade de Direito de Lisboa, 1989, pp. 521-606; MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, pp. 327-351; MACHADO, João Baptista. Contributo da escola de Coimbra para a teoria do direito internacional privado. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 61, pp. 159-176, 1985; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Conflitos de leis no espaço e lacunas (inter)sistêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 121-160; FERRER CORREIA, Antonio. Considerações sorbe o método do direito internacional privado. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial). Coimbra/Portugal, 1983, pp. 1-92; FERRER CORREIA, Antonio. Considerações sorbe o método do direito internacional privado. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial). Coimbra/Portugal, 1983, pp. 1-92; ANCEL, Bertrand. Regards critiques sur l'érosion du paradigme conflictual. Disponível em: https://www.ehu.eus/documents/10067636/10730148/2005-bertrand-ancel.pdf. Acesso em 2 de fevereiro de 2022. Destaca-se também o jurista francês Henri Batiffol (1905-1989), que dominou a doutrina francesa de direito internacional privado e que é multicitado pelos demais internacionalistas privados também em matéria de adaptação de direitos estrangeiros (SOCIÉTÉ FRANÇAISE POUR LE DROIT INTERNATIONAL. Henri Batiffol. Disponível em: https://www.sfdi.org/internationalistes/batiffol/. Acesso em 4 de abril de 2022). Entre as diversas contribuições dele, destaca-se artigo sobre as contribuições das regras norte-americanas de soluções de conflitos para o direito francês (LEWALD, Hans. Règles générales des conflits de lois. In: Recueil des cours, Tome 69, III, 1939, pp. 48-74). [3] MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Conflitos de leis no espaço e lacunas (inter)sistêmicas. São Paulo: Quartier Latin, 2019, pp. 121-159. [4] PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 140. [5] PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 139-140. [6] MACHADO, João Baptista. Problemas na aplicação do direito estrangeiro - adaptação e substituição. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 36, 1960, p. 330. [7] LIMA PINHEIRO, Luís de. Direito Internacional Privado, volume I: introdução e direito de conflitos - Parte Geral. Lisboa/Portugal: AAFDL, 2019, p. 541. [8] Regulamento (UE) nº 650/2012 (Eur-lex, 2012-A). Confira-se o teor do dispositivo:   Artigo 31.º Adaptac¸a~o dos direitos reais   No caso de uma pessoa invocar um direito real sobre um bem a que tenha direito ao abrigo da lei aplica'vel a` sucessa~o e a legislac¸a~o do Estado-Membro em que o direito e' invocado na~o reconhecer o direito real em causa, esse direito deve, se necessa'rio e na medida do possi'vel, ser adaptado ao direito real equivalente mais pro'ximo que esteja previsto na legislac¸a~o desse Estado, tendo em conta os objetivos e os interesses do direito real em questa~o e os efeitos que lhe esta~o associados. [9] HCCH, 30: Convenção sobre a lei aplicável ao trust e a seu reconhecimento. Data: 1 de julho de 1985 (Disponível: https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/full-text/?cid=59#:~:text=para%20os%20prop%c3%b3sitos%20desta%20conven%c3%a7%c3%a3o,ou%20para%20alguma%20finalidade%20espec%c3%adfica. Acesso em 3 de fevereiro de 2022). [10] Confira-se o dispositivo o art. 15 da Convenção de Haia de 1985:   Artigo 15 A Convenção não prevê a aplicação de disposições de direito designadas pelas regras de conflitos do foro, na medida que estas disposições não possam ser derrogadas por ato voluntário, relacionado em particular às matérias que seguem:   a) a proteção de menores e partes incapazes; b) os efeitos pessoais e de propriedade do casamento; c) direitos de sucessão, testamentária e não testamentária, especialmente a reserva a cônjuges e parentes; d) a transferência do título de propriedade e garantias reais; e) a proteção dos credores em questões de insolvência; f) a proteção de terceiros de boa-fé.   Caso o reconhecimento do trust seja impossível pela aplicação do parágrafo precedente, a corte buscará dar efeitos aos objetivos do trust por outros meios jurídicos.
Trataremos de interessante julgado da Suprema Corte da Holanda, cujo raciocínio poderia ser estendido ao sistema brasileiro, por conta da similaridade. A Holanda, assim como o Brasil, não prevê a garantia flutuante (floating charge) como direito real na sua lei. Isso acarreta problemas práticos no caso de execução dessa garantia flutuante pactuada em contrato celebrado no exterior, quando a garantia vier a recair sobre bem situado no país. Trata-se de um problema conhecido no Direito Internacional Privado como adaptação lato sensu de direito estrangeiro, mais especificamente um problema de transposição. Deixaremos para outra oportunidade o aprofundamento desses conceitos. Passamos, porém, a expor julgado holandês que enfrentou o problema acima e deu uma solução que poderia ser adotada pelas Cortes brasileiras, mutatis mutandi: entendemos que a transposição da garantia flutuante poderia ser feita para uma propriedade fiduciária em garantia por conta de sua maior força executiva do que o penhor, à luz da legislação brasileira. Trata-se do que chamaremos de Caso do Banco da Tanzânia, formalmente conhecido como NBC Holding Corporation (Tanzania National Bank of Commerce) v. Societa Italiana Sisal e Afini Lavorata S.P.A., julgado pela Suprema Corte da Holanda (Hoge Raad der Nederlanden) em 23 de abril de 19991. Nesse caso, a Suprema Corte holandesa (Hoge Raad) transpôs uma garantia flutuante (floating charge) instituída à luz da lei da Tanzânia em um penhor sem apossamento da lei holandesa2. Esse caso convida aprofundamento por sua riqueza fática e pela sua utilidade para outros casos concretos envolvendo conflitos móveis envolvendo a técnica do Direito Internacional Privado de transposição (recognition, no direito norte-americano)3. Os fatos podem ser resumidos da seguinte maneira. Uma empresa chamada Codage tinha uma dívida de 2 milhões de dólares perante o banco da Tanzânia (NBC Holding Corporation4). E, em garantia dessa dívida, a Codage ofereceu um floating charge (uma garantia flutuante) sobre o patrimônio da sua atividade empresarial (como as mercadorias). O floating charge não recai sobre um bem específico, mas sobre o patrimônio em si (a universalidade de bens), abrangendo bens presentes e futuros dessa universalidade. Desse modo, a empresa devedora tem liberdade para dispor dos seus bens na sua atividade empresarial, como mercadorias, recebíveis (créditos perante clientes) etc. Quando o credor tiver de executar a garantia por conta de uma inadimplência, ele, então, especializará a garantia, fazendo-a incidir sobre um bem específico entre os que, naquele momento, estiver sob a titularidade do devedor. Cabe-lhe nomear um receptor por meio de um procedimento executivo previsto na lei da Tanzânia. Nesse momento, o floating charge transformar-se em um fixed charge (garantia fixa). Em outras palavras, a floating charge é um ônus que fica flutuante dentro de uma universalidade de bens até, quando da execução, possa fixar em um bem específico. De modo metafórico, é um espírito que fica pairando em cima do patrimônio presente e futuro do devedor à espera de, no caso de inadimplência, encarnar-se em um bem específico. Acontece que a empresa Codage tinha, na Holanda, um bem avaliado em 2,35 milhões de dólares5. A rigor, esse bem, por integrar o patrimônio da empresa, estava também onerado pela garantia flutuante da lei da Tanzânia. A empresa Codage passou a desonrar suas dívidas não apenas perante o banco da Tanzânia, mas também perante um outro credor (a sociedade Sisal6). A Codage não pagou a dívida de 1,95 milhões de dólares que detinha perante a sociedade Sisal7. Essa credora, então, ajuizou ação na Holanda e obteve a penhora do supracitado bem que a Codage tinha na Holanda. O problema é que esse bem, a rigor, era objeto de uma garantia flutuante (floating charge) anteriormente instituída em favor do banco tanzaniano. O banco da Tanzânia reagiu e, diante da inadimplência da Codage, executou o floating charge e especializou a garantia sobre esse mesmo bem situado na Holanda. Por consequência, o banco tanzaniano buscou onerar esse bem situado na Holanda com um fixed charge, fruto da execução sumária do floating charge. O conflito entre esses dois credores (Sisal e banco tanzaniano) foi instalado. Quem teria prioridade na excussão da coisa: o banco tanzaniano por força de seu fixed charge ou a Codage por força de sua penhora? O banco tanzaniano interveio no processo para reivindicar a prioridade na excussão da coisa com base no seu floating charge instituído à luz da lei da Tanzânia. A Codage, porém, contra-atacou. Afirmou que, para reger direitos reais sobre a coisa, há de aplicar-se a lei da sua localização (lex rei sitae), que, no caso, é a lei holandesa. E, à luz da lei holandesa, que adota a tipologia de numerus clausus de direitos reais, o floating charge não é admitido. Logo, o banco tanziano não teria nenhuma prioridade creditória. O Judiciário holandês, então, teve de decidir quem teria direito. E, para tanto, imergiu em debates de transposição: o floating charge tanzaniano, com seu alto enforcement garantido por um rito de execução sumária, poderia ou não ser transposto para algum direito real similar admitido na Holanda? Esse foi o cerne dos debates no supracitado acórdão. A discussão é se a garantia flutuante (floating charge) tanzaniana poderia ou não ser objeto de transposição para o direito real holandês mais próximo: o penhor silencioso (stil pandrecht, em holandês), também chamado de penhor não possessório (bezitloos pandrecht) ou penhor sem punho (vuistloos pandrecht)8. O penhor silencioso holandês é um penhor sem tradição: o devedor pignoratício não entrega a coisa9. Recai sobre um bem presente e específico. A Sisal defendeu que não cabia a transposição, entre outros motivos, pelo fato de o penhor silencioso neerlandês recair sobre um bem presente e específico, ao contrário da garantia flutuante tanzaniana (que recai sobre uma universalidade de bens). Invoca, também, outro motivo processual: o de que o penhor silencioso neerlandês enseja um procedimento de execução sumário, o qual não existiria para a garantia flutuante tanzaniana. O grau de enforcement dos direitos cotejados seria diferente. O Hoge Raad (Supremo Tribunal da Holanda) rejeitou esses argumentos da Sisal. Admitiu, pois, a transposição da garantia flutuante (floating charge) tanzaniana para o penhor silencioso holandês. O fato de a garantia flutuante recair sobre uma coisa futura não seria obstáculo para a transposição. O que importa é a proximidade das figuras e o fato de que, no caso concreto, o banco tanzaniano pleiteia a especialização da garantia flutuante sobre um bem específico. São esclarecedoras estas palavras do acórdão do Tribunal de Recurso de Amsterdã - que foi secundado pelo Hoge Haad nesse ponto: 4.20. a avaliação da possibilidade de assimilação não se trata de identificar pontos de divergência, mas de saber se a lei estrangeira em questão apresenta tal grau de concordância com a lei holandesa que se pode concluir que a lei estrangeira persegue o mesmo objetivo. Se a lei holandesa e em circunstâncias comparáveis ??levarem ao mesmo resultado. A avaliação disso deve ocorrer no momento em que a lei relevante se manifesta no sistema jurídico holandês.10   Além disso, para efeito da transposição, o rito executivo do floating charge tanzaniano, consistente na nomeação de um receptor, é equivalente à execução sumária do penhor silencioso holandês. Os meios executivos são similares. Os graus de enforcement são parecidos. A doutrina também acena para a equivalência do floating charge para o penhor, inclusive o penhor silencioso holandês (stil pandrecht). O Procurador-Geral oficiante perante o Hoge Haad no caso concreto sublinhou11: 12. Na literatura, o floating charge é considerado equiparável ao penhor (silencioso holandês). Veja, por exemplo, R.J. Botter, Nn 1992, pp. 239/240; A.A. van Velten, NJB 1996, pp. 1041-1046; U. Drobnig, Security Rights in Movables, in: Towards a European Civil Code, 2ª ed. (1998), pp. 511-524 (ver em particular pp. 517 e 523); T.H.D. Struycken, AA 1998, pp. 417-436. Tanto a garantia flutuante (floating charge) tanzaniana quanto o penhor silecioso holandês (stil pandrecht) possuem o mesmo objetivo: servir de uma garantia real que não inviabilize as atividades do devedor pelo fato de deixar este com a posse direta sobre o bem onerado. Ambas as garantias não subtraem a posse da coisa pelo devedor. A principal diferença entre esses dois direitos reais de garantia é que, no penhor silencioso holandês (stil pandrecht), só os bens expressamente listados podem ser onerados. Não recai, portanto, sobre bens futuros e eventuais, como futuros créditos, ao contrário do floating charge. No penhor silencioso holandês (stil pandrecht), a lista de bens oneradas tem de ser levada a registro no competente órgão registral. A lista pode ser periodicamente atualizada por um mero procedimento eletrônico simplificado. O próprio registro segue um procedimento bem simplificado. Diante das fortes semelhanças entre o penhor silencioso holandês (stil pandrecht) com a garantia flutuante (floating charge) tanziano, as pequenas diferenças são irrisórias e não substanciais. Na essência, as figuras equivalem-se. __________ 1 DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Procureur-Generaal. Datum publicatie: 17-12-2001-A (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022); DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Hoge Haad. Datum publicatie: 17-12-2001-B (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022). AKKERMANS, Bram; RAMAEKERS, Eveline. Free Movements of Goods and Property Law. In: Maastricht European Private Law Institute (M-EPLI) Working Paper 26/2011, European Law Journal, Forthcoming, May 28, 2011. (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022) 2 Ulrich Drobnig problematiza várias outras situações decorrentes de direitos reais de garantias sobre imóveis (DROBNIG, Ulrich. Security Rights in Movables. Data: 15 de janeiro de 2010 (Disponível aqui. Acesso em 30 de janeiro de 2022). _____________. Unified Rules on Proprietary Security - in the World and in Europe. In: BFD, n. 85, 2009, pp. 667-678). 3 Bram Akkermans e Eveline Ramaerkers tratam do tema com olhos nos conflitos móveis entre os Estados norte-americanos (AKKERMANS, Bram; RAMAEKERS, Eveline. Free Movements of Goods and Property Law. In: Maastricht European Private Law Institute (M-EPLI) Working Paper 26/2011, European Law Journal, Forthcoming, May 28, 2011). 4 O NBC Holding Corporation é um dos bancos mais antigos da Tanzânia (site oficial). 5 O bem eram recebíveis que estavam sob a custódia de um banco holandês por terem sido integrados a uma carta de crédito. Os recebíveis eram créditos de 2,35 milhões de dólares que a empresa Codage tinha perante clientes canandenses. 6 Societa Italiana Sisal e Afini Lavorata S.P.A. 7 A empresa Sisal havia reivindicado 2,5 milhões de dólares como crédito, mas os tribunais holandeses só reconheceram 1,95 milhões de dólares 8 Está previsto no livro 3, art. 239 do Código Civil holandês (3:329 BW).O Código Civil holandês (Burgerlijk Wetboek em holandês e abreviado como BW) está disponível neste site. 9 O penhor com tradição é chamado de penhor de punho (vuistpand vestigen, em holandês) e está no livro 3, art. 236 do Código Civil holandês (3:226 BW). 10 Tradução livre deste excerto (DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Procureur-Generaal. Datum publicatie: 17-12-2001-A (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022); DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Hoge Haad. Datum publicatie: 17-12-2001-B (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022): 4.20 Het gaat bij beoordeling van de mogelijkheid van assimilatie immers niet om het signaleren van verschilpunten, maar om de vraag of het desbetreffende buitenlandse recht een zodanige mate van overeenstemming vertoont met een Nederlands recht, dat geconcludeerd kan worden dat het buitenlandse recht hetzelfde doel nastreeft als het Nederlandse recht en in vergelijkbare omstandigheden tot hetzelfde resultaat leidt. De beoordeling van een en ander dient te geschieden op het tijdstip dat het desbetreffende recht zich in het Nederlandse rechtssysteem manifesteert. 11 Tradução livre deste excerto (DE RECHTSPRAAK. ECLI:NL:PHR:2001:AD4933 - Societa Italiana Sisal E Afini Lavorata S.P.A. tegen NBC Holding Corporation (voorheen Tanzania National Bank of Commerce): De Procureur-Generaal. Datum publicatie: 17-12-2001-A (Disponível aqui. Acesso em 2 de fevereiro de 2022): 12. In de literatuur wordt de floating charge vergelijkbaar geacht met het (Nederlandse stille) pandrecht. Zie bijv. R.J. Botter, Bb 1992, blz. 239/240; A.A. van Velten, NJB 1996, blz. 1041-1046; U. Drobnig, Security Rights in Movables, in: Towards a European Civil Code, 2d ed. (1998), blz. 511-524 (zie met name blz. 517 en 523); T.H.D. Struycken, AA 1998, blz. 417-436.
terça-feira, 29 de agosto de 2023

Códigos Civis e civil law no mundo - Parte III

Na coluna anterior, começamos a tratar da disseminação do movimento de codificação para outros continentes. Continuemos. Na Ásia, a família do civil law deitou raízes, ainda que, em alguns casos, em mescla com outras famílias. Foi o caso, por exemplo, da Turquia, que, embora tenha mantido elementos do direito muçulmano, incorporou do civil law uma forma de modernização do seu direito, tudo a partir de 18391. A dinâmica plural do Império Otamano concorreu para essa configuração. No século XIX, o Império Otomano introduziu elementos laicos no seu sistema jurídico, que, até então, era preponderamente muçulmano. A pluralidade de povos sob o domínio otomano colaborou para esse cenário. A ideia de um direito turco mais racional e justo ganhou força. Houve uma seculização do direito turco. É desse contexto que decorrem, por exemplo, o Código Comercial otomano (1850), o Código Marítimo otomano (1863) e as Regras de Processo Civil (1879). No século XIX, a ideia de um Código Civil em si sofreu resistência e, em seu lugar, houve publicação de partes da Sharia em 16 livros, os quais ficaram conhecidos como Mecelle (Mecelle-i ahkami adliye, em turco), também traduzida em outros países como Mejelle, Majalla, Megelle, Medjélié. O Mecelle, de qualquer forma, pode ser considerada uma espécie de Código Civil do Império Otomano2. No século XX, especialmente entre 1926 e 1929, a Turquia - fundada em 1923 após o desmantelamento do Império Otomano - passou por mudanças estruturais rumo a formação de uma república parlamentar ocidentalizada, marcada por um maior secularismo e pela adoção de um modelo de Estado de Direito.  Nesse contexto, o primeiro Código Civil turco nasceu em 1926 como fruto dessa conexão, com fortíssima inspiração do ZQB3 (Código Civil suíço). A escolha do ZQB como referência explica-se por vários motivos, como: (1) o fato de alguns juristas turcos terem estudado na Suíça francesa; (2) a maior familiaridade desses juristas com idioma francês; (3) o fato de o ZQB ser um dos mais recentes; (4) a extensão do ZQB ser consideravelmente inferior ao BGB4; (5) o uso de muitas cláusulas gerais colaborou para a recepção das regras do ZQB pela Turquia5. O antigo Código Civil turco foi substituído pelo atual, de 20026. Os Estados árabes do Oriente Médio, a seu turno, não foram tão receptivos ao civil law. Mantiveram-se fiéis ao direito muçulmano, ao menos em relação aos cidadãos muçulmanos. A influência do civil law foi pequena na pensínsula da Arábia7. Israel sofreu maior influência do common law por conta dos britânicos. Iraque e Jordânia também seguiram esse caminho em um primeiro momento, mas, posteriormente, regressaram à tradição romano-germânica8. O civil law exerceu influência em alguns outros países asiáticos, como na China, no Vietnã, no Japão, na Coréia do Sul, na Coréia do Norte, na Tailândia, em Camboja, no Laos, Filipinas, Sri Lanka, Idonésia. Vários deles, porém, seguem um modelo misto por ter elementos de outras famílias9. Mesmo dentro da família do civil law, há variações, como: (1) os direitos franceses (civil law francês); (2) os dos direitos germânicos (civil law germânico); (3) o dos direitos escandinavos (civil law escandinavo); e (4) os dos direitos da América Latina10. O civil law francês é marcado não apenas pela estrutura do Código Civil napoleônico, mas também por uma valorização da cultura jurídica judicial. O Código foi uma sistematização e positivação dos costumes e da jurisprudência, além, obviamente, das teorizações do direito romano. Os profissionais do Direito, como advogados e, em alguns países - como na Espanha -, os notários, possuem notável relevância nesse sistema11. O civil law francês espalhou-se na América Latina (com certas ressalvas em alguns países, como no Brasil e no Peru), na América do Norte (estado norte-americano de Luisiana e províncias canandeses de Quebec), nos países do Oriente Médio com forte influência francesa (Egito, Síria e Líbano) e nas antigas colônias francesas na África e na Ásia. Na Europa, a presença do civil law francês expressa-se nos Estados do Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo) e em parte dos Bálcãs (especialmente Romênia), além de inegável influência em praticamente todas as demais nações europeias12. Já o civil law germânico refere-se especialmente às codificações das nações de língua germânica, como o Código Prussiano de 1794 (Allgemeines Landrecht für die Preußischen Staaten - ALR)13 e o Código Civil Austríaco de 1811 (Allgemeines bürgerliches Gesetzbuch - ABGB). Reporta-se também ao Código Civil Alemão de 1900 (Bürgerliches Gesetzbuch - BGB) e à segunda maior codificação pandectista: o Código Civil Suíço de 1907 (Zivilgesetzbuch - ZGB)14. Apesar da proximidade, o BGB e o ZGB possuem diferenças estruturais. O ZGB, por exemplo, não é tão favorável a cláusulas gerais nem possui uma Parte Geral por conta de sua maior perspectiva próxima da realidade, ao contrário do BGB15. A preocupação com uma redação legislativa mais clara, expressiva e acessível é mais intensa no ZGB, que, por vezes, vale-se de expressões que, embora não sejam técnicas juridicamente, são mais bem compreendidas (a exemplo da frase "o casamento emancipa"). O ZGB é marcado por uma maior participação do próprio cidadão, o que foi obtido pela menor intensidade na cientificação da consciência jurídica popular16. O civil law germânico foi marcado pela influência da versão científica da pandectística, pela influência dos costumes germânicos. Destacam-se, como característica do civil law germânico, uma sistemática rigorosa e uma preocupação perfeccionista com conceitos jurídicos17. Na Alemanha, a classe jurídica é mais técnica e menos política, tudo sob uma busca por neutralidade científica oriunda do positivismo científico e legalista. Profissionais do Direito, como advogados e juízes, raramente alçam-se a posições e a posturas políticas. Difere, nesse ponto, das demais famílias jurídicas18. O civil law germânico, além de estar presente nos países europeus de língua germânica, alcançou outras nações. Embora haja certa indeterminação para definir o alcance fora da Europa, é certo que o BGB influenciou fortemente o Japão e, em certa medida, a Tailândia. O ZGB, a se turno, influi intensamente na Turquia de Mustafá Kemal Ataturk19 (1927), além de ter inspirado a Hungria (especialmente até a segunda guerra mundial), a Iugoslávia, a Polônia (especialmente o Código de Direito das Obrigações de 1933) e a Grécia. A influência do civil law germânico (ora por conta do BGB, ora em razão do ZGB, ora graças a ambos) teve influência (importante, mas menos intensa) em outras nações, como nos Estados bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), na América Latina (notadamente Brasil - 1916 -; México - 1928 -; e Peru - 1936), no Líbano (1933), no Código Civil da União Soviética de 192320, na Albânia, na Bulgária, China pré-comunista e na Tailândia.  O civil law escandinavo reporta-se aos cinco países nórdicos: Suécia, Dinamarca, Noruega, Islândia e Finlândia. Foi influenciado pelo civil law francês e pelo civil law germânico, mas mantém particularidades que permitem uma categorização apartada. Sua principal marca decorre da menor intensidade da influência de uma concepção científica e fria do direito. A consciência escandinava do direito é forte, o que torna o sistema jurídico mais maleável para adaptar-se a novos problemas sociais e morais. O direito é mais hospitaleiro a soluções jurídicas de índole progressiva e social21. __________ 1 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 79-80. 2 Atamer, 2012. 3 Sigla de Zivilgesetzbuch, em alemão. 4 O BGB continha 2.385 artigos. O Código Civil Suíço (ZGB) e o Código das Obrigações Suíço (Obligationenrecht - OR) continham, juntos, 1.528 artigos. O Código das Obrigações suíço (OR) é a quinta parte do Código Civil Suíço (ZGB), apesar de contar com uma numeração própria (Siehr, 2012). 5 ATAMER, Yesim M. Turkish Civil Code and the Turkish Code of Obligations. Publicado em 2009 (Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022). 6 TUSEV. Turkish Civil Code. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022; MAX-EUP. Turkish Civil Code and the Turkish Code of Obligations. Publicado em 2012 (Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022). 7 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 80. 8 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 80 9 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 80-81. 10 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 34; WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 561-589. 11 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 575. 12 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 575. 13 Os mais de 1.900 artigos do ALR abrangiam regras não apenas de Direito Civil, mas também de Direito Penal, de Direito Constitucional, de Direito Canônico etc. (Ricken, 2022). 14 Sobre as particularidades históricas da Suíça, as quais lhes outorgam traços que o distinguem da Alemanha, reportamo-nos a Franz Wieacker (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 561-570). O ZGB foi fruto do trabalho de sistematização de Eugen Huger, que atentou para as particularidades jurídicas de cada cantão (alguns dos quais já tinham códigos de direito privado, a exemplo do Código de Direito Privado de Zurique - Zürcher Privatrechtliches Gesetzbuch). 15 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 564. 16 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 565-566. 17 Franz Wieacker  aponta que essas características do civil law alemão, notadamente sob a influência do BGB, pode, por vezes, descambar para perfeccionismos vazios e limitados. E há aspectos positivos e negativos nessas características, as quais realçadas no direito hipotecário e no sistema cadastral (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 578). 18 (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 579. 19 A Turquia de 1927 era mais europeizada e laicizada (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 578, p. 568). 20 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 578 e 568-569. 21 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, pp. 581 e 568-569.
terça-feira, 15 de agosto de 2023

Códigos Civis e civil law no mundo - Parte II

Na coluna anterior, expusemos os países do mundo que se incluem na família do civil law. Hoje, passaremos a tratar do movimento de disseminação de Códigos Civis pelo mundo. II. Códigos Civis no mundo A família do civil law decorre de desenvolvimento dos estudos de direito romano realizados ao longo da história (com inclusão dos estudos dos glosadores e comentadores na Idade Média) até a deflagração dos movimentos de codificação. Embora os costumes tenham importância, o civil law marcou-se por uma busca de um sistema jurídico mais racional, assentado em normas escritas, fruto dos fortes estudos acadêmicos do direito romano realizado desde a Baixa Idade Média1. As codificações a partir do século XIX consolidaram esse modo mais racional de pensar, fundado em um direito escrito. A influência do direito romano subsistiu mesmo após as codificações, pois os fundamentos do civil law estão umbilicalmente ligados a ele2. A expansão da codificação, iniciada com o Código Civil francês de 1804, ajudou para espalhar a família do civil law para dentro e fora da Europa3. Na Europa, destacam-se, após o Código Civil napoleônico (1804), o Código Civil holandês em 1838 (Burgerlijk Wetboek - BW), o Código Civil português de 1867 (Código de Seabra4), o Código Civil espanhol de 1889 (Real Decreto de 24 de julio de 1889), o Código Civil alemão de 1900 (Bürgerliches Gesetzbuch - BGB), o Código Civil suíço de 1907 (Zivilgesetzbuch - ZGB). Na América, o movimento da codificação disseminou-se5. Na América do Norte, o estado norte-americano de Luisiana editou seu Código Civil em 1808. Na América Central e do Sul, destacam-se os Códigos Civis do Haiti (1825), do estado mexicano de Oaxaca (1827-1829)6, da Bolívia (1830), da Costa Rica (1841), da República Dominicana (1845), do Peru (1852), do Chile (1855)7, do Estado Soberano de Magdalena (1857)8, do Equador (1856-1860), do Estado Soberano de Santander (1858)9, de El Salvador (1859), do Estado Soberano de Cauca (1859)10, do Estado Soberano de Cundinamarca (1859)11, do Estado Soberano do Panamá (1860), do Estado Soberano de Tolima (1861)12, do estado mexicano de Veracruz (1861), da Venezuela (1861, posteriormente substituído em 1873)13, do Estado Soberano de Bolívar (1862), do Estado Soberano de Boyacá (1863) e do Estado Soberano de Antioquia (1864), do Império Mexicano (1866), da Nicarágua (1867, posteriormente substituído em 1904) e do Uruguai (1868). Em seguida a esses Códigos, sobrevieram os Códigos Civis da Argentina (1869)14, da Colômbia (1887), de Honduras (1898, posteriormente substituído em 1906) e do Brasil (1916)15. Apesar de o primeiro Código Civil brasileiro só ter nascido em 1916, houve, ao longo do século XIX, diversos movimentos de codificação com a apresentação de projetos de códigos por diferentes juristas. A primeira tentativa de codificação foi por meio do Esboço de Código Civil, de Teixeira de Freitas, publicado em três partes entre os anos de 1860 e 1865 (1983-A e 1983-B). Teixeira de Freitas já havia entregado a Consolidação das Leis Civis em 1858, organizando sistematicamente o caótico sistema jurídico privado da época. José de Alencar16 fez, publicamente, análise crítica do projeto de Teixeira de Freitas com esta afirmação: "'o que uma vez se entregou à publicidade pertence-lhe, entra no seu domínio soberano: é julgado' (CORREIO MERCANTIL, 1860)" (Paranhos, 2012).  O Esboço de Teixeira de Freitas, todavia, não avançou por questões políticas. Em 1872, o ministro da Justiça Duarte de Azevendo contratou José Tomás Nabuco de Araujo17 para a elaboração de um novo projeto de Código Civil. Nabuco de Araujo esforçou-se por manter o que fosse possível do Esboço e Teixeira de Freitas, mas não conseguiu concluir o trabalho por conta de sua morte em 187818. O pai do Código Civil português, Visconde de Seabra, chegou a oferecer-se para elaborar um projeto de Código Civil para o Brasil. Após as duas tentativas (a de Teixeira de Freitas e a de Nabuco Araujo), Joaquim Felício dos Santos19, após obter a permissão do Conselheiro Lafayette (então Ministro da Justiça) em 1872, elaborou um projeto de Código Civil em 1882 (Felício dos Santos, 1891). Também foi o caso do Projeto de Código Civil de Antônio Coelho Rodrigues após ter sido contratado em 1890 para tal tarefa pelo Ministério da Justiça (Quintela, 2017; Coelho Rodrigues, 1893; Costa Filho, 2014). Os projetos de Joaquim Felício dos Santos e de Antônio Coelho Rodrigues não vingaram por questões políticas e por conta da rivalidade existente entre os juristas da época "por escrever o próprio nome na história do Direito Brasileiro" (Tomasevicius Filho, 2016, p. 88). Foi Clóvis Beviláqua, jurista ligado à Escola de Recife (liderada por Tobias Barreto), que se sagrou vitorioso sob essa ótica. Foi do seu anteprojeto que, com ajustes ocorridos ao longo da tramitação legislativa, gerou o Código Civil de 1916. Inspirou-se na experiência alemã, além dos trabalhos dos juristas brasileiros anteriores20. Na próxima coluna, prosseguiremos cuidando da disseminação do movimento de codificação para outros continentes. __________ 1 Com enfoque no direito francês, ver: DAVID, René. O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 1-2. 2 A ênfase do direito romano era no direito privado. E desse desenvolvimento privatista dos romanos que descende a essência da família do civil law. O direito público romano, apesar de sua importância, foi um espelhamento do desenvolvimento do desenvolvimento do direito privado. René David (O Direito Inglês. Tradução: Eduardo Brandão; revisão técnica da tradução: Isabella Soares Micali. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 2) destaca, in verbis: ... Nossa concepção do direito permanece bastante marcada pela ciência dos romanistas. O direito por excelência continua a ser, para nós, o direito privado, que rege as relações entre os particulares; o direito público, pelo qual os juristas romanos não se interessam, só se afirma com certa dificuldade quando modelado à imagem do direito privado. Nossos conceitos e nossas categorias jurídicas permanecem essencialmente os conceitos ensinados nas Universidades, tendo por base o direito romano. 3 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 67. 4 O epíteto é uma homenagem a António Luís de Seabra e Sousa, o 1º Visconde de Seabra, considerado pai do primeiro Código Civil português. Esse Código foi revogado com o advento do novo Código Civil português de 1966. 5 Guzmán Brito, 1999-2000. 6 Ut GUZMÁN, BRITO, Alejandro. La influencia del Código Civil de Vélez Sarsfield em las codificaciones de iberoamérica hasta princípios del siglo XX. In: Revista Chilena de Historia del Derecho, n. 18, 1999-2000, pp. 263-273; BARNEY, Óscar Cruz. La Codificación Civil em México: aspectos generales. Disponível aqui. Acesso em 20 de março de 2022; BARNEY, Óscar Cruz. La Codificacion Civil em Mexico. In: Iurisdictio, n. 1, 2020, pp. 92-123. 7 Andrés Bello é tido como pai do Código Civil chileno. 8 O Estado Soberano da Magdalena foi um dos estados da atual Colômbia. Ut Mayorga Garcia, 1991. 9 Correspondia a parte da área da atual Colômbia. 10 Correspondia a parte da área da atual Colômbia. 11 Correspondia a parte da área da atual Colômbia. 12 Correspondia a parte da área da atual Colômbia. 13 GALITO, Einstein Alejandro Morales. Evolución Histórica del Código Civil Venezolano. Publicado em 24 de março de 2020 (Disponível aqui. Acesso em 31 de março de 2022). 14 Dalmacio Vélez Sarsfield é considerado o pai do Código Civil argentino. Foi influenciado pelos trabalhos de Teixeira de Freitas: o Esboço de Código Civil e a Consolidação das Leis Civis (FERREIRA, Waldermar. Teixeira de Freitas e o Código Civil argentino. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 25, 1929, pp. 181-186; NOCCHI, Carolina Penna. A influência de Augusto Teixeira de Freitas na elaboração do Código Civil argentino. In: Revista do CAAP, número especial: I Jornada de Estudos Jurídicos da UFMG, jul./dez., 2010, pp. 37-48; LOPES DA SILVA, Joseane Suzart. Teixeira de Freitas, o jurista que sedimentou o Direto Privado em prol da sociedade. Publicado em 23 de outubro de 2017. Acesso em 31 de março de 2022); CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019, pp. 63-96). A influência dos trabalhos de Teixeira de Freitas alcançou também o Uruguai, o Paraguai, a Venezuela, o Chile e a Nicarágua. Sobre a notável reputação jurídica de Teixeira de Freitas no Brasil, Joseane Suzart Lopes da Silva averba: Reconheceu Clóvis Beviláqua que Teixeira de Freitas sedimentou "um edifício de grandes proporções e de extraordinária solidez". Rui Barbosa referiu-se a ele como "o maior civilista morto" e segundo Orlando Gomes, "pagou pela audácia de ter sido original e autêntico ao passar à frente do seu tempo, e, por isso, não foi esquecido. Nem será" (LOPES DA SILVA, Joseane Suzart. Teixeira de Freitas, o jurista que sedimentou o Direto Privado em prol da sociedade. Publicado em 23 de outubro de 2017. Acesso em 31 de março de 2022) 15 Ut Costa, 2004. Venceslau Tavares Costa Filho desenvolveu tese de doutorado problematizando o processo histórico da codificação civil no Brasil (COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Um Código "social" e "impopular": uma história do processo de codificação civil no Brasil (1822-1916). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Recife. Orientador: Prof. Dr. Torquato da Silva Castro Junior. 2013 (Disponível aqui. Acesso em 30 de novembro de 2021). Eduardo Tomasevicius Filho destaca o legado que o Código Civil de 1916 deixou para o direito brasileiro, abordando, entre outros aspectos, o histórico de sua formação (TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O Legado do Código Civil de 1916. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 111, jan./dez. 2016, pp. 85-100). 16 José de Alencar, além de grande romancista brasileiro, foi juristas e Ministro dos Negócios da Justiça (CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019, p. 69). 17 Nabuco de Araújo fora quem, na condição de Ministro dos Negócios da Justiça, havia convidado seu ex-colega de graduação e seu amigo Augusto Teixeira de Freitas para elaborar a Consolidação das Leis Civis e o projeto de Código Civil (CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019). 18 Havia, porém, quem sustentasse que os trabalhos haviam sido concluídos (CARVALHO, Felipe Quintella Machado de. Joaquim Felicio dos Santos e a Codificação do Direito Civil Brasileiro. In: Revista de Direito Civil - RBDCivil. Belo Horizonte, v. 19, jan./mar. 2019, pp. 70-71). Sobre a morte de Nabuco Araujo, o Jornal do Commercio publicou: "se não bastassem os regulamentos dos tribunais de comércio, o regimento de custas, a lei hipotecária e o seu regulamento, o projeto de lei de locação de serviços, e tantas outras provas do seu alto mérito, lega ele à família e ao país, para eternizar o seu nome, o projeto de Código Civil, que felizmente completara e que, na opinião dos entendidos e insuspeitos, será um monumento para a jurisprudência pátria" (MIGALHAS. Há 200 anos nascia José Tomás Nabuco de Araújo. Disponível aqui. Publicado em 14 de agosto de 2013 (Acesso em 31 de março de 2013). 19 Joaquim Felício dos Santos era senador. 20 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O Legado do Código Civil de 1916. In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 111, jan./dez. 2016, p. 89.
terça-feira, 1 de agosto de 2023

Códigos Civis e civil law no mundo - Parte I

I. Visão panorâmica dos países da família do civil law A família do civil law disseminou-se por diversos países do mundo. O mapa abaixo indica, de vermelho, os locais em que prevalece essa família, além de indicar as regiões de influência das outras famílias jurídicas1:   Na Europa, os países da Europa continental encaixam-se no modelo do civil law, ainda que haja particularidades entre eles. No continente americano, na América do Norte, o Estado norte-americano de Luisiana, Porto Rico2 e a Província canadense de Quebec adotam o civil law, conforme já expusemos quando tratamos dos principais países do common law. Na América Central e do Sul, a maioria dos Estados adotaram o modelo do civil law, especialmente por conta das colonizações portuguesa e espanhola. A exceção corre à conta da Guiana (que adota um sistema misto), de Belize e de alguns outros países da América Central (especialmente do Caribe), conforme já expusemos quando tratamos dos principais países do common law em outro artigo publicado nesta Coluna3. Na Ásia, entre outros países que adotam a família do civil law, estão o Japão4 e a Rússia. Há países asiáticos que adotam um regime misto de civil law e common law, como as Filipinas5. Há outros em que o regime misto é do civil law com o direito consuetudinário ou com o direito islâmico. É o que, por exemplo, da Indonésia, em que há um regime misto de civil law (de tradição holandesa), de direito costumeiro (o sistema hukum adat) e de direito islâmico6. A China tem um regime predominantemente vinculado ao civil law, mas há particularidades ao longo do território. Na China continental, as leis foram influenciadas pelos direitos soviético, alemão e japonês. Em Hong Kong, vigora um regime do common law. Em Taiwan, vige um modelo de civil law influenciado pelos direitos alemão e japonês7. Na África, há alguns países que adotaram a família do civil law, como Moçambique8. Na próxima Coluna, prosseguiremos cuidando da disseminação do movimento de Códigos Civis pelo mundo. __________ 1 Ut INTERNATIONAL BUSINESS LAW. Os sistemas jurídicos da civil law e da common law. Publicado em outubro de 2020 (Disponível aqui. Acesso em 20 de março de 2022). 2 Embora Porto Rico integre a América Central, seu vínculo geopolítico é com os EUA, conforme exporemos mais abaixo. 3 Disponível aqui. 4 Ut TAYLOR, Veronica; BRITT, Robert R.; ISHIDA, Kyoko; CHAFFEE, John. Introduction: Nature os the Japanese legal system. In: Business Law in Japan, vol. 1; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Como se produz um jurista? O modelo japonês (parte 55). Publicado em 15 de fevereiro de 2017. Acesso em 25 de março de 2022). 5 Ut CONCIL OF ASEAN CHIEF JUSTICES. Philippines. Disponível aqui. Acesso em 30 de março de 2022. 6 Ut BLACK, E. Ann; BELL, Gary F. Law and Legal Institutions of Asia: Traditions, Adaptations and Innovations. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. 7 Ut ROU, Tong. The General Principles of Civil Law of The PRC: Its birth, characteristics, and role. In: Law and Contemporary Problems, vol. 52, nº 2, 1989, pp. 151-175 (Disponível aqui. Acesso em 30 de março de 2022).; CHINA JUSTICE OBSERVER. Does China Have Common Law? - China Law in One Minute. Publicado em 9 de novembro de 2020 (Disponível aqui. Acesso de 30 de março de 2022). 8 Ut RAINHA, Paula. UPDATE: Republic of Mozambique - Legal System and Research. Publicado em abril de 2013 (Disponível aqui. Acesso em 30 de março de 2022).
É importante ter uma visão panorâmica dos países do mundo que foram influenciados pelo civil law e pelo common law, especialmente com olhos no Direito Privado. A compreensão de regras de direito comparado exige uma necessária contextualização com o sistema jurídico de cada país. Hoje, exporemos os principais países ligados à família do common law. A família do common law tem sua gênese na Inglaterra com os trabalhos dos juristas e dos Tribunais Reais de Justiça após a conquista normanda no século XI. Essa família jurídica espalhou-se para outros países que sofreram a influência da Inglaterra, especialmente pelo expansionismo do Império Britânico e pela colonização de povoamento desenvolvida após o Mayflower atracar, em 1620, no território do atual EUA. Com algumas exceções, países de língua inglesa e membros da Commonwealth1 perfilham-se à família do common law. Ainda que esses países tenham particularidades jurídicas vinculadas às suas idiossincrasias, é inegável que a influência britânica no pensamento jurídico local e na estruturação institucional foi marcante2. Por exemplo, apesar de o sistema jurídico dos EUA (rectius, da maioria dos Estados norte-americanos) e da Inglaterra poderem ser enquadrados na família do common law, há diferenças marcantes. Na década de 1960, Franz Wieacker creditou essa distinção, entre outras causas, à diferença de ideologias jurídicas. Na ideologia, os norte-americanos assentam-se mais em uma ideia de otimismo revolucionário, em um controle pela Constituição e em uma atuação mais intensa dos juízes. Já os ingleses estavam mais impulsionados por confrontos entre grupos políticos de uma sociedade tradicional sob a mediação da coroa, fato que vem sendo modificado diante da perda de influência das oligarquias sobre a política3. Vejamos, por continente, os principais países integrantes da família do comoon law. No continente europeu, três países integrantes do Reino Unido (Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte) encaixam-se na família do common law. A Escócia, apesar de integrar o Reino Unido, posta-se em uma linha intermediária entre a família romano-germânica e a família do common law4. Historicamente, a particularidade jurídica escocesa resulta da precoce autonomia conquistada e da relação próxima da Igreja presbiterial escocesa e o calvinismo da Europa ocidental. Por conta dessa proximidade, por cerca de um século, a formação de juristas escoceses ocorreu na França e, posteriormente, na Holanda, o que colaborou para a influência romanística no sistema jurídico escocês5. No continente americano, o ambiente é sortido. Na América do Norte, os EUA e o Canadá integram a família do common law, ressalvados, porém, o Estado norte-americano de Luisiana, Porto Rico6 e a Província canadense de Quebec. Na América Central, integram a família do common law Barbados7, Belize8, Bahamas9, República de Trindade e Tobago10 e outros países do Caribe (como as Ilhas Cayman11 e Antígua e Barbuda12). Na América do Sul, a Guiana adota um sistema misto, com elementos do common law e do civil law13. No caso dos EUA, por influência da colonização francesa e espanhola, o Estado de Luisiana e Porto Rico14 alinham-se à família do civil law. No Estado de Luisiana, seu código Civil (Lousiana Civil Code) remonta a 1808, lavrado pelo trabalho do jurista Louis Casimir Moreau-Lislet. Foi revisado em 1825 e sofreu algumas alterações, como as ocorridas em 1870, 1960 e 1992. Segue sendo o Código Civil atualmente em vigor15. A inspiração desse Código foi o Código Civil francês de 1804 (Código Napoleônico). Razões históricas justificam essa singularidade: o território correspondente ao atual Estado norte-americano de Luisiana pertenceu à França desde o final do Século XVII até 1803. O próprio nome de batismo dessa região (que alcançava uma extensão territorial maior do que a atual16) foi uma homenagem ao rei francês Luís XIV. Napoleão, premido por necessidade financeira e desinteressado em manter colônias em outro continente, vendeu o território para os EUA em 1803 em uma transação conhecida como Louisiana Purchase. A tradição jurídica francesa manteve-se forte especialmente na região sul do grande território adquirido, ou seja, na região atualmente correspondente ao Estado norte-americano de Luisiana. Isso justifica a vinculação do Estado norte-americano de Luisiana à família jurídica do civil law17. Em Porto Rico, foi editado um novo Código Civil em 2020 (Ley núm. 55 de 1 junio de 2020), o qual revogou o anterior (que remontava a 1930). Ambos mantêm inspiração no Código Civil espanhol conforme exposição de motivos do novo Código Civil de Porto Rico18. Antes do antigo Código Civil (o de 1930), vigorava o Código Civil de 1902, que se inspirara tanto no Código Civil francês de 1804 (O Código Civil napoleônico) quanto no Código Civil do Estado norte-americano de Luisiana. Em momento anterior, vigorava o Código Civil Espanhol por força da Real Orden de 31 de julio de 188919, código esse que - como se sabe - espelhou-se no Código Civil francês de 1804 (O Código Napoleônico). Apesar da tradição de Porto Rico ser a do civil law, houve influências do common law, especialmente após Porto Rico ter sido adquirido pelos EUA em 1898 após a Guerra Hispano-Americana. No caso do Canadá, a Província de Quebec segue o sistema do civil law por influência francesa, ao menos no direito privado. De fato, Quebec é a única província canadense que possui um Código Civil, o qual é baseado no Código Civil francês20. O primeiro Código Civil na província de Quebec é de 1866 e era conhecido como o Código Civil do Baixo Canadá21 (Code civil du Bas-Canada), que costuma ser abreviado como CCBC. Ele foi revogado pelo atual Código Civil de Quebec, que é de 1994 e cuja sigla é CCQ. Esse novo Código manteve-se vinculado à tradição do civil law, com forte influência do direito francês. Razões históricas justificam esse alinhamento da Província canadense de Quebec à família romano-germânica. O Canadá foi originariamente colonizado pela França, com o envio das primeiras expedições em 1534 a mando do rei francês Francisco I. Quebec - então batizada de Nouvelle France - foi uma das primeiras colônias. Juridicamente, desde o século XVII, as colônias, além das ordenações régias (ordonnances), seguiam o Coutume de Paris22 e, no que este fosse omisso, o Direito Romano (na sistematização dos juristas franceses) e o Direito Canônico (nas disciplinas em que fosse cabível, como em família e sucessões)23. Apesar do posterior avanço britânico em detrimento da França no século XVIII, os colonos franceses conseguiram, por meio do The Quebec Act, de 1774, manter o direito de continuar regidos pelas leis francesas, salvo as penais (que seriam britânicas). O Coutume de Paris, portanto, seguiu a reger o direito privado em Quebec até 1866, ano em que foi promulgado o Código Civil do Baixo Canadá, inspirado tanto no Código francês de 1804 quanto no Código Civil de Luisiana24. Na Oceania, a Austrália25 e a Nova Zelândia vinculam-se à família do common law. Na Ásia, como nações vinculados à família do common law, citam-se Hong Kong26, Índia27, Paquistão28 e Bangladesh. No continente africano, citam-se, como nações vinculadas ao common law, Zâmbia, Tanzânia, Quênia, Nigéria, Sudão do Sul, Uganda, Ruanda, Gana, Libéria, Serra Leoa e Gâmbia. Em relação aos demais países sul-americanos, há os que seguem a família do civil law (sob a tradição napoleônica), outros que mesclam as famílias do civil law com a do common law e outros que perfilham um regime misto do civil law com o direito muçulmano. Seja como for, o fato é que os países africanos possuem modelos jurídicos que partem de três famílias: a do civil law, a do common law e a do direito muçulmano. Camile Astier (2012) disponibiliza este didático desenho mapeando os sistemas jurídicas africanos: Cabe uma ressalva acerca da África do Sul e de outros países africanos que se espelharam na África do Sul, como Namíbia, Botsuana, Zimbábue, Lesoto e Suazilândia, ou que sofreram múltiplas colonizações, como as Ilhas Maurício. Prevalece o entendimento de que, lá, vigora um regime misto de common law com civil law. De um lado, houve a influência do common law pelos britânicos. De outro lado, houve a influência do civil law pelos holandeses, sob uma versão holandesa conhecida como direito romano-holandês (Roman-Dutch law). O direito holandês, que é uma variante da família romano-germânica, vigorou na região da África do Sul, notadamente na atual localidade da Cidade do Cabo, tudo durante o período de colonização holandesa (séculos XVII e XVIII). Após a invasão dos Países Baixos pela França de Napoleão Bonaparte, o direito holandês deixou de ser um direito não codificado para seguir a tendência inaugurada pelo Código Civil francês de 1804: o Código Civil Holandês (Burgerlijk Wetboek ou BW) nasceu de 183829, com forte inspiração no Código Civil napoleônico. Além disso, o direito holandês absorveu tanto experiências do direito romano quanto do pensamento do common law inglês. Isso colaborou para que, na África do Sul, fosse formado um sistema jurídico que mescla a família do civil law com a do common law. A colonização britânica - ocorrida após de 1795 durante a quarta guerra Anglo-Holandesa (1780 a 1785) - também contribuiu para esse cenário. Sob domínio britânico, houve a interiorização territorial da África do Sul, com uma consequente difusão do regime jurídico misto30. O regime misto sul-africano espalhou-se para outros países africanos, como Namíbia, Botsuana, Zimbábue, Lesoto e Suazilândia31. As Ilhas Maurício, a seu turno, adotaram um regime jurídico que mescla o common law (fruto da colonização britânica) com o civil law das versões francesas (resultante da colonização francesa) e holandesa (derivada da colonização holandesa). _______________ 1 A Commonwealth é uma organização intergovernamental que reúne 54 países independentes (DELLAGNEZZE, René. Os sistemas jurídicos da civil law e da common law. publicado em outubro de 2020 (Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86328/os-sistemas-juridicos-da-civil-law-e-da-common-law#:~:text=O%20Sistema%20Common%20Law%20%C3%A9,inglesa%2C%20ou%20membros%20da%20Commonwealth. Acesso em 24 de março de 2022). Com exceção de alguns países (como Moçambique e Ruanda), todos já integraram o Império Britânico. O site da Commonwealth é este: https://thecommonwealth.org/. 2 Ut DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 351-352. 3 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 572. 4 Há juristas que enquadram a Escócia na família romano-germânica (Guido Fernando Silva Soares, 1997), ou como um regime híbrido (DELLAGNEZZE, René. Os sistemas jurídicos da civil law e da common law. publicado em outubro de 2020 (Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86328/os-sistemas-juridicos-da-civil-law-e-da-common-law#:~:text=O%20Sistema%20Common%20Law%20%C3%A9,inglesa%2C%20ou%20membros%20da%20Commonwealth. Acesso em 24 de março de 2022). 5 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Tradução: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015, p. 573. 6 Embora Porto Rico integre a América Central, seu vínculo geopolítico é com os EUA, conforme exporemos mais abaixo. 7 Para uma visão do sistema jurídico de Barbados, recomendamos acesso a estes dois sites: https://www.barbadoslawcourts.gov.bb/ e https://guides.law.fsu.edu/caribbean/barbados. 8 FLORIDA STATE UNIVERSITY. Commonwealth Caribbean Law Research Guide: Belize. Publicado em agosto de 2020-A (Disponível em https://guides.law.fsu.edu/caribbean/belize. Acesso em 30 de março de 2022). 9 LEX BAHAMAS. Overview of the Bahamian Legal System. Publicado em 28 de janeiro de 2009 (Disponível em: http://www.lexbahamas.com/overview_of_the_bahamian_legal_s.htm#:~:text=The%20Bahamian%20legal%20system%20is,are%20enshrined%20in%20the%20Constitution. Acesso em 30 de março de 2022). 10 FITZWILLIAMSTONE. Trinidad and Tobago Government, Legal System and Economy. Disponível em: http://fitzwilliamstone.com/legal-insight/trinidad-and-tobago-government-legal-system-and-economy/#:~:text=The%20law%20of%20Trinidad%20and,Commonwealth%20States%20mainly%20Canada)%20statutes. Acesso em 24 de março de 2022. 11 CAYMAN ISLANDS JUDICIAL ADMINISTRATION. Laws of the Cayman Islands. Disponível: https://www.judicial.ky/laws#:~:text=The%20Cayman%20Islands'%20legal%20system,assented%20to%20by%20the%20Governor. Acesso em 30 de março de 2022. 12 FLORIDA STATE UNIVERSITY. Commonwealth Caribbean Law Research Guide: Belize. Publicado em agosto de 2020-A (Disponível em https://guides.law.fsu.edu/caribbean/belize. Acesso em 30 de março de 2022). 13 ADAMS, Errol A. Guyana Law and Legal Research. Publicado em maio/junho de 2020 (Disponível em: https://www.nyulawglobal.org/globalex/Guyana.html. Acesso em 24 de março de 2022). 14 Porto Rico é um Estado Livre Associado vinculado aos EUA. Não é um país independente. Historicamente, Porto Rico foi adquirido pelos EUA em 1898 após a Guerra Hispano-Americana. Em 1952, Porto Rico tornou-se "Estado Livre Associado" aos EUA, um status jurídico que não frui das mesmas prerrogativas dos 50 Estados norte-americanos. É que o estabelece o preâmbulo da Constituição de Porto Rico, de 1952 (Porto Rico, Constitucion del Estado Libre Asociado de Puerto Rico. Disponível em: https://www2.pr.gov/sobrepuertorico/documents/elaconstitucion.pdf. Acesso em 21 de janeiro de 2021). 15 O governo local disponibiliza o texto do Lousiana Civil Code neste site: https://www.legis.la.gov/legis/Laws_Toc.aspx?folder=67&level=Parent (LOUSIANA. Civil Code. Disponível em: https://www.legis.la.gov/legis/Laws_Toc.aspx?folder=67&level=Parent. Acesso em 24 de março de 2022). 16 A colônia francesa de Luisiana, à época, ocupava uma área que abrange não apenas o atual Estado norte-americano de Luisiana, mas também outros 14 Estados norte-americanos bem como 2 Províncias canadenses (Facchini Neto, 2013, p. 81). 17 Ut FACCHINI NETO, Eugênio. Code civil francês: gênese e difusão de um modelo. In: Revista de Informação Legislativa, ano 50, nº 198, abr./jun. 2013, pp 81-82. 18 PORTO RICO. "Código Civil de Puerto Rico" de 2020. Disponível em: https://bvirtualogp.pr.gov/ogp/Bvirtual/leyesreferencia/PDF/55-2020.pdf. Acesso em 21 de janeiro de 2021, pp. 1-15. 19 Esse ato normativo espanhol havia estendido a vigência do Código Civil espanhol para Porto Rico, Cuba e Filipinas (PORTO RICO. "Código Civil de Puerto Rico" de 2020. Disponível em: https://bvirtualogp.pr.gov/ogp/Bvirtual/leyesreferencia/PDF/55-2020.pdf. Acesso em 21 de janeiro de 2021, pp. 1-15. 20 Government of Canada, 2022. Além disso, o governo canadense disponibiliza informações jurídicas gratuitamente neste site: https://www.justice.gc.ca/eng/csj-sjc/just/03.html. O atual Código Civil de Quebec está disponível neste site: https://www.legisquebec.gouv.qc.ca/fr/document/lc/ccq-1991. 21 Baixo Canadá ou Canadá Inferior era o antigo nome de Quebec 22 ZOLTVANY, Yves F. Esquisse de la Coutume de Paris. In: Revue d'histoire de l'Amérique française, volume 25, numéro 3, décembre 1971, pp. 365-384; FACCHINI NETO, Eugênio. Code civil francês: gênese e difusão de um modelo. In: Revista de Informação Legislativa, ano 50, nº 198, abr./jun. 2013, p. 82. 23 FACCHINI NETO, Eugênio. Code civil francês: gênese e difusão de um modelo. In: Revista de Informação Legislativa, ano 50, nº 198, abr./jun. 2013, pp. 82-83. 24 A inspiração no Código Napoleônico e no Código Civil de Lusiana foi determinada expressamente pela lei de 1857 que determinou a elaboração de um Código Civil destinado a substituir o Coutume de Paris na Província de Quebec (FACCHINI NETO, Eugênio. Code civil francês: gênese e difusão de um modelo. In: Revista de Informação Legislativa, ano 50, nº 198, abr./jun. 2013, p. 83). 25 A título de curiosidade, o Estado Australiano da Tasmânia disponibiliza informações jurídicas gratuitas neste site oficial: https://www.hobartlegal.org.au/handbook/the-justice-system/the-law/. 26 Hong Kong é, na verdade, um território autônomo da China. Adota um sistema jurídico baseado na common law, embora seja complementado por leis (como, de resto, tem ocorrido nos diversos países da família do common law). Apesar de integrar a China, mantém um sistema jurídico diferente, tudo dentro do princípio "um país, dois sistemas" (one country, two systems) (HONG KONG. Hong Kong: the facts legal system. Disponível em: https://www.gov.hk/en/about/abouthk/factsheets/docs/legal_system.pdf. Acesso em 24 de março de 2022). O governo de Hong Kong disponibiliza acesso à legislação e a informações jurídicas neste site: https://www.elegislation.gov.hk/. 27 Ut NAGAR, Raghav. What is common law? Does it apply in India? Disponível em: https://blog.ipleaders.in/common-law-apply-india/. Acesso em 24 de março de 2022 (Publicado em 23 de abril de 2015).   28 O sistema jurídico paquistanês integra a família do common law, fruto da inspiração da Índia britânica. O Paquistão é uma República Islâmica, conforme sua Constituição de 1973, razão por que não se pode ignorar a influência do direito muçulmano (LAU, Martin. Introduction to the Pakistani Legal System, with special reference to the Law of Contract. In: Yearbook of Islamic and Middle Eastern Law, vol. 1, 1994, pp. 3-28). 29 Ele sofreu uma substancial reforma em 1992, a ponto de se considerar que, em 1992, a Holanda recebeu um novo Código Civil. Assim, referindo-se à versão reformada do Código Civil holandês, encontram-se, na literatura jurídica, expressões como novo Código Civil Holandês (NBW, sigla de Nieuw Burgerlijk Wetboek, em holandês), BW (1992) ou simplesmente ao BW (sem indicação de ano). O marco temporal de 1992 é utilizado por convenção, mas, a rigor, desde 1970, foram sendo publicados progressivamente as reformas de partes do Código Civil holandês. 30 Ut Zimmermann, Reinhard. Direito Romano e cultura europeia (Tradução e Notas: Otávio Luiz Rodrigues Junior e Marcela Paes de Andrade Lopes de Oliveira). In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, ano 3, vol. 7, abr./jun. 2016, pp. 243-278; ASTIER, Camille. Exponential growth of African business law and the spread of common law. Publicado em junho de 2012 (Disponível em: https://www.hoganlovells.com/-/media/hogan-lovells/pdf/publication/informationsheetafricanbusinesslawgrowth_pdf.pdf. Acesso em 24 de março de 2022); Rodrigues Junior, Ordem constitucional nos Países Baixos completa 200 anos. Publicado em 9 de abril de 2014 (Disponível em:https://www.conjur.com.br/2014-abr-16/direito-comparado-200-anos-ordem-constitucional-paises-baixos. Acesso em 25 de março de 2022); Rodrigues Junior, Otávio Luiz. Ordem constitucional nos Países Baixos completa 200 anos II. Publicado em 16 de      abril de 2014 (Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-abr-09/direito-comparado-200-anos-ordem-constitucional-reino-paises-baixos. Acesso em 25 de março de 2022; 31 ASTIER, Camille. Exponential growth of African business law and the spread of common law. Publicado em junho de 2012 (Disponível em: https://www.hoganlovells.com/-/media/hogan-lovells/pdf/publication/informationsheetafricanbusinesslawgrowth_pdf.pdf. Acesso em 24 de março de 2022); LAC. Common Law (Law in Namibia, Factsheet Series, nº 4 of 6). Disponível em: https://www.lac.org.na/projects/grap/Pdf/Law_4-Common_Law.pdf. Acesso em 24 de março de 2022; DUBE, Brian. Roman-Dutch and English common law: the indespansable law in Zimbabwe. In: Afro Asian Journal of Social Sciences, volume V, nº 4, Quarter IV, 2014 (Disponível em: http://www.onlineresearchjournals.com/aajoss/art/164.pdf. Acesso em 25 de março de 2022); DUBE, Buhle Angelo. The Law and Legal Research in Lesotho. Publicado em fevereiro de 2008 (Disponível em: https://www.nyulawglobal.org/globalex/Lesotho.html. Acesso em 24 de março de 2022); DUBE, Buhle Angelo; MAGAGULA, Alfred. The Law and Legal Research in Swaziland. Publicado em outubro de 2007 (Disponível em: https://www.nyulawglobal.org/globalex/Swaziland.html#:~:text=Swaziland%20also%20applies%20the%20common,but%20excludes%20Swazi%20customary%20law. Acesso em 24 de março de 2022).
Para pesquisas de Direito Comparado Privado, é importante ter noções gerais sobre as principais famílias jurídicas. Trataremos hoje do direito islâmico para facilitar investigações de direito comparado, especialmente no âmbito do direito privado. Na mesma linha do que sucede com direitos de origem religiosa (divina), a família do direito muçulmano é marcada por uma maior valorização do conteúdo das regras do que por um foco no procedimento. Não que o procedimento seja desprezado. O que sucede é que o direito muçulmano parte da lógica de que o direito já é dado pela divindade e, portanto, não precisa ser definido por meio de procedimentos. O direito religioso dá forte atenção para a substância (o conteúdo normativo), e não para o procedimento. Há uma sacralidade no conteúdo normativo. O direito religioso é um direito mais substantivo e menos procedimental, ao contrário da concepção de direito dos países ocidentais (em que o mais importante é que as normas tenham sido fruto de um procedimento previamente estabelecido). Nessa linha, o legislador por excelência, além de Deus, são os sábios religiosos, e não uma instituição legisladora que cria o direito por meio de procedimentos democráticos (como um Parlamento)1. Uma das consequências é que o direito religioso é mais difícil de mudar: não é fácil justificar a mudança de uma regra estabelecida por Deus. Similar raciocínio vale para outros direitos religiosos, como o direito talmúdico, o direito hindu2 e o direito canônico3. Potencialmente, o direito muçulmano não tem limitação geográfica. Não é o direito de um país. Ele pretende ser aplicável em todo lugar onde houver uma sociedade muçulmana. Daí decorre que cada Estado tem uma postura diante do direito islâmico. Em Estados muçulmanos4, o direito islâmico pode ser adotado como oficial. Isso ocorre de modo diverso entre as nações que atualmente admitem a aplicação da Lei Sharia. Em alguns, o direito islâmico é uma entre outras fontes estatais. Em outros - de modo mais raro (como a Arábia Saudita5) -, todo o direito é islâmico: não haveria, em princípio, legislação, pois o direito islâmico é aplicado diretamente para todas as questões. Nos Estados não muçulmanos, o Poder Público poderá ter de lidar com problemas decorrentes de um ordenamento jurídico paralelo vigente de fato, cultivado por minorias muçulmanas em seu território6. Também pode haver, em contratos ou em arbitragem, a escolha do direito islâmico para disciplinar a relação jurídica. De um modo geral, o direito islâmico possui maior incidência sobre o estatuto pessoal, ou seja, sobre regras que disciplinam pessoas, direito de família e direito das sucessões. Em matéria contratual e em de direito das coisas7, apesar de se poder falar em aplicação do direito muçulmano, há uma tendência de ocidentalização jurídica, com incorporação de regras próprias das famílias do civil law ou do common law. Tal justifica-se especialmente em razão do fato de o comércio internacional pressupor certo grau de harmonização jurídica. Além disso, o direito muçulmano preocupa-se, sobretudo, com a pessoa em si, ou seja, com o modo de viver de cada indivíduo8. Além disso, em alguns países muçulmanos, há uma tendência de codificação do direito islâmico. Como vantagem desses trabalhos de codificação, a compreensão das regras jurídicas torna-se mais fácil. O aplicador do direito terá ganhos de sistematicidade. Reduzir-se-á o caos assistemático causado pela profusão de obras e textos (por vezes, confusos), escritos em idioma árabe (que nem sempre é o idioma do Estado). Há, porém, resistência a esses trabalhos de codificação ou de consolidação, pois a racionalização própria desses trabalhos entra em conflito com os tradicionalistas muçulmanos por lhes subtrair o seu poder normativo. Nesse contexto, houve trabalhos de codificação que permaneceram privados, apesar de seu reconhecido valor jurídico, a exemplo dos códigos de estatuto pessoal elaborados no Egito por Mohammed Pacha, na Tunísia por D. Santillana e na Argélia por M. Morand9. Na Arábia Saudita, em 2010, o governo anunciou a pretensão de codificar a Sharia. Em 2018, o Estado publicou um manual de princípios e preceitos legais10. O direito muçulmano corresponde à aplicação da Sharia11 (Châr'ia, Charia ou Xaria12), a qual pode ser vista como o conjunto de leis islâmicas. Não se trata de um código ou de uma lei, e sim do conjunto de normas. Essencialmente, o direito muçulmano (a lei Sharia) consiste essencialmente na aplicação do Alcorão (Corão, al-Qur-ãn ou Qorân) e nas fontes jurídicas dele decorrentes. Em suma, estas são as fontes do direito muçulmano: o Alcorão, a Suna (ou Sunna), o Idjmâ' (ou Ijmâ') e o Qiyâs13. O Alcorão é o livro sagrado dos muçulmanos. Contém as revelações de Alá a Maomé, o último e o principal dos profetas para os muçulamanos. É a primeira e a mais importante fonte do direito muçulmano. Como o Alcorão não dispõe sobre todas as questões sociais, ele é insuficiente enquanto fonte jurídico, razão por que o direito muçulmano socorre-se de outras fontes. A Suna é a segunda fonte do direito muçulmano. Corresponde ao modo como Maomé vivia. Contém os atos, os comportamentos e os pensamentos de Maomé, ou seja, o h'adith. Diante da insuficiência de o Alcorão e a Suna fornecerem respostas jurídicas a todas as relações sociais, o direito muçulmano vale-se de uma terceira fonte: o Idjmâ'. Trata-se de um acordo unânime entre os doutos sábios religiosos. Trata-se de um dogma acerca da infalibilidade das deliberações unânimes dos sábios integrantes da comunidade muçulmana. Não se trata de costume nem de uma busca da unamidade popular. Cuida-se, sim, de uma unanimidade apenas entre aqueles os jurisconsultos do islã (fuqahâ), os quais são considerados como os herdeiros dos profetas. Nesse ponto, há, porém, divergências no meio jurídico muçulmano: há diferentes vias (madh'hab), as quais são também chamadas de "ritos" ou de escolas. Essas escolas são as responsáveis por formar a jurisprudência islâmica (fiqh). Há quatro principais escolas (madh'hab, ritos ou correntes): (1) a escola Hanafi ou o hanafismo; (2) a escola chafeíta ou o chafeísmo (ou xafeísmo); (3) a escola malequita ou o maliquismo; (4) a escola hanbalita ou hanbali14. Os nomes dessas escolas vinculam-se a um jurista muçulmano que deu origem à linha interpretativa15. Assim, quando um país adota a Lei Sharia (o direito muçulmano), é preciso indicar a escola (madh'hab) que será aplicada. A escola Hanafi é a mais antiga e a mais difundida, especialmente por ter sido espalhada ao longo dos vastos territórios do Império Otomano, do Império Mongol e do Califado Abássida. É a que mais adeptos têm no mundo, da ala dos muçulmanos sunitas. É mais liberal do que as demais. A escola malequita prepondera na África subsaariana e na África Ocidental. A escola chafeíta vige na Malásia, na Indonésia e na costa oriental da África. A escola hanbalita hospeda-se na Arábia. A quarta fonte do direito muçulmano é o Qiyâs, que é fruto de um raciocínio por analogia. É uma fonte útil para oferecer respostas jurídicas a situações novas que não foram contempladas nas demais fontes. Como o jurista muçulmano parte da lógica de respeito à autoridade, não lhe é própria a ideia de criar novas regras, ao contrário do que se dá com o jurista do civil law ou do common law. O jurista muçulmano apenas extrai regras que estariam implícitas nas fontes do direito islâmico. O Qiyâs é resultado dessa lógica do jurista muçulmano em prestigiar a autoridade divina. __________ 1 É o que destaca Salem Nasser em didática palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui). 2 David, 2014, pp. 545-582. 3 Sobre o direito talmúdico (direito hebráico), ver: Campos Neto, Antonio Augusto Machado de. O Judaísmo. O direito talmúdico. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 103, jan./dez. 2008, pp. 27-67 (Disponível aqui); NASSER, Salem. Palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui). 4 ABC Internacional, 2021. 5 Embora haja quem sustente que o Irã se encaixaria nesse perfil, Salem Nasser dissente (NASSER, Salem. Palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui). 6 Sobre esse assunto, tivemos a oportunidade de trarar de um problema enfrentado por um tribunal inglês diante de um casamento islâmico (nikah) ocorrido dentro da Inglaterra. Na ocasião, o tribunal inglês considerou que o nikah era nulo por não observar a legislação britânica sobre casamento; todavia, apesar disso, foram reconhecidos efeitos patrimoniais em favor do casal (Oliveira, Carlos Eduardo Elias de. Casamento religioso no Brasil: rápido comparativo com experiência da Inglaterra com os casamentos islâmicos ("nikah"). Disponível aqui. Data da publicação: 2018). 7 A propósito, Richard A. Debs esmiuça o regime de direito de propriedade no Egito, sob a perspectiva do direito muçulmano (DEBS, Richard A. Islamic law and Civil Code: the law of property in Egypt. New York/USA: Columbia Univeristy Press, 2010). 8 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 534-538; UNAM. Capítulo 3 - El Derecho de los Países Musulmanes. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022, pp. 349-350. 9 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 536-537. 10 NASSER, Salem. Palestra no âmbito da International Law Association em 2010 (Disponível aqui). 11 "Etimologicamente, "charia" é uma palavra árabe que significa "avenida", "abertura" ou "caminho". O professor Wael Hallaq da Universidade Colúmbia explica que a charia "era tanto uma forma de viver e ver o mundo quanto um corpo de crenças" (Unesco, 2017). 12 LOURO, A. Tavares; COSTA, José Mário. Sharia. Publicado em 23 de julho 2004 (Disponível aqui. Acesso em 5 de abril de 2022). 13 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp 524; UNAM. Capítulo 3 - El Derecho de los Países Musulmanes. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022, pp. 349-350; GÓMEZ, Rebeca Vázquez. Aproximación al derecho islâmico y su regulación del velo. In: Ius Canonicum, XLVII, nº 94, 2007, pp. 591-615; ASCANIO, Lorenzo; CASTELLARI, Massimiliano. El jurista colombiano y el derecho islámico y de los países musulmanes. Nuevas fronteras de la comparación jurídica. In: Revista Misió Jurídica, vol. 4, n. 4, Diciembre de 2011, pp. 85-105; LAGE, Leonardo Almeida. Transconstitucionalismo, direito islâmico e liberdade religiosa. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Orientador: Professor Dr. Marcelo da Costa Pinto Neves. Data: agosto de 2016 (Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2022); CARMONA GONZÁLEZ, Alfonso. Ley islâmica y Derecho positivo. In: Anales de Historia Contemporanea, nº 13, 1997, pp. 25-32. 14 Sobre o direito islâmico, ver: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2014; LIPOVETSKY SILVA, Nathália. Breve estudo sobre o sistema jurídico islâmico. In: Revistado CAAP, Belo Horizonte, jul-dez-2009, pp. 49-73 (Disponível aqui). 15 Por exemplo, a escola Hanafi reporta-se ao jurista iraquiano Abu Hanifa Na-nu'man Ibn Thabit, do século VII. A escola Hanbali refere-se ao jurista Amade Ibne Maomé Ibne Hambal, do século IX.
Em coluna anterior, em relação ao Direito Espanhol, apontamos a importância dos precedentes da antiga DGRN (Dirección General de los Registros y del Notariado - DGRN), atualmente designada Direccion General de Seguridad Jurídica y Fe Pública. Hoje trataremos de caso interessante envolvendo a obrigatoriedade de consentimento de cônjuge para negócios envolvendo direitos reais à luz do direito espanhol.   Antes, lembramos que, no Brasil, essa exigência é feita para a hipótese de o cônjuge "alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis", salvo regime da separação convencional de bens ou regime da participação final nos aquestos com previsão no pacto (arts. 1.647 e 1.656, Código Civil brasileiro). Vamos, porém, ao direito espanhol. A pauta é o seguinte julgado: Resolución de 13 de junio de 2018, de la Dirección General de los Registros y del Notariado (DGRN)1. Nele, discute-se se é ou não necessário consentimento do cônjuge para a constituição de uma servidão de passagem permanente sobre um terraço de um imóvel. O oficial de registro de imóveis (registrador de la propriedade) da cidade espanhola de San Cristóbal de la Laguna qualificou negativamente o título. O título era uma escritura pública lavrada pelo notário dessa cidade espanhola, constituindo uma servidão de passagem permanente (servidumbre de paso permanente) sobre um terraço de um imóvel. Irresignado, o notário da cidade de San Cristóbal de la Laguna interpôs recurso administrativo para a DGRN. A discussão foi em torno do artigo 1320 do Código Civil espanhol, que exige a autorização conjugal para a alienação da moradia habitual e dos móveis de uso ordinário da família. Confira-se o referido preceito: Artículo 1320 Para disponer de los derechos sobre la vivienda habitual y los muebles de uso ordinario de la familia, aunque tales derechos pertenezcan a uno solo de los cónyuges, se requerirá el consentimiento de ambos o, en su caso, autorización judicial. La manifestación errónea o falsa del disponente sobre el carácter de la vivienda no perjudicará al adquirente de buena fe. A DGRN entendeu que esse dispositivo refere-se apenas aos casos de alienação envolvendo o lar comum (vivienda familiar habitual) do casal, à vista do artigo 70 e do artigo 1406.4º do Código Civil espanhol, os quais referem-se ao domicílio conjugal que é fixado pelo casal. Veja os retrocitados dispositivos: Artículo 70 Los cónyuges fijarán de común acuerdo el domicilio conyugal y, en caso de discrepancia, resolverá el Juez, teniendo en cuenta el interés de la familia. Artículo 1406 Cada cónyuge tendrá derecho a que se incluyan con preferencia en su haber, hasta donde éste alcance: 1.° Los bienes de uso personal no incluidos en el número 7 del artículo 1.346. 2.° La explotación económica que gestione efectivamente. 3.° El local donde hubiese venido ejerciendo su profesión. 4.° En caso de muerte del otro cónyuge, la vivienda donde tuviese la residencia habitual. Segundo a DGRN, o casal costuma fixar um lar comum, fruto de comunhão de vida (comunidad de vida) associada a uma comunhão de lar (comunidad de lar). É a regra geral. Trata-se do local de residência familiar. É o local onde se vive a maior parte do ano. E, ainda que haja mais de um imóvel com esse requisito, não se considera, para tal efeito, a segunda residência da família utilizada para recreio ou férias. Se houver, porém, justo motivo (ex.: razões profissionais), cada consorte pode ter lar diferente (comunidad de vida sem comunidad de vivenda). A lei protege o lar comum (vivenda familiar habitual). Uma das proteções é o artigo 1.320 do Código Civil espanhol, que exige o consentimento do cônjuge para a disposição do imóvel que serve ao lar comum ou dos móveis de uso ordinário da família, ainda que esses bens sejam de propriedade exclusiva de apenas um dos consortes. Essa exigência de outorga conjugal é apenas se o casal tem um lar comum, fruto de uma coabitação (comunidad de vivienda). A razão de ser da norma é conceder mecanismos de controle para evitar arbitrariedades individuais do outro cônjuge, conforme realçou o Tribunal Supremo de España2. Para a DGRN, não se aplica a exigência de anuência conjugal se cada cônjuge tiver um lar próprio, fruto de uma hipótese em que o casal mantém uma comunhão de vida sem uma coabitação (comunidad de vida sem comunidade de vivenda), o que pode ocorrer de modo excepcional. O objetivo do art. 1.320 do Código Civil espanhol é proteger o lar comum (vivienda familiar habitual). Cabe a cada disponente declarar ao terceiro se o lar é ou não comum para tal efeito. Mentiras dele não prejudicará terceiros de boa-fé, conforme previsão expressa do art. 1.320 do Código Civil espanhol. É irrelevante se os filhos se opuserem: a exigência legal é de anuência conjugal, e não filial. Não importa sequer o regime de bens (regímen económico matrimonial de bienes): em qualquer deles, aplica-se o art. 1.320 do Código Civil espanhol. A regra do art. 1.320 do Código Civil espanhol é reproduzida, com algumas variações, nos direitos civis forais de algumas comunidades autônomas da Espanha, como no art. 231-9 do Código Civil da Cataluña e no art. 190 do Código del Derecho Foral de Aragón. Não se trata, portanto, de uma regra específica do direito civil comum espanhol. Cabe um aparte para esclarecimento sobre a situação do direito civil espanhol. Não há uma legislação civil única para toda a Espanha. Há, de um lado, o chamado derecho civil común, que é representado pelo Código Civil espanhol e pela legislação extravagante. E há, de outro lado, o derecho civil foral de algumas comunidades autônomas espanholas (regiões político-administrativa que reúnem diversas cidades), especificamente de Aragón, Cataluña, Baleares, Galicia, Navarra e País Vasco. Também se pode falar, ainda que parcialmente, em direito foral na Comunidad Valenciana apenas para regime de bens do casamento (régimen económico del matrimonio) para casamentos em determinado período3. Há ainda direito foral no chamado Fuero de Baylión, que é uma região dentro da comunidade autônoma de Extremadura e que abrange alguns povos limítrofes com Portugal. Neste mapa abaixo, pode-se ver, em cor verde, os locais em que vigora o direito foral da respectiva comunidade autônoma, e não o direito comum espanhol. Em verde claro, estão as comunidades em que esse direito foral é parcial (Comunidad Valenciana e Extremadura)4: A exigência de outorga conjugal prevista no artigo 1.320 do Código Civil espanhol precisa ser fiscalizada pelo registrador na sua qualificação registral, conforme art. 91 do Reglamento Hipotecario espanhol. A obrigatoriedade da autorização conjugal no Código Civil espanhol abrange não apenas atos de natureza real, mas também pessoal. Por exemplo, para renunciar a locação (arrendamento) ou a sua renovação em relação à moradia (vivienda familiar), é necessário também o consentimento do outro consorte. Trata-se de um ato de "disposição" para efeito do art. 1.320 do Código Civil espanhol e do art. 91 do Reglamento Hipotecario espanhol. Sob essa ótica, o art. 1.320 do Código Civil espanhol abrange também constituição de um direito real de servidão de passagem, como é o caso em pauta. No caso concreto, porém, a servidão recai sobre uma área externa à moradia familiar: o terraço, ao qual o aceso dá-se de forma independente, a partir da rua. Não atinge, pois, a morada familiar por se tratar de área externa. Além disso, não haverá uso exclusivo do terraço: os proprietários do prédio serviente também poderão utilizá-lo. Por esse motivo, não há necessidade de consentimento conjugal para a instituição de direito real de servidão de passagem sobre o terraço nesse caso concreto, tendo em vista uma interpretação teleológica do art. 1.320 do Código Civil espanhol. Esse dispositivo só se refere a atos de disposição relacionados à moradia familiar (vivenda familiar habitual). __________ 1 Disponível aqui. 2 Sentencia del Tribunal Supremo de 8 de octubre de 2010: SSTS de 3 de enero de 1990 y 31 de diciembre de 1994, citado no julgamento em pauta da DGRN. 3 Na Comunidad Valenciana (ou País Valenciano), foi editada lei específica para disciplinar regime de bens. Ela, porém, foi declarada inconstitucional pela Sentença do Tribunal Constitucional da Espanha (STC) de 28 de abril de 2016. Em consequência, casamentos celebrados entre 30 de junho de 2007 e 21 de dezembro de 2007 bem como entre 1º de julho de 2008 e 31 de maio de 2016, terão o regime da separação de bens (régimen econômico matrimonial de separación de bienes) como o regime subsidiário (régimen econômico matrimonial supletório). 4 Disponível aqui.
Neste artigo, cuidaremos de duas questões de Direito Comparado relevantes. A primeira é apresentar uma das principais instâncias da Espanha que decidem questões de direito privado no âmbito dos cartórios extrajudiciais. A segunda é comparar o direito espanhol com o brasileiro diante de uma hipoteca destinada a garantir um valor máximo (envolvendo, por consequência, condições suspensivas). Precedentes da DGRN (Dirección General de los Registros y del Notariado - DGRN) Na Espanha, diversas questões de direito civil interessantíssimas frequentam os serviços notariais e registrais e são resolvidas pela Direccion General de Seguridad Jurídica y Fe Pública. Esse órgão, entre 1909 e 2020, era chamado de Dirección General de los Registros y del Notariado - DGRN1. Tendo em vista que a nomenclatura antiga (DGRN) é ainda a mais famosa e considerando que os principais julgados são anteriores à mudança de nomenclatura, manteremos a utilização do nome antigo. Trata-se de um órgão do Ministério da Justiça da Espanha. Sua atribuição é, essencialmente, gerir assuntos relacionados ao direito notarial e registral. Sua origem histórica foi a Lei Hipotecária de 1861. Uma de suas principais atuações é julgar os procedimentos provocados por recusas dos registradores a registrar títulos (procedimentos que, no Brasil, se assemelham ao procedimento de dúvida previsto no art. 198 da Lei de Registros Públicos brasileira2). Comparando com o Brasil, a DGRN espanhola exerce um papel próximo das Corregedoria-Gerais de Justiça dos Tribunais estaduais ou do Conselho Nacional de Justiça. Historicamente, a DGRN sempre foi muito prestigiada na comunidade jurídica espanhola pela excelência técnica dos seus julgados e pela notável qualificação técnica dos seus julgadores. Há, porém, críticas ao prestígio atual da DGRN, como dá notícia a matéria intitulada Auge y caída de La Dirección General de los Registros y del Notariado, publicado na Revista Notario del Siglo XXI, em cuja capa foi estampada com o título Auge y caída de la Dirección General de los Registros y del Notariado3. Na referida matéria, são indicados os seguintes motivos para a alegada perda do prestígio da DGRN: (1) desmantelamento do corpo de letrados; (2) composição de membros que não ostentam independência intelectual nem imparcialidade; e (3) mudança para passar a admitir recurso judicial, o que teria gerado insegurança jurídica. O caso da hipoteca sob condição suspensiva Um interessante precedente do DGRN é a Resolucion de 3 de septiembre de 2005, de La Dirección General de Registros y del Notariado4. O caso envolvia uma escritura pública lavrada por notário da cidade de Barcelona por meio da qual a sociedade CCP La Granada Logistics, S.L instituía uma hipoteca de máximo em favor de Hype Real State International, Sucursal Espanha. A Hype State disponibilizou à La Granada5um crédito mercantil máximo de ? 18.500.000,00 (dezoito milhões e quinhentos mil euros), o qual seria liberado por etapas sujeitas a condições suspensivas. Em contrapartida, a sociedade empresária devedora hipotecou o imóvel para garantir até 120% do valor acima, observadas as etapas de liberação do crédito e as pertinentes condições suspensivas. O valor garantido aumenta conforme se implementam as condições suspensivas. O Ofício de Registro de Imóveis (no caso, o Registro de La Propriedad de Vilafranca del Penedés) qualificou negativamente a escritura. Negou registrá-la, entre outros pelo seguinte motivo: o ordenamento não admitiria hipoteca sujeita a condição suspensiva. Em razão da impugnação pelo interessado contra essa negativa do registrador, o caso chegou à DGRN por meio do recurso administrativo6 do art. 19 bis da Lei Hipotecária espanhola7. No relevante, a DGRN contrariou o registrador e admitiu a hipoteca sob condição suspensiva no caso concreto. Apesar de se tratar de discussão acerca de um direito real típico (a hipoteca), o precedente em pauta discute até que ponto a vontade pode modelar esse direito mediante condição suspensiva. No caso, a DGRN realçou que o regime de numerus apertus foi adotado na Espanha, mas ressalvou que a mera vontade não é suficiente à criação de novos direitos reais. É preciso observar outros requisitos. Confira-se este excerto da Resolución em pauta8: Indubitavelmente, no nosso ordenamento, o proprietário pode dispor de seus bens e, assim, constituir gravares sobre eles, sem mais restrições que não as estabelecidas em lei (artigo 348 do Código Civil espanhol). Não somente se permite a constituição de novas figuras de direitos reais não especificamente previstas pelo legislador (cfr. artigos 2.2º da Ley Hipotecaria e 7º do Reglamento HIpotecario), mas também se permitem a a alteração do conteúdo típico dos diretos reais legalmente previstos e, em concreto (cfr. Artigos 647 do Código Civil espanhol e 11, 23 e 37 da Ley Hipotecaria), a sujeição desses direitos a condição, termo e encargo. Porém, é certo também que essa liberalidade tem de ajustar-se a determinados limites e respeitar as normas estruturas (imperativas) do estatuto jurídico dos bens, dado seu significado econômico-político e a transcendência erga omnes dos direitos reais, de modo que a autonomia da vontade deve ser temperada com a satisfação de determinadas exigências, tais como a existência de uma justificativa suficiente, a determinação precisa dos contornos do direito real, a inviolabilidade do princípio da liberdade de tráfego etc. (cfr. Resoluciones de 5 de junio; 23 e 26 de octubre; 4 de marzo de 1993). Esses limites alcançam especial significado em relação à hipoteca, pois são impostos em defesa do credor e para facilitar o tráfego jurídico imobiliário, o crédito imobiliário e, em última instância, a ordem pública econômica. Como se vê, no julgado acima, a DGRN invocou a tipologia de numerus apertus da Espanha para justificar a imposição de uma condição suspensiva para o direito real típico de hipoteca. Breves reflexões ao Brasil No Brasil, indaga-se: a sujeição da hipoteca a uma condição suspensiva na forma acima seria admitida? Entendemos que sim. Isso, porque nada impede que a hipoteca seja instituída indicando o valor máximo da dívida garantida, conforme art. 1.424, I, do Código Civil brasileiro. Não há necessidade de recorrer a discussões de tipicidade de direitos reais, pois o ordenamento jurídico brasileiro é textual em admitir hipoteca para garantir dívidas futuras até um valor máximo. Aliás, a plasticidade dos direitos reais já é suficiente para acomodar diversas situações concretas, sem necessidade de se pensar em criação de novos direitos reais. Logo, no Brasil, em que prevalece o entendimento de que os direitos reais são sujeitos a numerus clausus, a situação concreta analisada na Espanha seria perfeitamente admitida. __________ 1 Por curiosidade, na Colômbia, atribuição similar cabe à Superintendencia de Notariado & Registro - SNR, cujo site oficial é este. Um exemplo de decisão desse órgão colombiano é Resolución número 021 (marzo 09 de 2022), da SNR. 2 Lei 6.015/1973. 3 El notário, 2012, disponível aqui. 4 Iberley, 2005, disponível aqui. 5 E a outras empresas do mesmo grupo econômico da La Granada. 6 Esse recurso administrativo aproxima-se, no Brasil, ao procedimento de dúvida registral previsto no art. 198 da Lei 6.015/1973. 7 Decreto de 8 de febrero de 1946 por el que se aprueba la nueva redacción oficial de la Ley Hipotecaria (BOE, 1946). 8 Tradução livre de excerto da Resolucion de 3 de septiembre de 2005, de La Dirección General de Registros y del Notariado (Iberley, 2005).
Na coluna anterior, tratamos de experiências de harmonização da União Europeia, ilustrando com o direito sucessória. Trataremos agora do ambiente normativo de direito processual e de direito material da União Europeia. 1. Interrelação dos sistemas judiciais dos Estados membros A União Europeia focou bastante um aspecto procedimental essencial para a operacionalização: as medidas necessárias à cooperação judiciária e à execução de decisões judiciais estrangeiras. Pouco proveito haveria em uma harmonização de direito material se, na prática, os cidadãos não conseguissem concretizar seus direitos por obstáculos à eficácia extraterritorial das decisões judiciais. Nesse sentido, a União Europeia, no Conselho de Tampere (reunião do Conselho Europeu ocorrida na cidade finlandesa de Tampere em 15 e 16 de outubro de 1999), aprovou o princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais. Esse princípio estabelece que os Estados membros devem eliminar, ao máximo, exigências adicionais à eficácia, em seus territórios, de decisões judiciais uns dos outros. Devem-se abolir os procedimentos intermédios para o reconhecimento de decisões judiciais estrangeiras. Os Estados membros devem reconhecer as decisões judiciais uns dos outros. Trata-se de uma pedra angular para a efetiva criação de um espaço de justiça dentro da União Europeia. O Conselho de Tampere, ainda, recomenda a adoção de regras processuais comuns em processos transfonteiriços (aqueles que envolvem a jurisdição de mais de um Estado membro). São esclarecedores estes excertos das conclusões do Conselho de Tampere1: 5. A liberdade apenas pode ser disfrutada num verdadeiro espac¸o de justic¸a, onde as pessoas possam recorrer aos tribunais e a`s autoridades de qualquer Estado- Membro ta~o facilmente como o fariam no seu pro'prio pai's. Os criminosos na~o devem ter a possibilidade de tirar partido das diferenc¸as entre os sistemas judicia'rios dos Estados-Membros. As sentenc¸as e deciso~es devem ser respeitadas e aplicadas em toda a Unia~o, salvaguardando simultaneamente a seguranc¸a juri'dica de base tanto dos indivi'duos como dos operadores econo'micos. E' necessa'rio alcanc¸ar um grau mais elevado de compatibilidade e de converge^ncia entre os sistemas juri'dicos dos Estados-Membros.  (...) B. UM VERDADEIRO ESPAC¸O EUROPEU DE JUSTIC¸A  28. Num verdadeiro espac¸o europeu de justic¸a, os cidada~os e as empresas na~o devera~o ser impedidos ou desencorajados de exercerem os seus direitos por razo~es de incompatibilidade ou complexidade dos sistemas juri'dicos e administrativos dos Estados-Membros.  (...) VI. Reconhecimento mu'tuo das deciso~es judiciais  33. Um maior reconhecimento mu'tuo das sentenc¸as e deciso~es judiciais e a necessa'ria aproximac¸a~o da legislac¸a~o facilitariam a cooperac¸a~o entre as autoridades e a protecc¸a~o judicial dos direitos individuais. Por conseguinte, o Conselho Europeu subscreve o princi'pio do reconhecimento mu'tuo que, na sua opinia~o, se deve tornar a pedra angular da cooperac¸a~o judicia'ria na Unia~o, tanto em mate'ria civil como penal. Este princi'pio devera' aplicar-se a`s sentenc¸as e outras deciso~es das autoridades judiciais.  34. Em mate'ria civil, o Conselho Europeu exorta a Comissa~o a apresentar uma proposta tendo em vista uma maior reduc¸a~o dos tra^mites intermedia'rios que ainda sa~o necessa'rios para o reconhecimento e execuc¸a~o de uma decisa~o ou sentenc¸a no Estado requerido. Como primeiro passo, estes procedimentos interme'dios devera~o ser abolidos no caso das pequenas acc¸o~es do foro comercial ou de consumidores e para certas sentenc¸as no domi'nio do direito da fami'lia (p. ex., em mate'ria de penso~es de alimentos e direitos de visita). Essas deciso~es seriam automaticamente reconhecidas em toda a Unia~o sem quaisquer procedimentos intermedia'rios ou motivos de recusa de execuc¸a~o. Tal passo poderia ser acompanhado da fixac¸a~o de normas mi'nimas sobre aspectos especi'ficos do processo civil.  Em decorrência dessa diretriz de Tampere, a União Europeia avançou na edição de normas para facilitar a cooperação judiciária e viabilizar a execução de decisões judiciais estrangeiras. São os casos, por exemplo, destes Regulamentos: a) Regulamento Europeu nº 1348/2000: lida com citações e intimações2. b) Regulamento Europeu nº 4/2009: versa sobre alimentos. c) Regulamento Europeu nº 2201/20033: trata de decisões em matéria de Direito de Família (divórcio, guarda, tutela, curatela etc.) e guarda sintonia com a Convenção de Haia de 25 de outubro de 19804. d) Regulamento Europeu nº 1215/2012: cuida de decisões em matéria civil e comercial5. e) Regulamento Europeu nº 650/2012 (Regulamento das Sucessões): trata, entre outras questões6, de decisões judiciais estrangeiras em matéria de direito sucessório7. f) Regulamento Europeu nº 606/2013: versa sobre o reconhecimento mútuo de medidas protetivas em matéria civil, assim entendidas as decisões destinadas à proteção de pessoas sob ameaça de dano à sua integridade física ou psicológica8. 2. Normas de direito material para harmonização na União Europeia Os movimentos de uniformização do direito privado europeu sempre envolveram a ideia de criação de um Código Civil Comum a toda a Europa. Símbolo dessa tendência são as manifestações do Parlamento Europeu em 19899 e em 199410. Elas recomendavam a criação de um código europeu comum de direito privado com oitiva dos Estados membros. Elas também estimavam os esforços para promover "a harmonização e a unificação no plano mundial ou europeu", com interação com organizações como a Unidroit, a Unicitral e o Conselho da Europa. Ilustra essa mesma linha a manifestação do Comitê Econômico e Social Europeu (CESE) em 201011. Esta defende que o mercado interno europeu reclama um direito europeu dos contratos. Apoia também os estudos para a criação de um Quadro Comum de Referências (QCR), ferramenta útil a facilitar o cotejo dos direitos de cada Estado membro. Igualmente, o CESE ratifica a importância de um Código Europeu Comum de Direito Privado12. Trata-se de desdobramento de diretrizes de harmonização já traçadas anteriormente no âmbito comunitário, a exemplo do Conselho Europeu de Tampere de 1999 (que solicitou à Comissão um estudo para a aproximação das legislações dos Estados membros)13. Também se cuida de fruto do convite feito pelo Programa Estocolmo para 2010-2015 para a Comissão apresentar uma proposta de Quadro Comum de Referência no domínio europeu dos contratos. Esse quadro seria um instrumento não vinculante com princípios fundamentais, definições e regras-padrão a inspirarem os legisladores comunitários e domésticos14. Em outras palavras, a ideia do Quadro Comum de Referência é ser um instrumento de soft law. Esses esforços de harmonização são mais adequados para o mercado. A estratégia "Europa 2020 para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo" é nesse sentido. Reconhece ser mais fácil e menos oneroso para as empresas e os consumidores a conclusão de contratos com parceiros de outros países da União Europeia dentro de um ambiente de direito europeu dos contratos de natureza facultativa15. Em 2005, a Comissão Europeia financiou uma rede universitária europeia em pesquisas para a elaboração de um projeto de Quadro Comum de Referência (projeto de QRC ou, inglês, Draft of Common Frame of Reference - DCFR), com foco em consumidores e contratos. Participaram desse trabalho a Association Henri Capitant des amis de la culture juridique française bem como a Société de législation Comparée16, além de outras entidades (como o Study Group on European Civil Code e o Research Gourp on Existing EC Private Law - "Acquis Group"). Os trabalhos resultaram no projeto de Quadro Comum de Referência (mais conhecido por seu nome inglês Draft Comoon Frame of Reference - DCFR), de 200917. Trata-se de um vasto documento, de quase cinco mil páginas, que, na prática, mais se assemelha a um Código Civil Europeu comentado em matéria de obrigações, contratos e responsabilidade civil18. Prevê não apenas modelos de regras, mas também princípios e definições. O DCFR - que é um "rascunho" - servirá de suporte para os trabalhos do grupo de peritos criado em 2010 pela Decisão de 26 de abril de 2010 da Comissão Europeia19, com o objetivo de elaborar o Comoon Frame of Reference - CFR, intento ainda em marcha. O DCFR vai muito além de um documento para respaldar uma futura norma europeia. Ele é um documento acadêmico de valor inestimável, como uma das maiores empreitadas comparatistas em obrigações e contratos. É, portanto, útil a pesquisas acadêmicas20, à jurisprudência doméstica (que encontrará seguras referências de direito comparado) e a legisladores de países não europeus. Aliás, pode até ser considerado um instrumento de soft law e, entre outras finalidades, poderia ser escolhido como regra aplicável em contratos ou em julgamentos arbitrais21. Outra iniciativa igualmente relevante para a harmonização são os três volumes do Principles of European Contract Law (PECL), fruto do trabalho, em três estágios, da Comissão Europeia de Direito Europeu dos Contratos envolvendo renomados juristas (comissão essa que ficou conhecida como "Lando Commission" em referência ao jurista Ole Lando, tido como o criador e o presidente da comissão). As partes I e II foram publicadas em 1995 e 1999; a Parte III, em 200322. __________ 1 EUROPEAN PARLIAMENT. Conselho Europeu de Tampere 15 e 16 de outubro de 1999: conclusões da presidência. Data: 15 e 16 de outubro de 1999 (Disponível aqui). 2 Regulamento (CE) nº 1348/2000 do Conselho. Data: 29 de maio de 2000 (Disponível aqui). 3 Revogou o Regulamento CE nº 1347/2000. 4 Eur-lex, Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho. Data: 27 de novembro de 2003 (Disponível aqui). Para aprofundamento na legislação europeia sobre direitos da criança, ver Manual de Legislação Europeia sobre Legislação Europeia sobre os Direitos da Criança (EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS, EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS E CONCIL OF EUROPE. Manual de legislação europeia sobre os Direitos da Criança. Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia, 2016. Disponível aqui). 5 Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 12 de dezembro de 2012-B (Disponível aqui). 6 Entre as outras várias questões, o Regulamento Europeu das Sucessões trata dos pactos sucessórios, assim entendido acordos dispondo de direitos sobre heranças futuras. O Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão C-277/20, definiu que se inclui no conceito de pacto sucessório o caso de um contrato de doação de um imóvel quando do falecimento do doador (Curia, Acórdão do Tribunal de Justiça 9 de setembro de 2021, processo C-277/20. Data: 9 de setembro de 2021 (Disponível aqui). 7 Eur-lex, Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 4 de julho de 2012 (Disponível aqui). 8 Regulamento (UE) nº 606/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 12 de junho de 2013 (Disponível aqui). 9 Resolução A2-157/89, JO nº C 158, de 26 de junho de 1989, p. 400 (Disponível aqui). 10 Resolução A3-0329/94, JO nº C 205, de 25 de julho de 1994, p. 158 (Disponível aqui). 11 A publicação, porém, deu-se em 2011 (Eur-lex, Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre o "Livro Verde da Comissão sobre as opções estratégicas para avançar no sentido de um direito europeu dos contratos para os consumidores e as empresas". JO C 84, de 17 de março de 2011. Disponível aqui). 12 Convém leitura destes excertos do Parecer do CESE (Eur-lex, Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre o "Livro Verde da Comissão sobre as opções estratégicas para avançar no sentido de um direito europeu dos contratos para os consumidores e as empresas". JO C 84, de 17 de março de 2011 (Disponível aqui): 1.1 O CESE partilha do ponto de vista da Comissa~o segundo o qual o mercado interno europeu deve ser realizado tambe'm na o'ptica do direito europeu dos contratos e reconhece a importa^ncia dos estudos dos investigadores acade'micos sobre o Quadro Comum de Refere^ncia (QCR), de que se poderia tirar partido ao ni'vel pra'tico.  (...) 1.4 O CESE e' de opinia~o que os instrumentos propostos pelo Quadro Comum de Refere^ncia podera~o contribuir para assegurar a coere^ncia global do direito europeu dos contratos, reduzir os obsta'culos ao come'rcio e promover a concorre^ncia no mercado interno.  (...) 2.1.7 O Parlamento Europeu aprovou uma se'rie de resoluc¸o~es sobre uma possi'vel harmonizac¸a~o do direito privado substantivo. Em 1989 e 1994, apelou ao ini'cio de um trabalho sobre a possibilidade de elaborar um Co'digo Europeu Comum de Direito Privado.  2.1.8 O Parlamento declarou que a harmonizac¸a~o de determinados domi'nios do direito privado e' essencial para a realizac¸a~o do mercado interno e que a unificac¸a~o dos ramos mais importantes do direito privado, sob a forma de um Co'digo Civil Europeu, constituiria a forma mais eficaz de levar a cabo essa harmonizac¸a~o.  2.1.9 O CESE ja' havia indicado no seu parecer de 2002 que «a elaborac¸a~o de um direito europeu dos contratos uniforme e geral, por exemplo, sob a forma de um regulamento, soluc¸a~o que o Comite' prefere para evitar diverge^ncias, pode requerer tempo e estudos complementares, mas deveria apoiar-se nos trabalhos ja' efectuados pelas va'rias comisso~es e instituic¸o~es ja' mencionadas e nas regras e pra'ticas internacionais em vigor»  2.1.10 Noutro seu parecer de 2010, o CESE sublinhou que «A rede "Princi'pios Comuns de Direito Europeu dos Contratos" (rede CoPECL) deu por terminado ha' pouco o seu Projecto de Quadro Comum de Refere^ncia e apresentou-o a` Comissa~o Europeia. Essas regras da~o manifestamente ao legislador europeu um modelo que poderia ser utilizado para a adopc¸a~o de um instrumento opcional, como advogado pela comissa'ria Viviane Reding»  13 European Parliament, 1999. 14 Ver: (1) Eur-lex, Decisa~o da Comissa~o, de 26 de Abril de 2010, que cria um grupo de peritos para um quadro comum de refere^ncia no domi'nio do direito europeu dos contratos, JO L 105, de 27 de abril de 2010, pp. 109-111 (Disponível aqui); (2) Eur-lex, Programa de Estocolmo - uma Europa aberta e segura que sirva e proteja os cidadãos, JO C 155, de 4 de maio de 2010-B, pp. 1-38 (Disponível aqui. O programa Estocolmo foi o último programa plurianual da União Europeia e era respaldado pelo art. 68º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). Antes dele, houve o programa de Haia (2004 a 2009) e o programa de Tampere (1999-2004). O objetivo era estabelecer orientações estratégicas no âmbito da União Europeia. 15 Eur-lex, EUROPA 2020 Estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo. Ano: 2020 (Disponível aqui). 16 A Société de législation Comparée duas obras importantes: Principes contractuels Communs: projet de cadre comum référence e Terminologie Contratuelle Commune: projet de cadre commun de référence. 17 Em 2008, houve a publicação de uma versão interina para consulta pública. Após absorção das sugestões da comunidade jurídica, foi publicada, em 2009, a versão final. 18 A versão completa em inglês intitula-se Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Há uma versão completa (full edition) e uma versão resumida (disponível aqui. Ver: Law Kuleuven, Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Ano: 2009 (Disponível aqui).   19 Decisão de 26 de abril de 2010 da Comissão Europeia, JO L105, de 27 de abril de 2010, p. 109 (Eur-lex, Decisa~o da Comissa~o, de 26 de Abril de 2010, que cria um grupo de peritos para um quadro comum de refere^ncia no domi'nio do direito europeu dos contratos, JO L 105, de 27 de abril de 2010-A, pp. 109-111 (Disponível aqui). Ver: (1) MORENO, Hector Simón. El processo de armonización de los derechos reales em Europa. Valência/Espanha: Editora Tirant, 2013, p. 23; (2) ALPA, Guido. The European Civil Code: "E Pluribus Unum". In: Tulane European & Civil Law Forum, vol. 14, 1999, pp. 1-14; e (3) AQUINO, Leonardo Gomes de. A uniformização do Direito Privado: Uma perspectiva do Direito Privado europeu. Publicado em setembro de 2004 (Disponível aqui). 20 Luiz Cláudio Cardona Pereira, por exemplo, pesquisou o enriquecimento sem causa sob a perspectiva do DCFR (PEREIRA, Luiz Cláudio Cardona. Harmonização e unificação internacional do regime do enriquecimento sem causa: uma perspectiva a partir do DCFR. In: Revista Brasileira de Direito Civil, v. 29, jul./set. 2021, pp. 123-161. Disponível aqui). 21 Sobre o DCFR, ver: (1) GILIKER, Paula. The Draft Common Frame of Reference and European contract law: moving from the "academic" to the "political". Publicado em 2019 (Disponível aqui); (2) RUSE-KHAN, Henning Grosse. The European Draft Common Frame of Reference - a source os Comparative Law; a new option for choosing the applicable law; or a template for a European Civil Code?. In: International Seminar on Comparative Law, Conference Proceedings, Kuala Lumpur, November 2008 (Disponível aqui); (3) HOUSE OF LORDS. European Contract Law: the Draft Common Frame of Reference. 12th Report of Session de 2008-09. Published 10 June 2009 (Disponível aqui). 22 Ver: (1) LANDO, Ole; CLIVE, Eric; PRÜM, André; ZIMMERMANN, Reinhard. Principles of European Contract Law, Part III. The Hague/Netherlands; London/UK; New York/EU: Kluwer Law International, 2003; (2) HESSELINK, Martijn W. The Principles of European Contract Law: some choices mande by the Lando Commission. In: Global Jurist Frontiers, vol. 1, nº 1, 2011 (Disponível aqui).
Na coluna anterior, encerramos tratando do Regulamento Europeu das Sucessões. Seguiremos tratando dele e avançando para outros pontos da harmonização no Direito Internacional europeu. 1. Lei do domicílio habitual como elemento de conexão para a lei sucessória na União Europeia Outro ponto importante no processo de harmonização do direito na União Europeia é a escolha de elementos de conexão compatíveis com essa finalidade. Elementos de conexão são regras de Direito Internacional Privado para resolver conflitos entre leis de diferentes países. São regras que definem se se aplicará a lei de um país ou a lei de outro. Os elementos de conexão precisam ser hospitaleiros a situações transnacionais. É o caso, por exemplo, do estatuto sucessório (ou seja, da definição da lei aplicável a regular a sucessão mortis causa): adotou-se, na União Europeia, como elemento de conexão, a lei de residência habitual do falecido1. Esse elemento de conexão favorece a circulação de riquezas, pois geralmente o centro da vida das pessoas e seu patrimônio costumam estar no seu domicílio2. Além disso, esse elemento de conexão coincide com o foro competente para lidar com a sucessão mortis causa3. É verdade que a residência habitual como elemento de conexão apresenta alguns pontos negativos. Um deles é a facilidade na sua alteração: basta o indivíduo mudar-se para outro local com ânimo definitivo. Esse caráter itinerante pode gerar um pouco de insegurança jurídica. Outro ponto negativo é que, em alguns casos concretos, é difícil determinar qual é a residência habitual. O próprio Regulamento Europeu das Sucessões reconhece esse ponto negativo; tanto que, para alguns casos, a norma comunitária permite que o juiz indique o local com o qual o falecido guardava conexão manifestamente mais estreita à luz do caso concreto4. É o que expõem os Considerandos nº 24 e 255: (24) Em certos casos, podera' ser complexo determinar a resi­ de^ncia habitual do falecido. Podera' ser esse o caso, em particular, quando o falecido, por razo~es profissionais ou econo'micas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de ai' trabalhar, por vezes por um longo peri'odo, mas tenha mantido uma relac¸a~o estreita e esta'vel com o seu Estado de origem. Nesse caso, o falecido podera', em func¸a~o das circunsta^ncias, ser considerado como tendo ainda a sua reside^ncia habitual no Estado de origem, no qual se si­ tuavam o centro de interesses da sua fami'lia e a sua vida social. Outros casos complexos podera~o igualmente ocor­ rer quando o falecido tenha vivido de forma alternada em va'rios Estados ou tenha viajado entre Estados sem se ter instalado de forma permanente em nenhum deles. Caso o falecido fosse um nacional de um desses Estados ou tivesse todos os seus principais bens num desses Estados, a sua nacionalidade ou o local onde se situam esses bens poderia ser um fator especial na apreciac¸a~o global de todas as circunsta^ncias factuais.  (25) No que diz respeito a` determinac¸a~o da lei aplica'vel a` sucessa~o, a autoridade que trata da sucessa~o pode, em casos excecionais - quando, por exemplo, o falecido se tenha mudado para o Estado da sua reside^ncia habitual muito pouco tempo antes da sua morte e todas as cir­cunsta^ncias do caso indiquem que tinha uma relac¸a~o manifestamente mais estreita com outro Estado - chegar a` conclusa~o de que a lei aplica'vel a` sucessa~o na~o devera' ser a do Estado da reside^ncia habitual do falecido, mas sim a lei do Estado com o qual o falecido tinha uma relac¸a~o manifestamente mais estreita. No entanto, a rela­c¸a~o manifestamente mais estreita na~o devera' tornar-se em fator de conexa~o subsidia'rio caso se revele complexa a determinac¸a~o da reside^ncia habitual do falecido no momento do o'bito.  Todavia, esses pontos negativos são robustamente desprezíveis se se levarem em conta as exuberantes vantagens desse elemento de conexão à criação de um espaço internacional hospitaleiro a situações jurídico-transnacionais6. Além do mais, o próprio Regulamento Europeu fornece algumas ferramentas que aliviam esses pontos negativos. É o caso, por exemplo, da supracitada autorização para o juiz afastar a lei da residência habitual do falecido em favor da lei do Estado com o qual o falecido guarde manifestamente mais estreita relação (art. 21º, nº 2, do Regulamento UE nº 650/2012). Consideramos que essa hipótese deve ser aplicada com extrema cautela, para não frustrar a legítima expectativa dos sujeitos e para não instigar empreitadas oportunistas de herdeiros que seriam beneficiados com o deslocamento da lex successionis do Estado da residência habitual para o Estado supostamente mais conexo. Outra ferramenta que alivia os pontos negativos da lex domicilii para o estatuto sucessório é o caso do professio iuris em favor da lei da nacionalidade (art. 22º, nº 1º, do Regulamento UE nº 650/2012). Há quem critique a lex patriae como elemento de conexão por implicar uma discriminação quanto à nacionalidade. Todavia, essa crítica não prospera no presente caso, pois a lex patriae só será aplicada se a parte mesmo a eleger. Nessa situação, a lex patriae não gera discriminação quanto à nacionalidade, mas sim promove a autonomia da vontade e aumenta a previsibilidade jurídica aos sujeitos. Prosseguiremos na próxima Coluna. Até lá! __________ 1 Art. 21 do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012).   2 O art. 34 do Regulamento Europeu das Sucessões admite o reenvio entre os Estados membros da União Europeia sem restrição. E acata o reenvio em favor de um Estado não membro que aplicaria a própria lei. 3 Art. 4º do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012). 4 Art. 21º, nº 2, do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012): Artigo 21.º Regra geral Salvo disposic¸a~o em contra'rio do presente regulamento, a lei aplica'vel ao conjunto da sucessa~o e' a lei do Estado onde o falecido tinha reside^ncia habitual no momento do o'bito. 2. Caso, a ti'tulo excepcional, resulte claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que, no momento do o'bito, o falecido tinha uma relac¸a~o manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplica'vel nos termos do n.º 1, e' aplica'vel a` sucessa~o a lei desse outro Estado.   5 Eur-lex, Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Data: 4 de julho de 2012-A (Disponível aqui). 6 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 135.
Na coluna anterior, encerramos tratando do Regulamento Europeu das Sucessões. Seguiremos tratando dele e avançando para outros pontos da harmonização no direito internacional europeu. 1. Sistema unitário das sucessões mortis causa na União Europeia O normativo europeu de sucessões (o Regulamento EU nº 650/2012) busca evitar que a sucessão mortis causa transnacional fique vulnerável a uma insegurança jurídica que ocorreria caso a lei de mais de um Estado membro fosse aplicável. Assim, se uma pessoa falecer deixando bens em vários Estados membros, o Regulamento Europeu das Sucessões definirá uma única lei que será aplicável para reger a transmissão mortis causa de todos os bens, independentemente da sua localização. A norma comunitária censura a fragmentação da sucessão para leis diferentes por adotar o princípio da unidade sucessória1. Esse princípio contrapõe-se ao princípio do fracionamento da lei sucessória, que é comum quando se prestigia a lex rei sitae para reger a sucessão mortis causa em detrimento da lex successionis. Aliás, o sistema da sucessão unitária (assentado no princípio da unidade da lei sucessória) é a tendência dos ordenamentos desde a segunda metade do século XX em virtude das dificuldades do sistema de fracionamento da sucessão. É o que vigora em Portugal, na Alemanha, na Áustria, na Checoslováquia, na Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Estônia etc. Foi proposto por Savigny e Mancini2. O sistema da sucessão unitária substituiu, em vários países, o sistema do fracionamento da sucessão, de origem feudal. Este último (o sistema do fracionamento da sucessão) é o sistema tradicional nos países anglo-saxões, nos influenciados pelo Código Civil napoleônico (como França, Bélgica, Luxemburgo), na Bulgária, na Lituânia e na Romênia3. O Regulamento Europeu das Sucessões, todavia, rejeitou o sistema do fracionamento da sucessão pelo fato de que a insegurança jurídica desse modelo tem o potencial de inibir a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços. Em sintonia com essa necessidade de conciliar os diversos sistemas jurídicos dos Estados membros com a vontade dos sujeitos, o Regulamento Europeu das Sucessões prestigia a autonomia da vontade, ao admitir o professio iuris em matéria sucessória4. Trataremos da professio iuris no próximo capítulo. 2. Professio iuris: escolha da lei aplicável como um prestígio à autonomia da vontade Professio iuris é a escolha da lei aplicável. Esse conceito era utilizado na Idade Média. Referia-se às manifestações de vontade das partes de um negócio quanto à lei a ser aplicada. Era termo mais utilizado em escolhas feitas em testamento para reger a sucessão mortis causa. Na Suíça do final do século XIX, esse termo foi resgatado para a escolha da lei aplicável pelo testador. A Convenção de Haia de 1989 sobre a Lei Aplicável a Sucessões mortis causa reforçou a figura e serviu de modelo a diversas outras legislações. O Regulamento Europeu das Sucessões positiva o professio iuris em matéria sucessória em favor da lei da nacionalidade5. De fato, o Regulamento Europeu das Sucessões adota, por exemplo, como elemento de conexão no caso de conflito de leis, o ordenamento da residência habitual do falecido, admitida, porém, a escolha da lei da nacionalidade (lex patriae) pelo autor da herança em testamento (arts. 21 e 22). Essa exceção representa a admissão do professio iuris em favor da lei da lei nacionalidade. O professio iuris é uma excelente alternativa para conciliar, de um lado, a autonomia da vontade dos sujeitos e, de outro lado, a importância em harmonizar os diversos ordenamentos jurídicos implicados no caldeirão jurídico da União Europeia. Permitir que as partes possam escolher o direito aplicável é lhes conceder previsibilidade jurídica e condições efetivas de planejar suas relações privadas. É nesse contexto o professio iuris6é empregado em vários domínios do direito privado europeu. Em matéria obrigacional (contratual e extracontratual), a escolha da lei aplicável é uma das colunas da normatização comunitária. É o que estatui o Regulamento Roma I7, que disciplina a lei aplicável em obrigações contratuais. A liberdade de as partes escolherem o direito aplicável é "uma das pedras angulares do sistema de normas de conflitos de leis em matéria de obrigações contratuais"8. É a mesma linha do Regulamento Roma II9, que regula a lei aplicável em obrigações extracontratuais, como a proveniente de responsabilidade civil, de enriquecimento sem causa, de culpa in contrahendo (responsabilidade civil pré-contratual) e de gestão de negócios. O professio iuris em matéria contratual e extracontratual, todavia, deve ser feita sem abuso de direito. E, por isso, os Regulamentos Roma I e Roma II estabelecem limites à escolha da lei para evitar lesões à ordem pública e prejuízos a partes vulneráveis. Por exemplo, em contratos celebrados com consumidor, a escolha da lei não pode ser feita de modo a afastar proteções de ordem pública que são garantidas ao consumidor pela lei da sua residência habitual (art. 6º, nº 2, do Regulamento Roma I10). Em resumo, quando envolver consumidor, prestigia-se a aplicação da lei mais favorável a ele por conta de sua vulnerabilidade11. No mesmo sentido, para obrigações extracontratuais, é esclarecedor o Considerando nº 31 do Regulamento Roma II, in verbis: (31) Para respeitar o princípio da autonomia das partes e reforçar a certeza jurídica, as partes deverão poder escolher a lei aplicável a uma obrigação extracontratual. Esta escolha deverá ser expressa ou demonstrada com um grau de certeza razoável pelas circunstâncias do caso. Ao determinar a existência de acordo, o tribunal deverá respeitar as intenções das partes. É necessário proteger as partes mais vulneráveis, impondo determinadas condições a esta escolha. Prosseguiremos na próxima coluna. __________ 1 Transcreva-se o Considerando 37 do Regulamento Europeu das Sucessões (Disponível aqui): (37) Para que os cidada~os possam beneficiar, com toda a seguranc¸a juri´dica, das vantagens oferecidas pelo mercado interno, o presente regulamento devera´ permitir-lhes co¬nhecer antecipadamente qual sera´ a lei aplica´vel a` sua sucessa~o. Devera~o ser introduzidas normas harmonizadas de conflitos de leis para evitar resultados contradito´rios. A regra principal devera´ assegurar previsibilidade no que se refere a` lei aplica´vel com a qual a sucessa~o apresente uma conexa~o estreita. Por razo~es de seguranc¸a juri´dica e para evitar a fragmentac¸a~o da sucessa~o, essa lei devera´ regular a totalidade da sucessa~o, ou seja, todos os bens da heranc¸a, independentemente da natureza dos bens e in¬dependentemente de estes se encontrarem situados nou¬tro Estado-Membro ou num Estado terceiro.  No mesmo sentido, os arts. 20º, 21º, n. 1, 22º, n. 1, e 23, n. 1, do Regulamento Europeu das Sucessões são incisivos em deixar claro que a lex successionis escolhida nos seus termos disciplinará "toda a sucessão", ou seja, "o conjunto da sucessão", ainda que ela não seja a lei aplicável à luz do ordenamento de algum Estado membro. Confira-se (Disponível aqui): CAPI´TULO III LEI APLICA´VEL Artigo 20.º Aplicac¸a~o universal E´ aplica´vel a lei designada pelo presente regulamento, mesmo que na~o seja a lei de um Estado-Membro.  Artigo 21.º Regra geral 1. Salvo disposic¸a~o em contra´rio do presente regulamento, a lei aplica´vel ao conjunto da sucessa~o e´ a lei do Estado onde o falecido tinha reside^ncia habitual no momento do o´bito.  2. Caso, a ti´tulo excecional, resulte claramente do conjunto das circunsta^ncias do caso que, no momento do o´bito, o fale cido tinha uma relac¸a~o manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplica´vel nos termos do nº 1, e´ aplica´vel a` sucessa~o a lei desse outro Estado.  Artigo 22.º Escolha da lei 1. Uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessa~o a lei do Estado de que e´ nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do o´bito.  Uma pessoa com nacionalidade mu´ltipla pode escolher a lei de qualquer dos Estados de que e´ nacional no momento em que faz a escolha.  2. A escolha deve ser feita expressamente numa declarac¸a~o que revista a forma de uma disposic¸a~o por morte ou resultar dos termos dessa disposic¸a~o.  3. A validade material do ato pelo qual foi feita a escolha da lei e´ regulada pela lei escolhida.  4. Qualquer alterac¸a~o ou a revogac¸a~o da escolha da lei deve preencher os requisitos formais aplica´veis a` alterac¸a~o ou a` re¬vogac¸a~o de uma disposic¸a~o por morte.  Artigo 23.º A^mbito da lei aplica´vel 1. A lei designada nos termos do artigo 21.º ou do ar¬tigo 22.º regula toda a sucessa~o.  2. Essa lei rege, nomeadamente:  a)  As causas, o momento e o lugar da abertura da sucessa~o;  b)  A determinac¸a~o dos beneficia´rios, das respetivas quotas-par¬tes e das obrigac¸o~es que lhes podem ser impostas pelo fale¬cido, bem como a determinac¸a~o dos outros direitos suces¬so´rios, incluindo os direitos sucesso´rios do co^njuge ou parceiro sobrevivo;  c)  A capacidade sucesso´ria;  d)  A deserdac¸a~o e a incapacidade por indignidade;  e)  A transmissa~o dos bens, direitos e obrigac¸o~es que compo~em a heranc¸a aos herdeiros e, consoante o caso, aos legata´rios, incluindo as condic¸o~es e os efeitos da aceitac¸a~o da sucessa~o ou do legado ou do seu repu´dio;  f)  Os poderes dos herdeiros, dos executores testamenta´rios e outros administradores da heranc¸a, nomeadamente no que respeita a` venda dos bens e ao pagamento dos credores, sem prejui´zo dos poderes a que se refere o artigo 29.o, n.os 2 e 3;  g)  Responsabilidade pelas di´vidas da sucessa~o;  h)  A quota disponi´vel da heranc¸a, a legi´tima e outras restric¸o~es a` disposic¸a~o por morte, bem como as pretenso~es que pes¬ soas pro´ximas do falecido possam deduzir contra a heranc¸a ou os herdeiros;  i)  A colac¸a~o e a reduc¸a~o das liberalidades, adiantamentos ou legados aquando da determinac¸a~o das quotas dos diferentes beneficia´rios;    j)  A partilha da heranc¸a. 2 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, p. 124. 3 PATRÃO, Afonso. A "adaptação" dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.  92, 2016, pp. 124-125. 4 Santiago Álvarez González (2009, pp. 17-49) tratou do tema antes da superveniência do Regulamento (UE) nº 650/2012 (GONZÁLEZ, Santiago Alvarez. La professio iuris y la sucesión internacional em uma futura reglamentación comunitária. In: Estudios Jurídicos em Memoria del Profesor José Manuel Lete del Rio. Civitas, Thomson Reuter e Cizur Menor, 2009, pp. 17-49) 5 Josep M. Fontanellas Morell (2010 e 2011) faz aprofundada análise dessa figura na sua obra La profesio iuris sucesoria e no artigo La Professio Iuris Sucesoria a las puertas de uma reglamentación comunitária. A expressão professio iuris é utilizada para eleição de leis em outras questões que não sucessórias, como em matéria de casamento (Baarsma, 2011, p. 68). Sobre o assunto, ver: (1) MORELL, Josep María Fontanellas. La professio iuris sucessória. Madrid/Espanha: Marcial Pons, 2010; (2) MORELL, Josep María Fontanellas. La Professio Iuris sucesoriaa las puertas de una reglamentación comunitária. In: Dereito, vol. 20, nº 2, 2011, pp. 83-129 (Disponível aqui); (3) CARRASCOSA GONZÁLEZ, Javier. El Reglamento Sucesorio Europeo 650/2012 de 4 de julio de 2002: análisis crítico. Granada: Comares, 2014; (4) CARAVACA, Alfonso-Luis Calvo. Residência habitual e lei aplicável à sucessão causa mortis internacional. In: Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito PGGDir.UFGRS. Porto Alegre, volume XI, nº 2, 2016, pp. 4-45; (5) PALAO MORENO, Guillermo. La Importancia de la autonomia de la voluntad conflictual em del derecho internacional privado de la Unión Europea. In: Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, volume 102, nº 125-130, jul./dez. 2017, pp. 77-102. 6 Embora tecnicamente o conceito de professio iuris seja empregada em matéria sucessória por conta de seu contexto histórico medieval, temos por conveniente estender seu conceito para qualquer situação de escolha de leis, como fazem alguns autores (a exemplo de: BAARSMA, N. A. The Europeanisation of International Family Law. Hague/Netherlands: Asser Press; Berlin/Germany: Springer-Verlag, 2011, p. 68). 7 Regulamento CE nº 493/2008, de 17 de junho de 2008. 8 Considerando 11 do Regulamento Roma I. 9 Regulamento CE nº 864/2007, de 11 de julho de 2007. 10 Confira-se o art. 6º do Regulamento Roma I: Artigo 6º Contratos celebrados por consumidores 1. Sem prejuízo do disposto nos artigos 5.o e 7.o, os contratos celebrados por uma pessoa singular, para uma finalidade que possa considerar-se estranha à sua actividade comercial ou profissional («o consumidor»), com outra pessoa que aja no quadro das suas actividades comerciais ou profissionais («o profissional»), são regulados pela lei do país em que o consumidor tem a sua residência habitual desde que o profissional: a) Exerça as suas actividades comerciais ou profissionais no país em que o consumidor tem a sua residência habitual, ou b) Por qualquer meio, dirija essas actividades para este ou vários países, incluindo aquele país, e o contrato seja abrangido pelo âmbito dessas actividades. 2. Sem prejuízo do n.o 1, as partes podem escolher a lei aplicável a um contrato que observe os requisitos do n.o 1, nos termos do artigo 3.o. Esta escolha não pode, porém, ter como consequência privar o consumidor da protecção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que, na falta de escolha, seria aplicável com base no n.o 1. 3. Caso não sejam cumpridos os requisitos estabelecidos nas alíneas a) ou b) do n.o 1, a lei aplicável ao contrato celebrado entre um consumidor e um profissional é determinada de acordo com os artigos 3.o e 4.o. 4. Os n.os 1 e 2 não são aplicáveis aos contratos seguintes: a) Contratos de prestação de serviços quando os serviços devam ser prestados ao consumidor exclusivamente num país diferente daquele em que este tem a sua residência habitual; b) Contratos de transporte diferentes dos contratos relativos a uma viagem organizada na acepção da Directiva 90/314/CEE do Conselho, de 13 de Junho de 1990, relativa às viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados (15); c) Contratos que tenham por objecto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel, diferentes dos contratos que têm por objecto um direito de utilização de bens imóveis a tempo parcial, na acepção da Directiva 94/47/CE; d) Direitos e obrigações que constituam um instrumento financeiro e direitos e obrigações que constituam os termos e as condições que regulam a emissão ou a oferta ao público e as ofertas públicas de aquisição de valores mobiliários, e a subscrição e o resgate de partes de organismos de investimento colectivo na medida em que estas actividades não constituam a prestação de um serviço financeiro;   e) Contratos celebrados no âmbito do tipo de sistema abrangido pela alínea h) do n.o 1 do artigo 4º 11 Confira-se o Considerando 23 do Regulamento Roma I: (23) No caso dos contratos celebrados com partes consideradas vulneráveis, é oportuno protegê-las através de normas de conflitos de leis que sejam mais favoráveis aos seus interesses do que as normas gerais.
Nas colunas anteriores, buscamos tratar didaticamente do cenário institucional e normativa da União Europeia a fim de preparar o terreno para o foco destas séries de publicações: expor o cenário de harmonização jurídica no âmbito do direito privado europeu. Voltamo-nos agora para essa meta. 1. Visão panorâmica da harmonização jurídica na União Europeia no direito privado A harmonização internacional de direitos não necessariamente depende de uma de integração regional. Esta é apenas um catalisador da harmonização, a exemplo do que se testemunha com a experiência da União Europeia. No caso da União Europeia, a harmonização jurídica no direito privado é fortemente estimulada pelos seus próprios fundamentos principiológicos, especialmente o da liberdade de circulação de pessoas, de capital e de trabalhadores1 bem como o da busca por criar um espaço de liberdade, segurança e justiça2. Para viabilizar essa liberdade, é essencial que haja uma harmonização jurídica entre os Estados membros, de modo a garantir previsibilidade e segurança jurídica aos cidadãos e ao mercado. Devem-se reduzir, ao máximo, obstáculos jurídicos que inviabilizem ou dificultem demasiadamente a referida livre circulação. Não se pretendem, com isso, eliminar as particularidades jurídicas de cada Estado membro. O TFUE é expresso em preconizar o respeito "dos diferentes sistemas e tradições jurídicos dos Estados-Membros" (art. 67º, item 1). A harmonização jurídica da União Europeia caminha não apenas em aproximar as normas de direito material e processual em direito privado, mas também em uniformizar as regras de direito internacional privado (relativamente aos conflitos potenciais entre os ordenamentos diante de situações privadas transnacionais). A doutrina costuma reportar-se a esse fenômeno na União Europeia como "europeização do direito internacional privado"3. Na verdade, o fenômeno vai além do direito internacional privado. A europeização é de todo o direito privado. Não se trata apenas de resolver potenciais conflitos entre os ordenamentos diante de situações transnacionais ou de harmonizar situações processuais (competência jurisdicional, cooperação judiciária etc.). Busca-se, também, propiciar aos sujeitos um espaço jurídico que abrange nações com ordenamentos, ao máximo, próximos, para assegurar segurança jurídica nos processos de circulação de pessoas, capital e serviços4. Alcança os próprios direitos privados domésticos, com aproximação da regulamentação. No âmbito do direito privado, a harmonização jurídica da União Europeia focou mais o direito contratual do que propriamente os direitos reais5. Em um primeiro momento, os órgãos legislativos da União Europeia concentraram-se em direito do consumidor para resolver problemas mais pontuais. Houve várias diretivas nesse âmbito, como: a) Diretiva 85/577, de 20 de dezembro6: protege o consumidor em compras a distância; b) Diretiva 90/314, de 13 de junho7: trata de viagens combinadas. A livre circulação de pessoas, de capital e de serviços no âmbito da União Europeia intensificou as relações jurídico-privadas transfronteiriças. Por consequência, aumentou o esforço por alcançar uma maior definição das regras de direito internacional privado e das regras comunitárias para dar segurança jurídica aos sujeitos. Entre as várias questões jurídicas de direito internacional privado e de direito comunitário, estão as que tocam a harmonização internacional dos direitos reais, a qual esmiuçaremos mais à frente. A harmonização jurídica na União Europeia tem avançado de modo expressivo, especialmente pela abundância de edição de Regulamentos e Diretivas em diversas matérias de direito privado. A aproximação dos ordenamentos jurídicos dos Estados membros em matéria de direito privado é essencial para viabilizar a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços. Sem previsibilidade e clareza do direito que será aplicado para reger as relações privadas, os sujeitos ficão acuados a praticar atos jurídicos transfonteiriços. 2. Regulamento Europeu das Sucessões mortis causa Foi nesse contexto que, por exemplo, a União Europeia editou o Regulamento Europeu das Sucessões: o Regulamento UE nº 650/2012. A referida norma comunitária buscou dar clareza e previsibilidade jurídicas às sucessões mortis causa transfronteiriça. Sem esse ambiente normativo previsível e seguro, os sujeitos seriam inibidos a exporem-se a relações jurídicas privadas internacionais. Se o sujeito não tem clareza sobre como será a sucessão mortis causa caso ele tenha bens em outros países ou caso ele se mude do seu país de origem, a tendência é que esse fato seja um entrave à circulação transnacional. É nesse sentido que o Regulamento Europeu das Sucessões nasceu, pois, conforme seu Considerando nº 7: (7) É conveniente facilitar o bom funcionamento do mercado interno suprimindo os entraves a` livre circulac¸a~o de pessoas que atualmente se defrontam com dificuldades para exercerem os seus direitos no a^mbito de uma sucessa~o com incide^ncia transfronteiric¸a. No espac¸o europeu de justic¸a, os cidada~os devem ter a possibilidade de organizar antecipadamente a sua sucessa~o. E' necessa'rio garantir eficazmente os direitos dos herdeiros e dos legata'rios, das outras pessoas pro'ximas do falecido, bem como dos credores da sucessa~o.  Essa preocupação já estava presente desde quando o Regulamento Europeu das Sucessões era apenas um projeto. Em 2009, no Documento de Trabalho dos Serviços da Comissão, foi realçada a elevada importância em haver uma harmonização das regras sucessórias no espaço europeu8. Segundo o referido documento, em 2009, o volume patrimonial envolvido em sucessões mortis causa na União Europeia chegava a 646 bilhões de euros por ano. Estima-se que cerca de 10% desse volume dizem respeito a sucessões transnacionais. Sem uma regra sucessória de harmonização, o volume de bens que poderiam ficar fora do mercado por transtornos jurídicos em matéria sucessória seria expressivo. Os indivíduos seriam desencorajados a realizar relações privadas transnacionais pela insegurança jurídica da partilha de seus bens situados em outros países. Ter regras sucessórias claras e harmonizadas para sucessões transnacionais é um fundamental para alcançar a livre circulação de pessoas, de capital e de serviços. O Regulamento Europeu das Sucessões centra-se em definir apenas questões transnacionais estritamente de direito sucessório, como a definição de quem são os sucessores e o modo de repartição do acervo hereditário. Foca essas questões sob o aspecto de conciliar os diversos ordenamentos jurídicos da União Europeia. Em suma, ele trata de três questões básicas diante de situações jurídicas transfronteiriças: (1) competência jurisdicional internacional; (2) conflitos de leis no espaço; e (3) forma de reconhecimento e de execução de decisões estrangeiras9. Na próxima Coluna, prosseguiremos tratando do tema. __________ 1 Reportamo-nos especialmente ao Título II do TFUE, que trata da livre circulação de mercadorias (arts. 28º e 29º) e ao Título IV, que lida com a livre circulação de pessoas, serviços e capitais (arts. 45º a 66º) do TFUE. 2 Remetemo-nos ao Título V do TFUE, que trata do fato de a União Europeia ser um espaço de liberdade, segurança e justiça. 3 Nesse sentido: (1) JAEGER JUNIOR, Augusto. Europeização do Direito Internacional Privado: caráter universal da lei aplicável e outros contrastes com o ordenamento jurídico brasileiro. Curitiba: Juruá, 2012; (2) RIBEIRO, Geraldo Rocha. A Europeização do Direito Internacional Privado e Direito Processual Internacional: algumas notas sobre o problema da interpretação do âmbito objetivo dos regulamentos comunitários. In: Revista Julgar, nº 23, maio/agosto 2014, pp. 265-292 (Disponível aqui). 4 Gustavo Ferraz de Campos Monaco e Rui Manuel Moura Ramos coordenaram uma obra destacando diversos aspectos da unificação europeia do direito internacional privado: "Aspectos da Unificação do direito internacional privado" (MOURA RAMOS, Rui Manuel Gens de; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos (Coord.). Aspectos da Unificação europeia do direito internacional privado. São Paulo: Intelecto, 2016). 5 MORENO, Hector Simón. El processo de armonización de los derechos reales em Europa. Valência/Espanha: Editora Tirant, 2013, p. 23. 6 JO nº L 31, número 372, de 31 de dezembro de 1985. 7 JO nº L23, número 158, de 23 de junho de 1990. 8 Eur-lex, Documento De Trabalho Dos Servic¸os da Comissa~o que acompanha a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo a` compete^ncia, a` lei aplica'vel, ao reconhecimento e execuc¸a~o das deciso~es e dos actos aute^nticos em mate'ria de sucesso~es e a` criac¸a~o de um certificado sucesso'rio europeu. Data: 14 de outubro de 2009 (Disponível aqui). 9 Essas três questões básicas de direito internacional privado em matéria de sucessão foram disciplinadas em um único regulamento: o Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento UE nº 650/2012). Não se deu o mesmo em matéria obrigacional. O legislador comunitário fragmentou a disciplina em três regulamentos. Um foi para disciplinar forma de reconhecimento e execução de atos estrangeiros: Regulamento UE nº 1.215/2012. Outros dois para disciplinar as questões de competência jurisdicional internacional e de conflitos de lei no espaço em matéria de obrigações contratuais (Regulamento Roma I, ou seja, Regulamento nº 593/2008) e de obrigações extracontratuais (Regulamento Roma II, ou seja, Regulamento UE nº 864/2007).
Na Coluna anterior, lidamos com a jurisprudência comunitária europeia e com o modo de pesquisa a atos e a precedentes da União Europeia. Prosseguiremos hoje expondo os princípios fundamentais da União Europeia, o que é fundamental para compreendermos o modo como a harmonização jurídica europeia ocorre no direito privado. 1. Principais princípios fundamentais da União Europeia O direito comunitário é assentado em alguns princípios fundamentais, muito dos quais foram expostos e consolidados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)1. Destacam-se, entre eles: (1) o princípio do efeito direito do direito comunitário; (2) o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito interno; e (3) o princípio da responsabilidade de um Estado membro em relação aos particulares. O princípio do efeito direto do direito comunitário estabelece que o direito comunitário tem de ser observado pelos Estados membros independentemente de qualquer ato de internalização. Daí decorre que os particulares podem invocar o direito comunitário perante as jurisdições domésticas, seja em demandas contra outros particulares (efeito direto horizontal), seja em demandas contra o próprio Estado membro (efeito direto vertical). Esse princípio foi introduzido pelo TJUE no acórdão Vand Gend & Loor (1963). Nesse caso concreto, os Países Baixos estavam desrespeitando um Tratado da Comunidade Econômica Europeia (CEE) que proíbe o aumento de cobrança de direitos aduaneiros. O TJUE censurou essa postura neerlandesa, assentando que o referido tratado do direito comunitário tem efeito direto nos Estados membros. Com isso, o TJUE livrou a empresa Van Gend & Loor da cobrança indevida2. A aplicação do princípio do efeito direito do direito comunitário depende do tipo de ato envolvido. Atos não vinculantes, como os pareceres e as recomendações, não possuem efeito direto. Regulamentos, por outro lado, possuem efeito direto, pois são vinculantes, conforme art. 288º do TFUE3. Diretivas, em algumas situações, possuem efeito direto contra o Estado membro (efeito direto vertical) que permaneceu inerte durante o prazo pertinente nas hipóteses em que as disposições da Diretiva eram incondicionais e suficientemente claras e precisas4. Decisões têm efeito direto nos Estados membros que forem expressamente designados5. Acordos internacionais, em alguns casos, também tem efeito direto em razão de sua força vinculante6.  O princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional consiste no fato de as normas domésticas não poderem suplantar as normas comunitárias. Cabe, assim, ao Poder Judiciário doméstico e a todas as demais instâncias domésticas observar plenamente o direito comunitário e deixar de aplicar as normas domésticas contrárias, inclusive as normas constitucionais7. Esse princípio foi introduzido pelo TJUE em 1964, no acórdão Costa. Nesse julgado, o TJUE analisou uma consulta do Poder Judiciário italiano e estabeleceu que uma lei italiana sobre nacionalização do setor de energia elétrica não poderia prevalecer sobre um tratado da Comunidade Econômica Europeia. Embora não haja nenhum dispositivo específico sobre o referido princípio nos Tratados da UE, trata-se de princípio fundamental reconhecido pelo TJUE. O princípio da responsabilidade de um Estado membro em relação aos particulares estatui que os particulares têm direito a serem indenizados contra o Estado membro por violação às normas comunitárias. Entre as hipóteses de violação, está a hipótese de omissão do Estado membro em adaptar a legislação interna a uma diretiva da União Europeia, especialmente quando o exercício do direito do particular dependa dessa prévia adaptação. Entendeu a Corte comunitária que, sem esse direito de indenização contra o Estado, a plena eficácia do direito da União seria enfraquecida Esse princípio foi implantado pelo TJUE em 1991 no acórdão Francovich. No caso concreto, a Itália havia se omitido em transpor, para o direito interno, uma diretiva que protegia trabalhadores no caso de insolvência patronal. Dois obreiros obtiveram, por conta disso, direito a indenização contra o Estado por terem sofrido prejuízos com a insolvência do seu patrão e com a morosidade na regulamentação doméstica da referida diretiva8. Na próxima coluna, prosseguiremos cuidando do tema. __________ 1 Ver: (1) Curia, Tribunal de Justiça. Disponível aqui; e (2) Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui.) 2 Para aprofundamento, com menção a outros dois acórdãos do TJUE (o acórdão Becker e o acórdão Kaefer e Procacci contra o Estado francês), ver: Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui). 3 Confira-se: Artigo 288.o (ex-artigo 249.o TCE) Para exercerem as competências da União, as instituições adotam regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres. O regulamento tem caráter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros. A diretiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios. A decisão é obrigatória em todos os seus elementos. Quando designa destinatários, só é obrigatória para estes. As recomendações e os pareceres não são vinculativos. 4 Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível em aqui). 5 Para aprofundamento (com citação do acórdão Hansa Fleisch contra Landrat des Kreises Schleswig-Flensburg), ver: O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui). 6 Eur-lex, O efeito direto do direito da União Europeia. Publicado em 21 de outubro de 2021 (Disponível aqui) (em que se reporta ao acórdão Demirel contra Stadt Schwäbisch Gmünd). 7 Ver: (1) FARINHAS, Carla. O princípio do primado do direito da união sobre o direito nacional e as suas implicações para os órgãos jurisdicionais nacionais. In: Julgar, nº 35, 2018 (Disponível aqui; e (2) Curia, Tribunal de Justiça. Disponível aqui. 8 Ver: Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 19 de novembro de 1991: Andrea Francovich, Danila Bonifaci e outros vs República Italiana. Data: 19 de novembro de 1991 (Disponível aqui; e (2) Curia, Tribunal de Justiça. Disponível aqui.
Na coluna anterior, tratamos das Diretivas e dos Regulamentos como principais normas da União Europeia. Prosseguiremos hoje cuidando da jurisprudência produzida no âmbito do Tribunal de Justiça da União Europeia e indicaremos como o leitor pode fazer pesquisas de atos e precedentes. 1. Tribunal de justiça da união europeia O Tribunal de Justiça da União Europeia1 (TJUE ou apenas Tribunal de Justiça) é composto por 27 juízes, com uma estrutura tripartida de órgãos fracionários de julgamento: (1) Tribunal Pleno; (2) Grande Seção; e (3) Seções2. Há ainda o Tribunal Geral da União Europeia, que está associado ao TJUE e que aprecia causas específicas, especialmente as de iniciativa de particulares3. O principal tipo de processo julgado pelo Tribunal de Justiça é processo de reenvio prejudicial. Os principais julgados em matéria de Direito Privado costumam decorrer desses processos. O reenvio processual consiste em consultas feitas pelos órgãos jurisdicionais dos Estados membros sobre a interpretação adequado do direito comunitário4. Dá-se quando o Poder Judiciário local depara-se com uma fundada dúvida acerca de qual seria a mais adequada interpretação de um ato normativo comunitário. Nesse caso, para evitar divergência de interpretação das normas comunitárias entre os Estados membros, o Poder Judiciário sobresta o julgamento do caso concreto e consulta o Tribunal de Justiça da União Europeia sobre essa questão jurídica prejudicial. Há outros processos examinados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, como: a) Ação por incumprimento: é precedido de um procedimento perante a Comissão, e a legitimidade ativa ad causam é da Comissão ou de um Estado membro. Essa ação volta-se a suspeitas de violações do direito comunitário por outros Estados membros. b) Recurso de anulação: veicula pretensão de anulação de atos de órgãos da própria União Europeia, como um regulamento ou uma diretiva. A legitimidade recursal é dos Estados membros ou de particulares5. c) Ação por omissão: volta-se contra persistência em postura omissiva por parte de órgãos da União Europeia após provocação6. d) Recursos de decisão do Tribunal de Geral: só para questões de direito e volta-se contra acórdãos ou despachos do Tribunal Geral. Em suma, o sistema de justiça da União Europeia é dividido em dois âmbitos: os sistemas nacionais (constituídos pelo Poder Judiciário de cada Estado membro) e o sistema da União Europeia (representado pelo TJUE). Os julgados do TJUE possuem uma importância crucial no sistema jurídico comunitário. Diversos julgados estão na raiz da estrutura jurídica da União Europeia, respaldando regras e valores comunitários estruturais. Por exemplo, a propósito do direito à livre circulação de mercadorias, o acórdão Cassis de Dijon (1979) é uma referência. Nesse julgado, o TJUE assegurou aos comerciantes o direito de importar de outros países produtos, salvo se estes forem ilegais ou contrários à proteção da saúde ou do meio ambiente7. Sobre o direito à livre circulação de pessoas, há diversos julgados emblemáticos. No acórdão Kraus (1993), o TJUE estabeleceu que a homologação de diplomas estrangeiros tem de limitar-se à conferência meramente formal, destinada a investigar a fidedignidade do documento. No acórdão Bosman (1995), no acórdão Deutscher Handballbund (2003) e no acórdão Simutenko (2005), foram consideradas descabidas regras domésticas que impediam a transferência de jogadores ou que limitasse o número de estrangeiros em clubes de futebol, inclusive em relação a outros países que, embora não integrem da União Europeia, mantenham acordos internacionais. Em relação ao direito à livre circulação de serviços, destacam-se três julgados. O acórdão Cowan (1989) consagra o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, admitindo a um cidadão britânico que foi espancado em um metrô na França o direito a ser indenizado como qualquer cidadão francês. O acórdão Kohll (1998) assegurou a um cidadão luxemburguês o direito a que uma caixa de assistência de saúde de Luxemburgo8 reembolse despesas médicas efetuadas em outros Estados membros9. Entendimento diverso seria um injusto entrave à livre circulação de serviços. O acórdão Decker (1998) segue a mesma linha. Censurou a recusa da supracitada caixa de assistência de saúde de Luxemburgo a reembolsar as despesas com a aquisição de óculos em outro Estado membro. No tocante à igualdade de tratamento e direitos sociais, reportamo-nos a três julgados. O acórdão Defrenne (1976) fixou o princípio da igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos pelo mesmo trabalho e, com isso, concedeu razão a uma obreira cuja remuneração era inferior por causa do seu gênero. O acórdão Brown (1998) reputou ilegal a despedida de trabalhadora por faltas resultantes da gravidez, pois tal representaria uma discriminação por gênero. O acórdão Bectu (2001) censurou a legislação britânica que afastava o direito a férias anuais pagas para contratos de trabalho de curta duração. Em direitos fundamentais, há também acórdãos do TJUE. É o caso do acórdão Johnston (1986), que, em nome do direito fundamental à igualdade, censurou ato estatal que proibia mulheres policiais de portarem armas. Em matéria de cidadania, o acórdão Zhu e Chen (2004) estabelece que o direito do cidadão da União em residir em qualquer Estado membro estende-se também a crianças, ainda que sua mãe seja nacional de um país alheio à União Europeia. 2. Nomenclatura (direito comunitário ou direito da união?) e Como fazer pesquisas por atos comunitários O Alguns esclarecimentos adicionais calham. O primeiro diz respeito a uma questão taxonômica. As expressões "direito da União" e "direito comunitário" devem ser consideradas sinônimas. A rigor, a última expressão era mais adequada antes da criação da União Europeia, quando havia uma Comunidade Econômica Europeia. Todavia, o uso das expressões como sinônimas mesmo após esse marco segue vigente na literatura jurídica. O segundo é para esclarecer o modo de busca de atos produzidos no seio do direito comunitário. Para encontrar os atos normativos, precedentes e outros atos oficiais da União Europeia, convém algumas explicações operacionais. Em suma, é viável realizar buscas por palavras-chave ou acessar diretamente o Jornal Oficial da União Europeia (JO), tudo no site oficial mantido pela própria União Europeia: o site EUR-lex. Tomemos como exemplo este ato: Diretiva 85/577, de 20 de dezembro, a qual foi publicada no JO nº L 31, número 372, de 31 de dezembro de 1985. Na catalogação das diretivas, o primeiro número reporta-se ao ano e a parte final indica o dia e o mês. No caso acima, a Diretiva é de 20 de dezembro de 1985. O segundo número indica a numeração sequencial do ato. A supracitada Diretiva é a de nº 577. O seu interior teor pode ser obtido por consulta no supracitado site EUR-lex. Há duas formas de encontrar o ato nesse site. A primeira é, ao buscar os atos jurídicos, indicar as palavras-chave cabíveis. No caso acima, basta informar o ano e o número da Diretiva no campo próprio para obter o produto. A segunda forma de pesquisa é clicar, no supracitado site, no campo do Jornal Oficial da União Europeia (JO) e buscar o ato na edição pertinente do JO. O JO corresponde ao que, no Brasil, conhecemos como "Diário Oficial". Nele são publicados todos os atos oficiais dos órgãos da União Europeia, tanto os normativos (como as diretivas) quanto os jurisprudenciais (como as decisões do Tribunal de Justiça) ou outros de natureza divesa (como comunicações). Cada edição do JO recebe uma numeração. No caso acima, o número do JO em que foi publicado a supracitada Diretiva é 372. Dentro da edição do JO, o ato a ser publicado é identificado por uma letra e um número. As letras correspondem às séries do JO, que são principalmente duas: (1) "L", quando se tratar de legislação; (2) "C", quando se cuidar de comunicações e informações. O número corresponde à página. Assim, no exemplo acima, a supracitada diretiva é identificada como L 31, porque integra a série de "legislação" e está na página 31 da edição do JO. Em resumo, no exemplo acima, a Diretiva está na página 31 da série "Legislação" do JO nº 372, publicado em 31 de dezembro de 1985. Na próxima coluna, prosseguiremos cuidando do tema. Até lá! __________ 1 Site. Não se pode confundir com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), fruto da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Este integra o Conselho da Europa, que é organismo diferente da União Europeia. 2 Na sistemática de julgamento, não há espaço para votos vencidos. O juiz relator faz um projeto de acórdão. Qualquer juiz pode propor alteração. E só esse acórdão final é publicado, com a assinatura dos juízes que estiveram presentes na deliberação oral. 3 A rigor, o Tribunal de Justiça da União Europeia é dividido em duas jurisdições: o Tribunal de Justiça strcito sensu e o Tribunal Geral. Em termos de nomenclatura, a expressão "Tribunal de Justiça" é utilizada ora em alusão ao TJUE, ora em referência ao que chamamos de Tribunal de Justiça stricto sensu. Até 2016, havia também o Tribunal da Função Pública, mas, com sua extinção, as suas atribuições reverteram-se para o Tribunal Geral. 4 Conforme realçaremos mais abaixo, utilizaremos a expressão "direito comunitário" como sinônima de "direito da União" em virtude de tal emprego seguir sendo utilizada por doutrinadores em geral. 5 A competência será do Tribunal Geral se o recurso for de um particular. 6 Em alguns casos, a competência é do Tribunal Geral. 7 Curia, Tribunal de Justiça. Disponível aqui. 8 Essa caixa de assistência de saúde é estatal. 9 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 28 de abril de 1998: Raymond Kohll vs Union des caisses de maladie. Data: 28 de abril de 1998 (Disponível aqui. Acesso em 8 de abril de 2022).
Na coluna anterior, expusemos conceitos gerais da União Europeia e de sua estrutura institucional. Prosseguiremos hoje cuidando dos principais órgãos e das principais fontes normativas do bloco europeu, tudo com olhos em permitir a compreensão da harmonização jurídica do direito privado na Europa. Principais normas do Direito da União Europeia: regulamentos, diretivas e precedentes do Tribunal de Justiça da União Europeia O Conselho da União Europeia1 (ou apenas Conselho) é a principal instância decisória. É composto por ministros dos Estados membros, cujos votos possuem pesos diferentes a depender da sua bandeira. Além de outras competências2, o Conselho exerce o papel de legislador, gerando os atos normativos comunitários. Em geral, essa competência legislativa é exercida em conjunto com o Parlamento Europeu, mais especificamente quando for aplicável o processo legislativo ordinário. Quando, porém, se trata de aplicação do processo legislativo especial, o Conselho, sozinho, é quem exerce a função de legislador. Esclareça-se que o Parlamento Europeu3 exerce um papel de colegislador com o Conselho nos processos legislativos ordinários e um papel meramente consultivo no processo legislativo especial, além de outras atribuições4. Não tem competência para iniciativa legislativa: esta é da Comissão Europeia5. É composto por parlamentares eleitos pelos cidadãos dos Estados membros. Os principais atos normativos da União Europeia são estes6: a) Regulamento: é ato legislativo vinculante em todos os Estados membros; b) Diretivas: é ato legislativo que estabelece um objetivo geral aos Estados membros. Cabe a cada Estado membro editar normas domésticas para cumprir o objetivo das diretivas. No acórdão van Duyn vs. Home Office e no acórdão Ratti, o TJUE admitiu que a diretiva possa ser aplicada diretamente contra o Estado membro a pedido do particular no caso de omissão legislativa doméstica diante de uma diretiva com regras incondicionais e claras7. As questões de direito privado tratadas na União Europeia costumam ser veiculadas nesses dois atos normativos, além dos atos jurisdicionais do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Diretivas da União Europeia A propósito do efeito vinculante das diretivas, convém deitar holofotes nos dois julgados supracitados. O primeiro é o caso van Duyn vs. Home Office. Este decorreu de consulta feita ao TJUE (então, Tribunal de Justiça apenas) em 1974 pela Chancery Division da High Court of Justice da Inglaterra para interpretação do direito comunitário. Tratava-se de caso relacionado à livre circulação de trabalhadores. No caso concreto, o Reino Unido recusou a entrada de uma cidadã neerlandesa (a Sra. Ivonne van Duyn) para trabalhar de secretária na Church of Scientology. O motivo da recusa é o fato de o Reino Unido considerar a atividade da referida organização como de perigo social. A diretiva 64/221/CEE, todavia, estabelece que a negativa de ingresso de pessoas com fundamento na ordem ou segurança públicas só pode basear-se em comportamento pessoal do próprio indivíduo. Trata-se de regra destinada a limitar a discricionariedade das autoridades domésticas em matéria de entrada e expulsão de estrangeiros. Nesse caso, como a regra da referida diretiva não demanda nenhum ato posterior dos Estados membros por conta de sua clareza e pela falta de qualquer condicionante, o TJUE reconheceu-lhe efeito direto e vinculante contra o Reino Unido8. No supracitado caso Ratti, o TJUE assentou que, se o prazo de adaptação da legislação interna a uma diretiva expirar, o Estado membro não pode aplicar suas regras domésticas contrariamente a um particular que tenha cumprido os requisitos da diretiva, mesmo em questões de direito penal. No caso concreto, o cidadão italiano Tullio Ratti havia sido incriminado com base em lei penal italiana que exigia a indicação, na rotulagem dos produtos, da presença de determinadas substâncias (benzeno, tolueno e xileno). Acontece que, à época dos fatos, o referido cidadão havia cumprido as exigências da Diretiva nº 73/173, de 3 de julho de 1973, e da Diretiva nº 77/728, de 7 de novembro de 1977, às quais a legislação italiana não se havia adaptado apesar do transcurso do pertinente prazo. Com base nisso, o TJUE entendeu que nenhum cidadão pode ser punido com base em uma lei penal doméstica que, mesmo após a consumação do pertinente prazo de adaptação, permanece incompatível com diretivas9. Há outros julgados que reforçam a existência de efeito vinculante a diretivas com regras claras que independem de regulamentação. No acórdão Francovich, por exemplo, o TJUE esclareceu que o fato de os Estados membros terem liberdade para definir o modo como adaptará a legislação interna às diretivas não afasta o direito de os particulares invocarem direitos incondicionados previstos de modo claro na diretiva10. Na próxima Coluna, seguiremos tratando do tema. Até lá. __________ 1 Site. 2 O Conselho da União Europeia também coordena as políticas dos Estados membros, elabora política externa e de segurança da União Europeia com base nas orientações do Conselho Europeu, celebra acordos da União Europeia com países terceiros ou organismos internacionais e adota o orçamento da União Europeia em conjunto com o Parlamento Europeu. 3 Site. 4 O Parlamento Europeu também emite pareceres sobre relatórios da Comissão, do Banco Central, além de manifestar-se consultivamente em outras questões e de colaborar com parlamentos nacionais. 5 Para aprofundamento, ver: EUROPARL. O poder legislativo. Disponível aqui. 6 Há, ainda, as Decisões (que só vincula os seus destinatários em específico), as Recomendações (que não vinculam) e os Pareceres (que também não são vinculantes). 7 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 4 de Dezembro de 1974, Processo nº 41/74: Yvonne van Duyn vs Homme Office. Data: 4 de dezembro de 1974 (Disponível aqui). 8 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 4 de Dezembro de 1974, Processo nº 41/74: Yvonne van Duyn vs Homme Office. Data: 4 de dezembro de 1974 (Disponível aqui). 9 Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 5 de abril de 1979, Processo nº 148/78: Ministerio Fiscal vs Tullio Ratti. Data: 5 de abril de 1979 (Disponível aqui). 10 Segue este excerto do sumário do acórdão Franovich: "A faculdade de um Estado-membro destinatário de uma directiva escolher entre uma multiplicidade de meios possíveis com vista a atingir o resultado estabelecido pela mesma não exclui a possibilidade de os particulares invocarem perante os órgãos jurisdicionais nacionais os direitos cujo conteúdo pode ser determinado com precisão suficiente apenas com base nas disposições da directiva." (Eur-lex, Acórdão do Tribunal de Justiça, de 19 de novembro de 1991: Andrea Francovich, Danila Bonifaci e outros vs República Italiana. Data: 19 de novembro de 1991 (Disponível aqui).
1. Introdução Uma das fontes importantes para estudos de Direito Comparado em Direito Privado é o europeu, seja pela herança de tradição jurídica brasileira, seja pela semelhança de muitos dos problemas sociais contemporâneos a serem enfrentados pelo Direito Privado. Este artigo objetiva expor o cenário de harmonização de Direito Privado Europeu, com foco na experiência ocorrida no âmbito da União Europeia. Começaremos por expor um breve histórico e a estrutura institucional da União Europeia. a fim de que o leitor conheça as principais formas de produção jurídica do direito comunitário europeu. Em seguida, trataremos das experiências europeias de harmonização jurídica comunitária no direito privado. Com essas noções, o leitor terá maior suporte para erguer reflexões úteis para o Direito Privado Brasileiro, conferindo o que de proveitoso podemos importar, respeitando-se, obviamente, as nossas particularidades. 2. Breve histórico da União europeia A União Europeia é o bloco mais avançado em termos de integração internacional. Com sua estrutura institucional e normativa robusta, caminha para avançar mais a ponto de haver quem atualmente mencione a existência do conceito de cidadania europeia1. A sua motivação não foi apenas por conveniência econômica. Colaborou também a proximidade dos valores históricos e culturais dos Estados membros, que compartilham de valores de matriz greco-romana, judaico-cristã e iluminista. Contribuiu, igualmente, a busca pela paz, tendo em vista um histórico povoado de conflitos armados entre as nações europeias. Após a II Guerra, as movimentações destinadas à integração da Europa recrudesceram. Em 1944, Bélgica, Holanda e Luxemburgo criaram uma zona de livre comércio e de união aduaneira, formando o bloco Benelux2. Em 1949, foi criado o Conselho da Europa, que atualmente desempenha o papel de promover a democracia e defesa dos direitos humanos3. Não se confunde com a União Europeia. Vários Estados-Membros do Conselho da Europa sequer integram a União Europeia. Em 1951, foi criada a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) por meio do Tratado de Paris. Por causa dela, os Estados membros eram obrigados a seguir as decisões da CECA em matéria de produção de carvão e aço. Os Estados membros, portanto, abriram mão de parte de sua soberania em favor dessa instância supranacional, o que representa um dos mais marcantes antecedentes históricos da União Europeia. Em 1957, foi criada a Comunidade Econômica Europeia (CEE) por meio do Tratado de Roma4 (que era conhecido pela sigla TCE em alusão ao seu epíteto Tratado da Comunidade Europeia), destinada a viabilizar a formação de uma nova etapa de integração regional: a do mercado comum. No mesmo ano, também foi criada a Comunidade Europeia de Energia Atômica (CEEA ou EURATOM), destinada ao uso pacífico da energia nuclear, especialmente para alcançar uma independência energética. A EURATOM segue vigente e não se confunde com a União Europeia. Foi da CEE que veio a nascer a União Europeia, que representa uma etapa mais avançada de integração regional: união econômica e monetária. A União Europeia, inicialmente, foi fruto do Tratado da União Europeia, também conhecido como Tratado de Maastrich ou pela sigla TUE (1992). Esse tratado foi posteriormente alterado pelo Tratado de Amsterdam (1997) e pelo Tratado de Nice (2001) até vir a sofrer uma grande reforma com Tratado de Lisboa (2009). Atualmente, as bases normativas da União Europeia foram decisivamente alcançadas pelo Tratado de Lisboa5 (2009), que é conhecido como o Tratado de Reformador. Ele alterou o TUE (o Tratado de Maastrich) e o Tratado de Roma (o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia). Este último, inclusive, recebeu um novo nome de batismo: Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). Portanto, o TFUE (antigo Tratado de Roma) e o TUE, com as alterações feitas pelo Tratado de Lisboa, são as principais bases normativas da União Europeia. São o Direito da União6. São "os Tratados", nas palavras do item 2 do art. 1º do TFUE7. O TFUE e o TUE não podem ser considerados uma Constituição, porque a União Europeia não é um Estado soberano. Ela é uma organização intergovernamental representantiva de uma forma avançada de integração regional. Todavia, "os Tratados" dão a estrutura e os fundamentos da União Europeia, assemelhando-se, ainda que parcialmente, a uma Constituição. Essas normas são utilizadas, entre outros fins, para guiar decisões em processos julgados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. A União Europeia abrange 27 Estados membros. O mapa abaixo dá uma visão geográfica dos Estados membros da União Europeia, com a ressalva de que a Islândia (Ireland) suspendeu, por tempo indeterminado, seu pedido de adesão ao bloco e, portanto, não é um membro atual8: 3. Estrutura Institucional A União Europeia é formada por 8 principais órgãos9: a) Parlamento Europeu - PE; b) Conselho Europeu10; c) Conselho da União Europeia (ou simplesmente Conselho); d) Tribunal de Justiça da União Europeia; e) Comissão Europeia11 (ou simplesmente Comissão); f) Tribunal de Justiça da União Europeia (ou simplesmente Tribunal de Justiça); g) Banco Central Europeu - BCE12; h) Tribunal de Contas Europeu (ou simplesmente Tribunal de Contas)13; Além desses órgãos, há outros, como o Comitê Econômico e Social (CESE)14 e o Comitê das Regiões, os quais auxiliam os trabalhos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão. Para nosso estudo, importa-nos mais os órgãos incumbidos da produção de normas e precedentes em matéria de direito privado, a saber: o Conselho da União Europeia, o Parlamento Europeu e o Tribunal de Justiça da União Europeia. Continuaremos a tratar do tema na próxima coluna. Até lá! __________ 1 PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Diretios Humanos e de Direito Comunitário. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 1322. 2 O nome do bloco decorre das iniciais dos nomes dos países integrados: BElgique, NEderland e LUXembourg. 3 Site do Conselho da Europa. 4 Esse tratado foi posteriormente rebatizado como Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). 5 TRATADO DE LISBOA. Publicação: 17 de dezembro de 2007 (Disponível aqui). 6 Há quem também inclua o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia da Energia Atômica (CEEA). Deixamos, porém, de problematizar o tema por conta de sua falta de pertinência com o objeto do nosso estudo, que é o direito privado. 7 Art. 1º do TFUE: Artigo 1.º O presente Tratado organiza o funcionamento da União e determina os domínios, a delimitação e as regras de exercício das suas competências. 2. O presente Tratado e o Tratado da União Europeia constituem os Tratados em que se funda a União. Estes dois Tratados, que têm o mesmo valor jurídico, são designados pelos termos "os Tratados". 8 CERKESAS, Evaldas. Cross Border Cases Under European Small Claim Procedure And European Order For Payment. Publicado em 24 de outubro de 2021 (Disponível aqui). Sobre o perfil dos países integrantes da União Europeia, ver seu site oficial.  9 Artigos 223º ao 287º do TFUE e art. 13 do TUE. 10 O Conselho Europeu não é instituição legislativa, ao contrário do Conselho da União Europeia. Cabe-lhe definir orientações e prioridades da União Europeia. É composto pelos chefes de Estado ou de Governo dos Estados membros, além do presidente do Conselho Europeu e do presidente da Comissão Europeia. Site oficial do Conselho Europeu.  11 A Comissão Europeia é órgão executivo da União Europeia e toma decisões sobre o rumo político. Ela tem o monopólio para a iniciativa normativa. Site oficial. 12 O BCE cuida da política monetária da União Europeia. 13 O Tribunal de Contas fiscaliza as finanças da União Europeia. 14 O CESE, além emitir relatórios e pareceres, organiza eventos anuais para participação da sociedade civil.
1. Introdução Inauguramos hoje a Coluna Migalhas de Direito Privado Estrangeiro, com um objetivo claro: compartilhar questões interessantes de outros países e de entidades transnacionais em Direito Civil, em Direito Notarial e Registral. As publicações serão quinzenais, às terças-feiras, com eventuais edições extraordinárias em outros dias. Já mantemos iniciativas similares em outras plataformas, como no perfil @direitoprivadoestrangeiro no Instagram. Esperamos que, nesta Coluna, o leitor encontre espaço para conhecer mais o que acontece fora de nosso território. Não se trata de mera curiosidade. Conhecer experiências jurídicas estrangeiras abre-nos a criatividade, seja para formular novas teses jurídicas em processos judiciais, seja para discutir mudanças legislativas, seja para compreender mais adequadamente os fundamentos do nosso Direito. Hoje o objetivo é tratar de uma fonte importante para estudos de direito privado estrangeiro: o soft law. Os advogados, o legislador, os magistrados, enfim, os operadores do Direito em geral brasileiros podem valer-se dessa ferramenta para guiar debates sobre questões jurídicas práticas. No Brasil, já conhecemos instrumentos de soft law, como os enunciados das Jornadas de Direito Civil1 e os da I Jornada De Direito Notarial e Registral2, os quais - apesar de não serem vinculantes - guiam os operadores do Direito. 2. Soft Law e os estudos de Direito Privado Estrangeiro O soft law (também chamado de soft norm, droit doux, direito flexível e direito plástico) consiste em regras não vinculantes adotadas em foros internacionais, como os fornecidos por institutos privados. Apesar de não terem força vinculante, essas regras de soft law guiam os negócios privados e as instituições jurídicas locais (especialmente o Parlamento e o Judiciário) para manter um ambiente de harmonização internacional de direitos. Podem, por exemplo, ser escolhidas pelas partes como a regra aplicável a um contrato. Podem guiar câmaras arbitrais no julgamento. Servem de parâmetro pelo Poder Judiciário nacional. O soft law consegue ter certa força orientadora por espelhar os costumes e os princípios gerais do direito, os quais costumam ser fontes dos ordenamentos jurídicos dos países. Os costumes refletem uma prática generalizada (elemento material do costume) acompanhada de uma opinio iuris (elemento subjetivo). A opinio iuris é a convicção acerca da juridicidade daquela prática generalizada3. Dentro do conceito de soft law, podem-se incluir normas vinculantes com um conteúdo aberto ou programático, marcado pela sua flexibilidade: uma espécie de direito flexível4. Não estamos, porém, a tratar dessa acepção5. Aqui estamos a focar a acepção do soft law como um quase-direito. Abrange, por exemplo, instrumentos não obrigatórios formalmente produzidos por organismos privados ou estatais. Alcança, inclusive, o gentlemen's agreement (acordo de cavalheiros), oriundo da doutrina anglo-saxã e que consiste em compromissos não obrigatórios que expressam uma diretriz dos Estados em concerto. Memorandos de entendimentos, declarações, declarações conjuntas, declarações das grandes conferências internacionais, atas finais, agendas, programas de ações, recomendações, acordos não vinculantes (non-binding agreements) e leis-modelo são, no plano internacional, nomes que são empregados a instrumentos que podem designar exemplos de soft law. É preciso, porém, tomar cuidado. Por vezes, esses nomes (com ressalva óbvia do termo "acordos não vinculantes") reportam-se a instrumentos vinculantes, escapando do conceito de soft law. É preciso olhar o caso concreto. No direito privado, um exemplo de soft law são os princípios Unidroit6 relativos aos Contratos Comerciais Internacionais7. Não se trata de uma convenção internacional internalizada por Estados. Não há caráter vinculante. Entretanto, os referidos princípios Unidroit guiam a prática do comércio internacional e orientam interpretações a serem feitas da legislação doméstica e internacional, pois refletem um topoi (um lugar comum) jurídico. São utilizados em arbitragem ou como lei escolhida pelas partes em contratos8. Há até decisões dos Poderes Judiciários domésticos valendo-se dos princípios Unidroit. O próprio preâmbulo dos Princípio Unidroit, ao tratar de seu âmbito de aplicação, reconhece que, apesar de não ostentar uma força vinculante formal estatal, gaba-se de uma força de fato em guiar contratos, leis (domésticas e internacionais), jurisprudência e doutrina9. Os princípios Unidroit caminham para ser uma espécie de "Restatements10 internacional dos princípios gerais de direito dos contratos"11. Aliás, as próprias partes podem eleger, em contratos, a aplicação dos princípios do Unidroit (ou outras normas não estatais), ao menos no âmbito da União Europeia, respeitadas as particularidades das normas comunitárias europeias e as normas domésticas12. Há importantes organizações internacionais privadas e intergovernamentais que trabalham na edição de leis uniformes ou de instrumentos de soft law, na elaboração de convenções internacionais e na promoção de práticas de harmonização internacional, especialmente em direito privado. Em suma, é importante sempre conhecer os principais instrumentos de soft law produzidos por instituições públicas e por respeitadas instituições privadas. No Brasil, os enunciados das Jornadas de Direito Civil e da I Jornada de Direito Notarial e Registral são exemplos de ferramentas de soft law muito utilizadas. Convém também que outras ferramentas de soft law desenvolvidas no âmbito transnacional também frequentem os debates de Direito Privado. Todavia, cabe um alerta: esse debate há de realizado com maturidade, ciente de que esses instrumentos de soft law, embora expressem o entendimento de juristas renomados de diversos países, não necessariamente representam uma unanimidade na comunidade jurídica: não são "verdades absolutas". Chamamos a atenção para estes instrumentos de soft law em direito privado no âmbito transnacional: a) Draft Common Frame of Reference (DCFR), também conhecido como Projeto de Código Civil Europeu ou como projeto de Quadro Comum de Referência, o qual foi desenvolvido no âmbito da União Europeia13. b) Principles of European Contract Law (PECL), fruto do trabalho, em três estágios, da Comissão Europeia de Direito Europeu dos Contratos envolvendo renomados juristas (comissão essa que ficou conhecida como Lando Commission, em referência ao jurista Ole Lando, tido como o criador e o presidente da comissão). As partes I e II foram publicadas em 1995 e 1999; a Parte III, em 200314. c) os Princípios do Unidroit sobre Contratos Comerciais Internacionais, cuja última versão é de 201615; d) Lei Modelo de Leasing do Unidroit16; e) Convenção do Unidroit sobre Leasing Financeiro Internacional17 (UNIDROIT Convention on International Financial Leasing)18. f) Princípios sobre escolha da lei aplicável em contratos comerciais internacionais, da HCCH (sigla de Hague Conference on Private International Law; em francês, Conférence de La Haye de droit international privé; ou, em português, Conferência da Haia de Direito Internacional Privado)19. g) Lei Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional da Uncitral (sigla de United Nations Comission on International Trade Law ou, em português, Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional da ONU)20; h) Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da OEA - Organização dos Estados Americanos (Model Inter-American Law On Secured Transactions)21; i) Lei Modelo de Garantias Mobiliárias da Uncitral (UNCITRAL Model Law on Secured Transactions)22. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Ver: (1) NASSER, Salem Hikmat. Fontes e normas do direito internacional: um estudo sobre a soft law. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 70-74, 92-93 e 156-157; (2) MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Forense, 2018Mazzuoli, 2018, pp. 213-214. 4 NASSER, Salem Hikmat. Fontes e normas do direito internacional: um estudo sobre a soft law. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 97-140. 5 Paulo Henrique Gonçalves Portela dá didática definição (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: Incluindo Noções de Direitos Humanos e de Direito Comunitário. Salvador: JusPodivm, 2021, pp. 80-81):  O conceito foi desenvolvido pela doutrina norte-americana, em oposição à noção de hard law, que se refere ao Direito tradicional. No Brasil, Nasser define soft law como um conjunto de "regras cujo valor normativo seria limitado, seja porque os instrumentos que as contêm não seriam juridicamente obrigatórios, seja porque as disposições em causa, ainda que figurando em um instrumento constringente, não criariam obrigações de direito positivo ou não criariam senão obrigações pouco restringentes". O autor aponta ainda as seguintes modalidades de soft law:  - normas, jurídicas ou não, de linguagem vaga e de conteúdo variável ou aberto, ou, ainda, que tenham caráter principiológico ou genérico, impossibilitando a identificação de regras claras e específicas;  - normas que prevejam mecanismos de soluções de controvérsia, como a conciliação e a mediação;  - atos concertados entre os Estados que não adquiram a forma de tratados e que não sejam obrigatórios; atos das organizações internacionais que não sejam obrigatórios; - instrumentos produzidos por entes não estatais que consagrem princípios orientadores do comportamento dos sujeitos de Direito Internacional e que tendam a estabelecer novas normas jurídicas.  (...) Em suma, o soft law inclui preceitos que ainda não se transformaram em normas jurídicas ou cujo caráter vinculante é muito débil, ou seja, "com graus de normatividade menores que os tradicionais", como afirma Soares. Com isso, é comum que as regras de soft law tenham caráter de meras recomendações. (...) Exemplos relevantes de documentos internacionais que podem ser considerados como de soft law são a Declaração Universal dos Direitos Humanos, as declarações de organismos internacionais referentes à saúde pública (como a Declaração de Alma-Ata e a Declaração de Cartagena), as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Lei Modelo sobre Arbitragem Internacional, a Carta Democrática Interamericana, as Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em condição de Vulnerabilidade e a Declaração Sociolaboral do Mercosul. Independentemente do caráter de fonte do Direito Internacional de que se revista ou não o soft law, é inegável a influência dos diplomas que têm esse formato no atual quadro do Direito das Gentes e da Ciência Jurídica como um todo. O soft law vem servindo, por exemplo, como modelo para elaboração de tratados e de leis internas, como parâmetro interpretativo, como pauta de políticas públicas e de ação da sociedade civil e como reforço da argumentação para operadores do Direito. (...) Cabe destacar que a própria jurisprudência dos tribunais brasileiros vem mencionando alguns desses documentos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Princípios Yogyakarta. (...) A respeito do emprego da Declaração Universal dos Direitos Humanos nos julgamentos do Pretório Excelso, e a título de mero exemplo, ver os seguintes julgados do STF: ARE 639.337 AgR/SP e ADC 29/DF. A respeito do emprego dos princípios de Yogyakarta nos julgamentos do Pretório Excelso, ver os seguintes julgados: RE 477.554 AgR/MG, ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF. 6 Unidroit é a International Institute for the Unification of Private Law ou Institut International pour l'unification du droit privé). Trata-se de uma organização intergovernamental, composta por 63 Estados membros. 7 Sobre os princípios do Unidroit em arbitragem internacional, ver: KUGUIMIYA, Luciana Lie. Os princípios do UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais na arbitragem internacional. Publicado em 1 de abril de 2021 (Disponível aqui. Acesso em 2 de março de 2022). 8 KUGUIMIYA, Luciana Lie. Os princípios do UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais na arbitragem internacional. Publicado em 1 de abril de 2021 (Disponível aqui. Acesso em 2 de março de 2022). 9 Segue o inteiro teor do dispositivo: PREÂMBULO (O objetivo dos Princi'pios) Estes Princi'pios estabelecem regras gerais para contratos comerciais internacionais. Devem ser aplicados caso as partes tenham acordado que o seu contrato sera' regulado por eles.(*) Podem ser aplicados caso as partes tenham acordado que o seu contrato sera' regulado por princi'pios gerais de direito, pela lex mercatoria, ou similares. Podem ser aplicados caso as partes na~o tenham escolhido nenhuma lei para regular o seu contrato. Podem ser usados para interpretar ou suplementar instrumentos internacionais de direito uniforme. Podem ser usados para interpretar ou suplementar leis nacionais. Podem servir de modelo para legisladores nacionais e internacionais. 10 A referência é aos Restatements of the Law, espécies de tratados que reúnem princípios gerais do common law para auxiliar os operadores do Direito nos EUA. São espécies de consolidação da jurisprudência. Assemelham-se às súmulas dos tribunais, com a diferença de que não são oriundas de órgão estatal. Os Restatements são publicados pela entidade privada American Law Institute (ALI), criada em 1923. Há quatro Restatements, os quais subdivididos em vários volumes conforme o conteúdo. Por exemplo, o Restatement of the Law Third possui volumes relativos a repsonsabilidade civil, a hipotecas (mortgages), a servidões (servitudes), a enriquecimento ilícito (restitution and unjust enrichment) etc.  (Romano, 2017; Texas Law, 2022). O site oficial da American Law Institute disponibiliza, para venda, os volumes. Recomendamos leitura destes artigos: (1) ROMANO, Rogério Tadeu. O restatement of the law dos norte-americanos. Publicado em maio de 2017 (Disponível aqui. Acesso em 10 de fevereiro de 2022); (2) TEXAS LAW. Restatements of the law. Disponível aqui. Acesso em 19 de abril de 2022. 11 Princípios Unidroit relativos aos contratos comerciais internacionais 2016. Ano: 2016, p. 28 (Disponível aqui). 12 A propósito, o item 13 dos Considerandos do Regulamento Roma I (Regulamento CE nº 593/2008) dispõe: 13 O presente regulamento não impede as partes de incluírem, por referência, no seu contrato, um corpo legislativo não estatal ou uma convenção internacional." 13 A versão completa em inglês intitula-se Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Há uma versão completa (full edition) e uma versão resumida está disponível na Internet. LAW KUELEUVEN. Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law: Draft Comoon Frame Of Reference (DCFR). Ano: 2009 (Disponível aqui). 14 Ver: (1) LANDO, Ole; CLIVE, Eric; PRÜM, André; ZIMMERMANN, Reinhard. Principles of European Contract Law, Part III. The Hague/Netherlands; London/UK; New York/EU: Kluwer Law International, 2003; (2) HESSELINK, Martijn W. The Principles of European Contract Law: some choices mande by the Lando Commission. In: Global Jurist Frontiers, vol. 1, nº 1, 2011 (Disponível aqui). 15 Unidroit, 2016. Disponível neste site. 16 Unidroit Model Law on Leasing. Ano: 2010 (Disponível aqui). 17 DUARTE, Rui Pinto. A Convenção do Unidroit sobre Locação Financeira Internacional - tradução e notas. In: Documentação e Direito Comparado, nº 35/36, 1988 (Disponível aqui). 18 UNIDROIT Convention on International Financial Leasing. Ano: 1988 (Disponível aqui). 19 É uma organização intergovernamental com 83 membros (82 Estados e a União Europeia). Foi fundada em 1893. Seu escopo é promover a progressiva unificação das regras de direito internacional privado. Quanto aos princípios relativos à escolha de lei aplicável aos contratos comerciais internacionais, ele está disponível neste site. 20 UNCITRAL. Lei Modelo da UNCITRAL sobre Arbitragem Comercial Internacional 1985 com as alterações adotadas em 2006. Ano: 2006. 21 Organization of American States, 2013. Para aprofundamento, reportamo-nos a: (1) SILVA, Fábio Rocha Pinto e. Garantias das Obrigações: uma análise sistemática doo Direito das Garantias e uma proposta abrangente para a sua reforma. São Paulo: Editora Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP, 2017; (2) RODAS, João Grandino. Facilitar o uso de garantias mobiliárias incrementaria a economia. Publicado em 4 de junho de 2020. 22 UNCITRAL Model Law on Secured Transactions. Ano: 2019 (Disponível aqui).