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A criança vítima de violência doméstica pode pedir medida protetiva sozinha?

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Atualizado em 17 de novembro de 2025 11:38

A violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, pessoas vulneráveis e em condição peculiar de desenvolvimento, é, infelizmente, uma realidade endêmica no Brasil, muitas vezes marcada pela reprodução intergeracional e pelo segredo intrafamiliar que leva ao silêncio das vítimas e à subnotificação dos casos. Essa triste realidade clama por respostas imediatas do sistema de Justiça.

A promulgação da lei 14.344/22, conhecida como LHB - Lei Henry Borel, representou um passo paradigmático, ao estabelecer um regime de proteção específico, nitidamente inspirado naquele criado pela popular e famigerada lei Maria da Penha (LMP - lei 11.340/06). Se analisada de modo panorâmico, é válido dizer que a LHB faz quase um "copia/cola" (ou, na linguagem da informática: um "Ctrl+C" e "Ctrl+V") da LMP, o que é compreensível, afinal, como diz o ditado popular, "em time que está ganhando não se mexe", não é? A LMP deu certo; é uma lei de sucesso, embora insuficiente para enfrentar satisfatoriamente e eliminar por completo a chaga que é a violência de gênero contra as mulheres no Brasil. Contudo, é certo que a lei Maria da Penha teve êxito (ainda que parcial) no combate à violência doméstica e familiar contra as mulheres. Logo, nada mais natural do que a lei Henry Borel buscar caminhar na mesma trilha. Afinal, o lar não é palco de violência apenas contra as mulheres, mas também contra outros sujeitos em condição de vulnerabilidade, como os idosos e as pessoas com deficiência e, também, contra as crianças e os adolescentes. Há notórias semelhanças na dinâmica da violência contra a mulher e da violência contra crianças e adolescentes quando praticadas no ambiente doméstico-familiar, o que torna compreensível a simetria entre a LMP e a LHB.

Uma das principais importações que a lei 14.344/22 fez em relação à consagrada lei 11.340/06 diz respeito às chamadas MPUs, instrumentos de natureza cível e de tutela inibitória, concebidos para cessar ou prevenir a violência, garantindo a segurança e a integridade da vítima. Tais medidas - como o afastamento do agressor do lar, a proibição de aproximação com fixação de distância mínima, a vedação de contato por qualquer meio de comunicação e a restrição de visitas - são essenciais para interromper o ciclo de violência e resguardar a vida no curto prazo. Essas medidas se notabilizaram com a lei Maria da Penha e, agora, em boa medida, foram replicadas também na lei Henry Borel.

Se boa parte da LHB é quase uma "cópia" da LMP, chama atenção aqueles dispositivos da lei 14.344/22 que se afastam do espelhamento dos arts. da lei 11.340/06. Por exemplo, enquanto o art. 5º, inciso III, da LMP, classifica como doméstica e familiar a violência praticada "em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação", a LHB, malgrado tenha replicado o teor dos demais incisos (no âmbito da unidade doméstica e no âmbito da família), não reproduziu a previsão da violência cometida "em qualquer relação íntima de afeto". Por quê? Quiçá por pressupor que não haja relação íntima de afeto envolvendo crianças e adolescentes. Olvidou o legislador, principalmente, que os adolescentes já se envolvem afetivamente uns com os outros e em contextos de descoberta espontânea de sua sexualidade com os seus pares. Ora, uma adolescente de 17 anos que é agredida por seu namorado de 19 anos não poderia se valer da LHB? Certamente que sim.

Contudo, a não-reprodução que mais nos chama atenção e que é o objeto central da presente reflexão é aquela contida (ou, melhor dizendo: não contida) no art. 16, caput, da lei 14.344/22. A sua "cara metade" na lei 11.340/06 é o art. 19, que dispõe: "as medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida". Note a parte que grifamos: a própria ofendida, isto é, a mulher vítima da violência doméstica e familiar, tem capacidade para requerer em juízo a concessão de MPUs. Inclusive, a própria doutrina reconhece aqui uma hipótese de excepcional capacidade postulatória concedida à parte, independentemente da intervenção de um advogado (Didier Jr., 2025), algo próximo ao que acontece no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis. Tanto é assim que o art. 27 da LMP preconiza que "em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado", porém ressalva o previsto no art. 19 da lei, ou seja, a capacidade da mulher vítima ingressar diretamente com pedido para concessão de medida protetiva de urgência a seu favor.

Ocorre que, se a LHB é quase uma fotocópia da LMP em grande parte, diferentemente, o seu art. 16, caput, é sensivelmente diverso do art. 19 da lei 11.340/06 por uma falta ou ausência, uma não repetição que configura, a nosso ver, um silêncio eloquente. Diz o art. 16: "as medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, da autoridade policial, do Conselho Tutelar ou a pedido da pessoa que atue em favor da criança e do adolescente". Observe o trecho grifado ao final e compare-o com o correspondente do art. 19, supratranscrito. Notou a diferença, amigo(a) leitor(a)? O art. 16 da lei 14.344/22 não diz que as MPUs podem ser concedidas pelo juiz "a pedido da criança ou do adolescente vítima", mas sim que podem ser concedidas pelo juiz "a pedido da pessoa que atue em favor da criança e do adolescente". O texto do artigo não reconhece a capacidade da própria vítima criança/adolescente requerer ao juiz as MPUs. Em seu lugar, o dispositivo reconhece capacidade à pessoa que atue em seu favor, isto é, ao adulto que age em seu nome para substituir a sua vontade, a exemplo dos genitores, tutores, guardiões ou demais responsáveis legais. A ausência da previsão de capacidade postulatória da própria vítima e da sua substituição pelo adulto que atua em seu favor, nega a autonomia da criança ou adolescente de agir em seu próprio nome e, paradoxalmente, embora inserida em uma legislação vocacionada a proteger tais sujeitos, acaba por reafirmar o dogma adultocêntrico de incapacidade das crianças e adolescentes e da necessidade de representação por adultos.

É curioso observar que o mesmo art. 16 da lei 14.344/22, que em seu caput não inclui a própria vítima como legitimada a requerer a concessão das MPUs, a prevê em seu §3º, que versa sobre a possibilidade de requerimento de novas MPUs ou de revisão daquelas já deferidas. Diz o parágrafo que as novas medidas ou a revisão das anteriores pode ocorrer "a requerimento do Ministério Público ou do Conselho Tutelar, ou a pedido da vítima ou de quem esteja atuando em seu favor". Na verdade, o §3º diz exatamente aquilo que entendemos que o caput também deveria ter dito: que as MPUs podem ser solicitadas pela própria vítima ou por quem atue em seu nome. Cuida-se de legitimidade concorrente e compartilhada entre essas duas pessoas: a vítima criança ou adolescente e o adulto que age em seu favor. Contudo, a previsão da vítima no §3º joga ainda mais luz na ausência de uma previsão semelhante no caput do mesmo artigo. Conclusão: pela literalidade da lei, o que se tem é um cenário "esquisito" e dividido em dois momentos: (1) para solicitar uma primeira medida protetiva, quando nenhuma tenha sido deferida antes, a criança/adolescente não poderia requerê-la diretamente em seu nome, devendo o pedido ser formulado pelo adulto que atua em seu favor (caput); e (2) porém, para solicitar uma nova medida protetiva, quando já há outra deferida anteriormente, ou para revisar uma MPU já concedida, aí sim a própria criança/adolescente poderia requerê-la pessoalmente e independentemente da intervenção de um adulto.

Não há razão para essa diferenciação promovida pela lei Henry Borel: por que crianças e adolescentes vítimas têm capacidade para requerer, por si mesmas, a concessão de novas MPUs ou a modificação de alguma medida já concedida anteriormente (art. 16, §3º), mas não têm capacidade para requerer, de início, a concessão de uma medida judicial que pode ser imprescindível para a garantia da sua vida, saúde e integridade física e psicológica (art. 16, caput)? Na verdade, o cenário fático do caput é ainda mais severo do que aquele do §3º: naquele, ainda não há nenhuma medida a proteger a vítima, enquanto neste já existem medidas vigentes, portanto, há proteção, ainda que deficiente. Logo, com ainda mais razão seria de rigor o reconhecimento da capacidade da vítima de requerer, diretamente para si, a concessão das MPUs.

Mas, de todo modo, é fato que pela literalidade da lei (de lege lata) a vítima infantojuvenil não tem capacidade para requerer para si a concessão das MPUs da LHB. Para nós, explicação outra não há se não uma velha reminiscência do vetusto adultocentrismo que ainda hoje reverbera na sociedade, na cultura e no universo jurídico, principalmente pela reprodução do dogma da incapacidade da criança e do adolescente: historicamente está solidificada em nossas mentes a ideia de que crianças e adolescentes são incapazes e não tem autonomia para dar opiniões válidas e para participar nos processos de tomada de decisões e, por isso, sempre irão precisar, necessariamente, da intervenção de um adulto que decida em seu lugar. Daí, a conclusão do legislador da lei 14.344/22 torna-se óbvia: se são civil e processualmente incapazes, também são incapazes para requerer a concessão de medidas protetivas de urgência.

A ausência do reconhecimento da capacidade postulatória autônoma da vítima criança e adolescente na lei Henry Borel tem o condão de gerar impactos práticos indisfarçáveis. Em dada oportunidade, propomos a aprovação de um enunciado doutrinário que, basicamente, reconhecia a capacidade da vítima de requerer a concessão das MPUs da lei Henry Borel. A sua redação era a seguinte: "As medidas protetivas de urgência previstas na lei Henry Borel poderão ser concedidas pelo juiz a pedido da própria criança ou adolescente vítima de violência doméstica e familiar". O enunciado não foi aprovado sob a justificativa de que ele dizia o óbvio. "É claro que a vítima tem capacidade para pedir as MPUs para si", disseram. Com todas as vênias, ainda que seja óbvio, realmente algumas vezes o óbvio também precisa ser dito. Se para alguns juízes, promotores e delegados é inquestionável que uma criança de seis anos pode ir a juízo ou na Delegacia e pedir uma medida de proteção para si, é possível que para outros juízes, promotores e delegados essa capacidade postulatória não seja tão evidente assim. Basta lembrar do triste caso do menino Bernardo Boldrini, morto pelo pai e pela madrasta em 2014, mesmo depois do Conselho Tutelar e do Ministério Público terem sido alertados, ainda em 2013, dos maus-tratos e das agressões que o garoto sofria dentro de casa.

A ausência da previsão legal da capacidade da vítima de requerer medidas protetivas pode gerar entraves práticos no momento de concessão de MPUs, principalmente nas situações mais graves e urgentes, em que não há nenhuma medida vigente (art. 16, caput), e, sobretudo, nos casos de violência intrafamiliar na qual o adulto responsável pela criança é o próprio agressor (por exemplo: uma menina de oito anos que vive sozinha com o pai, seu responsável legal, e é por ele estuprada continuamente). Em casos assim, negada a capacidade da criança de requerer as MPUs, a sua concessão ficaria dependente da ação do Ministério Público, do delegado e polícia ou do Conselho Tutelar, uma vez que não se poderia contar com o pedido da "pessoa que atue em favor da criança e do adolescente", já que é o próprio agressor. A falta de reconhecimento da capacidade postulatória da própria vítima torna mais deficiente a sua proteção.

Em uma sociedade marcadamente adultocêntrica e menorista como é a brasileira (Schweikert, 2022), não parece extraordinária a seguinte cena: a criança de oito anos procura a delegacia de polícia e, lá chegando, diz na recepção do órgão "quero falar com o delegado", no que é repreendida pelo escrivão "mas, cadê o seu pai, garoto?", quando, em verdade, o menino está ali para fazer uma denúncia justamente contra o seu genitor e para requerer medidas protetivas de urgência contra ele.

O exemplo acima bem ilustra que a efetiva aplicação e o acesso célere às MPUs da LHB esbarram em um dos pontos mais anacrônicos e perversos do nosso ordenamento jurídico: a rígida doutrina da incapacidade processual.

Afinal, uma criança ou adolescente vítima de violência doméstica, que já se encontra em situação de vulnerabilidade extrema, tem o direito de acionar a Justiça para pedir proteção sem depender de um adulto que a represente? Ou o Judiciário deve, em nome da legalidade formalista, exigir a necessária intervenção de um representante adulto? É neste conflito entre o formalismo civilista e a urgência da proteção integral que reside o dilema da capacidade processual na lei Henry Borel.

O dogma inflexível da incapacidade civil das crianças e dos adolescentes

O Direito brasileiro, por uma longa tradição histórica, concebeu a infância sob a lente da incapacidade. Essa visão, profundamente enraizada na cultura adultocêntrica que norteou as codificações privadas, enxergava a criança não como um sujeito de direitos, mas como um ser periférico, incompleto e passível de correção ou disciplina pela força (Quapper, 2012).

O nosso CC de 2002 ainda reproduz, de forma inabalável, essa visão anacrônica e inflexível, ao adotar um critério binário, rígido e generalizante para a incapacidade. Pelo art. 3º do CC, toda pessoa menor de 16 anos é considerada absolutamente incapaz para todos os atos da vida civil, sem exceção. Isso significa que, no plano formal, seu real discernimento, seu desenvolvimento cognitivo e seu grau de amadurecimento são ignorados. Se todas as pessoas entre 0 e 16 anos de idade incompletos são considerados pela legislação civil como absolutamente incapazes, então, um adolescente de 15 anos, com plena capacidade de entender as consequências de um processo judicial, recebe exatamente o mesmo tratamento jurídico que um recém-nascido, devendo ambos ser integralmente representados por seus pais ou tutores.

Essa regra do CC é um mecanismo de heteroproteção, ou seja, a proteção jurídica é exercida por outrem (o adulto) em nome da criança. No plano processual, essa lógica foi transposta para o CPC, que exige a representação para os absolutamente incapazes (pessoas entre 0 e 16 anos de idade incompletos, o que inclui todas as crianças e boa parte dos adolescentes) ou assistência para os relativamente incapazes (adolescentes entre 16 e 18 anos de idade incompletos), como condição para que o incapaz possa demandar em juízo. Diz o art. 71 do CPC de 2015 que "o incapaz será representado ou assistido por seus pais, por tutor ou por curador". No mesmo sentido, o art. 142 do ECA, ao versar sobre o acesso à Justiça, consigna que "os menores de dezesseis anos serão representados e os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos assistidos por seus pais, tutores ou curadores". O Estatuto simplesmente espelha a incapacidade prevista no CC (por isso até hoje prevê no seu texto a idade de 21 anos, que era aquela adotada pelo Código de 1916, vigente ao tempo da sua edição no início da década de 90).

Se a incapacidade civil pode fazer sentido para questões que envolvem direitos negociais (por exemplo, a celebração de complexos contratos empresariais, da qual a criança é privada como forma de proteção de seu patrimônio), todavia, quando aplicada ao contexto da violência doméstica e familiar, ela se revela não apenas ineficaz, mas paradoxalmente geradora de mais violência. Nesse contexto, a incapacidade civil de forma alguma serve para proteger a criança vítima. Pelo contrário: é desproteção.

Da incapacidade à capacidade/autonomia progressiva

A Constituição Federal de 1988 e, sobretudo, o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990) abandonaram a doutrina da situação irregular em favor da doutrina da proteção integral. Desde então, crianças e adolescentes deixaram de ser meros objetos para serem reconhecidos como sujeitos de direitos fundamentais, gozando de prioridade absoluta (Hartung, 2022).

Essa mudança de paradigma foi consolidada em nível internacional pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, aprovada em 1989, internalizada pelo Brasil. A Convenção consagra três princípios fundamentais que deslegitimam a rigidez civilista:

  1. Princípio do melhor interesse da criança (art. 3º): toda ação ou omissão que a envolva deve ter o seu melhor interesse como consideração primordial.
  2. Princípio do desenvolvimento progressivo das capacidades (evolving capacities of the child) ou da capacidade ou autonomia progressiva: o art. 5º da Convenção reconhece que a capacidade das crianças não é algo imutável e estanque, limitada a critérios meramente etários, mas a concebe de forma dinâmica, que evolui pouco a pouco e de acordo com as particularidades de cada sujeito, em ritmos e compassos distintos. Segundo o artigo, as responsabilidades e a autonomia da criança devem ser ampliadas na medida de sua idade e maturidade, o que é aferido casuisticamente. A capacidade não é mais vista como um "interruptor" que se liga aos 16 ou 18 anos, mas sim como um processo de aquisição progressiva de maturidade.
  3. Princípio da participação: o artigo 12 da Convenção reconhece à criança "que estiver capacitada a formular seus próprios juízos" (ou seja: à criança que tenha, no caso concreto, capacidade, o que reafirma a capacidade progressiva prevista no art. 5º) o direito de participação, garantindo que ela seja ouvida e que as suas opiniões e os seus pontos de vista sejam levados em consideração pela autoridade judicial ou administrativa no momento da tomada de decisão. O art. 12 garante que a criança possa ter voz e que seja ouvida.

A Convenção da ONU de 1989 foi ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990 e promulgada pelo decreto 99.710/1990, portanto, na linha da jurisprudência do STF, possui status de norma supralegal, ou seja, de hierarquia normativa superior ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Lamentavelmente, o ECA não reproduziu nenhum dispositivo que reafirmasse o direito de participação e a capacidade progressiva da criança (artigos 12 e 5º, respectivamente). No Brasil, o dogma da incapacidade das crianças, ainda atrelada ao Direito Civil, parece quase intransponível e, agora, repercutiu na lei Henry Borel.

O paradoxo da heteroproteção e a necessidade de autoproteção na LHB

De fato, ao aplicar esse raciocínio à Lei Henry Borel, a rigidez da incapacidade civil atinge o ápice da incoerência. Afinal, a lei visa proteger a criança e o adolescente da violência de natureza doméstica e familiar, sendo que o agressor é, na maioria das vezes, o próprio pai, a mãe ou um adulto legalmente incumbido da custódia, guarda ou vigilância. Ou seja, a pessoa que deveria exercer a representação legal (heteroproteção) é, precisamente, a que oferece o perigo (Cunha; Ávila, 2022). Em outras palavras, a violência objeto da LHB é aquela que acontece dentro do lar da criança/adolescente e é praticada por pessoas do seu círculo íntimo de relacionamentos, seja por parentesco ou afetividade.

Exigir que a criança vítima dependa do seu agressor para acionar o sistema de Justiça em busca de proteção é uma negação do próprio direito. Nesse cenário, o sistema de heteroproteção não apenas falha, mas se torna um impedimento à tutela de direitos fundamentais, condenando a criança ao silêncio forçado e à continuidade da violência.

É neste ponto que se impõe o reconhecimento do direito da criança à possibilidade de autoproteção. A interpretação da lei Henry Borel, em consonância com o princípio do melhor interesse, deve criar uma porta de saída para essa aporia. Conforme salientam Bianchini et al. (2022), o objetivo maior das leis de proteção é garantir a integridade da vítima, e o meio processual deve se curvar a esse fim.

Embora a LHB não defina claramente a capacidade processual autônoma da vítima, o intérprete não só pode como deve suprir essa lacuna. Nesse mister, não se pode olvidar que o art. 6º da LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro impõe ao juiz o dever de decidir o caso concreto, recorrendo à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. O princípio geral que aqui merece aplicação é o da máxima efetividade da proteção jurisdicional (art. 4º do ECA).

Nessa linha de raciocínio, entendemos que a legitimidade ativa autônoma da própria vítima para pleitear as MPUs da LHB deve ser reconhecida de forma amplíssima, o que pode ser justificado com base em distintos fundamentos, a saber:

  1. analogia com a lei Maria da Penha: O sistema de proteção do vulnerável, conforme apontado por Cabette (2022), é um microssistema de "vasos comunicantes". Na lei Maria da Penha, a mulher (que também está em situação de vulnerabilidade) pode acionar a medida protetiva sem advogado, bastando comparecer a uma Delegacia de Polícia ou ao Judiciário. Se a lei protege o adulto vulnerável com tamanha celeridade, deve fazer o mesmo pela criança vulnerável. Por identidade de razões, também aqui a urgência da proteção à vida se sobrepõe ao formalismo da representação;
  2. a atuação dos órgãos de proteção: mesmo que a criança ou adolescente não consiga ingressar formalmente com o pedido por si só, sua simples manifestação de vontade, perante qualquer autoridade (Conselho Tutelar, Polícia e/ou Ministério Público), já deve ser considerada um acionamento. O Ministério Público, como fiscal da lei e guardião dos interesses de crianças e adolescentes (art. 201, VIII, do ECA), e a Defensoria Pública (especialmente nas situações em que atua como curador especial), têm o dever funcional de tomar a iniciativa, atuando como substitutos processuais em favor da criança/adolescente que manifesta o desejo de ser protegida com a concessão de medida protetiva de urgência; e
  3. superação da incapacidade pela urgência: qualquer magistrado que receba o pedido de socorro, com base no princípio do poder-dever de decisão imediata (extraído do art. 64, § 4º, do CPC/15), deve decidir liminarmente sobre a MPU, garantindo a segurança da vítima antes de remeter os autos para eventual correção de representação.

Considerações finais

O Judiciário brasileiro não pode ignorar a voz de uma criança que pede socorro em nome de um formalismo legal (fundado em concepções arcaicas do adultocentrismo) que a condena ao sofrimento. O sistema de Justiça deve fazer a leitura do CC, do CPC e do ECA à luz da Constituição Federal de 1988 e da Convenção da ONU de 1989.

Em resposta à questão que intitula este ensaio, a conclusão é que a capacidade processual autônoma de crianças e adolescentes para pleitear as medidas protetivas de urgência da lei 14.344/22 não é um favor, mas um direito fundamental.

Essa capacidade autônoma não é automática, mas casuística e depende da aferição da maturidade do postulante em cada situação concreta. A rigidez da idade como único critério intransponível deve ceder lugar ao princípio da autonomia progressiva. Assim, o sistema de Justiça deve garantir que:

  1. o critério etário (a idade) não seja o único a ser considerado, podendo ser mitigado em prol do critério da maturidade e do discernimento, especialmente em situações de conflito de interesses entre vítima e representante legal, o que acontece nas situações de violência intrafamiliar no ambiente doméstico;
  2. a manifestação de vontade da vítima, mesmo que desacompanhada de um adulto, seja suficiente para o recebimento e o processamento de um pedido de tutela de urgência; e
  3. a porta de entrada para a proteção deve estar aberta para todo aquele que tenha a maturidade mínima para pedir "socorro" ao Poder Judiciário (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988), independentemente da intervenção jurídica de advogado e da representação/assistência por um adulto.

Negar a capacidade processual autônoma à criança ou adolescente vítima seria condená-la a depender da boa vontade do agressor ou de um terceiro (que pode, na prática, ser omisso) para sair do ciclo da violência. A efetividade da lei Henry Borel passa, necessariamente, pelo reconhecimento da capacidade da criança de se proteger. É preciso superar de uma vez o dogma adultocêntrico que ainda resiste na legislação e no sistema de Justiça do Brasil.

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Referências bibliográficas

BIANCHINI, Alice; BAZZO, Mariana; CHAKIAN, Silvia; TEIXEIRA, Tarcila Santos. Crimes contra Crianças e Adolescentes. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Comentários à Lei Henry Borel (Lei 14.344/22): temas relevantes. Leme-SP: Mizuno, 2022.

CUNHA, Rogério Sanches; ÁVILA, Thiago Pierobom de. Violência Doméstica e Familiar contra Crianças e Adolescentes - Lei Henry Borel: Comentários à Lei 14.344/22 - Artigo por Artigo. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022.

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil - Vol. 1 - Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. Salvador: Editora JusPodivm, 2025.

HARTUNG, Pedro Affonso Duarte. Levando os Direitos das Crianças a Sério: a absoluta prioridade dos direitos fundamentais e o melhor interesse da criança. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2022.

QUAPPER, Claudio Duarte. Sociedades Adultocéntricas: sobre sus orígenes y reproducción. Ultima Década, nº36, CIDPA Valparaíso, julio 2012, p. 99-125. Disponível aqui.

SCHWEIKERT, Peter Gabriel Molinari. Menorismo estrutural e o Direito: Elementos para uma hermenêutica constitucional insurgente e antimenorista. Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. São Paulo: 2022.