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Breves notas sobre o fechamento dos espaços aéreos no conflito Rússia-Ucrânia

sexta-feira, 4 de março de 2022

Atualizado às 07:38

Na noite de dessa terça-feira passada, em seu pronunciamento à nação (State of the Union Address)1, o Presidente Joe Biden anunciou o fechamento do espaço aéreo dos EUA para todo e qualquer voo de companhias aéreas ou operadores da Federação Russa.  Formalmente, o Departamento de Transportes (USDOT) editou o ato normativo (Notice and Order) n? 2022-3-2.  Além disso, a agência regulatória de aviação, o Federal Aviation Administration (FAA), irá emitir NOTAM (Notice to Airmen) com similar efeito.

A medida se soma ao rol das inúmeras graves sanções econômicas impostas por parte de diversos Estados europeus, Canadá e outros países contra a Federação Russa em razão da invasão militar na Ucrânia, incluindo o fechamento de seus espaços aéreos para companhias aéreas e operadores russos. O governo da Rússia, de sua parte, respondeu com sanções recíprocas, aplicando medida idêntica a 36 países, incluindo todos os 27 membros da União Europeia.

A proibição de sobrevoo não é algo inusitado no palco do Direito Aeronáutico Internacional.  Como exemplo mais recente, em 2017, vários países integrantes do GCC (Conselho de Cooperação do Golfo) e alguns outros da África impuseram esta sanção ao Qatar, que perdurou até a assinatura da Declaração de Al-Ula, em 2021, quando o embargo foi encerrado.

O sistema normativo da aviação civil internacional, conhecido como Sistema de Chicago, foi estabelecido no final da 2ª Guerra, e compreende o reconhecimento inequívoco da soberania estatal em relação ao espaço aéreo sobrejacente a cada país. 

Se, durante a 1ª Grande Guerra, o uso da aviação como instrumento militar não fora uma realidade, ao fim do 2ª Guerra, tendo a aviação militar sido um dos aspectos definidores do conflito, a preocupação com o uso e controle do espaço aéreo estava na principal ordem do dia.

Assim, a Convenção da Aviação Civil Internacional, celebrada em Chicago em 1944, que estabeleceu as principais bases normativas necessárias para o desenvolvimento seguro do transporte aéreo civil, assentou o reconhecimento expresso da soberania estatal no espaço aéreo sobrejacente ao respectivo território terrestre e marítimo dos Estados, o que se tornou em um dos pilares do sistema normativo aeronáutico global.  Isto ofereceu aos Estados-membros a imprescindível percepção de segurança territorial, sem o que a celebração da Convenção não teria sido possível.

A partir daí, um complexo sistema de acordos bilaterais e multilaterais entre os vários países do mundo passou a ser econstruído, envolvendo maior ou menor grau de liberdade recíproca entre eles no atinente às prerrogativas de sobrevoo, pousos e decolagens, e de acordo com os interesses comerciais, demandas de tráfego e razões geopolíticas e de segurança nacional.  Trata-se das chamadas Liberdades do Ar, e a doutrina e prática comercial as distingue em 9 categorias, que refletem os vários tipos de acordos e concessões recíprocas.

A 1ª e a 2ª liberdades do ar compreendem, respectivamente, as prerrogativas não-comerciais de mero sobrevoo sem escalas (1ª) e a escala técnica para fins de manutenção ou abastecimento de combustível (2ª).  As demais Liberdades do Ar dizem respeito aos variados graus e combinações possíveis de transporte comercial de passageiros, mala postal e carga, a partir de ou para um ou mais países.

Na prática, o fechamento do espaço aéreo significa a suspensão dos efeitos dos Acordos bi e multilaterais, e de todas as Liberdades do Ar em vigor entre os países envolvidos.  Esta medida impõe um enorme ônus para as companhias aéreas comerciais.  E não apenas nas operações de voo que envolvem o transporte de ou para os Estados sancionados, mas também pela suspensão de sobrevoos.  Isto porque tanto as áreas geográficas abrangidas pela União Europeia e também do Canadá, quanto da Ucrânia e da Rússia, dada suas posições estratégicas e enormes dimensões, compreendem rotas importantíssimas para a navegação aérea de longo curso. 

Assim, os fechamentos recíprocos dos espaços aéreos irão tornar indisponíveis rotas que permitem a ligação direta entre vários destinos no globo, impondo a necessidade de desvios e consequente aumento de distância e tempo de voo, o que, por sua vez, irá ensejar um ingente gasto adicional de combustível e demais custos operacionais ancilares, além de eventuais pousos técnicos intermediários para abastecimento.

Entretanto, no caso da Rússia, o peso a ser suportado certamente será maior, na medida em que às sanções de natureza estatal outras tantas provenientes do setor privado estão sendo paulatinamente impostas, como a recém-anunciada pelas duas maiores fabricantes de aeronaves comerciais do mundo, a Boeing e a Airbus.

É mister, ainda, diferenciar a providência sancionatória de fechamento do espaço aéreo da medida operacional-militar do no-fly zone, sobre a qual já se especula em mídias sociais e jornais.  O fechamento do espaço aéreo corresponde à suspensão das liberdades do ar; trata-se de sanção com feições político-econômicas.  Busca-se infligir ônus comercial ao Estado sancionado. 

Em outro patamar jurídico, situa-se a no fly-zone, que se trata de medida extrema nos níveis mais elevados das relações internacionais e do Direito Internacional Público.  O no-fly zone é a fixação de área geográfica onde apenas voos autorizados pelas entidades que a estabeleceram podem transitar, seja por razões estratégicas militares, seja por motivos humanitários em face do conflito bélico.  Trata-se de uma zona de total exclusão do tráfego aéreo.   

Assim como outras circunstâncias concernentes ao jus ad bellum e ao jus in bello, a no-fly zone é medida de facto, possivelmente encontrando lastro no Direito Humanitário Internacional, com vistas a mitigar os efeitos devastadores dos conflitos bélicos, buscando viabilizar a sobrevivência e minimizar o sofrimento das vítimas civis dos Estados envolvidos.

A complexa questão subjacente ao no-fly zone é a consequência de sua violação, que envolve possível abate de aeronaves civis em voo.  O Direito Público Internacional repudia o uso da força de um modo geral.  A regra cardeal é a busca da solução de controvérsias pela via pacífica, vale dizer, diplomática2.  Além disso, após a ocorrência de várias tragédias envolvendo o equivocado abate de aeronaves civis em voo, em 1984 a Convenção de Chicago recebeu Emenda ao seu texto (art. 3? bis) proibindo o uso de força contra aeronaves civis em voo.

Paralelamente,, a Carta das Nações Unidas, em seu Capítulo VII, art. 39, atribui ao Conselho de Segurança da ONU a competência para determinar a existência de circunstância de ameaça à paz, sua ruptura ou ocorrência de ato de agressão, assim como possíveis ações remediais.  Os arts. 41 e 42 estipulam de forma escalonada possíveis medidas de contenção, sendo que, na insuficiência das medidas contidas no art. 41 (sanções comerciais, diplomáticas e de comunicação), o Conselho de Segurança poderá levar a efeito, entre outras medidas, "bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos membros das Nações Unidas" (art. 42).

Embora não claro, prevalece o entendimento que qualquer aeronave não autorizada a ingressar na no-fly zone estaria sujeita ao abate, o que corresponde ao uso da força, medida excepcionalíssima na seara do Direito Internacional Público.

A fixação de uma no-fly zone é tema muito controvertido no âmbito das relações internacionais.  Mas, em que pese a incerteza jurídica que orbita sua aplicação, trata-se de fenômeno frequentemente observado nos conflitos de maior abrangência entre países ou dentro destes, como nos casos de beligerância, insurgência ou, ainda nos movimentos em luta por soberania.

Sem adentrar demasiadamente o tema, que foge a essa breve análise perfunctória, o importante é sublinhar que parece ser pouco provável sua instauração no presente caso do conflito na Ucrânia, já que um dos envolvidos, a Federação Russa, é também membro do Conselho de Segurança e, por conseguinte, com poderes de veto. 

 

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1 Ao contrário do que comumente se imagina, o "State of the Union Address" não é uma prerrogativa presidencial, mas um dever constitucional.  A Constituição Norte-americana prevê que "[o Presidente] deverá, de tempos em tempos, dar ao Congresso informações sobre o Estado da União, e submeter à sua consideração medidas que julgue necessárias e expedientes (...)" (artigo II, Seção 3).  Até meados do século passado, tal endereçamento era denominado "Mensagem Anual" e enviado por escrito ao Congresso. A partir de Woodrow Wilson, o "State of the Union" passou a ser apresentado pessoalmente pelo Presidente perante sessão conjunta das duas Casas congressuais, tornando-se também em uma oportunidade ímpar para alavancar suporte político para as pretensões do Poder Executivo.

2 Aliás, é também o que consta em nossa Constituição Federal, a qual elenca, em seu art. 4, os princípios a serem observados por nossa República nas relações internacionais, "a defesa da paz" (inc. VI) e a "solução pacífica de conflitos" (inc. VII), servindo, portanto, de excelente fonte deontológica e vetor de orientação diplomática para nossos posicionamentos oficiais.