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Mudanças à vista na política de convivência familiar?

terça-feira, 8 de março de 2022

Atualizado às 07:41

Em meio a pandemia, que já está em seu terceiro ano, os atores governamentais e não governamentais parecem não ter percebido a publicação do Decreto 10.570, de 09 de dezembro de 2020, que "Institui a Estratégia Nacional de Fortalecimento dos Vínculos Familiares e o seu Comitê Interministerial"1.

O objeto desse decreto se relaciona com um tema mais amplo que é o direito da criança e do adolescente à convivência familiar e comunitária, regulada pelo art. 227 da Constituição, no art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente e no art. 20 da Convenção sobre Direitos da Criança (Decreto n. 99.710/1990).

As previsões constitucional e legal serviram de base para que a partir de 2004 o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) iniciassem um debate sobre políticas públicas sobre o direito da criança e do adolescente ao direito à convivência familiar e comunitária. As discussões foram realizadas pelas esferas federativas e entre elas e a sociedade civil e resultaram na publicação do "Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária"2 no final de 2016.

Além da articulação entre governo e sociedade civil, é marcante nesse Plano Nacional a definição de família como processo social, histórico, transgeracional e interindividual; a aplicação da doutrina da proteção integral e que crianças e adolescentes são titulares de direitos; o reconhecimento da multiplicidade de vínculos familiares no país; e, o reconhecimento da importância da comunidade no desenvolvimento de crianças e adolescentes.

O decreto governamental de 2020 rompe com a articulação que é prevista na Constituição e no Estatuto ao tratar de infância e adolescência e impõe, "de cima para baixo", a revisão de uma parcela da política pública sobre convivência familiar. Enquanto entre 2004 a 2006, os Conselhos de Direitos foram os protagonistas e organizadores dos debates, o Governo atribui a alguns dos Ministérios a formulação de uma nova agenda pública sobre convivência familiar.

De acordo com o decreto, farão parte do Comitê para discutir a política de fortalecimento de vínculos familiar apenas o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a Casa Civil, Ministério da Educação, Ministério da Cidadania e Ministério da Saúde.

As diretrizes entre o Plano Nacional e o decreto são igualmente significativas: o Plano estabelece como parâmetros a centralidade da família nas políticas públicas, primazia da responsabilidade do Estado no fomento de políticas integradas de apoio á família, reconhecimento das competências da família na sua organização interna e na superação de suas dificuldades, espeito à diversidade étnico-cultural, à identidade e orientação sexuais, à equidade de gênero e às particularidades das condições físicas, sensoriais e mentais, fortalecimento da autonomia da criança, do adolescente e do jovem adulto na elaboração do seu projeto de vida, garantia dos princípios de excepcionalidade e provisoriedade dos Programas de Famílias Acolhedoras e de Acolhimento Institucional de crianças e de adolescentes, reordenamento dos programas de Acolhimento Institucional e adoção centrada no interesse da criança e do adolescente. O decreto, por sua vez, estabelece como diretrizes a valorização das funções sociais da família, baseada em relações de reciprocidade, responsabilidade e solidariedade entre os seus membros, o reconhecimento e o apoio às funções desempenhadas pela família, o fortalecimento do valor da maternidade e da paternidade responsáveis e do cuidado e da convivência familiar e comunitária, a promoção do equilíbrio entre o trabalho e a família, o esforço para que as ações governamentais respeitem o projeto familiar no que se refere ao acesso ao trabalho, ao planejamento familiar, à maternidade e à paternidade, inclusive por adoção, à parentalidade e à proteção de pessoas idosas e de pessoas com deficiência, a promoção de uma cultura de valorização da infância e da adolescência como fases peculiares do desenvolvimento, de reconhecimento e de apoio do papel dos pais ou responsáveis em relação às necessidades e aos direitos da criança e do adolescente, a fim de fortalecer o papel parental e a centralidade da família, o reconhecimento do valor social do trabalho doméstico e de cuidado como essenciais para o desenvolvimento da família e da sociedade, o fortalecimento das redes de apoio às famílias e dos vínculos comunitários e a valorização das iniciativas da sociedade civil na promoção da qualidade dos vínculos familiares e comunitários, a disseminação das informações e a capacitação dos agentes públicos acerca da formulação e da avaliação de políticas públicas na perspectiva do fortalecimento dos vínculos familiares, e o reconhecimento e o respeito aos usos e costumes dos povos e comunidades tradicionais e de outras realidades socioculturais, observados o princípio da dignidade da pessoa humana e os seus direitos fundamentais.

Em cumprimento ao decreto, o Comitê Interministerial publicou em 30 de dezembro de 2021 a Resolução n. 013, que aprova o Plano de Ações da Estratégia Nacional de Fortalecimento de Vínculos Familiares, com 40 metas que não se comunicam com o Plano Nacional e revelam uma clara retirada do Estado do seu papel de formulador e executor de políticas em favor da infância e a entrega ao âmbito privado da família dessa função. E isso sem nenhuma articulação com as esferas estaduais e municipais e com entidades privadas.

Essa mudança pode parecer uma forma de valorizar o papel da família, mas precisamos ter cuidado no impacto socioeconômico que o decreto representa, pois isso também irá significar em médio e longo prazo na diminuição da esfera de proteção das famílias e de seus membros pela assistência e saúde públicas.

Um segundo risco nas diretrizes elencadas no decreto pode ser o aumento da violação de direitos da criança, incluindo situações de violência física, psicológica, emocional e sexual, uma vez que a intenção é a redução das políticas e equipamentos de acompanhamento de famílias em situação de risco.

Tome-se, como exemplo, as metas 09 e 16. A primeira pretende incluir a "temática do equilíbrio trabalho-família no Plano Nacional de Ação sobre Empresas e Direitos Humanos", sem a participação do Ministério do Trabalho nessa ação pública e indicando que a produtividade no emprego formal é tão importante quanto a observância da legislação trabalhista. Dizendo de outra forma, a métrica da produção ganha mais relevância do que a proteção à infância e ao trabalhador, duas áreas em que a vulnerabilidade são mais intensas e onde a proteção às pessoas deveria ser prioritária.

A meta 16 trata de "estratégia de fortalecimento das famílias como ambiente de prevenção e apoio para pessoas vitimadas" (sic). Vitimadas pelo quê? Por fatores externos ou internos? E se a violência foi intrafamiliar, como sujeitar a criança e o adolescente a manter-se na família que deu causa à violência?

Com certeza um tema que merece ser acompanhado para compreender de que forma a nova política federal irá impactar nos direitos de crianças e adolescentes.

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1 https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.570-de-9-de-dezembro-de-2020-293224898

2 https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Plano_Defesa_CriancasAdolescentes%20.pdf

3 https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-1-de-30-de-dezembro-de-2021-371529589