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O Levantamento Nacional do SINASE e o "perfil" do adolescente autor de ato infracional

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Atualizado às 15:39

Passados seis anos desde a realização do último Levantamento Nacional do SINASE, em dezembro passado, foi divulgado pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, dados oficiais pertinentes ao atendimento socioeducativo no país, neste caso, em especial, ao meio fechado.

Aqui, importante abrir um parêntese para suscitar que o adolescente que comete ato infracional deve ser compreendido como um sujeito em processo peculiar de desenvolvimento (ECA, 1990, art. 6º), que se encontra em contextos político, social, familiar, econômico, cultural e histórico específicos, onde a transgressão figurou como meio de resposta aos impasses e tensões vivenciadas.

Neste sentido, por ser considerado um sujeito em desenvolvimento, como apontado acima, e descrito como ser em busca de sua autonomia, o adolescente está mais propenso a transgredir e a se opor às tradições impostas pela sociedade, às normas culturais a eles imputadas, potencializando deste modo, a ameaça à ordem civilizatória impostas a todos os indivíduos adultos na sociedade.

Portanto, para compreender aquele que se envolve em condutas infracionais, é necessário levar em consideração, dentre outros aspectos, os fatores de risco que estão relacionados à entrada no mundo infrator, nos quais se apontam algumas variáveis importantes, como: elevada vulnerabilidade; tendência à exclusão social; situações de negligência e abandono; pobreza; criminalidade e violência na família, na escola, na comunidade e na sociedade em geral; e abuso de substâncias psicoativas.

O cometimento de um ato infracional não é explicado pela presença isolada de um fator adverso, mas sim, através da complexa cadeia de eventos da trajetória do jovem (Costa e Assis, 2006), que pode refletir a frágil condição da infância e da juventude no cenário mundial.

As trajetórias de vida dos adolescentes aos quais se atribui a prática de atos infracionais evidenciam a sua invisibilidade no âmbito das políticas públicas, identificada por meio do não-acesso a elas ou na sua desqualificação quanto ao reconhecimento das reais necessidades do sujeito e produção de respostas adequadas.

Em uma realidade de exclusão e de negação dos direitos, de desigualdade social e de ausência de oportunidades, de falta de expectativas sociais e a desestruturação das instituições públicas, o adolescente influenciado pela ideia de desejo e de consumo, passa a buscar, muitas vezes, na ilicitude, a resposta para a superação de sua realidade. Uma vez inserido em um sistema que o excluí, busca no meio ilícito, um lugar de aceitação, pertencimento e reconhecimento (COSTA, 2005).

Segundo o art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o ato infracional é uma conduta comparável ao crime ou contravenção penal. Crime é toda infração penal que se caracteriza com a conduta tipificada pela lei penal como ilícita ou antijurídica, passível de punição. Contravenção penal, possui as mesmas características, porém, com menor gravidade.

Os atos infracionais cometidos por adolescentes constituem um fenômeno complexo em virtude das múltiplas causas envolvidas. Por isso, requer uma visão mais integral, que possa considerar aspectos da pessoa e dos seus diferentes contextos de inserção, especialmente a família (Nardi e Dell'Aglio, 2012), tendo em vista que o envolvimento com o ato infracional corresponde apenas a um dentre outros agravos que compõem o quadro de vulnerabilidade dos jovens (Costa e Assis, 2006).

O crime é um acontecimento na vida do adolescente, e olhar para o ato infracional exclusivamente inviabiliza a compreensão sobre a motivação pela prática daquela conduta, da forma como se desconsidera a sua história pessoal, que gera sentido para o ato infracional.

O levantamento do perfil de adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional apresenta indicadores de que, em algum momento de sua vida pregressa ou de seu desenvolvimento enquanto sujeito de direitos, estaria em condições de vulnerabilidade e, ou, risco social, inseridos em núcleos familiares pertencentes às camadas mais pobres da sociedade, sem ou com algum indicio de uso ou abuso de álcool e, ou, outras drogas, em baixa escolaridade (ou em distorção série-idade), quando não, exclusos do sistema educacional e, em sua maioria, negros.

Mas, a fim de evitar quaisquer generalizações, cabe desde logo, salientar que, embora os dados nos levem a este perfil, é importante mencionar que nem todo adolescente negro, morador periférico, pobre é ou está envolvido no meio infracional. Entretanto, este perfil, historicamente, pertence a um grupo de pessoas que foi excluido socialmente no Brasil e, como sabido, a exclusão social está dentre um dos fatores de vulnerabilidade que interfere na ressocialização e socioeducação de adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional.

Os dados do último levantamento demonstram que houve uma redução no numero de adolescentes cumprindo medidas de privação de liberdade (semiliberdade, internação, internação provisória e internação-sanção), correspondendo a aproximadamente, 11.556 (dados apresentados até 30 de junho de 2023), ao passo de que em 2017, eram 24.803 adolescentes.

Destes 11.556, apenas 4,21% correspondem a meninas cisgênero (461), ou seja, a prevalência na incidência no cometimento de ato infracional, tal como descrito em 2017, continua sendo masculina (cerca de 11.167 - meninos cisgênero). Do total, 117 adolescentes eram PCD's, 241 adolescentes encontravam-se gestantes e, ou, com filhos e 55 meninos com filhos.

Relativo à incidência infracional, diferentemente do meio fechado, a maior incidência é de ato infracional tipificado como tráfico de drogas, seguido de roubo e furto (no meio fechado, a prática de roubo supera ao de tráfico).

Aqui, se faz importante abrir um parêntese, para talvez justificar a maior incidência da prática infracional de ato equiparado ao crime de tráfico de drogas que, o referido crime embora sua hediondez, não dá ensejo por si só, a aplicação de medida socioeducativa em meio fechado, embora muitos magistrados ainda assim, entendem de forma diversa, por não apresentar violência ou grave ameaça à pessoa (requisitos estes presentes no art. 122, ECA, para justificar a aplicação da medida mais gravosa, no caso, internação). Neste sentido, após a impetração de alguns habeas corpus1, o ato infracional de tráfico de drogas passou a ser motivo para o ensejo das medidas em meio aberto, tanto Liberdade Assistida, quanto Prestação de Serviços à Comunidade.

É importante suscitar que o tráfico de drogas, conforme a OIT, é considerado uma das piores formas de exploração de trabalho infantil e, merece um olhar diferenciado frente aos demais atos infracionais, pois para além da venda da droga, estamos diante da criminalização dos pobres e da juventude e das próprias estratégias de sobrevivência dessa população. Embora não seja este o enfoque que queremos dar, a questão do tráfico, muitas vezes, está interligada às questões de classes sociais e raça, para tanto, basta observarmos a dinâmica do aprisionamento e criminalização desta juventude.

Também importante mencionar que, diferentemente do que é debatido em sociedade, que ainda defende a coercitividade e a punição como resposta ao crime, e muitas vezes defendido na mídia (sensacionalista), os números de casos de atos infracionais relacionados aos crimes contra a vida, são ínfimos. E, independentemente de ser medida em meio aberto ou fechado, o próprio levantamento do SINASE, já aponta números baixos de crimes contra a vida na internação. Majoritariamente, os adolescentes são apreendidos ou por cometimento de ato infracional - crime contra o patrimônio (roubo, furto) ou por envolvimento no tráfico de drogas (associação ao tráfico, tráfico ou porte de drogas).

As práticas infracionais, às quais nos referimos, são muitas vezes, justificadas em pesquisas, pelo viés consumerista que já retratamos acima e, as motivações, tantos dos meninos, quanto das meninas são muito similares. Surgem como os principais fatores para o ingresso nessa prática delitiva: alcançar a visibilidade social, conquistar uma posição que lhe permita o exercício do poder, ganhos financeiros, além de status e possibilidades de ostentação de bens materiais e de consumo.

No que tange à raça, embora seja o Brasil, um país de uma diversidade étnica racial, o ingresso no Sistema Socioeducativo, continua sendo predominantemente de adolescentes que se declaram de cor parda ou preta, sendo estes 63,8% do total de ingressos, contra 22,3% daqueles que se declaram brancos, o que nos suscita a importância de refletirmos sobre como o racismo também impacta de maneira significativa o atendimento socioeducativo no país e, principalmente, debater a respeito da seletividade penal, punitivismo e criminalização das classes, consideradas ainda "perigosas" pela sociedade.

Muito embora queiramos desvincular a questão econômica ou de classe social da incidência de atos infracionais, 19,1% dos adolescentes, estão inseridos em famílias com renda de até 1 salário-mínimo, e 58,9% de famílias que sobrevivem de atividades informais ou sem qualquer renda. Estes adolescentes, ou são oriundos de centros urbanos (30,1%) ou de regiões periféricas (26,7%).

Em relação a outros dados relevantes, temos que no que tange à educação, à época da coleta dos dados, o levantamento demonstra que 10.465 adolescentes estavam inseridos na escola, 6.690 frequentavam cursos ou atividades de profissionalização, 1.020 em atendimento no CAPSi e 647 em acompanhamento pelo CAPS AD.

Diante destes números, fica explicito que a realidade de desigualdades e exclusão social de adolescentes em conflito com a lei reforçam ainda as mesmas violações de direitos e exposições às mais diversas formas de violências vivenciadas por eles cotidianamente e, muito embora, tentemos fugir dos esteriótipos já descritos, retornamos ao status quo, ou seja, de adolescentes com vínculos familiares fragilizados, situação de abandono escolar, desemprego ou em condições de sub-empregos, baixo nível socioeconômico e exposição precoce na marginalidade ou situações de violências, sendo cooptados pelo tráfico de drogas e outras práticas delitivas que os levam ou ao Sistema de Justiça, ou à morte, nos casos mais extremos.

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Referências

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providencias. Brasília: Presidência da República, 1990.

BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Levantamento Nacional do Atendimento de dados do SINASE - 2023, Brasília: Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, 2023.

COSTA, Ana Paula Motta. As garantias processualista e o direito penal juvenil: como limite na aplicação da medida socioeducativa de internação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

NARDI, F.L.; DELL'AGLIO, D.D. 2012. Adolescentes em conflito com a lei: Percepções sobre a família. Psicologia: Teoria e Pesquisa, p.181 - 191.

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1 HC 173636 PE, Rel. Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, julgado em 16/09/2010, DJe 04/10/2010.

HC 180953 PE, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 05/05/2011, DJe 18/05/2011.

HC 185474 SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 07/04/2011, DJe 28/04/2011. 

HC 213778 RJ, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 22/05/2012, DJe 28/05/2012.

HC 231459 PE, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 03/05/2012, DJe 14/05/2012.