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O Poder de disposição da coisa no contrato estimatório (venda em consignação) e os seus efeitos - Parte III

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Atualizado às 07:56

Completamos agora a publicação do artigo com a sua terceira parte (o leitor poderá acessar a primeira parte e a segunda parte nesta coluna). Procuramos destacar até aqui o poder de disposição da coisa que é conferido ao consignatário, como uma parcela do direito real. É um aspecto pouco desenvolvido pela doutrina, mas com enorme repercussão prática. Nesta última parte, examinamos outros efeitos jurídicos do contrato, com base, igualmente, no poder de disposição da coisa.

Para determinar os efeitos jurídicos do contrato estimatório é necessário lembrar que ao consignatário se transmite a posse direta da coisa. Há um desmembramento da posse promovido pela relação jurídica estabelecida com o contrato estimatório, identificando a situação prevista no art. 1.197 do CC. O consignatário não tem detenção da coisa (art. 1.198, CC), porque, como visto, recebeu uma parcela de poder sobre a coisa (disposição) que lhe confere o exercício de algum dos poderes inerentes à propriedade (art. 1.196, CC). Esse poder que se reconhece em favor do consignatário é o que define a sua posse sobre a coisa.

Levanta-se a questão da possibilidade de o consignatário fazer uso da coisa. A resposta deve ser negativa quando o consignatário não for autorizado expressamente pelo consignante. Se o fizer, motivará a rescisão do contrato estimatório com o efeito imediato da restituição da coisa. Se causou danos deverá indenizar o consignante. A proibição de uso da coisa decorre da obrigação de restituição da coisa ao final do prazo nas condições em que ela foi recebida. No entanto, o uso da coisa pode ser identificado com a vontade do consignatário de ficar com ela, o que o obriga a pagar o preço.

A coisa poderá receber melhoramentos e acréscimos. Se a coisa recebeu melhoramentos ou acréscimos, sem despesa ou trabalho do consignatário, ela será restituída com os acréscimos sem que seja devida qualquer indenização (art. 241).

Se para o melhoramento ou aumento da coisa (acréscimos) o consignatário empregou trabalho ou dispêndio, terá direito à indenização, desde que se reconheça a sua boa-fé, lembrando que a respeito das benfeitorias voluptuárias não haverá indenização. Se o consignatário agiu de má-fé, terá direito à indenização apenas pelas benfeitorias necessárias, perdendo as úteis e voluptuárias realizadas.

Ao consignatário poderá ser reconhecido o direito de retenção pelas benfeitorias necessárias e úteis que realizou de boa-fé. Aquele que agiu de má-fé não terá direito de retenção.

A respeito dos frutos percebidos deve ser aplicada a regra do art. 242, parágrafo único, do CC. Aquele que percebeu frutos de boa-fé não será obrigado a indenizá-los. Mas pertencem ao consignante os frutos pendentes e os colhidos com antecipação.

A boa-fé do consignatário decorre do conhecimento que ele tem a respeito do exercício da posse do bem. Se ele sabe que a sua posse é injusta, age de má-fé. É o que se pode dizer do consignatário que, depois de vencido o prazo ou não cumprida a obrigação de restituir, insiste em reter a coisa, que não vendeu, sem pagar o preço. Neste caso o consignatário está em mora e tem a posse precária, que é injusta, e não pode alegar ignorância. Logo, só terá indenização pelas benfeitorias necessárias que fez de má-fé, sem direito a retenção. Contudo, lhe é assegurado o direito à indenização das benfeitorias que promoveu enquanto tinha posse de boa-fé (necessárias e úteis).

O consignatário não poderá exigir do consignante qualquer despesa que tenha realizado para a venda do bem, ainda que frustrada no prazo previsto. Também não poderá, à evidência, pretender compensação dessas despesas com o preço. É que as despesas são realizadas em proveito do consignatário, que pode ganhar com o sobrepreço, daí não lhe ser lícito qualquer pretensão a esse respeito contra o consignante.

A regulamentação do contrato estimatório veio a preencher um vazio no direito brasileiro e a dar maior segurança a esse negócio que sempre foi praticado.

Em razão das lacunas deixadas pela lei brasileira, e a multiplicidade de relações jurídicas envolvendo esse contrato, devem as partes procurar regular bem, e por escrito, os seus interesses, definindo prazos, valores, encargos da mora e cláusulas sobre a indenização e retenção por benfeitorias. É importante, igualmente, que o contrato se preocupe em descrever o estado em que se encontra a coisa entregue ao consignatário, prevenindo litígios.

A coisa é transferida pelo titular ao consignatário, naturalmente, para a venda. Essa é a finalidade do contrato. Por isso, adverte ARNALDO RIZZARDO, que não cabe pensar, antes da venda ou comercialização, deva o consignatário pagar o preço. Muito menos se cogita de se autorizar ao proprietário uma medida de recuperação, após a venda pelo consignatário, caso não receba o pagamento, salvo se o comprador agir de má-fé, quando eventualmente combinado com aquele que fez a entrega, numa venda aparente e não real. Daí, afirma, inserir um alto risco esta modalidade de negócio, pois se presta aos desonestos receberem os bens, vendê-los e não efetuar o pagamento a quem os entregou. Pressuposto primeiro, para a viabilidade dessa modalidade de venda, é a segurança (confiabilidade) que desperta aquele que recebe a mercadoria.

Tem razão o experiente civilista gaúcho. Ao consignante não cabe nenhuma medida para a recuperação do bem alienado pelo consignatário, porque lhe outorgou o poder de disposição. O risco reclama cautela na escolha do consignatário e cuidado na realização do contrato, mas não deve inibir a prática desse importante negócio para as relações sociais e a circulação da riqueza.

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