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A monetização dos filhos, exploração do trabalho infantil e danos psicológicos

Denise Auad e Gabriel Altino Alati Callegari

terça-feira, 22 de março de 2022

Atualizado em 21 de março de 2022 16:03

Raros foram os momentos em que foi possível afirmar que a economia brasileira alcançou um patamar agradável de estabilidade, na verdade, muito mais comum é a noção de uma constante crise e o desequilíbrio entre os preços e o salário. Por essa razão, muitas vezes o brasileiro se vê obrigado a buscar trabalhos alternativos para complementar a renda da sua família.

Com a revolução tecnológica e a extrema popularização das plataformas de mídia social, como YouTube, Instagram, Facebook e, mais recentemente, o TikTok, o brasileiro notou que a atividade de criação de conteúdos tem o potencial de complementar a fonte de renda da família, e mais, até mesmo de se tornar sua principal fonte de renda, graças ao que é conhecido como monetização.

Mas... e quando o criador de conteúdo é uma criança ou um adolescente? Os influencers mirins atendem uma demanda de consumo de um público bastante expressivo nas plataformas de mídia sociali: o público infantil. Vale ressaltar que, após a adoção do ensino à distância como medida de contenção da pandemia de covid-19, a busca por conteúdos destinados ao público infantil aumentou em proporções sem precedentesii.

A atuação de crianças e adolescentes nas plataformas de mídia social levanta discussões que podem ser conduzidas a partir de diversos pontos de vista, desde o tratamento de seus dados, conforme o art. 14 e §§ da LGPD, até riscos sobre a exposição da imagem e sua violação, conforme o art. 5°, X, da CF/88 e art. 21 do CC. Porém, uma abordagem que apenas recentemente está tomando forma é a da exploração do trabalho infantil e dos possíveis danos psicológicos que a atividade de criador de conteúdo pode causar às crianças e aos adolescentes.

A exploração do trabalho infantil dos influencers mirins parte exatamente daqueles que mais deveriam zelar pelo seu desenvolvimento saudável e bem-estar, seus pais ou responsáveis. Como o público infantil monopoliza grande parcela das plataformas de mídia social, o conteúdo produzido para este público preenche muito mais rápido os requisitos de engajamento e número de visualizações para conseguir a monetização.

Dessa forma, muitos pais têm incentivado - para não dizer obrigado - seus filhos a produzir conteúdo para as mídias sociais, instrumentalizando crianças e adolescentes, por meio do que é conhecido como sharenting, visando a alcançar um público maior e assim obter maiores remunerações de monetização, sendo que existem casos em que o sucesso do influencer mirim é grande o suficiente para que ele se torne o arrimo da família.

Quais os possíveis danos que a atividade de influencer pode causar a uma criança ou adolescente? Por mais que exista o clamor de que ela não passa de uma atividade de lazer, os números relacionados à monetização apontam para uma realidade diferente, ou seja, trata-se de uma forma de trabalho bastante rentável, um novo empreendedorismo envolto em um pretexto artístico.

Em primeiro lugar, a atuação da criança e do adolescente como influencer mirim ou criador de conteúdo não é adequada por ocorrer, majoritariamente, em ambiente doméstico, sendo que a noção de intimidade e vida privada pode ser afetada, além de prejudicar a compreensão do lar como um local de convívio familiar, descanso, aprendizado, segurança e afeto.

Também é relevante considerar o tempo da jornada de trabalho do influencer mirim, na medida em que, ao ser realizada em casa, dificulta a identificação do início e do fim do seu horário de trabalho, sendo necessário destacar que o conteúdo final que é postado nas plataformas de mídia social representa apenas uma parcela do tempo gasto para a sua produção.

Há, por consequência, um aumento significativo do tempo gasto pela criança ou adolescente em frente às telas de smartphones e computadores. Nesse sentido, especialistas têm alertado para o fato de que uma exposição prolongada nas telas e no ambiente virtual diminui a capacidade de atenção de crianças e adolescentes, especialmente quando o conteúdo criado e consumido são vídeos curtos (entre 15 e 20 segundos), que se popularizaram com o TikTokiii, o que, inclusive, prejudica a capacidade de manter a atenção no ambiente escolar.

A monetização também tensiona de forma negativa as relações familiares, pois, quando são os próprios pais a explorar os filhos enquanto criadores de conteúdo, a relação deixa de ser regida pelo afeto e passa a se assemelhar mais com uma relação de emprego, pautada na subordinação dos filhos às metas que os pais impõem.

Assim, cria-se um ambiente permeado pelo risco da exposição, que possibilita a prática de comentários negativos, interações de ódio e discriminação, manipulação e cyberbullying, situações que podem causar ansiedade, depressão e até mesmo o suicídio de crianças e adolescentes. Além disso, a falta de segurança e controle sobre o conteúdo postado nas plataformas pode facilitar sua distorção e a ocorrência de crimes como a pedofilia e a pornografia.

Por fim, o conteúdo postado nas plataformas pode produzir dados cuja utilização desrespeite o melhor interesse da criança e do adolescente. Por mais que a LGPD possua previsões para a proteção desses dados e por mais que a ANDP os tenha classificado como de alto riscoiv, ainda não existe clareza sobre as medidas que serão tomadas para efetivar estes direitos. Assim, por mais que as plataformas exijam o acompanhamento dos pais dos influencers mirins, isso não resolve o problema quando os próprios pais exploram o trabalho dos filhos.

Esta breve exposição apenas arranha a superfície dos danos que a atuação de crianças e adolescentes como criadores de conteúdo pode causar ao seu desenvolvimento psicológico e emocional. É, portanto, uma forma de trabalho que, se não for protegida e limitada pelo Direito, torna-se inadequada e prejudicial ao desenvolvimento humano.

Em 2020, a França publicou uma lei na tentativa de combater este problema. Trata-se da Lei 2020-1266v, que, dentre outras coisas, reconheceu a atividade dos influencers mirins como trabalho, diferenciando-a de uma atividade de lazer. A norma também definiu que os rendimentos auferidos pelo influencer mirim deveriam ser depositados em uma espécie de poupança, além de ter previsto maior fiscalização estatal sobre o desempenho da criança e do adolescente no ambiente on-line. Entretanto, pela complexidade do problema, é possível questionar se a solução francesa de fato representa uma regulamentação suficiente para a situação. Aproximando a solução proposta pela França à realidade brasileira, uma alternativa seria enquadrar a atividade do influencer mirim como trabalho infantil artístico, nos moldes do art. 149 do ECA. Ainda assim, mais medidas jurídicas precisam ser desenvolvidas para o enfrentamento desta realidade.

Para que uma futura regulamentação do tema seja efetiva e atenda aos direitos da criança e do adolescente, garantindo sua proteção integral e priorizando seu desenvolvimento saudável e sua educação, é necessária uma compreensão muito mais profunda dos danos que esta atividade pode causar. Estudiosos do Direito ainda estão se debruçando sobre a temática, sendo que o momento, na esfera jurídica, ainda é muito precoce para sugerir uma solução que de fato seja efetiva.

Em linhas gerais, para uma visão clara dos riscos desta atividade, é necessário recordar que a criança e o adolescente estão em condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, são vulneráveis e necessitam de proteção especial. Além disso, suas prioridades nem sempre serão as mesmas que a de seus pais. Portanto, na infância e juventude, é preciso brincar e estudar, com a garantia de pleno reconhecimento de sua posição como sujeitos de direitos.

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i Disponível aqui.

ii Disponível aqui

iii Disponívwl aqui

iv Disponível aqui

v Disponível aqui