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Inteligência artificial na análise diagnóstica da Covid-19: possíveis repercussões sobre a responsabilidade civil do médico

segunda-feira, 30 de março de 2020

Atualizado em 2 de fevereiro de 2021 10:50

A pandemia da COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus, variante SARS-CoV-2) tem causado grande alarme em todo o globo, desde que os primeiros casos começaram a surgir, no final de 2019, em Wuhan (China). Apesar de a maioria dos infectados pelo novo coronavírus não desenvolver sintomas graves, há um considerável número de indivíduos dentro dos grupos de risco (como idosos e pacientes cardíacos, asmáticos, diabéticos e hipertensos) que podem apresentar síndromes respiratórias graves e letais. Nesse cenário, a maior preocupação apontada pela comunidade médica diz respeito à velocidade de propagação do vírus. Em apenas dois meses desde o primeiro contágio, o SARS-CoV-2 se espalhou de Wuhan para toda a China e outras dezenas de países. Atualmente, são mais de 720 mil casos de infecção no mundo, com óbito de mais de 33 mil pessoas1.

Na Itália, segundo maior foco da contaminação (atrás apenas da China, que já noticia a ausência de novos casos de transmissão local)2, os dois primeiros diagnósticos da doença (em um casal de turistas chineses) ocorreram em 30/1/2020. Noticia-se que a primeira transmissão local ocorreu após 18 dias; em 24/2/2020, menos de um mês depois dos primeiros diagnósticos, já se contabilizavam 224 infecções confirmadas3. Daí em diante, a disseminação do vírus foi colossal. Em menos de 2 meses, desde o início do surto, já são mais de 53 mil casos confirmados, dos quais quase 5 mil fatais4. Estima-se, contudo, que este número seja apenas a ponta do iceberg e que existam mais de 70 mil pessoas assintomáticas ou com sintomas leves que não foram submetidas a testes5.

No contexto brasileiro, o primeiro caso importado da doença foi confirmado no dia 26/2/2020. Passados 20 dias após o diagnóstico deste paciente, o Brasil já tinha 428 infectados6. Sidney Klajner, presidente do Hospital Albert Einstein, estima que o Brasil tenha 15 casos "ocultos" para cada diagnosticado7. O número de casos de contaminação, em cerca de um mês, supera a marca de 4.200 infectados e 130 mortes8.

Na ausência de medicamentos ou vacinas terapêuticas específicas para o novo coronavírus, faz-se essencial detectar a doença em um estágio inicial e, dentro de parâmetros razoáveis, isolar do convívio com a população saudável as pessoas infectadas9. Como se sabe, o diagnóstico da infecção por Covid-19 é realizado em duas etapas: diagnóstico clínico e diagnóstico confirmatório por exame laboratorial. O diagnóstico clínico depende da investigação clínico-epidemiológica e do exame físico. Caso a situação do paciente seja considerada, a partir do diagnóstico clínico, um caso suspeito de Covid-19, passa a ser indicada a realização do exame laboratorial. Em que pesem os benefícios proporcionados pelo exame laboratorial, fatores como os altos custos e a própria carência de material têm levado autoridades públicas e instituições hospitalares a restringir os testes aos pacientes sintomáticos - e, preferencialmente, àqueles com sintomas graves10.

É justamente nesse contexto que aflora a renovada importância da inteligência artificial (IA) na análise diagnóstica11. Na China, por exemplo, um software com IA, já testado em mais de 5 mil pacientes (e utilizado gratuitamente por centenas de instituições médicas ao redor do mundo), é capaz de diagnosticar a COVID-19, em poucos segundos, a partir da análise da tomografia de tórax12. O software inteligente realiza, com taxa de precisão de aproximadamente 90%, a análise de uma imagem tomográfica em 15 segundos; com isso, consegue, quase instantaneamente, distinguir entre pacientes infectados com o novo coronavírus e aqueles com pneumonia comum ou outra doença. Trata-se de uma grande vantagem no enfrentamento da pandemia, em especial por se levar em consideração que os radiologistas geralmente precisam de cerca de 15 minutos para ler essas imagens de pacientes com suspeita de Covid-1913. No Brasil, encontra-se em fase de desenvolvimento, pelo Hospital das Clínicas em São Paulo, um algoritmo similar, que possui a capacidade de identificar a COVID-19 em tomografia de pacientes. O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC) tem acompanhado de perto o projeto e pretende implementar a IA em hospitais de todo o país14.

De modo geral, pode-se afirmar que, na área da saúde, os programas de IA fornecem importante suporte à decisão clínica, tendo em vista a sua capacidade de processar e analisar rapidamente - e, tendencialmente, de maneira eficiente - grande quantidade de dados. A combinação da IA com a expertise e o conhecimento médicos tem, portanto, o potencial de reduzir consideravelmente as taxas de erro. Não se trata de pugnar por uma substituição dos profissionais da saúde por sistemas de IA, mas tão somente de reconhecer os potenciais benefícios dessa nova tecnologia no que tange, sobretudo, ao auxílio dos profissionais na tomada de decisão, especialmente na situação global de pandemia e crescimento exponencial da contaminação. É imprescindível que o diagnóstico e a tomada de decisão médica sejam rápidos e, ao mesmo tempo, adequados.

Não se pode ignorar, contudo, que, por mais eficiente que o software seja no auxílio ao diagnóstico, seguirá apresentando uma expressiva margem de imprecisão - no exemplo relatado, a taxa é de cerca de 10% -, o que pode conduzir a resultados adversos. O cenário é particularmente delicado quando a IA é utilizada não apenas para categorizar os pacientes em emergência, mas também para propor diagnósticos tangíveis. Tais hipóteses suscitam relevantes reflexões no campo da responsabilidade civil do médico. Afinal de contas, não é difícil imaginar a irresignação do paciente e/ou de sua família ao perceber que determinado resultado danoso (como o agravamento do estado clínico ou mesmo o óbito) poderia ter sido evitado caso o médico houvesse partido do diagnóstico mais preciso. Tal linha argumentativa poderia florescer tanto na hipótese de o médico confiar no diagnóstico equivocado proposto pela IA quanto na hipótese de o médico ignorar a indicação da IA e seguir o errôneo diagnóstico alcançado pela sua própria convicção.

Nos casos em que o médico chega a uma conclusão que se desvia do diagnóstico automatizado, o profissional se encontrará na desafiadora tarefa de avaliar: "devo confiar no meu diagnóstico ou naquele diverso resultado obtido pela inteligência artificial?". O equacionamento dessa e de outras indagações se relaciona diretamente com a definição do critério de imputação do dever de indenizar. Isso porque a delimitação do regime de responsabilidade civil incidente (subjetivo versus objetivo) apontará a relevância ou a irrelevância da valoração do comportamento concretamente adotado pelo agente.

No específico caso da responsabilidade pessoal do médico, a doutrina converge em torno do acertado entendimento de que o profissional liberal se sujeita ao regime da responsabilidade civil subjetiva, nos termos dos arts. 186, 927, caput, e 951 do Código Civil e no art. 14, § 4°, do Código de Defesa do Consumidor. Tal modelo centra-se, como é cediço, na comprovação da culpa, em sua acepção contemporânea de culpa normativa15.

No que diz respeito especificamente à configuração de culpa médica pelo erro de diagnóstico16, deve-se ter em mente que a mera constatação da não adoção do diagnóstico perfeito não conduz, ipso facto, à configuração de culpa do médico. Diante das vicissitudes de cada caso concreto e mesmo da dificuldade em se falar de certezas absolutas, é plenamente possível, em linha de princípio, a valoração desse erro como escusável, inapto, assim, à configuração da culpa necessária para a deflagração do dever de indenizar17. Caso, contudo, se trate de erro relacionado à negligência ou à imperícia do profissional, poderá restar justificada a sua responsabilização18. O médico incorrerá em responsabilidade, em suma, tão somente quando não revelar o cuidado razoavelmente exigível na sua conduta.

As hipóteses de diagnóstico equivocado relacionadas à superveniência de dano ao paciente impõem, assim, uma análise pormenorizada do erro, a fim de verificar se a não obtenção do diagnóstico mais preciso configura efetivamente falha de conduta do médico. Partindo-se de tais percepções para uma tentativa de responder aos questionamentos aventados acima, parece razoável afirmar que o médico apenas será responsabilizado por erro de diagnóstico se não houver justificativas plausíveis que o tenham levado a desconsiderar o resultado diagnóstico indicado pela inteligência artificial.

Imaginando-se a hipótese de o software apontar para um quadro diagnóstico de COVID-19, incumbirá ao profissional, ao menos, levar tal cenário em consideração, dentro das suas concretas possibilidades, antes de concluir por descartar com segurança o resultado da inteligência artificial. Neste sentido, a falta de diligência do médico ao descartar irrefletidamente o resultado obtido pela inteligência artificial poderá constituir um critério para a sua responsabilização.

Imagine-se, desta vez, situação inversa à narrada acima: o médico está prestes a fechar um acertado quadro diagnóstico do Covid-19. Antes, contudo, de tomar sua decisão final, socorre-se da IA, que acaba por trazer um resultado diagnóstico negativo para a doença, em sentido nitidamente contrário à opinião do profissional. Caso opte por seguir a indicação da inteligência artificial e finde por causar dano ao paciente, poderá o médico eximir-se do dever de indenizar ao argumento de que a adoção do diagnóstico proposto pelo software afasta a sua culpa? A resposta dependerá, naturalmente, da avaliação das vicissitudes de cada caso concreto. De qualquer modo, se restar comprovado que nenhum dos elementos disponíveis durante a anamnese do paciente levaria ao diagnóstico de negativa do vírus e, mesmo assim, o médico alterou seu posicionamento inicial para acatar o diagnóstico equivocado, sem buscar outros meios para fechar um diagnóstico confirmatório, seguindo cegamente a IA, dificilmente se poderá afastar a configuração da culpa do profissional19.

Em ambos os casos supracitados, havendo divergência entre o diagnóstico clínico inicial e o resultado do dispositivo inteligente, afigura-se prudente que a decisão do médico - de seguir ou de desconsiderar a IA para concluir o seu diagnóstico - seja acompanhada da prévia realização de exames laboratoriais complementares e, a depender do caso, de uma confirmação com seus pares, inclusive a distância (teleinterconsulta). Neste ponto, destaque-se que o CFM publicou o Ofício n.º 1.756/2020, reconhecendo, "em caráter de excepcionalidade e enquanto durar a batalha de combate ao contágio da COVID-19", "a possibilidade e a eticidade da utilização da telemedicina", indicando-se três modalidades: teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta20.

Sem qualquer pretensão de exaustão da temática ou de enfrentamento definitivo, buscou-se, com as precedentes considerações, destacar tanto os benefícios proporcionados pela utilização da IA na análise diagnóstica da COVID-19 quanto a complexidade da discussão acerca da responsabilidade civil do médico nesse contexto.

Em linhas conclusivas, parece de bom tom reforçar que, ao menos no atual estado da sociedade, os softwares de diagnóstico devem servir como importante apoio à tomada de decisão do médico, sem o condão, contudo, de substituí-lo. Com efeito, a decisão final segue sob o controle (e sob a responsabilidade) do profissional da saúde. Dessa conclusão não se há de extrair, porém, uma banalização da responsabilização pessoal do médico. Seguindo a tônica do momento atual, deve-se socorrer da prudência também para a valoração da conduta do médico em eventual demanda indenizatória. Pode-se, assim, construir bases sólidas para a rejeição de demandas frívolas, evitando-se a difusão de uma postura de medicina defensiva que pouco (ou nada) contribuiria para o combate da pandemia em seu estágio atual.

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1 Dados extraídos em 21.03.2020 do mapa criado pela Microsoft, que mostra, em tempo real, os números oficiais de casos de coronavírus confirmados no Brasil e no mundo: https://bing.com/covid.

2 https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/21/china-nao-registra-transmissao-local-de-coronavirus-pelo-3o-dia-mas-casos-importados-aumentam.ghtml.

3 https://veja.abril.com.br/saude/numeros-comparam-evolucao-do-coronavirus-no-brasil-na-italia-e-no-mundo/.

4 Dados extraídos em 21.03.2020 do já referido mapa criado pela Microsoft: https://bing.com/covid.

5 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51969288.

6 https://veja.abril.com.br/saude/numeros-comparam-evolucao-do-coronavirus-no-brasil-na-italia-e-no-mundo/.

7 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51969288.

8 Dados extraídos em 21.03.2020 do já referido mapa criado pela Microsoft: https://bing.com/covid.

9 Trata-se de matéria extremamente delicada, por envolver um sensível dilema entre liberdade e solidariedade no contexto do combate à COVID-19. Imperiosa, ao propósito, a remissão ao artigo de Thamis Dalsenter: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-vulnerabilidade/321211/direito-a-saude-entre-a-liberdade-e-a-solidariedade--os-desafios-juridicos-do-combate-ao-novo-coronavirus---covid-19.

10 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,com-alta-demanda-einstein-comeca-a-limitar-exames,70003235787.

11 Um relevante ponto para a análise holística da matéria - incabível nesta sede - diz respeito ao papel do consentimento livre e esclarecido do paciente para a utilização da inteligência artificial em apoio à decisão médica. Para um desenvolvimento da análise da relevância do consentimento do paciente, em especial no contexto da cirurgia robótica e da telecirurgia, remete-se a KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil pelo inadimplemento do dever de informação na cirurgia robótica e telecirurgia: uma abordagem de direito comparado (Estados unidos, União Europeia e Brasil). In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana. Responsabilidade civil e medicina. Indaiatuba: Foco, 2020, passim.

12 https://www.prnewswire.com/news-releases/ping-an-launches-covid-19-smart-image-reading-system-to-help-control-the-epidemic-301013282.html.

13 Ibid.

14 https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/03/25/hc-corre-para-ter-inteligencia-artificial-que-acha-covid-19-em-tomografia.htm

15 Ao propósito da culpa normativa, v., por todos, MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 211.

16 A menção ao erro de diagnóstico (ou, de modo mais geral, ao erro médico) justifica-se tão somente pela consagração da expressão pela práxis. Não se pretende, contudo, atribuir à imprecisa noção de erro no desenvolvimento da medicina um injustificado papel de banalização da responsabilidade civil dos médicos. Justifica-se, portanto, a adoção das ressalvas enunciadas por SOUZA, Eduardo Nunes de. Do erro à culpa na responsabilidade civil do médico: estudo na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 251-252.

17 "O médico enfrenta dúvidas científicas, com várias alternativas possíveis e variados indícios, por vezes equívocos, quanto aos sintomas do paciente. Não raro, as próprias queixas do paciente induzem o médico a imaginar a ocorrência de patologia inexistente. Há casos duvidosos, com alternativas idôneas, todas a merecer respaldo da ciência médica. Por isso, o erro de diagnóstico, em princípio, é escusável". (KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. Ebook.)

18 Não se ignora, por certo, a imprescindibilidade da investigação dos demais elementos necessários à deflagração do dever de indenizar. A presente investigação limita-se, como já anunciado, à culpa, em atenção ao recorte temático do estudo.

19 A constatação de falha no funcionamento do software inteligente permitiria cogitar-se de pretensões movidas pelas vítimas diretamente em face dos fornecedores da tecnologia, ao argumento de defeito do produto. O escopo central deste artigo, contudo, cinge-se à análise da responsabilidade pessoal do médico.

20 https://portal.cfm.org.br/images/PDF/2020_oficio_telemedicina.pdf. Ao propósito, veja-se o artigo de Aline de Miranda Valverde Terra e Paula Moura Francesconi de Lemos: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-vulnerabilidade/322083/telemedicina-no-sistema-privado-de-saude--quando-a-realidade-se-impoe.