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Novos Horizontes do Direito Privado

Abordagem de como se apresenta o Direito Privado.

Carlos Alberto Garbi
É sempre melhor quando as coisas começam de forma clara: evitam-se os enganos e, com eles, as frustrações, raivas e mágoas. E o esclarecimento inicial necessário é: este não é um texto acadêmico. Não em sentido estrito. Não tem a estrutura, nem o viés, nem a forma e a estilística dos textos acadêmicos. Dispensa sua pompa e, mesmo, a profundidade com que teóricos tratam de questões científicas. Este é um texto para a comunidade mercantil, vale dizer, um texto que serve a empresários, investidores, auxiliares comerciais e profissionais diversos, designadamente advogados, contadores, administradores de empresa. Embora não seja acadêmico, não é desimportante. É útil e se esforça por tornar compreensíveis algumas questões que giram em torno aos concílios societários. É um ensaio ou, preferindo-se, uma prosa técnico-mercantil. Aliás, o melhor Direito é dialogado, não é brigado. Embora haja por aí bacharéis que se entregam a teses de discordância - sempre de olho em demandas ou, pretendendo-se juristas, arrumar um lugarzinho na indústria dos pareceres -, o Direito não serve à briga, mas busca a funcionalidade das relações: seu fim é a harmonia social e, justo por isso, define normas: são balizas de comportamento e parâmetros para a convivência. Claro que são possíveis posições diversas, seja de lege lata (e, por aí, caminharemos nos campos minados da política que, no Brasil, é mais interesseira e casuística do que técnica, mesmo em face de assuntos técnicos - ah! pobre de nós!), seja de lege ferenda, ou seja, nos sítios da interpretação, reino da hermenêutica. E posições diversas podem ser controversas, quiçá diametralmente opostas. Esse parágrafo de inauguração - quase uma pedalada sobre a bola, sem lhe dar sentido ou direção alguma: não mais que uma firula de estilo - dá sustentação à resposta formulada para um sócio de uma pessoa jurídica: - Posso levar alguém comigo à assembleia de sócios? Será preciso dar tratos à bola - mantendo o mote futebolístico já principiado - antes de responder. Falamos em sócio e, nesta, vamos acertar vários coelhos com uma cajadada só (se é que há cajado tão grande): sociedades de natureza simples e empresária (artigo 982 do Código Civil); sociedades contratuais1 (cujo ato constitutivo é um contrato social, regidas pelo Código Civil) e sociedades estatutárias (cujo ato constitutivo é um estatuto social, regidas pela Lei 6.404/76, se por ações, ou pela Lei 5764/71, se cooperativas), não importando o tipo societário adotado. E, para todos esses casos, será preciso ajeitar a jogada; como este ensaio se constrói a partir de uma conversa com um interessado (um empresário? um sócio? minoritário ou controlador? o administrador societário? o contador?), melhor será devolver a pergunta: - Alguém? Quem? - Sei lá! Meu advogado, por exemplo. Posso levar? Mesmo se o ato constitutivo disser que não? Sim. O direito de se fazer acompanhar de advogado tem raízes constitucionais e floração legal. No plano constitucional, compreende-se como um acessório das garantias de cidadania, de dignidade, de defesa de seus direitos, de propriedade, dentre outros (artigos 1º, II e III, 5º, e 133), ainda que por uma interpretação não-literal: estariam esvaziadas as faculdades constitucionais se a pessoa (natural ou jurídica) não pudesse se assessorar de profissional hábil a lhe explicar seus direitos e deveres, explicando seu conteúdo e orientando-a no seu exercício, mesmo nos casos em que tal vedação adviesse de uma manifestação de sua própria vontade (estamos, afinal, falando de uma cláusula em um contrato ao qual todos os signatários anuíram em pleno gozo de suas aptidões mentais). Essa interpretação é abalizada pela Lei 8.906/94, em seu artigo 7º, VI, d: É direito do advogado "ingressar livremente [...] em qualquer assembleia ou reunião de que participe ou possa participar o seu cliente, ou perante a qual este deva comparecer, desde que munido de poderes especiais". Não pode o ato constitutivo, seja o contrato social, seja o estatuto social, privar o sócio de uma assessoria jurídica. Basta recordar que essa assessoria é essencial mesmo em ambientes de maior gravidade e ainda quando haja previsão legal de sigilo e limitação de presença. - Só um advogado ou mais de um? Não há regra para isso e, então, será a razoabilidade que o decidirá. Essencialmente, é preciso garantir a assessoria jurídica adequada à pessoa e, sim, isso pode se realizar com um ou dois advogados. Um ou dois - mesmo que um advogado e o seu estagiário - é, em si, razoável. Mais do que isso, demanda atenção ao caso concreto: número de sócios (quotistas ou acionistas), complexidade das questões a serem tratadas ou, mesmo, da situação verificada. Obviamente, o grande desafio é: é assustadoramente comum que as pessoas não sejam razoáveis. E aí? Se não há acordo, há um litígio: uma disputa. E, daí, os caminhos são a conciliação, a mediação ou o processo arbitral (se há cláusula compromissória no ato constitutivo ou pacto parassocial) ou judiciário. Em suma, estabelecida a rinha, a empresa perde e, enfim, todos perdem. É temerário, é lamentável; mas, infelizmente, é comum. Não é caminho de bom destino, mas pode ser palmilhado. Nem se diga que o melhor seria quantificar o razoável, ou seja, definir um número. Se um número de advogados por sócio é definido, já não há falar em razoabilidade, senão em limitação2 pré-definida em contrato. De cara, adiantamos: não há lei que o faça. Mas o ato constitutivo - contrato ou estatuto social - pode fazê-lo, desde que não proíba a assessoria do advogado; um, dois, três. E será válido e eficaz... desde que seja razoável, considerado o caso concreto. - Como assim? O Direito não é a Física, nem qualquer outra ciência exata. Cuida-se de uma ciência humana ou, como se tornou mais contemporâneo, uma ciência social aplicada. Serve a um fim que, segundo Ulpiano, seria dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere). Não é coisa de caixa registradora, calculadora e computador. É coisa de gente - e nisso há muito e, aliás, há muita beleza. Dá até para fazer citação: o Direito é coisa de gente (Mamede, Arake: 2023). A Constituição da República, os Princípios Jurídicos, as leis... um organismo de preceitos e parâmetros que se amolda para procurar a melhor solução para cada caso. Por exemplo: o ato constitutivo falando em apenas um advogado por sócio na assembleia e a situação revelando que são muitas matérias, muitas disciplinas, muitas especialidades, os controladores previamente preparados por seus múltiplos especialistas (para todas as áreas envolvidas), o(s) outro (demais) sócio(s) tendo que encontrar um profissional enciclopédico que saiba de tudo, em contornos não razoáveis, ou seja, em moldes que desrespeitem as garantias e os princípios jurídicos societários. Lascou-se: litígio; aquele caminho de mal destino do qual já falamos. Mas há quem goste, não duvide. Há quem se apraze em caminhar pelos vales das sombras. A gente aprende isso na vida, não sem um incômodo, para alguns, não sem alguma fascinação, para outros (e deles queremos distância). "The more I learn about people, the more I like my dog" - dizem que disse Mark Twain: quanto mais aprendo sobre as pessoas, mais eu gosto do meu cachorro. Estudiosos e trabalhadores do Direito Societário, contudo, não podem optar pelos cachorros; restam-lhes as pessoas. Inexorável e inevitavelmente. Detalhe: muitas corporações tomam o cuidado de regular a assessoria jurídica e o fazem de forma lícita e razoável. O exemplo de norma mais comum é aquele que exige que a procuração para o advogado seja entregue, na sede da sociedade, com certo período (tem que ser razoável) de antecedência. Até 24 ou 48 horas antes da reunião/assembleia é o usual. O parâmetro é o seguinte: é possível disciplinar, mas sempre de forma razoável, que não atende contra a faculdade societária nem dificulte o seu exercício regular. Se não há regulamentação do direito à presença do advogado, aplica-se a regra genérica: basta chegar com o profissional, havendo ele de apresentar procuração com poderes suficientes para participar do evento. - E aí? As dúvidas acabaram? - Não! Posso levar um contador ou auditor? Já estamos avançando nos sítios da razoabilidade. E a resposta é simples: você pode levar especialistas em temas que não domine e que estejam na pauta. Noutras palavras, se o que está em jogo são contas, escriturações contábeis e afins, a presença de um especialista que o ajude a compreender o que está sendo apresentado e, assim, permitir ao sócio formar sua convicção e exercer seus direitos corporativos. Basta lembrar que o Código Civil permite a anulação do ato jurídico por erro ou por dolo (artigos 138 a 150) e, no caso, está se impedindo à pessoa compreender o que se passa para, então, decidir. Assim, não é correto proibir o sócio de ter acompanhamento técnico necessário para a deliberação. Nem haveria invocar liberdade contratual para prever o contrato (no ato constitutivo, em acordo de sócios ou regulamento de reuniões/assembleias): a previsão simplesmente atentaria contra o efetivo exercício da faculdade societária. Como facilmente se extrai dos argumentos acima expendidos, a mesma base jurídica sustenta a possibilidade de se levar qualquer outro especialista, em conformidade com o que se vá debater e decidir. Geólogos, engenheiros de Minas, engenheiros ambientais, biólogos; havendo matéria que demande conhecimento técnico que o sócio não tem, é seu direito fazer-se assessorar para, então, compreender adequadamente o que está posto, quais são as alternativas, formar sua convicção e manifestar seu voto consciente. - E posso levar minha namorada ou pai ou mãe ou marido ou amigo? Se não estão lá como especialistas técnicos necessários (a namorada é advogada; papai é contador e vão discutir as contas; mamãe é engenheira de Minas e vão deliberar sobre uma nova lavra de musgravita), a resposta é não. Reuniões e assembleias de sócios não são festas, nem eventos públicos. Não são como reuniões de condomínio edilício das quais participam não apenas os proprietários e/ou locatários das unidades habitacionais, mas qualquer morados e, não-raro, mesmo animais de estimação. São eventos privados de interesse restrito, limitando-se aos sócios e, conforme o caso, ao administrador societário não-sócio (e é lícito reunir-se sem a presença dele, vale dizer, é lícito impedir que o administrador não-sócio participe) e convidados pela coletividade social: contador, pareceristas, técnicos, gerentes, especialistas. A esses somam-se, se necessário, assessores das partes, como visto: advogados, contadores etc. - E meu animal de estimação? Não me sinto bem sem ele? Posso levar? Fora das hipóteses legais em que a presença do animal é obrigatória (e.g. cão guia - Lei nº 11.126/05), apenas em caso de autorização dos demais, uma vez que não há justificativa técnica para tanto. O mais interessante de tudo o que falamos, no entanto, é que a maioria das sociedades corre o risco de simplesmente não cuidar de nada disso em normas prévias; prefere cuidar do assunto quando o problema aparece. E, quando o problema aparece, ele já é um desafio. Isso não é sábio. Em Estruturação Jurídica de Empresas (Gladston e Eduarda Cotta Mamede, Editora Atlas, 2024) a questão é trata de outra forma: advogados que atuam na assessoria jurídica a empresas deveriam ter esse produto para oferecer a seus clientes: regimentos internos ou regulamentos de reuniões ou assembleias de sócios, cuidando antecipadamente desses e de outros aspectos sensíveis, deixando claras as regras aplicáveis e evitando conflitos: funciona assim e assado. Em fato, a melhor regulamentação de uma sociedade empresária não é a mais genérica, a que estabeleça menos regras: isso implica aceitar o parâmetro legal e, na ausência dele, que a lacuna seja resolvida pelo Judiciário ou por arbitragem. O melhor advogado chama atenção para conflitos possíveis e oferecem alternativas jurídicas, vale dizer, oferece a possiblidade de autorregulamentação. E é possível estabelecer regras as mais diversas para a reunião ou assembleia de sócios, atendendo aos interesses dos sócios. Há regulamentos que vedam reuniões em sábados, que regram horários, que disciplinam requisitos (envio de documentação prévia, como exemplo), entre outros aspectos. Também isso é estruturação jurídica de empresas. E boas empresas são aquelas que têm boa estruturação. __________ 1 Chamando atenção para o fato de que a expressão sociedade contratual , embora de uso corrente, demanda uma evolução jurídica. Afinal, desde que o ordenamento jurídico brasileiro acatou a possibilidade de se criar sociedades unipessoais, criou-se um desafio. Alguns falam, nesses casos, em contrato consigo mesmo; talvez fosse melhor falar em declaração unilateral de sociedade, pois é o que ocorre: o único sócio declara as cláusulas para a sociedade, por meio do registro público. 2 Mas que também não vemos problemas em que seja rediscutida diante do caso concreto. Vale dizer, os sócios tinham um contexto, um cenário, em mente ao pré-definirem numericamente o quantitativo máximo de assessores que cada um poderia tê-los acompanhando em um conclave. Se acaso esse contexto se modificar, o sócio interessado poderia pedir a revisão dessa cláusula (rebus sic stantibus). A limitação, por exemplo, poderia advir de uma questão física: não haveria assentos para todos os sócios e seus assessores nas dependências da sociedade. Entretanto, havendo a possibilidade de realização de assembleia de sócios virtual, ou seja, por videoconferência, essa limitação, por razões meramente físicas, já não faria mais tanto sentido.
Para desenvolver o tema, vamos tomar como hipótese um negócio de aquisição da totalidade das ações (ou quotas) representativas do capital de uma sociedade empresária. Negócio desta natureza propõe desde logo a dúvida quanto ao objeto da alienação: é o estabelecimento empresarial ou é a própria "empresa"?1 É verdade que não estamos, na hipótese, diante de um contrato de simples "trespasse", aquele expressamente admitido no Código Civil, pelos arts. 1.143 e 1.1442, que tem o estabelecimento mercantil ou empresarial como objeto unitário do negócio jurídico. Em consequência, a princípio, não se poderia aceitar a ideia de que a alienação ou venda da totalidade das ações ou das quotas do capital representa a transmissão de todos os elementos que formam a organização do estabelecimento, porque a alienação das ações ou das quotas do capital não é a alienação unitária do estabelecimento empresarial. Cabe assinalar que o nosso direito não reconhece a "empresa" como objeto de negócio jurídico, a exemplo do que ocorre no Direito português e no Direito alemão. Vale, neste ponto, anotar a doutrina de Catarina Monteiro Pires: "[a] empresa é um conjunto de coisas, direitos e valores patrimoniais e representa, jurídica e economicamente, uma unidade objetiva. Dito de outro modo, é um conjunto de coisas, direitos, deveres e bens imateriais que conformam uma unidade. Sendo a "empresa" uma unidade, a "venda da empresa" deve também ser compreendida unitariamente. Contudo, o Código Civil português, à semelhança do BGB anterior à reforma (modernização do direito das obrigações), não reconheceu a empresa como objeto de negócios e, apesar de, na tradição jurídica portuguesa, se conhecerem aprofundamentos relevantes da ideia de empresa como objeto de negócios, não é possível dizer que a empresa é, em sentido rigoroso, uma coisa ou um direito."3 É certo que se defende também em boa doutrina que a venda de ações ou quotas representativas da totalidade do capital equivale à venda indireta da própria empresa e do respectivo estabelecimento mercantil, como universalidades. Depois de examinar a doutrina portuguesa e alemã, Catarina Monteiro Pires, com apoio especialmente em Ferrer Correia, segue esse entendimento, especialmente quando a venda é da totalidade da participação no capital.4 Afirmada esta posição, com a qual nos colocamos de acordo, que é bem aceita entre nós também, no sentido de que a aquisição da totalidade do capital representa aquisição indireta do estabelecimento e da própria empresa, é necessário assinalar que o objeto desse negócio (a empresa ou o próprio estabelecimento) assume a natureza de "coisa" (incorpórea ou especial)5, de modo a atrair, no que couber, o regime do trespasse. Esta breve digressão nos encaminha ao reconhecimento de que a venda de "coisa" (empresa ou estabelecimento) atrai igualmente o regime da "garantia" e dos "vícios" que é próprio dos contratos comutativos, de forma que ao adquirente seria dado sempre o direito de exigir do alienante suportar a responsabilidade por dívidas (passivo) anteriores, não declaradas no balanço ou no contrato, porque o passivo não se transfere automaticamente ao adquirente, como expressamente consignado no art. 1.146 do Código Civil (O adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento.).6 Se a venda é de "coisa", o vício oculto (dívidas não declaradas) pode determinar a responsabilidade do vendedor e até a evicção. Este entendimento é sustentado amplamente na doutrina e na jurisprudência.7 De outra parte, é necessário lembrar que o estabelecimento, instrumento da empresa, reúne e organiza um conjunto de coisas para o desenvolvimento da atividade empresária. É o empresário que dá a cada coisa a afetação necessária ao estabelecimento e, consequentemente, ao desenvolvimento da empresa. Esta afetação decorre exclusivamente da vontade do empresário, que pode acrescentar ou retirar coisas da organização própria do estabelecimento. Decorre desta observação a enorme relevância que tem a vontade do empresário sobre as coisas na constituição do estabelecimento e no desenvolvimento da empresa. Destaca-se na doutrina brasileira o entendimento de Oscar Barreto Filho, de enorme prestígio, que sustenta que a natureza do estabelecimento como universitas facti pressupõe "que a sua existência e o seu conteúdo dependem, principalmente, da vontade de quem é seu titular. Deve-se, portanto, colocar em relevo essa vontade, para determinar quais são os elementos que o compõem, quando constitui objeto de negócios jurídicos."8 Certo é que, quando há alienação do estabelecimento junto com sua exploração, como sustenta Alfredo de Assis Gonçalves Neto, "o adquirente só assume a obrigação de responder pelo pagamento de débitos anteriores à transferência que estejam devidamente escriturados."9 Em outras palavras, a venda da empresa ou do estabelecimento não transfere ao adquirente o passivo não declarado e assumido na relação entre as partes do negócio (não estamos aqui se referindo a eventual responsabilidade direta ou solidária do sucessor na empresa). É fácil perceber como tem importância em negócio dessa natureza o levantamento prévio, assim como a declaração no contrato, do que efetivamente segue ao adquirente com a alienação, o que vale tanto para o passivo, como para o ativo, porque o adquirente é sucessor, propriamente cessionário, somente dos créditos que foram expressamente declarados no contrato ou em levantamento prévio (auditoria, balanço ou  due diligence).  Nenhuma dívida ou crédito é transmitido com a venda das ações ou das quotas, salvo aqueles que são próprios e necessários ao desenvolvimento ordinário da atividade empresária. Os débitos e os créditos não são elementos de empresa, e não se transmitem, portanto, com a venda da empresa ou do estabelecimento. Elementos de empresa são exclusivamente aqueles necessários ao desenvolvimento da atividade econômica empresária. Na lição de Jorge Manuel Coutinho de Abreu, "[o]s elementos empresariais a que o trespassante tenha direito por título obrigacional não se incluem no âmbito natural. Assim, por exemplo, não pode o trespassante ceder o gozo de máquinas, veículos ou mobiliário alugados ou emprestados sem autorização do locador ou do comodante. Atendamos por fim aos restantes contratos e créditos (cujos objectos não são elementos das empresas) e aos débitos - tudo fenómenos que, considerados directa ou indirectamente, não devem (em regra) merecer a qualificação de elementos ou meios empresariais. Avanço já o princípio: tais contratos (rectius, posições contratuais), créditos e débitos não cabem em regra no âmbito natural de entrega. Por não serem elementos do estabelecimento (o trespasse do "todo" não coenvolve as não-"partes") e por assim resultar das normas legais gerais."10-11 Para a cessão de créditos relativos ao estabelecimento, sustenta Coutinho de Abreu que valem as regras do Código Civil, e deve ocorrer por acordo (expresso ou tácito) entre trespassante-credor e trespassário.12 No direito brasileiro é exatamente assim. Prevê o art. 1.149 do Código Civil (A cessão dos créditos referentes ao estabelecimento transferido produzirá efeito em relação aos respectivos devedores, desde o momento da publicação da transferência, mas o devedor ficará exonerado se de boa-fé pagar ao cedente.), para o trespasse ou venda da empresa (ainda que indireta), que ocorra a necessária "cessão" de crédito referente ao estabelecimento transferido. Evidentemente a cessão de crédito deve ser aquela para a qual o Código Civil exigiu ato de vontade expressa (art. 286). Não se cuida, por certo, do crédito corrente da atividade desenvolvida pela empresa, como o pagamento de mercadorias faturadas, serviços realizados etc., integrantes dos elementos de empresa e que se transmite naturalmente com a sua alienação ou com a alienação do estabelecimento, salvo disposição em contrário. O crédito, cuja cessão não se opera por força do trespasse, ou da venda da empresa, é o crédito que não se identifica com a atividade empresarial desenvolvida e não integra os elementos de empresa. O trespasse ou a venda da empresa, é necessário salientar, não impõe a cessão dos créditos do estabelecimento, justamente porque os créditos não são elementos da empresa. Por isso a correta interpretação de Arnoldo Wald: "Tendo em vista que não há imposição legal, a cessão dos créditos do estabelecimento transferido se opera de forma convencional, ou seja, por acordo entre as partes, ou ainda, de forma judicial, resultante de sentença que determine a cessão. (...) Note-se que o novo Código não faz restrições quanto à espécie de transferência do estabelecimento. Assim, sujeita-se à aplicação do art. 1.149 todo ato que dê ensejo à troca de titularidade do estabelecimento, seja por trespasse, arrendamento, usufruto ou sucessão."13 Nesse sentido também Gladston Mamede: "Conforme o que tenha sido ajustado entre as partes no contrato de trespasse, poderá haver cessão dos créditos relativos às atividades empresariais relativas ao estabelecimento transferido. Há, aqui também, uma sucessão jurídica subjetiva, havida no polo ativo da relação de crédito/débito, ou, visto por um ângulo, sub-rogação na condição de credor. Aplicam-se aqui, a toda evidência, os artigos 286 a 298 do Código Civil."14 Ainda, na doutrina brasileira, encontra-se nesse sentido a opinião de Alfredo de Assis Gonçalves Neto. Para ele, "[a]s dívidas não são bens; integram o passivo da empresa em razão do seu exercício. Os créditos, de sua vez, são o produto da atividade do empresário; representam resultados dessa atividade e, como tal, sua destinação, a rigor, não é de incorporar-se ao estabelecimento. São as relações jurídicas, mantidas entre o empresário e terceiros, que asseguram o funcionamento permanente da empresa. Assim, os créditos vêm a ser os direitos decorrentes das relações jurídicas mantidas com terceiros; as dívidas, os ônus para o exercício ou do exercício desses créditos. Sob essa ótica, incluem-se e se englobam como bens incorpóreos do estabelecimento todos os direitos que viabilizam ou asseguram seu funcionamento, como os oriundos dos contratos de duração (de fornecimento, de distribuição, de concessão mercantil, de franquia, de agência), das relações de emprego (das quais resulta a manutenção de pessoal qualificado no atendimento da clientela) e, para não detalhar mais, das que determinam o fluxo dos clientes (através, por exemplo, de contratos formulários). Isoladamente considerados, os contratos são as fontes desses direitos; os créditos e as dívidas são, respectivamente, seus resultados e os ônus para exercê-los."15 (destacamos em negrito) O crédito, portanto, como resultado da atividade do empresário, ou especialmente como resultado do dano que sofreu (indenização), não se incorpora ao estabelecimento ou à empresa. O dano que foi experimentado pelos sócios, com reflexo patrimonial direto no valor da empresa vendida, não pode ser atribuído ao adquirente. Como acentua Alfredo de Assis Gonçalves Neto, "eles são fruto de negócios jurídicos mantidos entre o empresário e terceiros".  É possível que os créditos sejam incluídos no negócio de transmissão da empresa ou do estabelecimento (alienação de quotas e ações ou trespasse), mas é preciso que se faça esta inclusão expressamente, por contrato. O silêncio não pode ser interpretado contra o titular do crédito. Ninguém pode ser privado dos seus bens, sobre os quais exerce direito absoluto e potestativo, por sua quietude e placidez, ou seja, simplesmente porque nada disse. A transmissão tácita do crédito só pode ser admitida, por exceção, quando esse crédito é originário de relação jurídica inerente à exploração do estabelecimento16, o que não se verifica no caso em exame. O crédito ao qual nos referimos é aquele gerado a partir da atividade da própria sociedade que foi objeto do negócio, e que não se incorpora ao estabelecimento. A situação é muito diferente em relação à participação que a sociedade negociada pode ter no capital de outras sociedades, sabido que estas participações pertencem à própria sociedade e não aos seus acionistas e quotistas. Como as ações e quotas do capital da sociedade são representativas da participação que ela tem em outra sociedade, é natural que se considere inerente à alienação dessas ações e quotas os direitos patrimoniais sobre as participações societárias pertencentes à sociedade negociada, salvo se o contrato expressamente dispuser de forma diferente. __________ 1 Cabe aqui uma nota de esclarecimento. Como afirma Jorge Manuel Coutinho de Abreu, em obra clássica, "os bens de que o estabelecimento é feito ou, mais restritamente, os seus "factores produtivos" (os objetos e instrumentos de trabalho ou capital, num sentido amplo, e o trabalho) não são meramente agregados ou somados, não se encontram numa simples relação de intermutabilidade ou comutatividade. Estão articulados, inter-relacionados, estruturados estavelmente, com vista à consecução (eficiente ou "racional") de um fim (económico-produtivo). Quer dizer, o estabelecimento é uma organização. Dizendo de outra maneira (praticamente equivalente), o estabelecimento é um  sistema: "um complexo de elementos em interacção", uma unidade complexa (unitas complex), isto é, global, não elementar (constituídas por partes diversas não relacionadas), e original (com qualidades próprias), um "todo [que] é mais que a soma das suas partes", com propriedades "novas" ou "emergentes" (Da Empresarialidade - as empresas no direito. Coimbra : Edições Almedina, 1999, p 44-45). Podemos dizer que há um efeito sinérgico na combinação dos elementos que compõem o estabelecimento. O estabelecimento é, também, uma universalidade. A empresa, entendida como atividade econômica, distingue-se do estabelecimento, que é utilizado justamente para (ou como instrumento de) a "empresa", ou seja, para alcançar a finalidade e o objeto da sociedade empresária. 2 Segue-se o teor dos dispositivos: "Art. 1.143. Pode o estabelecimento ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza. Art. 1.144. O contrato que tenha por objeto a alienação, o usufruto ou arrendamento do estabelecimento, só produzirá efeitos quanto a terceiros depois de averbado à margem da inscrição do empresário, ou da sociedade empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis, e de publicado na imprensa oficial." 3 A aquisição de empresas e de participações acionistas - problemas e litígios. Edições Almedina, 2018.  Reimpressão de 2020, p.84. 4 Op. cit., p. 91. 5 Diz Catarina Monteiro Pires: "[a]s posições dominantes entre nós são no sentido de admitir o caráter de coisa do estabelecimento comercial ou da empresa ou de admitir, pelo menos, o exercício de determinados direitos normalmente exercitáveis sobre coisas em relação ao dito estabelecimento" (op. cit., p. 92). 6 Nesse sentido pode ser anotado o precedente do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, conforme a ementa que segue: "AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. OMISSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. TRESPASSE DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL. DÍVIDAS ANTERIORES. RESPONSABILIDADE. SÚMULA 5 E 7 DO STJ. 1. Não se viabiliza o recurso especial pela violação do dever de prestação jurisdicional, porque, embora rejeitados os embargos de declaração, a matéria em exame foi devidamente enfrentada pelo Tribunal de origem, que emitiu pronunciamento de forma fundamentada, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte recorrente. 2. A Corte de origem, soberana na análise dos fatos e das provas, consignou que a simples alienação do estabelecimento não desobriga o alienante da quitação do seu passivo, sendo certo que, no caso dos autos, não houve comprovação da existência de assunção de dívida ou de sucessão empresarial. Derruir a conclusão a que chegou o Tribunal a quo demandaria, necessariamente, interpretação de cláusulas contratuais, bem como novo exame do conjunto fático-probatório acostado aos autos, o que é vedado pelas Súmulas 5 e 7 do STJ. 3. O suporte fático normativo previsto no art. 1.146 do Código Civil, impõe outros requisitos além da mera transferência do estabelecimento comercial para a cristalização da solidariedade entre alienante e adquirente, notadamente a exigência de regular contabilização dos débitos anteriores à alienação, circunstância que não foi sequer alvo de argumentação da parte em sede recursal. 4. Agravo interno não provido." (AgInt no REsp 1457672/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 20/09/2018, DJe 25/09/2018) - destacamos em negrito 7 A respeito afirma Sérgio Brotel: "Poder-se-ia cogitar, ainda, da aplicação do instituto dos vícios redibitórios (CC, arts. 441-446) nas situações sob análise. Fala-se em vício redibitório quando uma coisa adquirida em virtude de contrato comutativo contém defeito oculto, que a torne imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminua o valor. Uma vez constatado o defeito, o adquirente poderá redibir (rescindir em virtude da constatação de vício redibitório) o contrato ou exigir a redução do preço proporcionalmente ao defeito constatado. Em que pese o texto legal falar da aplicação desse instituto às aquisições de coisas, i. é., bens tangíveis, a extensão da aplicação desse instituto nas aquisições de participações societárias parece legítima por apoiar-se em interpretação teleológica, e por adaptar o texto legal à realidade do direito societário, no qual as ações ou quotas representativas do capital de uma sociedade, classificadas tradicionalmente como bens intangíveis, representam, em verdade, um conjunto mutável e dinâmico de bens tangíveis utilizados para a exploração de uma atividade econômica." (Fusões & Aquisições. 5ª ed. São Paulo : Saraiva, 2017, p. 288/289). 8 Teoria do Estabelecimento Comercial - fundo de comércio ou fazenda mercantil. 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 1988, p. 151. No mesmo e exato sentido a antiga lição de Cesare Vivante: "Ma l'azienda mercantile, complesso di merci e di diritti, non è reconoisciuta dalla lege come un organismo autonomo. Se la legge accenna alla universalità di cose (art. 424 Cod. comm.), fra cui può stare anche l'azienda, è solo per riconoscere ai contraenti la facultà di fissarne il contenuto.  Essa è una mera universalità di fato constituita dalla voluntà del commerciante, che è il solo padrone della sua sorte e può alienarla o donarla sia nella sua totalità, sia scindendola in quante parti gli piace." (em tradução livre: Mas a empresa mercantil, complexo de bens e direitos, não é reconhecida pela lei como um organismo autônomo. Se a lei menciona a universalidade de coisas (art. 424 do código comercial), que também pode incluir a empresa, é apenas para reconhecer aos contratantes o direito de fixar o seu conteúdo. É uma mera universalidade de fato constituída pela vontade do comerciante, que é o único dono de seu destino e pode aliená-lo ou doá-lo em sua totalidade ou dividi-lo em quantas partes quiser.) (Trattato di Diritto Commerciale. v. II. 5ª ed. Milano : Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1928, p. 5, n. 842.) 9 Direito de empresa; comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 9ª ed. São Paulo: Thonson Reuters Brasil, 2019, p. 689. 10 Op. cit., p. 335/336. Em nota de pé de página (n. 868) o autor acrescenta: "Estes créditos e débitos podem constituir índice revelador da bondade e valor da empresa e de alguns "valores de exploração". Não são, porém (nem directa ou indirectamente), factores produtivos (objectos e instrumentos de trabalho ou capital, e trabalho) constituintes da organização empresarial - como são, v.g., as matérias primas, as mercadorias, os prédios, as máquinas, os veículos, as invenções patenteadas, os modelos industriais, o saber-fazer ou tecnologia, o trabalho -, nem são meios primordialmente individuantes ou identificadores dessa organização (e potenciadores dos valores de exploração) - como as recompensas, o nome e insígnia de estabelecimento (umas e outros incessíveis sem o estabelecimento), e as marcas." 11 É importante registrar, no mesmo sentido, a clássica doutrina de Alberto Asquini, que bem identificou a distinção entre "patrimônio aziendal" (relações jurídicas - débitos)  e "azienda" (estabelecimento), assim como identificou o patrimônio especial do empresário, que não tem relação com a atividade empresarial desenvolvida. Destaca-se um pequeno trecho: "Mas não há dúvida que, sobre a base do código, a distinção já feita pela doutrina precedente, entre o conceito de patrimônio aziendal e de azienda em sentido estrito, conserva todo o seu valor. De resto a distinção corresponde à realidade das coisas, a qual ensina que nas diversas relações jurídicas (de gestão, de transferência etc.) pode ser deduzida seja a azienda como res, seja a azienda como patrimônio aziendal (compreendidos, portanto, os débitos)." Em outro ponto do texto, Asquini destaca o valor da autonomia privada a respeito desta questão: "... o código deixa, em relação à matéria, à autonomia privada, as mais amplas margens de liberdade." (Perfis da Empresa. Tradução de Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. N. 104/1996, p. 109/126). O Código brasileiro separou bem um patrimônio de outro no seu art. 1.148, exatamente como defendeu a doutrina de Asquini. 12 Op. cit., p. 337. 13 Comentários ao Novo Código Civil, v. XIV: livro II, do direito de empresa. Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro ; Forense, 2005, p. 761. 14 Empresa e atuação empresarial . 12 . ed.  São Paulo : Atlas, 2020, p. 198. 15 Direito de empresa; comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 9ª ed. São Paulo: Thonson Reuters Brasil, 2019, p. 674. 16 É a opinião do autor (op. cit., p. 698).
A Corte Constitucional italiana decidiu recentemente, em 5 de julho de 20231, sobre a constitucionalidade do art. 27, da Legge 4 maggio 1983, n. 184, que cuida do "Diritto del minore ad una famiglia". O caso envolvia duas crianças que ficaram privadas dos seus pais depois do homicídio da mãe, causado pelo pai, e a decisão que retirou do pai a responsabilidade paterna. Essas crianças foram entregues incialmente aos tios-avós paternos, residentes no Reino Unido. No entanto, a Corte de Apelação italiana entendeu que a situação não era adequada e declarou o estado de adoção dessas crianças, conservadas, no entanto, as relações com a avó materna, e com o núcleo familiar paterno, em razão da relação já estabelecida com os menores, que não poderia ser prejudicada pelo trauma ocorrido, e em favor da reconstrução da sua história pessoal e familiar. Coube um recurso da Procuradoria Geral de Milão para a Corte de Cassação, no qual se sustentou que não poderia ser concedida a adoção nessas condições sem afrontar a lei vigente, numa modalidade de adoção moderada ou "aberta", em um regime alternativo à adoção plena, que ao mesmo tempo conservava os vínculos de origem familiar dos adotados. Foi posta a discussão da legitimidade constitucional do disposto da Lei italiana indicado  (art. 27 da Legge 184/1983). Esse dispositivo da Lei italiana regula a adoção, e no seu parágrafo terceiro estabeleceu que "com a adoção cessam as relações do adotado com a família de origem, salvo os impedimentos matrimoniais" (em tradução livre)2. No Brasil, a redação do art. 41, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, se aproxima muito daquela encontrada na Lei italiana, como se vê: "Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais." Esse rompimento ("desligamento", como diz a Lei brasileira) do adotado com a sua família de origem foi o tema levado ao exame da Corte Constitucional italiana, em juízo de legitimidade constitucional em via incidental (Sentenza 183/2023). A questão em pauta na Corte dizia respeito à possibilidade de avaliação concreta pelo juiz do interesse preeminente e superior da criança em manter suas relações socioafetivas com a sua família de origem, embora concedida a adoção, no caso concreto, em razão do estado de abandono em que se encontravam as duas crianças. No caso examinado, a decisão se refere às relações dessas crianças com a avó materna e com alguns parentes do lado paterno, até o quarto grau. A dúvida levada à Corte Constitucional sobre a legitimidade daquele dispositivo da Lei italiana foi posta em razão do confronto aparente com os artigos 2º, 3º, 30 e 117, parágrafo primeiro, da Constituição italiana, este último em relação ao art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e com os artigos 3º, 20, parágrafos 3º e 21, da Convenção sobre os Direitos da Criança (de Nova York, de 20 de novembro de 1989)3, ratificada pela Lei de 27 de maio de 1991, n. 176, bem como com o art. 24 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia4. Essa questão oferece enorme interesse para o direito brasileiro, que dispõe de forma muito semelhante a respeito da adoção, sabido que se inclinou o Estatuto da Criança e do Adolescente a um modelo de adoção plena, aquele que se propõe a reproduzir, com a maior fidelidade possível, os efeitos da filiação natural, concedendo ao adotado, como assinalou a Corte Constitucional italiana, "uma espécie de renascimento".   Esse modelo de adoção tem um duplo efeito: constitutivo e extintivo. A lei rompe os laços familiares de origem do adotado e constitui uma nova família, erguendo um muro divisório entre as duas famílias, de modo a encobrir em segredo a génese adotiva da filiação.5 O efeito é uma espécie de apagamento radical do passado, com o cancelamento da história de vida precedente do adotado. A Lei italiana (lei 184/1983), desde a modificação que sofreu em 2001, com acréscimo feito ao seu art. 28, assegurou ao adotado o direito de ser informado de sua condição pelos adotantes, assim como garantiu aos adotantes obter informações sobre os pais biológicos, mediante autorização judicial.6 Este trânsito de informações relativizou o rigor com o qual se opera esta separação do passado, valorizando o direito à identidade pessoal a partir do conhecimento da origem e história parental. Foi nesse sentido que a Corte Constitucional italiana, julgando outro caso (Sentenza nº 278/2013), entendeu que a renúncia à parentalidade legal (optando a mãe natural pelo anonimato em caso de adoção) não implica em renúncia irreversível e definitiva da parentalidade natural e na proibição da relação mútua e de fato entre mãe e filho. A Corte Constitucional italiana aponta uma tendência crescente, verificada na legislação italiana, no sentido de assegurar a continuidade das relações socioafetivas, mesmo durante período de acolhimento, como um fator importante ao desenvolvimento da personalidade da criança, vencendo-se o paradigma do sigilo impenetrável entre o núcleo parental de origem e a família adotiva, e consolidando a ideia de que a criança abandonada nem sempre exige, em favor do seu interesse, um apagamento radical do passado, por mais doloroso que tenha sido. A proteção da identidade da criança, afirma, está associada ao reconhecimento da importância, por um lado, da consciência das próprias raízes e, por outro lado, da possível continuidade das relações socioafetivas com figuras que desempenharam um papel positivo no seu processo de crescimento. A decisão da Corte Constitucional italiana é rica no exame da evolução da adoção e de decisões dos tribunais europeus e aponta para uma evolução da jurisprudência, do direito vivente, no sentido de considerar a adoção plena um recurso extremo, porque é cada vez mais forte e profunda a consciência de que há uma variedade de situações que podem afetar a condição do menor e a necessidade de não o separar, sempre que possível, do seu núcleo familiar de origem, sabido que a divisão de uma família é uma ingerência muito grave, que deve basear-se em considerações inspiradas nos interesses da criança e justificadas solidamente. E nessa linha, anota a Corte, os tribunais têm procurado uma proteção adequada para as crianças que considere a distinção entre a falta temporária de um ambiente familiar apropriado aos seus interesses superiores e aquele estado puro de abandono, tendo como certo que o afastamento da criança de sua família é uma medida extrema. Em favor dessas novas percepções, assinala, começa a se formar uma jurisprudência que procura experimentar um novo modelo de adoção, uma "adoção aberta", conjugando as exigências de uma adoção plena com a necessidade de preservar as relações socioafetivas com os componentes da família biológica. Estabelece-se, assim, uma convivência entre a relação jurídica-formal de parentalidade decorrente da adoção com aquela outra relação de parentalidade natural e afetiva de origem da criança. Diante dessas colocações, a Corte Constitucional italiana encaminha um decisão no sentido de reconhecer que a necessidade de distanciar (ou desligar, como diz a nossa lei) a criança da família de origem, e de um passado doloroso, pode representar, no caso, uma medida de proteção do adotado, mas a presunção que decorre da lei nesse sentido, ao impor rigorosamente esta solução, não pode implicar na proibição do juiz reconhecer concretamente um interesse do adotado em dar continuidade às relações socioafetivas positivas com a sua família de origem, evitando-se a ruptura dessa história de vida parental de modo a preservar a sua identidade em favor do desenvolvimento equilibrado da sua personalidade. Afinal, diz a Corte italiana, a tutela da identidade do menor (e com ela o seu interesse em preservar relações afetivas positivas) não é compatível com modelos rigidamente abstratos e com presunções absolutas, completamente insensíveis à complexidade das situações pessoais, que podem negar concretamente a generalização que é a base da própria presunção. E há indicações muito seguras de que é relativa a presunção de que a ruptura das relações de fato com membros da família biológica seja do interesse do próprio menor. Por todos esses motivos a Corte Constitucional italiana concluiu, sem reconhecer a inconstitucionalidade da Lei italiana, que o juiz pode verificar se existem razões concretas que levam a considerar prejudicial o rompimento de uma relação socioafetiva com alguém que no passado estabeleceu relações positivas com o menor, e que representaram um ponto de referência afetiva em seu processo de crescimento e que pertencem à sua memória. A cessação das relações com a família biológica pertence necessária e obrigatoriamente ao nível das relações jurídicas-formais. No que diz respeito, porém, à interrupção de relações de natureza socioafetiva, a lei contém uma presunção juris tantum de que a separação de fato da família de origem é do interesse do menor. Tal presunção não exclui, na perspectiva constitucional da proteção do menor e de sua identidade, o reconhecimento de que o juiz pode apurar se a continuidade de significativas, positivas e consolidadas relações socioafetivas com membros da família de origem tem o potencial de realizar o melhor interesse do menor e, pelo contrário, a sua interrupção é tal que pode causar prejuízo a ele. Onde existem raízes afetivas profundas com familiares que não conseguem compensar o estado de abandono, é primordial o interesse do adotado em não sofrer o trauma ulterior da sua separação e em ver preservada uma linha de continuidade com o mundo do afeto, que pertence à sua memória e que constitui uma peça importante da sua identidade. A Constituição brasileira assegura à criança e ao adolescente o direito à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 227), o que compreende, sem nenhuma dúvida, o direito à preservação da sua história parental e afetiva. A disciplina legal da adoção de irmãos é particularmente interessante a esse respeito. O nosso Estatuto da Criança e do Adolescente indica que a adoção deve ocorrer em relação a eles de forma conjunta "procurando-se, em qualquer caso, evitar o rompimento definitivo dos vínculos fraternais" (art. 28, § 4º). Procura, assim, a continuidade das relações parentais entre os irmãos, reconhecendo que ela é fundamental para o desenvolvimento da personalidade da criança, mas não dedicou a mesma atenção aos demais membros da família de origem. Essa ambiguidade da Lei brasileira entre os dois mundos (o mundo jurídico-formal e o mundo afetivo) não tem sido notada e já é hora de dar um passo importante em favor do direito fundamental à identidade. A decisão da Corte Constitucional italiana não é uma novidade. Em 2015 o Código Civil espanhol7 foi modificado pela lei 26/2015 nesse sentido e nos Estados Unidos a open adoption já é conhecida há muitos anos, no sentido de manter as relações sociais com a família de origem, embora sujeita a um modelo muito diferente do nosso, no qual se impõe um acordo entre as famílias e a sua aprovação judicial. A adoção deve ser antes de tudo um meio de realização plena dos direitos fundamentais e do desenvolvimento da pessoa e não uma causa de sua privação. Ao adotado não deve ser imposto, salvo em situação de excepcional proteção, esse rompimento entre o presente e o passado, o apagamento da sua história e da sua memória afetiva. O modelo de adoção plena absoluto, fechado, não consegue alcançar todas as situações de fato envolventes da vida. Há espaço para uma interpretação construtiva. __________ 1 A decisão foi "depositata in Cancelleria" em 28 de setembro de 2023 e disponibilizada no sítio eletrônico da Corte e pode ser acessada pelo link. 2 No original, com destaque nosso em negrito ao parágrafo terceiro: "ART. 27. Per effetto dell'adozione l'adottato acquista lo  stato  di  figlio nato nel matrimonio degli adottanti, dei quali assume e trasmette  il cognome. Se l'adozione e' disposta nei confronti della moglie  separata,  ai sensi dell'articolo 25,  comma 5, l'adottato assume il  cognome  della famiglia di lei. Con l'adozione cessano i rapporti dell'adottato verso  la  famiglia d'origine, salvi i divieti matrimoniali." 3 Destaco especialmente o art. 20 da Convenção sobre os Direitos da Criança: "Artigo 20. 1. Crianças temporária ou permanentemente privadas do convívio familiar ou que, em seu próprio interesse, não devem permanecer no ambiente familiar terão direito a proteção e assistência especiais do Estado. 2. Os Estados Partes devem garantir cuidados alternativos para essas crianças, de acordo com suas leis nacionais. 3. Esses cuidados podem incluir, inter alia, a colocação em orfanatos, a kafalah do direito islâmico, a adoção ou, caso necessário, a colocação em instituições adequadas de proteção da criança. Ao serem consideradas as soluções, especial atenção deve ser dada à origem étnica, religiosa, cultural e linguística da criança, bem como à conveniência da continuidade de sua educação." 4 Em português: "Artigo 24º Direitos das crianças 1. As crianças têm direito à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar. Podem exprimir livremente a sua opinião, que será tomada em consideração nos assuntos que lhes digam respeito, em função da sua idade e maturidade. 2. Todos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança. 3. Todas as crianças têm o direito de manter regularmente relações pessoais e contatos diretos com ambos os progenitores, exceto se isso for contrário aos seus interesses."(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia) 5 É assim no Brasil, visto que o Estatuto da Criança e do Adolescente determina o segredo da adoção no registro, feito de modo a imitar a filiação natural: "Art. 47. O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão. § 1º A inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome de seus ascendentes. § 2º O mandado judicial, que será arquivado, cancelará o registro original do adotado. § 3 o A pedido do adotante, o novo registro poderá ser lavrado no Cartório do Registro Civil do Município de sua residência. § 4º Nenhuma observação sobre a origem do ato poderá constar nas certidões do registro." (...) 6 A doutrina italiana aponta uma mudança do clima cultural da adoção de menores a partir desta modificação legislativa. Na Itália, à semelhança do que ocorreu no Brasil, numa primeira fase, a adoção era ordenada em favor do interesse do adotante no sentido da transmissão do seu nome e da herança, e em uma segunda fase a adoção assume um fim assistencial e solidarístico, colocando em segundo plano o interesse do adotante. Em uma terceira fase, particularmente na Itália, a partir dessa modificação legislativa de 2001, a adoção é identificada como instrumento de reação às carências demográficas e à crescente dificuldade e frustração de realização do projeto de parternidade ou parentalidade. Numa quarta fase, atual, aponta a doutrina italiana, que se verifica uma evolução e reavaliação da importância das relações do menor com a família biológica, o que ocorre também em favor da consolidação da orientação da Corte europeia dos direitos do homem no sentido de que a interrupção da relação do adotado com a família de origem deve ser vista como uma medida extrema e remota (ver por todos ALFIO GUIDO GRASSO, com amplas referências ao pensamento europeu atual, in Adozione aperta. Tra conservazione dei rapporti con la famiglia d'origine e redifinizione in nuovo núcleo familiare. Dov'è l'interesse del minore. Rivista dell'Associazione dei civilisti italiani. Numero due Maggio-Agosto 2023. Pacini Giuridica). 7 A atual redação do art. 178 do Código Civil espanhol: "1. La adopción produce la extinción de los vínculos jurídicos entre el adoptado y su familia de origen. 2. Por excepción subsistirán los vínculos jurídicos con la familia del progenitor que, según el caso, corresponda: a) Cuando el adoptado sea hijo del cónyuge o de la persona unida al adoptante por análoga relación de afectividad a la conyugal, aunque el consorte o la pareja hubiera fallecido. b) Cuando sólo uno de los progenitores haya sido legalmente determinado, siempre que tal efecto hubiera sido solicitado por el adoptante, el adoptado mayor de doce años y el progenitor cuyo vínculo haya de persistir. 3. Lo establecido en los apartados anteriores se entiende sin perjuicio de lo dispuesto sobre impedimentos matrimoniales. 4. Cuando el interés del menor así lo aconseje, en razón de su situación familiar, edad o cualquier otra circunstancia significativa valorada por la Entidad Pública, podrá acordarse el mantenimiento de alguna forma de relación o contacto a través de visitas o comunicaciones entre el menor, los miembros de la familia de origen que se considere y la adoptiva, favoreciéndose especialmente, cuando ello sea posible, la relación entre los hermanos biológicos. En estos casos el Juez, al constituir la adopción, podrá acordar el mantenimiento de dicha relación, determinando su periodicidad, duración y condiciones, a propuesta de la Entidad Pública o del Ministerio Fiscal y con el consentimiento de la familia adoptiva y del adoptando si tuviera suficiente madurez y siempre si fuere mayor de doce años. En todo caso, será oído el adoptando menor de doce años de acuerdo a su edad y madurez. Si fuere necesario, dicha relación se llevará a cabo con la intermediación de la Entidad Pública o entidades acreditadas a tal fin. El Juez podrá acordar, también, su modificación o finalización en atención al interés superior del menor. La Entidad Pública remitirá al Juez informes periódicos sobre el desarrollo de las visitas y comunicaciones, así como propuestas de mantenimiento o modificación de las mismas durante los dos primeros años, y, transcurridos estos a petición del Juez."
1. A hipótese Em função de um ativismo judiciário que não-raro vence as previsões legais para considerar outras referências, o mercado (os atores mercantis) passou a buscar amparo jurídico para pretensões que colocam como expressão de compreensões que buscam remunerar com mais envergadura e dinamismo as iniciativas individuais. O Direito deve amoldar-se a tais tendências? Se se amolda, cumpre sua função para com a sociedade? Ou será que, pelo contrário, seu papel seja justamente o de garantir parâmetros que, sim, podem implicar perdas de chances em face da necessidade de segurança, de parâmetros? Apresentamos nas próximas seções um estudo que procurará explorar paradoxos para, construindo um cenário, promover um diálogo sobre tais questões. Neste paradoxo serão antepostas pretensões coletivas e pretensão individual sob dois ângulos diversos: econômico e jurídico. Em suma, um balão de ensaio, em ambiente controlado, do que se debate à larga em foros diversos, nomeadamente essa ágora (ou fórum) virtual amplo que são as redes sociais. A hipótese que traçamos é a seguinte: suponha uma sociedade limitada contratada por tempo determinado (ressaltamos: contratada por tempo determinado: prazo ou termo certos), cujo contrato social prevê que a alienação de quotas para terceiros exige aprovação unânime dos demais sócios. Ocorre que um dos sócios recebe uma excelente proposta de um terceiro por suas quotas, leva-o à reunião de sócios que não aceitam o ingresso do terceiro, ao mesmo passo em que nenhum dos demais sócios se interessa por adquirir a participação societária pelo valor oferecido pelo terceiro. Nesse caso, o sócio em questão poderia arguir essa situação como caracterização de "justa causa" para exigir, judicialmente, a sua retirada antes do termo?   - Para quem estamos advogando? - pergunta um. -  Advogue para o sócio que pretende vender sua participação - responde o gaiato. Clique aqui e confira a íntegra da coluna.  
Em agosto de 2023, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) publica a sua 6ª edição do seu Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa. O documento atual inova em alguns aspectos, incorporando quantitativa e qualitativamente normas voltadas para as práticas ASG (Ambiental, Social e Governança). O stakeholderismo influencia a sua elaboração, iniciando pelo fundamento ético da governança corporativa que passa a irradiar sobre os princípios de governo (integridade, transparência, equidade, responsabilização e sustentabilidade). As recomendações visam a proteção não somente de sócios, mas incluem colaboradores, fornecedores, clientes, comunidades, meio ambiente e a sociedade em geral.   Essa preocupação ética mais abrangente em relação à eleição dos interesses a serem protegidos provoca uma reformulação do próprio conceito de governança corporativa1 presente no documento. A sustentabilidade e o equilíbrio entre os interesses de todas as partes passam a ser centrais. Essa pauta é percebida em recomendações como a da diversidade na composição do conselho de administração. A pluralidade de perspectivas no processo de tomada de decisões é valorizada no documento, em que pese o fato da carência, ao nosso ver, de recomendações práticas nesse sentido. O Código do IBGC (soft law) ganha publicidade quando a União Europeia encontra-se em estágio avançado nas discussões sobre o seu projeto de Diretiva das Empresas e dos Direitos Humanos (hard law) e a agenda global discute parâmetros para um capitalismo responsável. O momento do atual desenvolvimento do direito societário da União Europeia (UE) é classificado por Stefan Grundmann como sendo o da green box. O conceito central proposto pelo professor da Humboldt-Universitat baseia-se na ideia de que a responsabilidade para com a coletividade e entre gerações é primordial, tanto nas atividades econômicas como no direito societário. O professor menciona três exemplos claros dessa visão identificados nos megaprojetos do direito das sociedades da UE presentes na última década: (i) não externalização dos efeitos adversos da ação privada para a coletividade (contribuintes); (ii) proteção proativa dos valores fundamentais, quando a economia europeia é a fonte de riscos para esses valores; e (iii) apelos aos mais importantes decisores para que partilhem as suas estratégias, as tornem visíveis, as submetam à crítica e, além disso, se abstenham de injustiças.2 Discussões que pretendem inovações, também, no governo das organizações. O estudo histórico da governança corporativa permite-nos identificar que demandas sociais (especialmente as crises) provocam a transformação das recomendações (soft law) em hard law.3 Aqui questionamos: no ensejo da publicação desse novo código pelo IBGC, qual a utilidade do documento no contexto atual de relevantes demandas sociais exigindo que negócios sejam explorados de forma ética e sustentável? Nosso questionamento traduz um importante dilema no campo da governança corporativa: devemos optar pela produção de hard ou de soft law quando pensamos no aprimoramento do governo das sociedades? Uma das razões que justifica a relevância dos códigos de governança corporativa é a de que eles incentivam efetivamente as organizações na implementação de estruturas de governo mais sólidas e na melhor divulgação de informações para os participantes do mercado.4 Esse argumento evidencia a orientação ética do novo Código do IBGC e o alinha com a Resolução CVM n. 59/2021. Lembramos que a normativa da CVM reflete a preocupação da autarquia com a pauta ASG, conforme explicam Luciano Timm, Henrique Misawa e Patrícia Medeiros.5 A literatura especializada, ao diferenciar diferentes tipos de Códigos de Governança Corporativa, acusa que esses documentos podem ser vistos como mecanismos que facilitam a convergência da governança entre países. Essa convergência é o resultado de várias forças externas, entre as quais as mais poderosas são a globalização, a liberalização do mercado e a influência dos investidores estrangeiros.6 Para concluir, o atual Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa do IBGC vem em bom momento. Espera-se por iniciativas normatizantes e vinculativas (hard law) que acompanhem o momento global, entretanto. __________ 1 Governança corporativa é um sistema formado por princípios, regras, estruturas e processos pelo qual as organizações são dirigidas e monitoradas, com vistas à geração de valor sustentável para a organização, para seus sócios e para a sociedade em geral. Esse sistema baliza a atuação dos agentes de governança e demais indivíduos de uma organização na busca pelo equilíbrio entre os interesses de todas as partes, contribuindo positivamente para a sociedade e para o meio ambiente. In Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa. Disponível aqui.  Acesso em: 15.08.2023. 2 GRUNDMANN, Stefan. European Company Law in transformation-strive for participation and sustainability. Yearbook of European Law, 2023, yead002. 3 ROSENVALD, Nelson; OLIVEIRA, Fabrício. Governança nos grupos societários: Inovações. Editora Foco, 2023 e OLIVEIRA, Fabrício de Souza. Governança Corporativa: a crise financeira e os seus efeitos (equívocos e possibilidades). 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2022. 4 DUH, Mojca. Corporate governance codes and their role in improving corporate governance practice. Corporate governance and strategic decision making, 2017, 8: 53-87. 5 Os impactos da nova Resolução CVM n. 59. Disponível aqui. Acesso em: 15.08.2023. 6 DUH, Mojca. Corporate governance codes and their role in improving corporate governance practice. Corporate governance and strategic decision making, 2017, 8: 53-87.
Instituída por meio da lei 13.874/19, a possibilidade da sociedade limitada ter apenas um sócio é ainda nova entre nós. Uma criança miúda. Para se ter uma ideia, há quem ainda se refira a sociedade limitada unipessoal, como se fosse um tipo diverso. Não é. Há apenas a sociedade limitada que, por disposição do artigo 1.052, § 1º, do Código Civil, pode ter de um a "n" sócios. Um, dois, três... trezentos sócios: uma sociedade limitada. No entanto, há questões que, sim, são próprias da unipessoalidade e, novas, ainda permitem alguma discussão. Podem mesmo ser questões simples mas que, em função da novidade, ainda demandem ser esmiuçadas até que se forme uma convicção coletiva, uma cultura societária que vença as paredes da academia e se torne comezinha na comunidade em geral, nomeadamente em meio aos atores mercantis. É o que se passa com essa questão: Se o cônjuge do sócio único de uma sociedade limitada vier a falecer, a(s) quota(s) deverá(ão) ser inventariadas?  E havendo divórcio, irão compor a partilha? Essa pergunta nos foi formulada por um sócio inconformado. Repetia o consulente que ela nunca fez parte da sociedade. Argumentava que uma coisa é a sua pessoa, outra coisa é a pessoa da sociedade limitada e seu patrimônio. Vociferava contra a pretensão de se avaliar o valor da empresa em lugar de apenas 50% do capital social. E completava: a empresa pertence à sociedade; o que me pertence são as quotas; ela não tem nenhum direito sobre a empresa. A questão não se aplica apenas à sucessão do cônjuge ou convivente do sócio único mas, por igual, à hipótese de divórcio e de dissolução da convivência, sempre que a participação societária do único sócio componha o patrimônio comum. Parece-nos, essencialmente, que o detalhamento jurídico dos elementos é suficiente para elucidar a dúvida. Senão, vejamos. Antes de mais nada, a resposta às questões parte de um dado prejudicial: é preciso considerar o regime de bens. Se for comunhão universal ou se a participação societária for alcançada pela comunhão parcial ou participação final nos aquestos, as quotas comporão o patrimônio comum e terão que compor o bolo a ser partilhado. O fato de o cônjuge não compor a sociedade não altera a questão. Se o regime for de comunhão universal ou de comunhão parcial, os bens pertencem a ambos, ainda que em nome de um só: Art. 1.660. Entram na comunhão: I - os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges; [...] Assim, as quotas que estão em nome de um cônjuge, pertencem também ao outro cônjuge. Falecendo este, será preciso incluir na herança 50% das quotas (e não do capital social). Se há comunhão, os bens pertencem a ambos, ainda que em nome de um só. A mesma lógica se aplicará ao divórcio: não é a condição de sócio que deverá compor a partilha, mas o valor patrimonial da(s) quota(s) representativas do capital social da sociedade limitada, já que unipessoal. - Mas se as quotas que estão em nome do sócio único compõem o patrimônio comum do casal, ou seja, se pertencem também ao cônjuge (ou companheiro), a sociedade não é, de fato, unipessoal. São dois titulares­ - seria possível objetar. Não. Só há um sócio. Só ele consta do ato constitutivos, só ele pode deliberar e exercer os direitos sociais que correspondem à(s) quota(s). Efetivamente, é uma sociedade com um só sócio. O cônjuge não tem qualquer faculdade societária que vá além dos direitos patrimoniais sobre a(s) quota(s). Composição, deliberações e administração ainda são questões afetas exclusivamente ao sócio unitário. Detalhe: isso inclui mesmo a alienação de bens pela sociedade, ainda que imóveis: basta que o sócio delibere, se o contrato exigir, e a sociedade aliene. - Certo. Mas como pode a sociedade se tornar patrimônio comum do casal? Afinal, ela própria é uma pessoa jurídica! Como compatibilizar a ideia de autonomia patrimonial (entre a pessoa do sócio e a pessoa da sociedade) com essa pretensão de inventariar a empresa cujo ex-cônjuge, morto ou divorciado, apenas, cônjuge e não sócio do negócio? A solução exige compreender que, em relação às sociedades, simples ou empresárias, há duas dimensões que poderiam ser demarcadas a partir do registro e, com ele, a entificação (criar-se pessoa jurídica) da iniciativa jurídica-econômica. Desse ponto para lá, há uma pessoa jurídica autônoma; desse ponto para cá (em suas funções intestinas), a sociedade é um acordo de vontades (definido por meio de contrato ou estatuto social) e uma comunhão de investimentos: seu(s) sócio(s) delibera(m) sobre os elementos da sua existência, do seu funcionamento. E, em função do investimento feito, cria-se um direito patrimonial. Então, a quota ou ação deve ser encarada como uma moeda: no verso, direitos sociais, como participar das deliberações; no anverso, direitos patrimoniais: a quota e a ação são bens jurídicos patrimoniais. Por isso vão compor o acervo que, ao final, será partilhado entre os ex-cônjuges ou entre os herdeiros. Mas veja: não se partilham as quotas, mas o valor das quotas. Salvo previsão contratual em sentido diverso, o ex-cônjuge ou seus herdeiros não tem o direito de assumir as quotas na condição de sócios. Os direitos sociais não compõem o acervo, só os patrimoniais. Claro, tudo fica mais simples se as partes acertarem entre si que à partilha corresponderá à aceitação de novos sócios, na proporção da(s) parte(s) que lhe(s) cabe(m). Se assim não ocorre, afere-se o valor global do patrimônio comum e cada qual assume bens que correspondem à sua parte. A questão mais interessante é a avaliação dessa participação. Há três valores possíveis para a(s) quota(s) de uma sociedade: (1) o valor contratual, que corresponde ao montante investido (subscrito e integralizado) pelo sócio. Mas o tempo e a evolução da atividade negocial criam um lapso entre o valor expresso e o valor efetivo. Afinal, a cada quota corresponde o direito a um percentual sobre o patrimônio empresarial. Se há dissolução e liquidação, quem um dia investiu R$ 10.000,00, ficando com 10% do capital social, tem direito a 10% do patrimônio líquido e não a R$ 10.000,00. Se, ao final, o saldo da liquidação foi R$ 72.000,00, terá direito a apenas R$ 7.200,00. Se foi R$ 2.000.000,00, terá direito a R$ 200.000,00. Não é o capital investido que compõe o patrimônio comum do casal. É o valor que a participação tem no momento do divórcio ou da morte do cônjuge do sócio. Para se avaliar as quotas, é preciso avaliar a sociedade. Assim, avaliada a sociedade, o valor de 50% das quotas corresponderia a 50% do valor da sociedade. Mas há o segundo valor possível, entre os três acima anunciados: (2) valor apurado segundo o último balanço. Não seria esse o valor global a permitir calcular o valor das frações (as quotas)? Afinal, o levantamento do balanço é obrigação legal, veja o Código Civil: Art. 1.179. O empresário e a sociedade empresária são obrigados a seguir um sistema de contabilidade, mecanizado ou não, com base na escrituração uniforme de seus livros, em correspondência com a documentação respectiva, e a levantar anualmente o balanço patrimonial e o de resultado econômico. Art. 1.188. O balanço patrimonial deverá exprimir, com fidelidade e clareza, a situação real da empresa e, atendidas as peculiaridades desta, bem como as disposições das leis especiais, indicará, distintamente, o ativo e o passivo. Há mesmo regra para que os bens sejam inventariados para, assim, haver adequada composição do patrimônio ativo: Art. 1.187. Na coleta dos elementos para o inventário serão observados os critérios de avaliação a seguir determinados: I - os bens destinados à exploração da atividade serão avaliados pelo custo de aquisição, devendo, na avaliação dos que se desgastam ou depreciam com o uso, pela ação do tempo ou outros fatores, atender-se à desvalorização respectiva, criando-se fundos de amortização para assegurar-lhes a substituição ou a conservação do valor; II - os valores mobiliários, matéria-prima, bens destinados à alienação, ou que constituem produtos ou artigos da indústria ou comércio da empresa, podem ser estimados pelo custo de aquisição ou de fabricação, ou pelo preço corrente, sempre que este for inferior ao preço de custo, e quando o preço corrente ou venal estiver acima do valor do custo de aquisição, ou fabricação, e os bens forem avaliados pelo preço corrente, a diferença entre este e o preço de custo não será levada em conta para a distribuição de lucros, nem para as percentagens referentes a fundos de reserva; III - o valor das ações e dos títulos de renda fixa pode ser determinado com base na respectiva cotação da Bolsa de Valores; os não cotados e as participações não acionárias serão considerados pelo seu valor de aquisição; IV - os créditos serão considerados de conformidade com o presumível valor de realização, não se levando em conta os prescritos ou de difícil liqüidação, salvo se houver, quanto aos últimos, previsão equivalente. Parágrafo único. Entre os valores do ativo podem figurar, desde que se preceda, anualmente, à sua amortização: I - as despesas de instalação da sociedade, até o limite correspondente a dez por cento do capital social; II - os juros pagos aos acionistas da sociedade anônima, no período antecedente ao início das operações sociais, à taxa não superior a doze por cento ao ano, fixada no estatuto; III - a quantia efetivamente paga a título de aviamento de estabelecimento adquirido pelo empresário ou sociedade. É neste contexto que se deve atentar para o texto do artigo 1.027 do Código Civil: Art. 1.027. Os herdeiros do cônjuge de sócio, ou o cônjuge do que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade. O sócio único da limitada, por ter sua participação societária (por seu viés econômico) compondo o patrimônio comum - em virtude de casamento ou de convivência estável, sempre na forma da lei - verá 50% de sua quota(s) arrastados para o inventário. E qual é o valor dessa participação? Não é o valor que se apure em função do capital registrado, nem pelo último balanço, segundo o legislador. Toma-se por base o valor da sociedade, da azienda, em balanço especialmente levantado para tanto, sendo que, até que tal procedimento se conclua, o espólio deverá concorrer à divisão periódica dos lucros. É dessa forma que se responde à questão quanto vale o 50% da participação social que irão compor o inventário. Por fim, há um aspecto do artigo 1.027 do Código Civil que precisa ser realçado: segundo sua disposição, essa situação de concurso na divisão dos lucros, perdurará até que se liquide a sociedade. Mas essa liquidação da sociedade não é obrigatória. Antes de mais nada, o próprio legislador revela que trompica na regência da questão quando, na seção seguinte do Código Civil, a seção V, trata Da Resolução da Sociedade em Relação a um Sócio (artigo 1.028 e seguintes). Portanto, o que se tem por liquidação da sociedade é, a bem da precisão, liquidação da(s) quota(s) a bem da resolução da sociedade em relação... a um sócio? Não! O legislador pensou na retirada da sociedade e simplesmente se esqueceu do artigo 1.027, num deslize infantil: se 50% destinam-se à partilha em inventário, divórcio ou dissolução de convivência, a resolução da sociedade não se fará em relação ao sócio, mas em relação a uma fração de sua participação. Ele pode prosseguir na condição de sócio, embora com participação menor.  Há advogados que argumentam que tal solução estaria a violar a teoria da pessoa jurídica em sua condição de ente autônomo com patrimônio próprio. Afinal de contas, estar-se-ía liquidando o patrimônio da sociedade limitada e usando-o para atender ao ex-conjuge, ex-convivente ou ao(s) seu(s) herdeiro(s). O argumento não calha em função da dúplice natureza das sociedades: são pessoas, mas são patrimônio econômico: bens conversíveis em pecúnia, seja pela cessão, seja pela liquidação. Basta olhar para o assombroso volume de negociações diárias com ações nas bolsas de valores, para não falar dos valores expressivos com que sociedades, mesmo limitadas, são incorporadas por outras, para não falar da pura e simples cessão de quotas. A discussão, portanto, não se coloca para além da pessoa jurídica, mas para aquém. Quota(s) é(são) bem(s) jurídico(s). E não  importa em nome de quem tal bem esteja; havendo comunhão, ele deve compor o bolo que será partilhado. Isso já está pacificado em relação às sociedades com dois ou mais sócios e não há razão para ser excepcionado quando haja apenas um sócio: a natureza jurídica da participação societária é a mesma, não importa quantos sejam os sócios.
A informalidade não é incomum nas relações empresariais. Não decorre somente do fato de que o Brasil é um país em desenvolvimento, porque  entre as suas causas também pode ser reconhecido um fenômeno próprio e inerente às características do direito comercial, como se pode dizer da velocidade dos negócios e do permanente processo de desenvolvimento de novas técnicas da atividade empresarial, assim como da mais ampla aplicação dos usos e costumes que se verifica no direito privado. No campo societário, todavia, a informalidade representa um grave problema, especialmente - é o tema deste artigo - em relação à prova da existência da sociedade. É inegável que a prova da existência da sociedade encontra primazia no documento escrito (contrato). E o Código Civil parece que bem considerou a prova escrita para estabelecer uma distinção importante. A sociedade em comum (aquela que não está no registro público de empresas) é considerada irregular quando o contrato escrito não foi levado a registro. Todavia, a sociedade em comum é considerada simplesmente uma sociedade de fato, quando não há contrato escrito. A distinção está somente no plano da eficácia perante terceiros, como bem assinalado por Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França: "A sociedade em comum, portanto, é uma sociedade como qualquer outra, diferenciando-se das demais única e exclusivamente no plano da eficácia".1 De acordo com o art. 987 do CC, só é permitido provar a sociedade em comum em relação a outro sócio por escrito. Somente aos terceiros a lei não restringe a prova.2 Surge naturalmente deste dispositivo do Código Civil questões envolvendo a prova da sociedade entre os sócios por outros meios, quando não há contrato escrito. E em relação aos terceiros (mais não só) preocupa a incerteza sobre quais as provas que podem ser apresentadas quanto à existência da sociedade. A relação existente entre pessoas que desenvolvem a atividade empresária pode determinar inúmeras situações. Nem sempre haverá sociedade entre elas. É preciso, portanto, fazer a prova da existência dos elementos essenciais da sociedade empresária quando não há contrato de sociedade escrito. Pode-se anotar, desde logo, entre os elementos essenciais da sociedade, a participação nos lucros (art. 1.008, CC) - partilha de resultados, e a participação no capital (a contribuição em serviços só é admitida para a sociedade simples - art. 997, V, CC) - contribuição. Recai sobre esses dois elementos essenciais a caracterização da organização societária contratual. Não há sociedade sem o atendimento a estes dois elementos (capital e participação nos resultados). Oportuna a advertência de Carvalho de Mendonça, anotada e reiterada por Erasmo Valladão: "a prova da "sociedade irregular" deve ser a mais completa possível e "formada com muita segurança, mormente quando se trata de arrastar à falência alguém que se tem como sócio". Advertia ele que sobre os indícios enumerados no art. 305 deveria prevalecer sempre a verdade dos fatos. Vale dizer: para impelir alguém à falência, deverá ser provada, ainda que por algum meio, a contribuição com bens ou serviços para o exercício da atividade empresarial comum com outro ou outros sócios, bem como a partilha de resultados (lucros e perdas) entre eles - elementos estruturais do contrato de sociedade, em face do que dispõe o art. 981 do Código Civil".3 É preciso, também, demonstrar que as pessoas que são reputadas como sócias se apresentam aos terceiros como sócios efetivamente. A não comprovação desta relação externa do sócio, exigida na sociedade em comum, poderia dar lugar ao reconhecimento da sociedade em conta de participação.4  Recai justamente nesta vida externa da sociedade, que se apresenta como se fosse uma sociedade regular (embora não seja), a característica mais marcante da sociedade em comum, para distingui-la da sociedade em conta de participação, de vida secreta e desconhecida de terceiros.5 Na sociedade em conta de participação, somente o sócio ostensivo é que responde pelas obrigações da sociedade, porque contraídas em seu nome. Ao sócio participante, que não praticou atos de administração da sociedade, a lei estabelece responsabilidade limitada ao investimento.6 É o que basta dizer para se ter em conta a enorme relevância da distinção.               Entre os sócios a prova da sociedade deve ser feita por escrito. O rigor da aplicação do art. 987 do CC não pode servir, como bem assinalado em decisão paradigmática do Superior Tribunal de Justiça, pelo voto da Ministra NANCY ANDRIGHI, a "resguardar iniquidades ou privilegiar comportamentos desleais entre as partes que atuam, conjuntamente, à margem da regularidade, porém licitamente no desempenho da atividade empresarial." (REsp n. 1.430.750/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21/8/2014, DJe de 8/9/2014). Acrescenta-se na fundamentação deste importante precedente do STJ o seguinte: "convém ressaltar que o Código Civil de 1916 trazia redação bastante semelhante, ainda que não idêntica. Dizia o art. 1.366: "nas questões entre os sócios, a sociedade só se provará por escrito; mas os estranhos poderão prova-la de qualquer modo." Assim, a ideia da necessidade de prova escrita advinha da antiga legislação, sobre a qual o STJ já se manifestou para flexibilizar a regra (nesse sentido: REsp 178.423/GO, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, 3ª Turma, DJ 04/09/2000; REsp 43.070/SP, Rel. Min. Waldemar Zveiter, 3ª Turma, DJ 13/06/1994; REsp 45.858/SP, Rel. Min. Barros Monteiro, 4ª Turma, DJ 10/10/1994)." Em arremate se assentou naquele precedente: "Essa conclusão tem sentido à medida em que, restringir a prova da sociedade de fato apenas a documentos escritos resultaria no esvaziamento do instituto em si, que decorre, em regra, de mera situação fática. Em consequência, se permitiria albergar o enriquecimento sem causa, tão repudiado pelo sistema jurídico brasileiro." Essas curtas anotações sobre o tema da prova da sociedade em comum bem ressalta a fundamental importância da boa interpretação da Lei pelos Tribunais, no julgamento dos litígios envolvendo a sociedade de fato, e recomenda a sensível orientação do Superior Tribunal de Justiça para evitar o aproveitamento de um sócio em relação a outro, porque não lhe foi admitido fazer a prova da sociedade entre eles. E a prova, não temos dúvida em afirmar, deve ser a mais ampla possível, admitindo documentos circunstanciais, perícias e testemunhas. A questão da prova da existência da sociedade de fato, portanto, está mais para a valoração do que para a escolha ou restrição dos meios. Essa interpretação é mais um exemplo do direito vivente do qual falamos na primeira edição desta coluna. __________ 1 Foi nesse sentido que Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França concluiu o excelente estudo que desenvolveu para a livre-docência na Universidade de São Paulo. A Sociedade em Comum. Editora Malheiros, 2013, p. 176. Há na doutrina efetivamente uma distinção entre sociedade de fato (aquela que não tem contrato escrito) e sociedade irregular (aquela que tem contrato escrito, mas não registrado). Essa distinção encontra ressonância no art. 987 do CC a respeito da prova da sua existência. 2 A respeito, a nota de Alfredo de Assis Gonçalves Neto: "A partir do art. 987 pode-se dizer que a sociedade em comum insuscetível de comprovação escrita é uma sociedade de fato, que se caracteriza pelas circunstâncias de os sócios não terem como invocar as relações jurídicas que possam ter ajustado entre si ou com terceiros. Dela diferencia-se a sociedade irregular, também sociedade em comum, porque sem registro, em que há prova escrita de sua existência (contrato ou qualquer outro documento que revele o ajuste), que faculta aos sócios invocar as relações jurídicas documentadas entre si ou havidas com terceiros." (Direito de Empresa - Comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. Editora Revista dos Tribunais. 7ª ed., p. 181.). E a restrição da prova se justifica em razão da insegurança que a falta do registro acarreta. Daí a observação do autor: "[s]em preencher as formalidades que o ordenamento impõe para que atue como ente personificado, essa sociedade (massa patrimonial e pessoas) precisa de contenção e não deve ser chancelada sua ação, senão para a proteção de terceiros que com ela contratam ou que com ela se envolvem e, na medida do possível, dos que dela participam sem administrá-la." (op. cit., p. 177). 3 Op. cit., p. 133. A referência no texto é feita ao art. 305 do Código Comercial, que tinha a seguinte redação: "Art. 305. Presume-se que existe ou existio sociedade, sempre que alguem exercita actos proprios de sociedade, e que regularmente se não costumão praticar sem a qualidade social. Desta natureza são especialmente: 1. Negociação promiscua e commum.  2. Acquisição, alheação, permutação, ou pagamento commum. 3. Se hum dos associados se confessa socio, e os outros o não contradizem por huma fórma publica. 4. Se duas ou mais pessoas propõe hum administrador ou gerente commum. 5. A dissolução da associação como sociedade. 6. O emprego do pronome nós ou nosso nas cartas de correspondencia, livros, facturas, contas e mais papeis commerciaes. 7. O facto de receber ou responder cartas enderessadas ao nome ou firma social. 8. O uso de marca commum nas fazendas ou volumes. 9. O uso de nome com a addição - e companhia.  A responsabilidade dos socios occultos he pessoal e solidaria, como se fossem socios ostensivos (art. 316)." 4 Vale lembrar, como foi registrado por João Pedro Scalzilli e Luis Felipe Spinelli, que a distinção entre a sociedade em comum e a sociedade em conta de participação tem absoluta relevância pelos efeitos mais gravosos da sociedade em comum. Apoiados em doutrina estrangeira, anotam que, de acordo com o critério aplicado pela jurisprudência italiana da época, em caso de dúvida, é melhor qualificar a sociedade em exame em sociedade em conta de participação em decorrência dos graves efeitos que decorreria para o sócio capitalista na outra hipótese (op. cit., p. 133). 5 Nesse sentido a opinião de Waldemar Ferreira (Tratado de Direito Comercial. 3º vol, Saraiva, 1961, p. 539). 6 A clara explicação de João Pedro Scalzilli e Luis Felipe Spinelli não deixa dúvida a respeito: "Ao sócio ostensivo cabe exercer a atividade prevista no objeto social em seu nome próprio e por sua conta e risco; ele é o protagonista da operação, o senhor do negócio, e como tal o dirige. Ao sócio participante resta, em princípio, tão somente fornecer parte dos meios necessários para possibilitar a exploração do negócio - leia-se investir na atividade -, não se responsabilizando pessoalmente pelo eventual insucesso na operação perante terceiros. Daí a menção de Francesco Galgano no sentido de ser o participante um financiador externo da empresa, um investidor de capital que expõe o próprio aporte aos riscos do negócio explorado por terceiro. Tal situação põe em evidência duas facetas da conta de participação: a externa e a interna, o que faz com que possua a SCP uma estrutura legal tanto quanto diferente das outras espécies societárias". (Sociedade em Conta de Participação. Ed. Quartier Latin, 2015, p. 67).
quarta-feira, 21 de junho de 2023

Cláusulas sucessórias em contratos sociais

O Direito não é construção recente: uma caminhada de milhares de anos nos trouxe até aqui e, de resto, nos levará adiante até a extinção. Afinal, onde há seres humanos, há sociedade; e onde há sociedade, há Direito; máxima tão antiga, quanto latina: ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus. E, assumindo o peso dos anos, diversas questões foram sendo posicionadas e amoldadas para que se tornassem mais adequadas, vale dizer, para que atendessem melhor aos interesses da sociedade organizada em Estado. Amoldadas por merecerem forma específica; somente quando inexiste especificação, é possível adotar qualquer forma. Posicionadas por haver, para determinadas questões, ambientes próprios. E este ensaio irá se posicionar na esquina de dois ambientes jurídicos diversos: o Direito Societário e o Direito Sucessório. Mais especificamente, trabalhar sobre uma questão que foi acesa recentemente no diálogo jurídico brasileiro: disposições com eficácia post-mortem (para depois da morte) em contrato social de sociedade simples ou empresária. A eficácia do ato de uma pessoa (viva) para além de sua morte é uma questão tormentosa. Mas é um tormento que a teoria já enfrentou e deu ordem. Ainda que a personalidade jurídica tenha extinção no exato momento da morte, o que se fez está feito e é válido; sua eficácia, contudo, conhecerá tratamentos específicos em ambientes diversos. Por exemplo, as declarações unilaterais e incondicionadas completam-se no momento da enunciação, tal como a emissão de títulos de crédito e o aval, conservando-se eficazes mesmo em face do passamento, com efeitos sobre o espólio. Já no que diz respeito às obrigações de execução pessoal, constantes de um contrato, não mais serão eficazes: o contrato se resolverá de forma diversa em face do passamento daquele que estava obrigado a prestar pessoalmente: cantar, dançar, trabalhar etc. Os dois exemplos, acreditamos, são suficientes para já aclimatar essa necessidade de dar a cada coisa os seus limites adequados: est modus in rebus, alertou Horácio em suas Sátiras há cerca de dois milênios: há - e deve haver - limite para as coisas. Entre as disposições com eficácia post-mortem que são consideradas possíveis (lícitas, válidas e eficazes) está a faculdade de testar. Por meio de testamento (eventualmente, codicilo, na forma da regulamentação inscrita no Código Civil), pode-se enunciar disposições com eficácia post-mortem (também chamadas de atos de última vontade) sobre muitas coisas: do apartamento a participações societárias, quotas em fundos de investimento, incluindo a coleção de selos e... poderíamos colocar o cachorro salsicha aqui, mas as discussões nos Tribunais vão assanhadas, a incluir debates sobre pensão alimentícia e guarda compartilhada de animais domésticos. Por sorte, sem reflexos no Direito Empresarial, até aqui. Entrementes, para preservar a vontade de quem se vai e os interesses dos que ficam, o testamento é detalhadamente regrado pelo Direito, que obriga a realização de inventário judicial ante sua existência. No entanto, uma discussão passou a grassar o Direito brasileiro na última parelha de anos: disposições de última vontade, ou melhor, disposições com eficácia post-mortem podem ser enunciadas em contratos sociais? Mesmo quando tenham conteúdo sucessório? Imagine-se uma cláusula assim: "Morrendo o sócio Fulano de Tal, todas as suas quotas serão automaticamente cedidas a Beltrano de Tal, independentemente de qualquer autorização de terceiros, com imediata alteração deste contrato social." A questão precisa ser esmiuçada para que aspectos diversos sejam levantados e esclarecidos. Antes de mais nada, é comum que se acorde cláusula genérica pela qual, pela morte de um dos contratantes, seus sucessores assumirão sua posição societária, o que pode ser recomendável ou não, considerando as particularidades de cada situação. E tal previsão tem efeitos societários: é contratação de que os herdeiros serão aceitos como sócios. Mas é preciso ter cautela em relação ao aspecto patrimonial: quotas são ativos e muitas perguntas precisam ser respondidas se tomada a questão por tal ângulo. Os bens do espólio são suficientes para saldar os credores do falecido? Quem são os sucessores? Em qual proporção assumirão a posição societária do ascendente? Todos o farão? Houve doações em vida que devem ser compensadas? Como ficam os interesses da Fazenda Pública em face da sucessão causa mortis que, como se sabe, é fato gerador do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação - ITCMD? Para essas, e muitas outras questões, o inventário trará respostas. - Inventário? Tempo, dinheiro, conflito... para quê?  Cabeça e papel aceitam tudo. E se, para poupar esse processo, um criativo advogado orientasse seu cliente a dispor cláusula acima enunciada? Ágil e eficaz, não? Se há morte, há transferência automática, imediata e independente de autorizações. Não é melhor? Seria. Mas há limitações legais e elas precisam ser consideradas. Antes de mais nada, o Código Civil: Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva. Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio. Art. 1.796. No prazo de trinta dias, a contar da abertura da sucessão, instaurar-se-á inventário do patrimônio hereditário, perante o juízo competente no lugar da sucessão, para fins de liquidação e, quando for o caso, de partilha da herança. (Prazo ampliado para dois meses pelo artigo 611 do Código de Processo Civil de 2015). O inventário é forma legal e obrigatória para a solução do patrimônio do finado, Há formas diversas de o realizar, mas, essencialmente, é inventariando que são assegurados os múltiplo direitos e interesses que estão - ou, no mínimo, podem estar - envolvidos na solução do patrimônio em relação ao de cujus e sua transmissão (ou não, como na hipótese de falência do empresário individual) para terceiros, sejam herdeiros legítimos (necessários ou não), herdeiros testamentários, credores (em pagamento), além do indispensável pagamento dos impostos devidos. Em suma, ainda que se trate de um sócio de sociedade empresária e das respectivas quotas ou ações, um inventário deve ser aberto. Mas vamos além. E se, ato contínuo à morte, o administrador da sociedade apresentar aditivo contratual subscrito pelos sócios remanescentes e Beltrano de Tal, o Registro Público deveria aceitar o arquivamento? Pelo art. 1.028/CC, no caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua quota, salvo se o contrato dispuser diferentemente. O contrato dispôs diferentemente, trazendo a cláusula acima transcrita ou texto de mesma essência ou, ao menos, similar. Então, tudo certo? A cláusula é lícita? Respondendo ao Recurso nº 14022.116144/2022-57, o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) reconheceu lícita uma cláusula de alienação automática de quotas a sócio remanescente em caso de morte. Não era sucessor, não era donatário, mas o ponto fundamental é o mesmo: uma destinação de um bem, em vida, pela via do contrato social, para produzir efeito póstumo. E os sucessores? E os credores do falecido? Segundo o DREI, "a competência deferida às Juntas Comerciais é estritamente formal, ou seja, de verificar as formalidades extrínsecas dos atos sujeitos a registro", e "a Lei da Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, é cogente ao dispor que nos negócios empresariais deve prevalecer a vontade das partes, ou seja, se não houver expressa disposição legal em contrário a autonomia das partes deve sempre prevalecer". A solução e os argumentos parecem-nos estranhos. Primeiro, porque o exame registral não é apenas formal, mas, também, de mérito quanto à juridicidade. É o que se afere da lei Federal 8.934/1994: Art. 35. Não podem ser arquivados: I - os documentos que não obedecerem às prescrições legais ou regulamentares ou que contiverem matéria contrária aos bons costumes ou à ordem pública, bem como os que colidirem com o respectivo estatuto ou contrato não modificado anteriormente [...]. Segundo, porque, embora a Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/19) corretamente eleve a importância da autonomia de vontade na aplicação do Direito, ela exceptua da licitude da convenção, naturalmente, as normas de ordem pública. É o que se resulta claro do art. 3º, VIII: Art. 3º  São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: [...] VIII - ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública [...]. A pergunta, então, deve ser recolocada: pode-se negociar o que será inventariado? Parece-nos que não. Aberta a sucessão, tudo pertence ao espólio. Só o inventariante poderia se manifestar, a partir daí, sobre os bens, com autorização judicial nas hipóteses do art. 619 do Código de Processo Civil. Afinal, é preciso preservar os interesses dos credores, da Fazenda Pública e dos herdeiros necessários, que, aliás, podem ser desconhecidos até então. Aberto o inventário, uma apuração de haveres poderia garantir a higidez dos direitos hereditários daqueles que não fossem beneficiados com a assunção da quota, evitando fraudes ou desequilíbrios indevidos. Nesse contexto, o sucessor indicado no contrato social poderia vir a ter preferência no recebimento da quota na partilha. Ousamos discordar da solução dada pelo DREI na medida em que implica sejam fechados os olhos, pelo Registro Mercantil, para uma forma determinada em lei. A lógica de se tratar de simplificação, desburocratização ou, quiçá, liberdade e/ou criatividade jurídica não pode chancelar uma subversão do que é devido. Aliás, sob tal lógica e com o mesmo fundamento, poderiam ser feitas coisas do arco da velha, a incluir uma penca de fraudes e desconformidades altamente perniciosas a terceiros e ao Estado. Haverá quem afirme tratar-se de planejamento sucessório. O argumento não calha. Planejamento sucessório é uma arte jurídica que comporta várias soluções lícitas. Pode ser concretizada por meio de doação com reserva de usufruto, em favor de Beltrano, talvez satisfizesse os propósitos do de cujos. Entretanto, uma doação post mortem parece-nos ferir regra de ordem pública. Desse modo, poder-se-ia admitir uma cláusula que pré-defina que nenhum herdeiro adentrará a sociedade? Sim. Seu efeito, contudo, é meramente social: não são aceitos no quadro de sócios. Não afeta seus direitos patrimoniais. Procede-se à liquidação das quotas do falecido ou à sua subscrição pelos sócios remanescentes ou terceiros (de modo a evitar a redução do capital social), sempre respeitando (i) o direito dos herdeiros à percepção do valor dos haveres titularizados pelo falecido, e (ii) o inventário como ambiente jurídico necessário. Também se admite uma cláusula que pré-defina que todos os herdeiros adentrarão à sociedade? Certamente. Porém, eles não estão obrigados a se tornarem sócios; podem aceitar ou recusar. Caso recusem, a mesma solução de liquidação ou assunção das quotas pelos sócios ou terceiros deve ser dada. E, também aqui, não se dispensa o inventário. Agora, é possível uma cláusula que pré-defina que apenas esse e/ou aquele herdeiro (nominalmente identificados) possa(m) adentrar à sociedade, negando esse direito aos demais? Sim! Mas é previsão com efeito meramente social, e não patrimonial. Sob uma perspectiva social, havendo sociedade intuitu personae, os sócios têm a faculdade de aceitar ou recusar o ingresso de outras pessoas e, assim, a cláusula será lícita. Mas será preciso fazer o inventário e ao(s) herdeiro(s) pré-admitido(s) se atribuírem as quotas sociais em conformidade com seu quinhão. É esse o grande problema da cláusula analisada: o quinhão do pré-admitido pode ser inferior ao valor das quotas e, assim, a cláusula representará uma fraude indevida ao inventário (o que só poderia se fazer por meio de testamento e no limite da parte disponível do patrimônio do defunto). Por isso é preciso inventariar: para que ninguém seja prejudicado em seus direitos. Os herdeiros não aceitos recebem quotas e as liquidam ou cedem, como visto acima. Pode mesmo ocorrer de haver aceitação posterior pelos demais sócios. Sim, a autonomia de vontade compõe o núcleo normativo da dignidade da pessoa humana. Apesar disso, lidamos desde cedo com suas limitações. É daí que o princípio da legalidade, na perspectiva privada, legitima nossos comportamentos e escolhas livres, desde que eles não subvertam normas limitadoras, condicionantes ou proibitivas. Não se pode ter tudo, já diziam Horácio, nossas doces avós e, quiçá, o finado fulano.
A classificação do crédito na recuperação judicial pode determinar uma posição de vantagem ao credor. Surgiu recentemente a discussão sobre a natureza do crédito, anterior ao pedido de recuperação judicial, que obteve a garantia da hipoteca judicial depois da sentença condenatória do devedor. Há quem sustente a existência de garantia real nesse caso a levar o credor, originariamente quirografário (classe III), à classe dos credores com garantia real (classe II), de acordo com o art. 41 da lei 11.101/2005. Sucede que o crédito, que foi objeto da sentença condenatória, é, como sempre foi, QUIROGRAFÁRIO, decorrente de relação jurídica de direito pessoal, desprovido de garantia real e já novado pela aprovação do Plano de Recuperação. Não tem efeito algum sobre a novação, que se opera ope legis, a inscrição anterior da hipoteca judiciária, que não é espécie de garantia real, porquanto nunca foi constituída pela vontade do devedor. A hipoteca judiciária é, como será demonstrado, simples ato de constrição judicial acessório. Uma vez extinto o processo - e é o caso de extinção - a hipoteca judiciária, como a penhora, o arresto ou qualquer outro ato de constrição, não sobrevive. Há um equívoco quando se sustenta que essa constrição poderá ser restabelecida em caso de falência, ou que a hipoteca judiciária poderá lhe conferir tratamento privilegiado na falência, ou, ainda, que a garantia constituída como efeito da sentença é direito real sobre o imóvel. Nem uma coisa, nem outra. A hipoteca judiciária concede somente a preferência sobre outros credores na execução, por força, exclusivamente, da constrição. Não é direito real sobre coisa alheia (direito de garantia), que nunca lhe foi conferido. Logo, não depende da vontade do credor o cancelamento do respectivo registro, mas sim do destino que se der ao processo no qual se ordenou a constrição. Extinto o processo de execução, ou a fase de cumprimento de sentença, está extinta a hipoteca judiciária Sobre o tema é esclarecedor o CIRE - Código da Insolvência e Recuperação de Empresas de Portugal, expresso nesse sentido: "Artigo 140.º Sentença. 1 - Finda a audiência de julgamento, o juiz profere sentença de verificação e graduação dos créditos, nos 10 dias subsequentes. 2 - A graduação é geral para os bens da massa insolvente e é especial para os bens a que respeitem direitos reais de garantia e privilégios creditórios. 3 - Na graduação de créditos não é atendida a preferência resultante de hipoteca judicial, nem a proveniente da penhora, mas as custas pagas pelo autor ou exequente constituem dívidas da massa insolvente." É o que afirma a doutrina de L. MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS: "As hipotecas judiciais extinguem-se com a declaração de insolvência, o que significa que o crédito garantido terá aí tratamento de um crédito comum" (Direito das Garantias. 3ª ed. Coimbra : Almedina, 2019, p. 257). Acrescente-se a opinião de LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO: "A hipoteca judicial funciona como uma penhora antecipada, podendo recair sobre quaisquer bens do devedor susceptíveis de penhora, e é admissível independentemente do trânsito em julgado da decisão condenatória, bastando que ela tenha sido proferida. Por esse motivo, e à semelhança do que sucede com a penhora, a preferência respectiva deixa de ser atendida no caso de ser declarada a insolvência do devedor" (Garantias das Obrigações. 6° ed. Coimbra : Almedina, 2018, p. 207-208). Não fosse a doutrina estrangeira e o direito comparado a indicar essa solução, no direito brasileiro é clara a percepção dos juristas a respeito da impossibilidade de atribuir ao crédito a natureza que ele não tem, concedendo privilégios a partir somente do direito de sequela e preferência que se estabeleceu na execução, e por uma simples razão: a garantia (se é que se pode dizer "garantia") não foi convencionada pelas partes. Nesse sentido, entre nós, CLOVIS BEVILAQUA (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de Janeiro : Ed. Rio, 1984, p. 1.286/1287), e WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, destacando-se do último o seguinte: "Se insolvente o devedor, instaura-se concurso creditório, sem que ao exequente assista qualquer prelação ou privilégio" (Curso de Direito Civil. v. 3. 37ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 422). O autor se refere exatamente à hipótese de hipoteca judiciária anterior ao concurso de credores. Registra DOUGLAS RIBEIRO NEVES, em dissertação de mestrado orientada pelo Prof. José Rogério Cruz e Tucci, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a opinião do jurista português VAZ SERRA a respeito: "O Código Civil manteve a supressão, com o aplauso de Guilherme Moreira, o qual entendia que a hipoteca judicial fora com razão rejeitada, porque 'reconhecendo-se apenas pela sentença a existência do direito, não deve atribuir-se-lhe a forma de transformar o crédito pessoal em real'" (ob. cit., p. 263-264 - grifou-se) e, noutra passagem, "... logo se entendeu que também à hipoteca, de que tratava o artigo 84 do decreto 21.287, não podia reconhecer-se a preferência no processo de insolvência, por ele repugnar, tal como a da penhora, ao princípio da consideração igualitária dos credores. E assim se veio a resolver expressamente no artigo 89, § 2º, do Código de Falências, aprovado pelo decreto 25.981, de 26 de outubro de 1935" (ob. cit., p. 269-270)" (Hipoteca Judiciária. 2011). A hipoteca judiciária, portanto, não é a garantia real considerada pela lei 11.101/2005 para efeito de classificação do crédito. Cuida-se de medida constritiva processual em favor da sentença (e não do crédito propriamente), conferindo ao credor exclusivamente "o direito de preferência, quanto ao pagamento, em relação a outros credores" (art. 495, § 4º, CPC), no processo de execução. Tudo se modifica no concurso de credores. A hipoteca judiciária é dependente do processo judicial no qual foi produzida a condenação, desaparecendo, ou desconstituindo-se, quando a sentença condenatória já não é título para a execução. Como sustenta a melhor doutrina: "A hipoteca judiciária é efeito "acessório", "anexo" ou "secundário" da sentença com eficácia condenatória. Não se trata de prerrogativa ou faculdade vinculada à qualidade de "autor da demanda". A lei estabeleceu que, de forma automática, da simples existência da "sentença que condenar", deflua a hipoteca judiciária. Ou seja, tal sentença constitui imediatamente a hipoteca judiciária, independentemente de qual seja seu conteúdo e do que dela conste" (MARÇAL JUSTEN FILHO, EDUARDO TALAMINI E EGON BOCKMANN MOREIRA. Sobre a Hipoteca Judiciária. Revista de Processo | vol. 85/1997 | p. 121 - 127 | Jan - Mar / 1997).1 É simples ato de constrição judicial, assim como é a penhora.2 Não se reconhece, por isso, em favor do credor que penhorou, arrestou ou sequestrou bens do devedor em recuperação judicial a qualidade de credor com garantia real. Logo, não se pode emprestar essa classificação ao crédito em favor do qual (ou, propriamente, em favor da sentença) se inscreveu a hipoteca judiciária. Vale lembrar, mais uma vez, o ensinamento de MARÇAL JUSTEN FILHO, EDUARDO TALAMINI e EGON BOCKMANN MOREIRA, que bem evidencia a natureza da hipoteca judiciária: "Como o escopo principal da hipoteca judiciária é assegurar o sucesso da posterior execução, deverão ser observadas as regras sobre impenhorabilidade quando se determinar o bem objeto da hipoteca." (op. cit.) Como instrumento voltado à garantia da frutuosidade futura da tutela jurisdicional dos direitos mediante constrição patrimonial, anotam LUIZ GUILHERME MARINONI, SÉRGIO CRUZ e DANIEL MITIDIERO, "a hipoteca judiciária constitui instrumento análogo à tutela cautelar e à penhora: análogo à tutela cautelar, porque tem natureza conservativa; análogo à penhora, porque constituiu apreensão patrimonial preordenada à execução. Essas semelhanças autorizam a aplicação analógica das regras sobre penhora, notadamente no que tange à preferência e à substituição de bens, à hipoteca judiciária." (Código de Processo Civil Comentado. 7ª ed. São Paulo : Thonson Reuters, 2021, p. 630). Evidentemente o credor não pode, por sua própria vontade e iniciativa, dar ao seu crédito classificação que ele não tem, transformando-se em credor com garantia real, quando é credor quirografário. Não fosse somente o impedimento legal e absoluto a tal pretensão, essa estranha "transmutação" acaba por prejudicar seriamente a todos os demais credores da recuperação judicial, quando opera a passagem de uma classe de credores a outra, dentro do processo de recuperação. Nem é o caso mesmo de se cogitar dessa possibilidade, especialmente depois de aprovado e homologado o Plano de Recuperação. É, sem dúvida, inusitada e perigosa essa interpretação que pretende abrir as portas da classe II (créditos com garantia real) aos credores com sentença condenatória. A garantia real - hipoteca - da qual decorre a classificação de credor com garantia real (classe II - art. 41 da lei 11.101/2005), é aquela constituída de forma convencional, pela vontade das partes. Não pode ser confundida com medidas de constrição judicial, forçosamente aplicadas. Ademais, há boa doutrina no sentido de negar a natureza de garantia real à hipoteca judiciária (Fausto Pereira de LACERDA FILHO. Hipoteca. Curitiba : Juruá, 1977, p. 59). Nem se pode argumentar que o Novo CPC, ao atribuir direito de preferência do credor em razão da hipoteca judiciária modificou a sua natureza. Basta anotar que a hipoteca convencional está sujeita a prazo, que poderá ser prorrogado convencionalmente (art. 1.485, CC), o que não ocorre com a hipoteca judiciária, porque a inscrição da hipoteca judiciária se cancela no momento em que ocorrer a prescrição do direito de executar (TUPINAMBÁ MIGUEL CASTRO DO NASCIMENTO. Hipoteca. Rio de Janeiro : Aide, 1985, p. 232). A hipoteca judiciária, insista-se, está ligada ao processo e não propriamente ao crédito. As espécies são diversas e não admitem igualdade de tratamento ou simples assimilação. Uma vez verificada a existência de recuperação judicial, deve ser extinta a fase de cumprimento de sentença, porque o crédito foi impositivamente novado e será pago nos termos do Plano de Recuperação. Logo, como consequência lógica, a hipoteca judiciária deixou de existir e por isso o seu forçoso cancelamento no registro de imóveis. A novação decorrente da aprovação do Plano impõe às execuções individuais de créditos sujeitos ao Plano de Recuperação a extinção. Nesse sentido a boa doutrina (SHEILA C. NEDER CEREZETTI. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas. Coord. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo. São Paulo : Thomson Reuters, 2021, p. 402/403) e a orientação dos precedentes do Egrégio Superior Tribunal de Justiça (REsp 1272697/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 02/06/2015, DJe 18/06/2015; REsp 1937516/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/08/2021, DJe 09/08/2021; CC 114.952/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/09/2011, DJe 26/09/2011). A igualdade de tratamento dos credores da mesma classe é uma questão fundamental no processo de recuperação judicial, como ocorre em qualquer concurso de credores. O credor quirografário não pode ser incluído na classe dos credores com garantia real, sob pena de violação da igualdade de tratamento. Vale lembrar que igual solução ocorre com a penhora de bens em favor do credor sujeito à recuperação judicial, com a extinção da execução, consoante consolidada interpretação da jurisprudência e dos precedentes do Egrégio Superior Tribunal de Justiça (EDcl no AgInt nos EDcl no REsp 1321912/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/04/2020, DJe 24/04/2020; AgInt no REsp 1732178/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 18/09/2018, DJe 21/09/2018; AgInt no REsp 1804816/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 15/08/2019, DJe 21/08/2019; AgInt nos EDcl no REsp 1878985/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/08/2021, DJe 19/08/2021). A tese, firmada em sede de repetitivo (Tema 1051) pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, como precedente qualificado e vinculante, é no sentido de que: "Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador". Como muito bem destacado no voto do Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, no julgamento do Recurso Especial em sede de repetitivo: "a existência do crédito não depende de declaração judicial. Na verdade, confunde-se o conceito de obrigação e responsabilidade. A existência do crédito está ligada à relação jurídica que se estabelece entre o devedor e credor, o liame entre as partes, pois é com base nela que, ocorrido o fato gerador, surge o direito de exigir a prestação (direito de crédito)" (REsp n. 1.843.332/RS). Esse entendimento, como igualmente destacado no referido voto, "é o que melhor garante o tratamento paritário entre os credores". Enfrentando o tema, o Tribunal de Justiça de São Paulo, pelo voto do Desembargador FORTES BARBOSA, decidiu igualmente pelo cancelamento da hipoteca judiciária em caso semelhante (Agravo de Instrumento nº 2076147-14.2015.8.26.0000, dj. 10.06.2015). Em conclusão, respeitada a opinião em sentido contrário, podemos afirmar que é falsa a ideia de que o credor quirografário assume outra posição no concurso de credores pelo fato de ter obtido a hipoteca judiciária em favor da execução do seu crédito. Ele continua, como sempre foi, credor quirografário. __________ 1 Como efeito da sentença e a finalidade acautelatória do crédito, extinta a execução, a hipoteca judiciária tem o mesmo destino. É oportuno lembrar a clássica doutrina a respeito de EGAS DIRCEU MONIZ DE ARAGÃO: "Inscrita a hipoteca judiciária e assim garantido o vencedor, até quando perdura? Até quando conserva sua eficácia? Na origem portuguesa, visava ela a proteger o credor contra os riscos a que ficaria exposto no intervalo de 6 meses em que não poderia promover a execução da sentença (v. o n. 2); por conseguinte, subsistiria não só durante esse intervalo como, depois, até que se encerrasse a execução. Na atualidade mantém-se igualmente até a extinção da execução, por uma das razões indicadas no art. 794, ou, excepcionalmente, se ocorrer a prescrição (Súmula 150 (MIX\2010\1875) do STF). Dada a natureza acautelatória que lhe é inerente, poderia parecer que devesse ficar sujeita à regra do art. 808, que, no entanto, não se lhe aplica, por não se tratar de medida cautelar propriamente dita, sim de efeito secundário da sentença condenatória" (HIPOTECA JUDICIÁRIA. Revista de Processo | vol. 51/1988 | p. 10 - 22 | Jul - Set / 1988). 2 É oportuno anotar que o Código de Processo Civil, no art. 792, inc. III (Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução: "...  III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;") concede à hipoteca judiciária o mesmo tratamento que se dá a qualquer outro ato de constrição judicial.
Pode um empregado ser sócio de uma sociedade limitada? Pode um sócio doar parte de suas quotas societárias a um empregado? Ninguém duvida que isso possa acontecer em sociedades anônimas de capital aberto: é corriqueiro funcionários sejam acionistas. Talvez alguns fiquem em dúvida no que se refere às companhias fechadas, mas aplica-se a mesma solução jurídica: nada impede que o empregado seja acionista. Agora, como a sociedade limitada é contratual (e não institucional), pode um sócio (controlador ou não) doar parte de suas quotas, ainda que em percentual muito pequeno, a um empregado? Por exemplo: a empresa vai média, começou pequena, e o empregado estava lá desde o início, razão pela qual o sócio administrador, e que tem amplo controle, pensa merecer ser mais que empregado: merece ser um dos meus sócios. Pode? A resposta comporta níveis ou, preferindo-se, camadas. No primeiro plano, a resposta é simples: pode, claro. Tomando a questão sob a perspectiva do Direito Privado, trabalhando-a sob a perspectiva da Teoria Geral das Pessoas Jurídicas (Parte Geral do Código Civil) e da Teoria do Direito Societário, a questão é mesmo singela: a pessoa jurídica tem personalidade, patrimônio e existência distintos das pessoas de seus membros, sejam pessoas naturais, sejam pessoas jurídicas. Portanto, o empregado de qualquer sociedade (contratual ou estatutária) pode ser seu sócio: simples, em nome coletivo, em comandita simples, limitada, sociedade por ações e em comandita por ações, sociedade cooperativa. Assim como vale para associações e partidos políticos etc. Pode haver contratação, manutenção da relação e mesmo demissão: o trabalhador sócio pode pedir sua demissão ou pode ser demitido, com ou sem justa causa. Simples? Mais ou menos. No último parágrafo, um cavalo de Tróia passou pelas portas abertas e, dentro das muralhas, pode destruí-las. Nas comanditas, simples e por ações, a preservação do limite de responsabilidade em favor dos comanditários (quotistas ou acionistas) pressupõe não praticarem atos de administração ou gerência. A resposta ainda é afirmativa: podem ser sócios e empregados. Mas será preciso atenção ao caso concreto para que não haja desrespeito à condição de preservação do limite de responsabilidade. A relação de emprego não poderá ser meio para fraudar a vedação legal. Pior: ainda que não haja intuito de fraude, as vedações legais são objetivas, como se lê nos artigos 1.047 do Código Civil e 282 da lei 6.404/76. Art. 1.047. Sem prejuízo da faculdade de participar das deliberações da sociedade e de lhe fiscalizar as operações, não pode o comanditário praticar qualquer ato de gestão, nem ter o nome na firma social, sob pena de ficar sujeito às responsabilidades de sócio comanditado. Parágrafo único. Pode o comanditário ser constituído procurador da sociedade, para negócio determinado e com poderes especiais. Art. 282. Apenas o sócio ou acionista tem qualidade para administrar ou gerir a sociedade, e, como diretor ou gerente, responde, subsidiária mas ilimitada e solidariamente, pelas obrigações da sociedade. § 1º Os diretores ou gerentes serão nomeados, sem limitação de tempo, no estatuto da sociedade, e somente poderão ser destituídos por deliberação de acionistas que representem 2/3 (dois terços), no mínimo, do capital social. § 2º O diretor ou gerente que for destituído ou se exonerar continuará responsável pelas obrigações sociais contraídas sob sua administração. Mas há outro aspecto crucial, embora próprio de outro sítio: a doação de quotas não pode se constituir em meio para fraudar, sob qualquer aspecto, direitos trabalhistas. Sócio é sócio e há nisso um contorno jurídico específico, previsto na legislação de regência da sociedade (Código Civil e/ou lei 6.404/76). Empregado é empregado, relação jurídica que se pauta pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Se a relação que se pretende societária tem contornos que a qualificam como trabalhista, poderá haver correção por meio de ação na Justiça Laboral e autuação fiscal pela Inspeção do Trabalho (afinal, temos o artigo 11 da lei 10.593/2002, a estabelecer o poder de polícia administrativo do trabalho, exercido pelos auditores fiscais do Ministério do Trabalho, em consonância com o artigo 21, inc. XXIV, da Constituição da República). A resposta, então, ganha um contorno novo: sim, é possível, desde que a relação de trabalho seja regular em todos os seus aspectos e consectários. Não é só. Na seara trabalhista ainda há um outro risco. A doação pode ser considerada uma parte da remuneração. Se isso ocorrer, haverá repercussões, incluindo previdenciárias. Nunca é demais recordar, já que estamos temperando a resposta inicial, dada por uma perspectiva exclusivamente societária, que há julgados da Justiça do Trabalho, envolvendo planos de Stock Option, que tratam a doação como remuneração. Como a situação se resolve? Considerando os elementos de cada situação em contraste com as balizas que orientam as relações de empresa. Por exemplo, nos casos em que a doação estiver atrelada ao atingimento de metas, ao crescimento do faturamento da sociedade, ou a questões particulares da atuação do empregado, como assiduidade ou aumento de sua jornada de trabalho, há fortes argumentos para se sustentar a natureza salarial. Diferentes são os casos em que a doação é mera liberalidade do doador. Este intimamente pode até esperar em decorrência dela maior engajamento por parte do ou até maior longevidade do donatário no quadro de funcionários da sociedade, mas não condiciona tal negócio jurídico a qualquer contrapartida objetiva ou subjetiva por parte do donatário-funcionário. Note-se que a questão é bem menos tormentosa quando há, em vez de doação, compra e venda de quotas entre funcionários e sócios de uma sociedade, ou entre funcionários e a própria sociedade. Nesse sentido, há diversos julgados que apontam que tais negócios não consistem em parcela salarial (cf. nota final 3). Então, é tudo simples sob a perspectiva do Direito Empresarial? Os problemas são de Direito do Trabalho, é isso? Não. Há uma outra camada: é preciso avaliar como o contrato social trata a cessão a terceiros. Se nada tratar (costumam não tratar por aqui), haverá de se considerar o Código Civil: Art. 1.057. Na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social. Parágrafo único. A cessão terá eficácia quanto à sociedade e terceiros, inclusive para os fins do parágrafo único do art. 1.003, a partir da averbação do respectivo instrumento, subscrito pelos sócios anuentes.  Portanto, se o sócio doador tiver participação inferior a 75% do capital social, o restante dos sócios poderá se opor à doação; afinal, o dispositivo não faz distinção entre cessão onerosa ou gratuita. Aliás, a ausência de distinção entre cessão onerosa e gratuita pode criar um outro problema. Imagine-se que o contrato social traga uma cláusula assim redigida: Nenhum sócio poderá ceder suas quotas a terceiros sem, antes, oferece-las proporcionalmente aos demais sócios. Pode parecer algo comezinho, mas, para o caso examinado, a cláusula abrirá as portas do inferno. Em fato, o redator do ato constitutivo, ao desconsiderar que a cessão pode ser onerosa ou gratuita, abre oportunidade para dúvidas. O sócio doador dirá que a cláusula não encampa a doação; mas o sócio que a ela se oponha que não é isso o que está escrito e, mais do que isso, que a intenção da norma é preservar inalterada o grupo de sócios, ainda que haja uma alteração na participação de cada um na composição do capital. Esse é um dos desafios daqueles que se encarregam da redação de atos normativos, sejam leis (os legisladores), sejam declarações unilaterais, contratos e estatutos (advogados). Há uma imensidão de hipóteses que podem incidir e o melhor profissional será aquele que for ambicioso na tradução mais completa das alternativas que podem se apresentar. E, sejamos honestos, pensar e tratar da doação não é algo tão absurdo. É uma hipótese próxima: quotistas podem querer doar. A lei nada fala a respeito salvo, para as limitadas, a previsão do direito de veto. Sim, são duas questões diversas: "direito de veto ao ingresso de terceiro" e "direito de preferência, sobre terceiro, para aquisição". Não menos certo é que soa um pouco estranho falar-se em preferência para ser donatário. Mas o contrato que exige o oferecimento anterior a quem já seja sócio pode ser interpretado, como dito acima, a traduzir opção societária por estabilidade no grupo de sócios. Como se resolve tal impasse? Pelo litígio, seja judiciário, seja arbitral (caso haja cláusula compromissória no ato constitutivo ou em acordo de sócios). Noutras palavras, resolve-se pela manifestação de terceiros (os julgadores) a quem as duas leituras e pretensões sejam submetidas. Para se ter uma ideia, não houve acordo entre os signatários do artigo sobre a questão. E, acreditamos, não seria diverso se a distribuição se fizesse para esse ou para aquele juiz, essa ou aquela Turma Recursal, se arbitragem estivesse a cargo desse ou daquele grupo de árbitros. É a maldição que ronda toda e qualquer imprevisão. Há uma outra solução? Há. E muito simples. Precisamos abandonar a cultura dos atos constitutivos que se repetem, copiando formulários, e precisamos recuperar e valorizar o ofício advocatício de redigir instrumentos que atermem a vontade específica de cada grupo de sócios. Isso deve resultar de uma consulta entre o profissional e as partes envolvidas, cabendo ao expert trazer à consulta questões sensíveis que, eventualmente, devam compor o ato constitutivo. Por exemplo: Como os senhores querem regular a transferência de quotas? Temos duas situações: a cessão onerosa, ou seja, se os sócios poderão vender suas quotas para terceiros, se há direito de preferência, como se organiza esse direito de preferência. E há a cessão gratuita, vale dizer, se um sócio pode doar suas quotas para outro sócio ou mesmo para terceiros. Pode-se vedar a doação ou pode-se permiti-la, com ou sem definições: aprovação (e respectivo quórum), determinadas pessoas (filhos, cônjuges), condições. E aí? Como os senhores(as) querem disciplinar isso? Ao Direito corresponde uma tecnologia, um saber fazer (savoir faire, dizem os francófonos; know how, dizem os anglófonos). Cabe ao advogado dominar essa tecnologia e constitui-se virtude profissional dominá-la mais e melhor. A pessoa cuidadosa (no caso, os investidores que pretendem se organizar em sociedade empresária) recorrerá a bons experts para usufruir da melhor tecnologia em seu favor; em favor da sua empresa. É insensato pensar-se apenas em tecnologia de maquinário, de tecnologia da informação, de logística, de marketing, olvidando-se da tecnologia jurídica. É uma imprudência que aumenta o risco de crises, problemas, fracassos. Notas finais Há o vesting, Contrato que prevê a faculdade de aquisição de participação societária (ações ou quotas), em regra de forma progressiva pelo colaborador ou até mesmo por um terceiro, que emprega seus esforços no desenvolvimento do negócio mediante cumprimento de condições e critérios preestabelecidos. O contrato de vesting visa a fomentar o bom desenvolvimento das empresas, especialmente daqueles que têm um modelo de negócio inovador, como as startups, mediante o reconhecimento da contribuição e dedicação do colaborador ou terceiro. O contrato de trabalho precede ao vesting e este serve para se testar a parceria de trabalho, futuramente a ser convertida em parceria societária. Como se lê no 5º Caderno de Direito Empresarial Trabalhista editado pela Escola Nacional de Inspeção do Trabalho: stock option é contrato mercantil pelo qual uma empresa outorga aos participantes (empregados, administradores ou prestadores de serviço) o direito de comprar ou subscrever, em uma data futura, ações da companhia ou de sua controladora, por um preço previamente especificado e dentro de um prazo predeterminado, segundo os critérios estabelecidos por ocasião da outorga (art. 168, § 3º, da Lei 6.404/76). Os requisitos de voluntariedade, onerosidade e risco seriam suficientes, segundo o CARF, para descaracterização como mecanismo de remuneração (proc. 10880.734908/2018-43, julgado em 2021). Tem natureza remuneratória? Há respostas nos dois sentidos: Sim: CARF, processos 9202-005.470 (24/5/2017); 9202-005.968 (26/9/2017) e 9202-006.628 (21/3/2018). Não: CARF (10880.734908/2018-43, de 2021), TST (RR - 217800-35.2007.5.02.0033), TRF3 (Ap Civ. 02109058.2012.4.03.6100/SP) Para o Des. Marcus Abraham (ex-PGFN) do TRF2, o plano de stock option não possui o caráter contra prestativo, seu objetivo é atrair e alinhar os interesses dos beneficiários aos interesses dos acionistas e da própria empresa e não está previsto nos §§ do art. 457 da CLT (proc. 0140420-90.2017.4.02. 5101) 3. Cite-se, por exemplo, (i) AIRR-11496-54.2015.5.01.0064, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 02/07/2021; (ii) RR - 201000-02.2008.5.15.0140 , Relator Ministro: Guilherme Augusto Caputo Bastos, Data de Julgamento: 11/02/2015, 5ª Turma, Data de Publicação: DEJT 27/02/2015; e (iii) AIRR- 85740-33.2009.5.03.0023 , Relator Ministro: Mauricio Godinho Delgado, Data de Julgamento: 15/12/2010, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 04/02/2011.
Faz algum tempo que a remuneração arbitrada em favor do administrador judicial nos processos de recuperação de empresas regidos pela lei 11.101/2005 (LRF) vem causando alvoroço no meio jurídico. As polpudas cifras fixadas nas ações propostas por grandes grupos despertam a cobiça de uns e a indignação de outros, às vezes justificada, noutras reflexo de inconfessável inveja. Embora a lei tenha estabelecido teto para os honorários do administrador judicial (de 5% do valor devido aos credores submetidos à recuperação judicial) e os subordinado à capacidade de pagamento do devedor, à complexidade do trabalho e aos valores praticados no mercado (LRF, art. 24, caput e § 1º), casos envolvendo passivos bilionários acabam permitindo o arbitramento de honorários multimilionários, como recentemente se viu na recuperação do grupo Americanas, onde a remuneração do AJ foi fixada em impressionantes R$100 milhões de reais, frente a um passivo declarado de cerca de R$43 bilhões. A percepção de exagero decorre, em parte, da comparação entre a remuneração arbitrada em favor do administrador judicial e os honorários contratuais pagos aos próprios advogados do devedor (que mais fielmente expressam a praxe de mercado, por resultar da livre negociação entre os envolvidos). Não é incomum que, nas grandes recuperações judiciais, os advogados recebam menos do que o administrador judicial, mesmo desempenhando tarefas que demandam o envolvimento de mais profissionais e mais horas trabalhadas. A raiz do problema tem a ver, de um lado, com a discricionariedade conferida ao magistrado para nomear o administrador judicial e, de outro, com o amplo espaço concedido pela lei para fixação dos honorários, sobretudo nas recuperações judiciais envolvendo passivos multibilionários. Como não existe quadro fixo de administradores judiciais1, o juiz goza de liberdade para escolher sobre quem recairá o encargo, exigindo-se apenas que a escolha recaia sobre profissional idôneo, preferencialmente advogado, economista, administrador de empresas ou contador, ou pessoa jurídica especializada (LRF, art. 21). Existe aqui uma das raras hipóteses de discricionariedade judicial, na acepção técnica do termo, pois ao juiz é permitido escolher entre um ou outro profissional, ou pessoa jurídica especializada, conforme a confiança neles depositada e segundo o que entender mais conveniente ao caso concreto. Daí por que, para casos complexos, a nomeação tende a recair sobre profissionais altamente qualificados e especializados. Embora essa sistemática seja positiva em certos aspectos, por conferir ao magistrado a prerrogativa de nomear alguém da sua confiança e evitar a burocracia estatal, permitindo soluções sob medida para o caso, ela acaba permitindo especulações sobre possível favorecimento indevido, notadamente nas recuperações judiciais de grande relevância econômica, nas quais são fixadas as maiores remunerações. Abrem-se parênteses. Para quem acredita que a existência de um quadro oficial fixo de administradores judiciais favoreceria a moralidade pública, a história prova o contrário. Já houve tal experiência por ocasião da Lei nº 859, de 1902, que determinava que o síndico provisório e os membros da comissão fiscal - em número de 40 no Distrito Federal - seriam escolhidos a partir de uma lista fixa organizada pela Junta Comercial. O resultado? O síndico passou a ser alcunhado de Ali-Babá e os conselheiros fiscais de os 40 ladrões2, sendo desnecessárias outras considerações a respeito do tema. Fecham-se parênteses. A desconfiança causada pela discricionariedade na escolha do administrador judicial se soma a outro problema: a lei limitou a remuneração do administrador judicial a um percentual fixo (5%), independentemente do montante do passivo sujeito à recuperação judicial (sobre o qual esse percentual é calculado). Opção diferente, por exemplo, daquela adotada pelo legislador em relação aos honorários sucumbenciais impostos à Fazenda Pública, cujos percentuais máximos decrescem à medida que o valor da condenação aumenta, variando de 20% para condenações de até 200 salários-mínimos até o limite máximo de 3% para condenações superiores a 100 mil salários-mínimos (CPC, art. 2º, § 3º). A limitação legal dos honorários ao percentual de 5% dos passivos visa estabelecer um parâmetro objetivo ao arbitramento judicial, para limitar o espaço de atuação do juiz. Porém, quando as dívidas sujeitas à recuperação alcançam a casa dos bilhões, a norma perde completamente sua função, pois aquele percentual rígido não oferece baliza minimamente razoável para determinar o valor do honorários do administrador judicial - que, vale lembrar, não é responsável pela administração da empresa em recuperação judicial (salvo excepcional e temporariamente, nos casos de afastamento do devedor), exercendo basicamente funções de fiscalização das atividades do devedor, verificação dos créditos e de coordenação do processo, na condição de coadjuvante do juiz. Na primeira recuperação judicial do grupo OI, as dívidas sujeitas à recuperação somavam cerca de R$ 60 bilhões, de modo que os honorários do administrador judicial poderiam chegar, em tese, à cifra de R$3 bilhões de reais, valor evidentemente incompatível com o respectivo mister (a despeito de toda complexidade e responsabilidade envolvidas) e que não servia de limite objetivo à atuação do juiz na fixação dos honorários, tampouco para escrutinar a remuneração que foi efetivamente arbitrada (inicialmente de cerca de R$140 milhões, divididos entre os dois administradores judiciais nomeados). O que acontece nesses casos é que, sem a limitação objetiva, amplia-se tremendamente o espaço de atuação do magistrado, que fica meramente subordinado a critérios carregados de subjetividade ou de difícil verificação concreta, a saber: a capacidade de pagamento do devedor, o grau de complexidade do trabalho e os valores praticados no mercado para o desempenho de atividades semelhantes3. A inexistência de fontes idôneas de comparação e a dificuldade de mensuração desses outros critérios acabam fazendo com que o arbitramento dos honorários seja frequentemente fundamentado em justificativas genéricas, que não fornecem a transparência e previsibilidade tão caras ao processo concursal, mas raramente alcançadas na extensão esperada. Na prática, como os valores fixados podem chegar às alturas, isso acaba produzindo especulações de todo tipo, não apenas de favorecimento deste ou daquele administrador judicial (quando agraciado com remuneração milionária), mas também de que os polpudos honorários podem ter sido fixados - à custa do devedor - para compensar o administrador judicial pelo trabalho com casos menores, sobretudo pequenas falências, pelos quais raramente recebe de forma condizente com o encargo. Ocorre que o arbitramento dos honorários não se sujeita à discricionariedade do juiz, não obstante a ampla liberdade crítica que lhe foi conferida para determinar o conteúdo dos critérios definidos pelo legislador. Conforme explica José Roberto dos Santos Bedaque4, o que se costuma chamar de ato discricionário do juiz é, na verdade, a interpretação e a aplicação da norma ao caso concreto, segundo critérios previamente estabelecidos pelo legislador. Ainda que, em determinados casos, a lei conceda ao juiz ampla liberdade crítica para decidir, isso não quer dizer que ele tenha poder discricionário. Ao decidir com base nas regras, o juiz não faz uma escolha baseada em conveniência ou nos seus próprios juízos de valor. Ele não tem o poder de escolher entre diferentes soluções possíveis, devendo seguir a solução prevista pela norma, desde que os pressupostos legais estejam presentes. Quanto mais imprecisos os conceitos contidos na lei, mais liberdade o juiz tem para examinar esses requisitos, mas isso não significa, repita-se, que sua decisão seja discricionária. Daí a importância da fundamentação, especialmente quando o limite objetivo à fixação dos honorários não cumpre a função de balizar a atuação do juiz, como sói ocorrer na recuperação judicial de grandes grupos empresariais. Nesses casos, ficando o arbitramento judicial exclusivamente sujeito à investigação crítica do magistrado dos demais critérios legais, a determinação do montante dos honorários demanda especial justificação, não apenas para que o raciocínio do juiz possa ser conhecido por aqueles diretamente afetados pela sua decisão, mas também para que esta possa ser adequadamente impugnada pela via recursal. Existem, por outro lado, outras particularidades relativas aos honorários do administrador judicial nas recuperações judiciais de grupos que merecem atenção. Ao deferir o processamento da recuperação judicial em litisconsórcio, sob consolidação processual, o juiz deve nomear um único administrador judicial5 (LRF, art. 69-H), medida que serve para viabilizar a coordenação dos atos do processo envolvendo múltiplos devedores, bem como a possível redução de custos, em comparação àqueles que seriam incorridos com a nomeação de vários administradores judiciais, como ocorreria se os devedores pleiteassem a recuperação judicial de modo autônomo. Nesse caso, a fixação do valor e forma da remuneração do administrador judicial deverá observar, além da praxe de mercado, a capacidade de pagamento de todos os devedores em conjunto, bem como a complexidade do trabalho, que tende a ser maior quanto mais amplas forem a composição do polo ativo e a dimensão do grupo. Já o limite máximo dessa remuneração corresponderá a 5% do montante total dos créditos sujeitos à recuperação judicial, computados uma única vez mesmo que mais de um devedor seja simultaneamente responsável pelo adimplemento da prestação, como se dá com relação às dívidas solidárias. Além disso, parece importante que, ao arbitrar os honorários do administrador judicial num cenário de mera consolidação processual, o juiz também determine a parcela de responsabilidade de cada devedor por essa despesa, respectivamente ao montante das suas respectivas dívidas e às capacidades particulares de pagamento. À falta de previsão específica a esse respeito na LRF, aplica-se subsidiariamente a regra contida no artigo 87, § 1º, do CPC, que determina que o juiz distribua entre os litisconsortes, expressa e proporcionalmente, a responsabilidade pelo pagamento das despesas processuais. A reforma operada pela lei 14.112/2020 deixou absolutamente claro que, nas recuperações judiciais ajuizadas em litisconsórcio, os devedores deverão ser tratados como pessoas jurídicas independentes, com respeito à separação dos seus respectivos patrimônios (LRF, art. 69-I, caput). A exceção fica por conta da consolidação substancial, que poderá ser excepcionalmente determinada pelo juiz quando a interconexão e confusão entre ativos e passivos dos devedores tornar impossível distinguir as respectivas esferas de imputação. Nesse caso, os ativos e passivos dos diferentes devedores serão tratados como se pertencessem a um único devedor, operando-se a ineficácia transitória da separação patrimonial para determinados fins do processo de recuperação judicial (LRF, art. 69-J, caput, e 69-K, caput).     Embora isto devesse ser óbvio, vale frisar que, sem expresso deferimento da consolidação substancial, os devedores não poderão ser tratados como se fossem uma só entidade, coisa que, a par de violar texto expresso da lei falimentar, contraria toda sorte de princípios e regras de direito societário, notadamente aquelas que disciplinam os grupos. Como tudo isso posto por escrito pelo legislador, chega a ser impressionante que, mesmo em casos de enorme visibilidade, continue ocorrendo uma "consolidação substancial de fato", com os devedores se apresentando e sendo tratados pelo juiz, pelo administrador judicial e até pelos próprios credores como se fossem uma só pessoa de patrimônio indiviso, tudo sem pedido tampouco decisão autorizado a medida excepcional prevista no art. 69-J da LRF. Devedores sob mera consolidação processual, por exemplo, insistem em violar o art. 69-I, § 1º, LRF ao apresentar planos de recuperação que não distinguem minimamente os passivos e as prestações individualmente assumidas por cada um deles, alguns dos quais, aliás, expressamente denominados de "plano unitário", forma exclusivamente reservada ao cenário de consolidação substancial (LRF, art. 69-L, caput). A consolidação substancial de fato também aparece, de certo modo, no arbitramento dos honorários do administrador judicial, invariavelmente realizado sem distinguir a parcela de responsabilidade de cada devedor sobre o seu custeio, novamente como se tratasse de um processo de recuperação ajuizado por um único devedor. Nesse caso, se a distribuição da responsabilidade pelos honorários não for feita pelo juiz, todos os devedores responderão solidariamente por elas, conforme reza o § 2º do art. 87 do CPC, o que poderá resultar numa situação injusta em relação a determinados litisconsortes, seus acionistas e respectivos credores (especialmente porque, no caso de quebra, as respectivas massas falidas responderão, também solidariamente, pelo pagamento da remuneração do administrador judicial, que prefere a todos os créditos concursais). Assim, num cenário de mera consolidação processual, se o juiz se omitir em discriminar a responsabilidade de cada litisconsorte pelos honorários do administrador judicial e demais despesas processuais, tanto os devedores quanto os credores poderão provocá-lo a realizar a devida divisão, de modo a evitar situações injustas, contrárias à independência jurídica e patrimonial dos devedores, expressamente resguarda pela lei (LRF, art. 69-I). __________ 1 Em regra, a nomeação do administrador judicial recai sobre profissionais ou pessoas jurídicas habilitados perante o juízo ou Tribunal, mas qualquer um que satisfaça os requisitos formais pode requerer sua habilitação, inclusive depois da nomeação. Não se trata, pois, de um quadro fechado. 2 Embora esse fato seja narrado por inúmeros doutrinadores, a exemplo de Carvalho de Mendonça (Tratado de Direito Comercial Brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 85) e Waldemar Ferreira (Instituições de direito comercial. São Paulo: Max Limonade, 1955, v. 5, p. 25), recente pesquisa realizada por Gilberto Gornati, que analisou diversas fontes do período, a exemplo de jornais e debates parlamentares, não encontrou referências a essa célebre expressão, levantando dúvidas sobre se, de fato, ela era empregada (O modo de produção das leis de falências e concordatas no Brasil (1850 - 1945). Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2023, p. 252). 3 Especialmente nas recuperações judiciais de grupos, é muito difícil estabelecer comparações seguras, haja vista as infinitas particularidades de cada caso. 4 Discricionariedade judicial. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 354, 2001. p. 188 e 190. 5 Muito embora, na prática, tenha havido casos de nomeação de dois administradores judiciais num mesmo processo, coisa que suscita uma série de outros questionamentos que não cabem nos limites destas linhas.
Há um dispositivo no Código Civil para o qual é preciso destinar um olhar mais atento: o artigo 1.154. Diz a norma: "Art. 1.154. O ato sujeito a registro, ressalvadas disposições especiais da lei, não pode, antes do cumprimento das respectivas formalidades, ser oposto a terceiro, salvo prova de que este o conhecia. Parágrafo único. O terceiro não pode alegar ignorância, desde que cumpridas as referidas formalidades." O alcance que se pode dar à interpretação e aplicação da norma é largo e relevante. O que deve estar no centro do debate são os efeitos da eficácia erga omnes, aspecto que tem sido pouco explorado na prática do Direito Societário, com perda para todos os envolvidos: do mercado em geral a cada corporação em concreto. Não é nosso intento exaurir o tema neste breve ensaio, mas colocar algumas questões para a reflexão dos que estudam com o Direito Empresarial e, com mais ênfase, para as Juntas Comerciais e para aqueles que trabalham na assessoria de sociedades empresariais (quiçá sociedades de natureza simples, com atos constitutivos arquivados em Cartórios de Registro de Pessoas Jurídicas). A entrada em vigor da Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/19) consolidou entre nós a posição, que já era defendida por uma parcela da doutrina, de que os sócios têm liberdade para, respeitando a Constituição, leis e princípios jurídicos, estabelecer cláusulas que vençam o que está disposto e implicado pelas normas do Código Civil sobre as sociedades simples e empresárias. Já não se compreende que possam ser objeto de disposição contratual as normas sobre nome, sócios, capital e quotas, objeto social, direitos e obrigações dos sócios, administração societária, resolução (total ou parcial) da sociedade, deliberação dos sócios. É possível ir adiante e, em função do registro, tais previsões não apenas obrigarão sócio(s), administrador(es) e sociedade (a pessoa jurídica que, nunca é demais recordar, distingue-se da pessoa de sócios e administradores), mas terceiros, recobrando a referência da eficácia erga omnes que, como de sabença geral, resulta da ciência ficta proporcionada pelo registro público. A fronteira mais próxima desse fenômeno está na disposição de regras ASG (ambientais, sociais e de boa-governança) ou, preferindo-se idioma alienígena, ESG (environmental, social and corporate governance). Colocadas no contrato social, disposições dessa natureza passam a compor a essência da corporação e, sim, devem pautar a atuação da empresa. Não só podem ser invocadas pelos sócios, entre si e em relação à sociedade, como podem ser invocadas por terceiros em pretensões contra ou sobre a sociedade. A contribuição de uma sociedade empresária para um movimento político ou partidário constituirá ato ilícito se o seu contrato social dispõe, como exemplo: A sociedade não realizará contribuições financeiras para movimentos políticos, partidos políticos ou campanhas políticas. Mas o alcance dessa mecânica é ainda maior quando consideramos a faculdade de as sociedades, não importa sua natureza contratual (sociedades por quotas) ou estatutária (sociedades por ações) de arquivarem na Junta Comercial os mais variados tipos de documentos.  A título exemplificativo: Código de Ética e Conduta, Termos de Ajustamento de Conduta, Acordo de Quotista, entre outros. No âmbito da Junta Comercial do Rio de Janeiro - JUCERJA, por exemplo, as sociedades limitadas utilizam o código "310 - outros documentos de interesse da empresa", para fazê-lo. Isso é extremamente salutar e enriquecedor. Por amor a clareza das informações, cumpre salientar que a codificação adotada pela JUCERJA é a determinada para todas as juntas comerciais do país pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração - DREI.   A bem da precisão, há uma política pública atualmente em fase de implantação pelas juntas comerciais, liderada pelo DREI, que busca ampliar a lista dos chamados códigos de "atos e eventos". Novos códigos estão em fase de criação, referentes a arquivamentos de "acordos de quotistas ou acionistas", "contratos de subscrição, opção ou conversão de créditos envolvendo quotas ou ações", "contrato de participação de investimento-anjo", "instrumento de alienação/cessão fiduciária em garantia", "instrumento de penhor", além de diversos outros. Dentre os objetivos dessa política, destacam-se o de tornar as juntas comerciais um amplo repositório público e digital para consulta, por quaisquer interessados, de negócios jurídicos que envolvam participações societárias ou a gestão de sociedades, bem como incentivar os usuários a evitar o uso de códigos genéricos, do que é exemplo o ato 310 supramencionado. É quanto basta para chamar atenção para uma discussão que já vai acesa na doutrina do Direito Societário: a eficácia vinculativa das normas ditas éticas (ou compliance, como preferem os anglicistas), entre outras, como regimento de trabalho, ambientais e mesmo acordos de sócios. Se é possível ainda discutir sobre o efeito de auto obrigação para códigos e regimentos corporativos não levados ao registro público, o arquivamento do ato muda a questão por completo. Sociedade, administrador(es) e sócio(s) estarão obrigados a respeitar as disposições que, de resto, alcançarão terceiros, por força da cabeça e do parágrafo único do artigo 1.154, acima transcrito, embora com uma observação indispensável: sempre considerando o indispensável respeito à Constituição, às leis e aos princípios jurídicos. Justo por isso, não é possível dispor, no ato constitutivo ou em regulamento corporativo algo como: A sociedade não poderá ser considerada civilmente responsável pelos danos que causar, decorram de dolo, culpa ou de abuso de direito. (sic) A liberdade das normas privadas - no caso, normas corporativas - está limitada pelo artigo 5º, II, da Constituição da República, ou seja, limita-se ao que não é proibido, de um lado, e ao que não é determinado, de outro. Ainda assim, resta um espaço amplo entre ambas. O passo que falta é a digitação e disponibilização de todas essas informações na rede mundial de computadores. Essa ampla publicação dos atos corporativos arquivados (alias dicta: disclosure) terá efeitos diversos. Antes de mais nada, dará ao Direito Societário uma vitalidade que já é experimentada com as companhias abertas, obrigadas que estão a manter todas essas normas à disposição do mercado e, enfim, da comunidade em geral. Mas é preciso atentar para o anverso da questão. Os efeitos do arquivamento sobre a própria corporação e seus membros. Trata-se de arquivamento voluntário (a sociedade não está obrigada de levar tais documentos ao registro público; fá-lo por mera liberalidade e com o intuito de publicizar essas questões perante todos), trata-se de arquivamento obrigatório (determinado em lei), a força erga omnes é ampla. Essa é a vinculação que está sendo muito debatida. O arquivamento na junta de código de ética e conduta, código (ou regimento) de sustentabilidade, regulamento (código, cartilha) de trabalho e prevenção ao assédio, entre outros, permitem seu manejo contra a sociedade pelo terceiro: Ministério Público, consumidor, fornecedor, vizinhos, trabalhadores etc. Reiteramos: é o outro lado da força erga omnes. A sociedade tem o direito de proceder ou não ao arquivamento desses documentos; se o faz é no intuito de se vincular aos seus efeitos e garantir que terceiros tenham acesso à informação que reputa relevante. Afinal, o Registro Público de Empresas Mercantis, que é executado pelas juntas comerciais, tem por escopo assegurar a publicidade e a eficácia dos atos jurídicos das empresas. Os parâmetros enunciados e registrados devem pautar a existência, funcionamento e atuação das sociedades empresárias ou seria incongruente. Próximo do que estamos afirmando há um caso concreto, muito interessante: o processo TJSP - 1078357-36.2021.8.26.0100. Cuida-se de  ação movida por Avante Distribuidora de Bebidas Ltda. contra Checon Distribuidora e Transportadora Ltda, Heineken N.V., Heineken Brazil B.V. e Bavaria S.A. O objeto da demanda era um contrato de distribuição de produtos Heineken que foi encerrado. A autora alegou que o comportamento da ré, renovando sucessivamente o contrato ao longo de 24 anos, gerou nela legítimas expectativas. O fundamento da inicial é que haveria violação da boa-fé objetiva pela ré, quando declara em seu código de ética preocupações com as práticas da ASG e, ao mesmo tempo, denuncia o contrato a fim de atender interesses exclusivos dos seus acionistas. Seria um venire contra factum próprium. Observe-se que, no caso, apesar das declarações constarem em documento de natureza diversa da do contrato, traz-se ao exame do Judiciário sua adesão à imbróglio entre as partes. Afinal, o código de ética é uma declaração unilateral de vontade e, assim, da contorno à definição do que a empresa deve ser. Daí colocar-se a investigação sobre sua incidência para a solução do conflito, podendo vincular a sociedade para com terceiros, inclusive ao ponto de mitigar o princípio da relatividade dos contratos. Eis a provocação que desejávamos propor com este pequeno ensaio. Sabemos de suas implicações junto ao Registo Público de Empresas, realizado pelas Juntas Comerciais, para não falar do mercado em geral, da comunidade e do Estado. É fundamental explorar as possiblidades oferecidas pelo Direito Societário ou, indo além, criar uma cultura societarista que nos nivele com sistemas estrangeiros e, assim, contribua para nossa capacidade de concorrência em contextos mercantis há muito mundializados.
A primeira observação a respeito do tema diz respeito às diferenças do regime de alienação dos ativos na falência e na recuperação judicial. Essa diferença decorre essencialmente de dois aspectos. Na recuperação judicial, o devedor continua na administração da sociedade (debtor in possession), que prossegue normalmente no desenvolvimento da sua atividade, enquanto na falência ocorre o afastamento do devedor das atividades da sociedade.   O outro aspecto importante diz com a finalidade da alienação de ativos. Na recuperação judicial, a alienação de ativos é uma medida compreendida, entre outras, como meio de recuperação da sociedade em crise econômico-financeira, e que pode ocorrer por formas diferentes: (i) trespasse ou arrendamento de estabelecimento, inclusive à sociedade constituída pelos próprios empregados; (ii) dação em pagamento ou novação de dívidas do passivo, com ou sem constituição de garantia própria ou de terceiro; (iii) venda parcial dos bens; (iv) usufruto da empresa; (v) constituição de sociedade de propósito específico para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor;  (vi) venda integral da devedora, desde que garantidas aos credores não submetidos ou não aderentes condições, no mínimo, equivalentes àquelas que teriam na falência, hipótese em que será, para todos os fins, considerada unidade produtiva isolada (art. 50 da lei 11.101/1005). Na recuperação judicial a alienação de ativos visa preservar a empresa (e não o empresário, administrador, controlador, sócio e acionista), como atividade econômica, de modo que essa alienação não pode inviabilizar o desenvolvimento da empresa. Logo, não deve ser permitida a simples liquidação dos ativos (esvaziamento) para o pagamento de credores da recuperação, sabido que há outros credores do devedor e que não participam do processo de recuperação (extraconcursais). Essa "liquidação" só poderá ser admitida se preservados os interesses de todos os credores. Exatamente nesse sentido o art. 73, da LRF, estabeleceu que "o juiz decretará a falência durante o processo de recuperação judicial, quando identificado o esvaziamento patrimonial da devedora que implique liquidação substancial da empresa, em prejuízo de credores não sujeitos à recuperação judicial, inclusive as Fazendas Públicas" (inc. VI). Na falência, a alienação de ativos é promovida com o propósito de pagar os credores. A lei acrescenta que a falência "é mecanismo de preservação de benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial, por meio da liquidação imediata do devedor e da rápida realocação útil de ativos na economia" (art. 75, LRF), mas prepondera, sem dúvida, o interesse na satisfação dos credores. Para esse fim, a celeridade é uma imposição em favor do melhor resultado. Bem por isso determina o art. 139 da LRF que "logo após a arrecadação dos bens será iniciada a realização do ativo", independentemente de qualquer outra providência, inclusive a formação do quadro geral de credores. É que os ativos estão sujeitos à deterioração e depreciação, e além disso oneram a Massa com despesas de conservação. Pode-se dizer que se aplica na realização de ativos os princípios da maximização dos ativos (obter o melhor resultado), da celeridade e da eficiência, sempre com a participação dos credores e a igualdade de tratamento (par conditio creditorum). Ao apresentar o Plano de Recuperação Judicial, o devedor deve apontar os meios para superação da crise econômico-financeira (art. 53, LRF) e entre eles, como visto, está a alienação de ativos, que deve ser especificada para o fim de conhecimento dos credores, do Ministério Público e do Juiz. Não deve ser admitida a proposição genérica e abstrata, sem forma ou prazo definido. Cabe anotar que, embora continue o devedor na administração da empresa, depois do pedido de recuperação judicial não é permitida a venda de ativos, salvo com autorização judicial (art. 66, LRF) ou previsão do plano de recuperação aprovado. A venda de ativos encontra na LRF uma importante inovação, que é a alienação da própriaempresa1 (só permitida na falência e não na recuperação), ou parte dela (parte do negócio), com a venda de "unidades produtivas" isoladamente - UPI (arts. 60 e 140, inc. II). É uma tendência nos planos de recuperação. Essa alienação "terá por objeto o conjunto de determinados bens necessários à operação rentável da unidade de produção, que poderá compreender a transferência de contratos específicos" (art. 140, § 3º). Deve-se atentar, desde logo, para a natureza dessa alienação, que tem por objeto o conjunto de determinados bens, inclusive a transferência de contratos, tudo necessário à operação rentável da unidade. Não se cuida, portanto, da alienação de bens isolados, comum nos processos de simples liquidação, e que produz resultado sempre aquém do valor que pode ser alcançado quando os ativos, organizados, são alienados em conjunto. Todavia, o art. 60-A  da LRF estabeleceu que a UPI poderá abranger "direitos ou ativos de qualquer natureza", ainda que não tenham capacidade produtiva autônoma. A crítica que já se fazia ao uso dessa designação (Unidade Produtiva Isolada - UPI) ganhou força com a nova disposição da Lei, que considera UPI ativos isolados que não têm capacidade produtiva autônoma. Até participações societárias podem ser alienadas (UPI). Com a venda das unidades isoladas procura-se obter o melhor resultado para esses ativos, especialmente aqueles que são capazes de gerar resultados (aviamento, fundo de comércio, marca, parte das operações - valores intangíveis). O objeto da alienação "estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista" (art. 60, parágrafo único, LRF). Essa questão relativa à sucessão do adquirente nas obrigações do devedor diz respeito ao que estabelece o Código Civil para o trespasse (art. 1.146, CC), e encontra disposições semelhantes nos arts. 10, 448, 448-A e  449, todos da CLT, e no art. 133 do CTN. Se fazia necessário, e assim ocorreu, que a LRF fosse muito clara ao assegurar ao adquirente de ativos nesses processos que não haverá sucessão nas obrigações do devedor. Essa garantia de não sucessão nas obrigações sofre exceções quando o arrematante for I - sócio da sociedade falida, ou sociedade controlada pelo falido; II - parente, em linha reta ou colateral até o 4º (quarto) grau, consangüíneo ou afim, do falido ou de sócio da sociedade falida; ou III - identificado como agente do falido com o objetivo de fraudar a sucessão (art. 141, § 1°, LRF). São hipóteses de sucessão nas obrigações, e não de desfazimento das alienações, sendo certo que a venda de ativos na falência está protegida contra a ação de ineficácia ou a ação revocatória (art. 131, LRF). Outra inovação importante introduzida pela lei 14.112/2020, que modifica o art. 142, inc. V, da LRF,  estabeleceu que a alienação de bens em geral poderá adotar "qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos desta lei". Acrescentou-se ao regime de realização de ativos o disposto no art. 144, que autoriza o juiz, havendo motivos justificados, mediante requerimento fundamentado do administrador judicial ou do Comitê, a adotar modalidades de alienação judicial diversas das previstas no art. 142 desta lei. Esses dispositivos da Lei brasileira, mais do que outros, conferem uma margem de liberdade para a realização de ativos nos processos de recuperação judicial e de falência. Essa liberdade, é certo, não é absoluta, porquanto sujeita à deliberação dos credores, à fiscalização do Ministério Público e ao controle do juiz, ao qual a Lei concedeu o poder para autorizar outras modalidades de alienação, "havendo motivos justificados" e observados os princípios e demais disposições legais.2 Apesar da permissão legal para outras modalidades de alienação, normalmente ela ocorre por leilão. Não há mais na LRF diferença entre leilão e praça. Em terceira chamada a alienação poderá ocorrer por qualquer preço, porque não está sujeita à aplicação do conceito de preço vil (art. 142, § 2º, V, § 3º-A, inc. III, LRF). Este conjunto de disposições procurou dar aplicação efetiva e celeridade à alienação de ativos, ponto que sempre foi crítico nos processos concursais. Admitiu a LRF a impugnação de alienação de ativos por qualquer credor, pelo devedor e pelo Ministério Público (art. 143, "caput"), mas se acrescentou o cabimento da impugnação "baseada no valor da venda do bem", que deverá ser acompanhada de oferta firme do impugnante (art. 143, § 1°). Essa impugnação baseada no valor pode levar ao equivocado entendimento de que se abre uma nova oportunidade para fazer uma oferta superior àquela que se consagrou vencedora no processo de alienação, seja na modalidade do leilão ou outra. Para evitar esse oportunismo é necessário que a impugnação, ainda que se faça baseada no valor, com oferta maior, tenha fundamento em algum vício no processo de alienação. É certo que esse vício pode estar contido no próprio valor alcançado na alienação, quando se verifica importante diferença para o valor da oferta agora apresentada, o que revela alguma irregularidade na avaliação do ativo ou no processo de alienação. Assegura-se na LRF a possibilidade de adjudicação de ativos pelos credores (art. 145) e, frustrada a tentativa de venda e não havendo proposta concreta dos credores para assumi-los, os bens poderão ser considerados sem valor de mercado e destinados à doação (art. 144-A). Estas anotações bem evidenciam o esforço legislativo da última reforma da lei 11.101/2005, promovida pela lei 14.112/2020, para enfrentar o problema da alienação de ativos nos processos de recuperação judicial e de falência. São louváveis. Augura-se que esses novos dispositivos possam ser bem aplicados na prática desses processos. ___________ 1 A "empresa" aqui é expressão utilizada com o sentido que lhe dá o art. 966, do Código Civil, como atividade econômica organizada e exercida profissionalmente para a produção ou circulação de bens ou de serviços. 2 É o caso de lembrar a venda com a participação do Stalking Horse, modalidade não prevista na LRF, mas que pode ser adotada, a respeito da qual já tivemos oportunidade de escrever nesta coluna (O Stalking Horse e os meios de recuperação judicial no Brasil).
Em continuidade ao artigo publicado na última edição da nossa Coluna, pretendemos abordar nesta oportunidade as questões de maior relevância a respeito da locação urbana contratada verbalmente ou por escrito com prazo inferior a trinta meses. Partimos do art. 47, da lei 8.245/91. Art. 47. Quando ajustada verbalmente ou por escrito e com o prazo inferior a trinta meses, findo o prazo estabelecido, a locação prorroga-se automaticamente, por prazo indeterminado, somente podendo ser retomado o imóvel: I - nos casos do art. 9º; II - em decorrência de extinção do contrato de trabalho, se a ocupação do imóvel pelo locatário estiver relacionada com o seu emprego; III - se for pedido para uso próprio, de seu cônjuge ou companheiro, ou para uso residencial de ascendente ou descendente que não disponha, assim como seu cônjuge ou companheiro, de imóvel residencial próprio; IV - se for pedido para demolição e edificação licenciada ou para a realização de obras aprovadas pelo Poder Público, que aumentem a área construída em, no mínimo, vinte por cento ou, se o imóvel for destinado a exploração de hotel ou pensão, em cinquenta por cento; V - se a vigência ininterrupta da locação ultrapassar cinco anos. § 1º Na hipótese do inciso III, a necessidade deverá ser judicialmente demonstrada, se: a) o retomante, alegando necessidade de usar o imóvel, estiver ocupando, com a mesma finalidade, outro de sua propriedade situado na mesma localidade ou, residindo ou utilizando imóvel alheio, já tiver retomado o imóvel anteriormente; b) o ascendente ou descendente, beneficiário da retomada, residir em imóvel próprio. § 2º Nas hipóteses dos incisos III e IV, o retomante deverá comprovar ser proprietário, promissário comprador ou promissário cessionário, em caráter irrevogável, com imissão na posse do imóvel e título registrado junto à matrícula do mesmo. 1. Cabe lembrar que este dispositivo se refere exclusivamente à locação residencial urbana. A redação do caput apresenta uma dubiedade quando determina a prorrogação automática da locação por tempo indeterminado. O intérprete pode ser levado a entender que a prorrogação referida deve ser aplicada não só aos contratos escritos, mas também aos verbais, com prazo inferior a trinta meses, tudo por conta do uso não adequado da conjunção aditiva "e". A locação contratada de forma verbal não admite a denúncia imotivada prevista no art. 46, § 1º, porque o caput daquele dispositivo é expresso: "Nas locações ajustadas por escrito e por prazo igual ou superior a trinta meses..." Logo, a interpretação que se impõe é no sentido de que a denúncia da locação residencial contratada verbalmente sempre incidirá no art. 47, ainda que se possa admitir em tese que verbalmente se contratou por tempo determinado (o que a lei não admite), igual ou superior a trinta meses. Deve-se entender, portanto, que a prorrogação por tempo indeterminado da locação prevista no art. 47 se aplica exclusivamente aos contratos escritos com prazo inferior a trinta meses, porque a locação verbal é considerada pela lei como locação por tempo indeterminado, nos termos exatos da Súmula 24 do TJ/SP. Sendo a locação contratada de forma verbal, a denúncia imotivada só poderá ser admitida quando a sua vigência ultrapassar cinco anos (inc. V). O dispositivo agora comentado cria um efeito anormal para o contrato, uma espécie de ultratividade, quando estabelece que depois de vencido o tempo contratado da locação, que é a sua causa natural de extinção, a relação continua por tempo indeterminado, mesmo contra a vontade do locador, como se o contrato não estivesse sujeito a termo. O contrato escrito, firmado, por exemplo, para doze meses de locação, só autoriza a retomada do imóvel pelo locador se, depois de vencido, ele tiver um dos motivos elencados nos quatro incisos do art. 47. Se ele não tiver um desses motivos para pedir a retomada do imóvel, a locação é prorrogada por tempo indeterminado por força da lei - automaticamente - e só poderá ser denunciada, sem motivo (denúncia vazia), depois de cinco anos de vigência. Foi assim que a lei estabeleceu o mínimo de duração e estabilidade para a locação residencial urbana. Restringiu a autonomia do locador na contratação, com o propósito de estimular a contratação mais longa da locação, por escrito e por tempo igual ou superior a trinta meses. Vale lembrar que é nula a cláusula contratual que dispor de forma contrária à prorrogação (art. 45) e que as hipóteses de retomada do imóvel pelo locador previstas no art. 47 são fechadas, não admitindo interpretação extensiva. Em resumo, contratada verbalmente, ou por escrito, mas com tempo inferior a trinta meses e vencido, a retomada do imóvel só poderá ocorrer pelos motivos indicados nos incisos II, III e IV do art. 47. Somente depois de cinco anos de vigência abre-se ao locador a denúncia imotivada (inc. V). Só poderá ser retomado o imóvel a qualquer momento, mesmo contratada a locação por tempo determinado, quando ocorrer a hipótese do inc. I do art. 47, que remete o intérprete para o art. 9º da lei. 2. A primeira hipótese legal de denúncia motivada (inc. I) se refere às causas do art. 9º. São hipóteses que autorizam o rompimento da locação independentemente do prazo contratado. Entre as causas de retomada do art. 9ª, que se aplicam a qualquer contrato de locação, encontram-se duas (inc. II e III) que se referem ao descumprimento do contrato (infração contratual e falta de pagamento do aluguel e encargos da locação). Haverá nestes dois casos a resolução do contrato, e o seu efeito natural é a retomada do imóvel, independentemente do prazo da locação, pois rompido o contrato (sinalagmático) pelo inadimplemento. Nestes casos de violação do contrato pelo locatário, opera a cláusula resolutiva expressa ou tácita, dispensando-se a notificação para o ajuizamento do pedido de retomada. Outra causa de retomada do imóvel prevista no art. 9º é para a realização de reparações urgentes determinadas pelo Poder Público, que não possam ser normalmente executadas com a permanência do locatário no imóvel ou, podendo, ele se recuse a consenti-las (inc. IV). A urgência das reparações, que colocam em risco os ocupantes e o próprio imóvel, justifica o rompimento da locação, independentemente do prazo contratado. O locador tem o dever de entregar o imóvel locado em estado de servir ao uso a que se destina (art. 22, I), e se obriga, igualmente, a assegurar que durante a locação o locatário tenha o imóvel em condições a servir ao uso destinado, respondendo pelos vícios ou defeitos anteriores (art. 22, IV). Não obstante a causa legal para denúncia da locação, se ao locador se puder imputar a falta a esse dever, caberá a devida reparação ao locatário pelos danos que sofrer em razão do rompimento da locação ajustada por tempo determinado. Todavia, se as reparações urgentes determinadas pelo Poder Público decorrem de causa estranha (ex. acidente, terceiros), ao locatário não assiste nenhum direito contra o locador. Prevê ainda o art. 9º que a locação pode ser desfeita por mútuo acordo (inc. I). Cuida-se neste caso do distrato ou resilição bilateral. A vontade que atuou para a contrato é a vontade que se exige para o distrato, que deve seguir a mesma forma exigida para o contrato (art. 472, CC). Pode ser ajustada no distrato a desocupação do imóvel em prazo certo, e quando não for observado o prazo, o locador pode retomar o imóvel por ação de despejo. Caberá liminar de despejo para desocupação em 15 dias se o distrato foi celebrado por escrito e assinado pelas partes e por duas testemunhas, no qual tenha sido ajustado o prazo mínimo de seis meses para desocupação, contado da assinatura do instrumento (art. 59, I). Não se exige notificação prévia neste caso, porque a obrigação de restituir o imóvel está sujeita a termo, previsto no distrato. Se o prazo para desocupação do imóvel pelo locatário ajustado no distrato for inferior a seis meses, não se inibe o despejo, mas somente a liminar. 3. Prevê o art. 47, inc. II, que a retomada do imóvel poderá ocorrer se a locação está vinculada ao contrato de trabalho extinto por qualquer motivo. O contrato de locação, neste caso, se mostra conexo ao contrato de trabalho. Logo, extinto o contrato de trabalho, igual efeito se impõe ao contrato de locação. É o caso do imóvel locado ao zelador do edifício, que pode ser retomado logo que extinto o seu contrato de trabalho. A hipótese da lei cuida de um contrato de locação entre empregador e empregado realizado em razão do contrato de trabalho. A locação é um contrato oneroso e pressupõe o pagamento de aluguel. Se o empregado tem a posse do imóvel a outro título (ex. comodato), ou se o uso do imóvel é parte do salário (o empregado não paga diretamente o aluguel), ou se a locação não está ligada diretamente ao contrato de trabalho, não cabe ação de despejo com esse fundamento. Poderá ser admitido o despejo por outra causa (se há contrato de locação) ou a ação possessória (se não há locação, mas outra relação jurídica). O contrato escrito pode bem dizer da natureza da contratação. Caso o contrato de trabalho sofra modificação, sem rompimento, não há motivo para retomada do imóvel. 4. A hipótese de retomada prevista no inc. III do art. 47 foi muito comum nos últimos anos de vigência da lei anterior, porque representava uma forma de retomada do imóvel pelo locador diante da impossibilidade da denúncia vazia. É preciso notar que são duas causas distintas de retomada do imóvel. Uma delas é para uso próprio (mais amplo) do locador, do seu cônjuge ou companheiro. A outra hipótese é para uso residencial do ascendente ou descendente do locador. Nesses litígios versando a retomada para uso do imóvel não era incomum a discussão sobre a sinceridade do pedido. Essa questão não é tranquila na doutrina e na jurisprudência, porque a lei não incluiu a sinceridade como um requisito para a retomada. Ademais, a sinceridade do pedido quase sempre só pode ser aferida a posteriori. Basta, a rigor, verificar se o pedido do locador está compreendido nas hipóteses legais, dispensando-se o exame subjetivo e de difícil apuração das reais intenções do locador. Não quer dizer, todavia, que as evidências de simulação do pedido não possam ser apreciadas pelo Juiz, não exatamente do ponto de vista da sinceridade, mas da simulação de interesse processual (interesse-adequação), traduzido pela necessidade, não existente no caso. Preferiu a lei vigente exigir a demonstração judicial da necessidade (e não sinceridade) somente nas situações referidas no parágrafo primeiro do art. 47. São situações em que há dúvida sobre a necessidade. É o caso do pedido de retomada para uso próprio, quando o locador usa outro imóvel seu como residência na mesma localidade ou se, usando imóvel alheio, já retomou o imóvel objeto da locação por esse motivo anteriormente (§1º, "a").   Uso próprio não quer dizer que o locador ou seu cônjuge ou companheiro deverão ocupar o imóvel pessoalmente. Basta que se verifique uma relação de proveito pessoal do imóvel. A propósito da retomada motivada para uso próprio do locador, ou do seu cônjuge e companheiro, ou para uso de seu descendente e ascendente, vale lembrar os enunciados das Sumulas do STF, que ainda são pertinentes: 409 - Ao retomante, que tenha mais de um prédio alugado, cabe optar entre eles, salvo abuso de direito; 410 - Se o locador, utilizando prédio próprio para residência ou atividade comercial, pede o imóvel locado para uso próprio, diverso do que tem o por ele ocupado, não está obrigado a provar a necessidade, que se presume; 483 - É dispensável a prova da necessidade, na retomada de prédio situado em localidade para onde o proprietário pretende transferir residência, salvo se mantiver, também, a anterior, quando dita prova será exigida; 484 - Pode, legitimamente, o proprietário pedir o prédio para a residência de filho, ainda que solteiro, de acordo com o art. 11, nº III, da Lei nº 4.494, de 25.11.64;  486 -  Admite-se a retomada para sociedade da qual o locador, ou seu cônjuge, seja sócio, com participação predominante no capital social. Também se exige a prova judicial da necessidade se o ascendente ou descendente usa imóvel próprio para residência (§1º, "b"). Sustenta-se na doutrina que a retomada fundada no inc. III, quando não incidentes as hipóteses previstas no respectivo parágrafo primeiro, conta com presunção de sinceridade do locador. Melhor seria dizer que a presunção é de necessidade. Essa presunção relativa pode ser afastada mediante prova em sentido contrário do locatário, que tem o ônus de fazer. Essa matéria, quando levada à decisão do Juiz, está evidentemente sujeita ao exame das circunstâncias. O direito de retomada do imóvel para uso do locador, como proprietário que é, deve ser interpretado de forma ampla, não cabendo substituir o seu exclusivo juízo de conveniência, do qual é soberano. Há casos na jurisprudência de impugnação a esse direito quando o locador quer fazer uso do imóvel, que está localizado em cidade litorânea, para fins de lazer. Não cabe negar a retomada neste caso, porque o proprietário pode dar à coisa o destino que desejar em proveito próprio. Também já se questionou a sinceridade do pedido do locador quando dispõe ele de outros imóveis próprios. Todavia, a escolha do imóvel não pode ser discutida, compreendida que está no juízo de conveniência do locador, sem olvidar que, para a retomada de prédio situado fora do domicílio do locador exige-se a prova da necessidade (Sum. 80 do STF). O condômino não precisa de autorização dos demais proprietários comuns para retomar o imóvel para uso próprio. Aplica-se ao condomínio geral e voluntário a teoria da propriedade integral ou da subsistência acolhida no art. 1.314 do CC, que reconhece no condômino o direito pleno sobre a coisa em relação a terceiro. Se o imóvel está sujeito ao usufruto, não tem o proprietário direito à sua retomada para uso próprio, porque o direito ao uso e fruição pertence exclusivamente ao usufrutuário (STJ - REsp n. 40.288-3, rel. Min. Anselmo Santiago, j. 02.06.98, Dj. 03.08.98). Outra dúvida que já foi levada aos tribunais diz respeito ao pedido de retomada para uso próprio em favor de pessoa jurídica, entendendo-se que não pode haver restrição a esse direito do locador, mesmo que seja para alojar funcionários ou diretores. Já se admitiu a retomada do imóvel pelo condomínio para uso próprio, quando se pede a restituição do imóvel locado a terceiro para uso, agora, do zelador. Já foi admitido o pedido de retomada do imóvel pelo espólio para uso de herdeiro (STJ - REsp n. 37.020/SP, Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini). Vale lembrar que o pedido de retomada do imóvel nos casos de uso próprio ou uso de ascendente ou descendente só pode ser admitido depois de findo o prazo da locação contratado e deve ser feito com a indicação precisa do ascendente ou descendente que pretende usar o imóvel. A retomada para uso próprio, do cônjuge ou companheiro, pode ser promovida para destinação diversa da locação. Todavia, quando a retomada é para uso de ascendente ou descendente, a lei consigna expressamente que neste caso a finalidade deve ser o uso residencial (inc. III). Não há nenhuma restrição da lei à retomada em favor de neto ou descendente mais distante, também para uso residencial. Questão interessante diz respeito à retomada do imóvel para uso de descendente ou ascendente por afinidade, como é o caso de enteados e sogros, inclusive na afinidade estabelecida pela união estável. A jurisprudência mais antiga de São Paulo, inclusive em relação à aplicação da lei anterior, aceitava o pedido em favor dos parentes em linha reta por afinidade. Nos parece que essa orientação deve ser mantida e agora com mais razão pela modificação das relações familiares ocorrida nos últimos anos, que reforçou o valor afetivo dessas relações de afinidade nas relações familiares, chamadas sobrepostas ou reconstituídas. Não é o caso, contudo, da chamada filiação sócio-afetiva, que decorre exclusivamente de um vínculo afetivo e não do parentesco. A referência não é a respeito de enteados ou sogros por afinidade, mas a exclusivas relações afetivas não determinadas pela união estável.  A jurisprudência certamente terá que enfrentar este tema quando o pedido de retomada for motivado para uso de filho ou pai afetivo, cujo vínculo não é registral e também não decorre da união estável. Entendemos que é razoável admitir a retomada do imóvel nesse caso, menos pelo valor jurídico que se possa estabelecer nesta relação, que ainda se mostra controverso no direito brasileiro, e mais pelo direito do locador destinar o imóvel ao uso de pessoa que lhe está intimamente ligada por uma relação afetiva muito próxima da paternidade. 5. Estabelece o art. 47, inc. IV, a retomada do imóvel, e também neste caso depois de findo o contrato, ou quando celebrado verbalmente, para demolição e edificação ou realização de obra (reforma) que aumente a área construída do prédio em no mínimo 20%. É preciso distinguir as duas hipóteses de retomada previstas neste dispositivo. Uma delas é para demolição e edificação. Neste caso não pode ser admitida a retomada só para a demolição do prédio. É necessário que a demolição seja destinada a uma nova edificação, independentemente da área construída. A outra hipótese é para a realização de obra (reforma). O aumento de área só deve ser exigido quando se cuida da retomada destinada à realização de obra (reforma) aprovada pelo Poder Público. A obra é voluntária, o que distingue a retomada neste caso da hipótese do art. 9º, IV, que se refere a reparações urgentes determinadas pelo Poder Público. A Súmula 374 do STF já enunciava essa diferença: Na retomada para construção mais útil, não é necessário que a obra tenha sido ordenada pela autoridade pública. Cabe ao locador comprovar desde logo, com a petição inicial, os requisitos da lei para a retomada, como a aprovação do projeto. Caso o imóvel seja destinado a exploração de hotel ou pensão, o aumento da área construída deve ser no mínimo de cinquenta por cento. É o que está escrito na parte final do art. 47, inc. IV. Esta disposição da lei é controversa. Se o imóvel é destinado a hotel ou pensão, não se cuida de locação residencial e a parte final do dispositivo está mal colocada. Ademais, se a locação não é residencial e está prorrogada por tempo indeterminado, a denúncia não precisa ser motivada (art. 57). Todavia, se a retomada foi motivada para demolição e edificação, não exige a lei do locador (primeira parte do dispositivo comentado) aumento de área construída. Pode-se dizer, portanto, que esta parte final do dispositivo não tem nenhum efeito. O critério da lei para autorizar a retomada do imóvel no caso do art. 47, inc. IV, está fundado especialmente na obra que aumente a área construída. Acreditamos que a jurisprudência pode temperar o rigor da lei para admitir obra que promova a modernização da edificação, sem aumento importante da área construída. Ademais, o aumento da área construída pode não representar aumento da área útil para a locação. A finalidade da lei, no fundo, é melhorar a oferta de imóveis para moradia, o que compreende também a atualização das edificações. É o que ocorre no pedido de retomada para demolição e edificação. A nova edificação pode ser de qualquer natureza, porque o que importa é o interesse legítimo do locador em renovar e atualizar a edificação. É necessário atentar para o fato de que, retomado o imóvel para esse fim, a locação foi resilida unilateralmente e não será restabelecida depois da edificação ou da conclusão da obra, salvo por novo contrato. A hipótese do art. 47, inc. IV, é destinada a locação residencial contratada verbalmente, ou por escrito com tempo inferior a trinta meses, prorrogada por tempo indeterminado, antes de cinco anos de vigência, porque depois de cinco anos de vigência a denúncia poderá ser vazia (inc. V). 6. Para uso próprio ou uso de ascendente ou descendente, exige a lei que o locador faça prova da propriedade do imóvel. O documento que faz a prova é a certidão do registro de imóveis e é indispensável à propositura da ação. A exigência da prova de propriedade ou da titularidade de direito real sobre o imóvel, como é o caso do compromissário-comprador em caráter irrevogável e título registrado, é bastante duvidosa, porque não se exige a propriedade para dar o imóvel em locação. A lei neste caso restringe o direito do locador que não tem título de propriedade, inibindo a retomada para uso próprio e de ascendente e descendente, o que nos parece ilegítimo. A preocupação da lei foi estabelecer um controle de maior seriedade do pedido. Essa preocupação se justificava quando a lei foi editada, porque ela encontrou um quadro de grave conflito entre locadores e locatários. Hoje nos parece que não tem mais cabimento esta restrição que bem poderia ser excluída da lei. 7. A lei procurou sancionar o locador que não deu ao imóvel a destinação alegada para o pedido de retomada motivado. Estabeleceu nesse sentido o seguinte: Art. 44. Constitui crime de ação pública, punível com detenção de três meses a um ano, que poderá ser substituída pela prestação de serviços à comunidade: [...] II - deixar o retomante, dentro de cento e oitenta dias após a entrega do imóvel, no caso do inciso III do art. 47, de usá-lo para o fim declarado ou, usando-o, não o fizer pelo prazo mínimo de um ano; III - não iniciar o proprietário, promissário comprador ou promissário cessionário, nos casos do inciso IV do art. 9º, inciso IV do art. 47, inciso I do art. 52 e inciso II do art. 53, a demolição ou a reparação do imóvel, dentro de sessenta dias contados de sua entrega; Assegurou ao locatário, no parágrafo único do referido dispositivo, o direito de exigir o pagamento de multa: "Ocorrendo qualquer das hipóteses previstas neste artigo, poderá o prejudicado reclamar, em processo próprio, multa equivalente a um mínimo de doze e um máximo de vinte e quatro meses do valor do último aluguel atualizado ou do que esteja sendo cobrado do novo locatário, se realugado o imóvel." 8. Por fim, admite-se a retomada do imóvel imotivadamente se a vigência da locação ultrapassar 5 (cinco) anos (inc. V). Esta disposição da lei (inc. V) é aquela que compõe a combinação de regras para a retomada do imóvel sem motivo. Se a contratação escrita da locação é igual ou superior a trinta meses, vencido o contrato, tem o locador a denúncia vazia (art. 46, § 2º). Se a contratação é verbal, a denúncia vazia só pode ser exercida depois de cinco anos de locação (art. 47, V). Todavia, vencida a locação contratada com tempo inferior a trinta meses, a lei reserva ao locador a retomada do imóvel motivada (inc. I a IV). A lei não é clara neste caso (inc. V) quanto à necessidade do locador notificar o locatário (denunciar a locação) e lhe conceder trinta dias para a desocupação, como disposto no art. 46, § 2º. No entanto, a locação que perdura por mais de cinco anos, nos termos do caput do art. 47, é a locação prorrogada por tempo indeterminado, não sujeita a termo. Logo, a resilição do contrato e a constituição em mora do devedor, quanto à sua obrigação de restituir a coisa, exige a interpelação (art. 397, par. único, CC). Por conseguinte, deve ser aplicada no caso a mesma disposição do art. 46, § 2º, para exigir do locador a prévia notificação (denúncia), com prazo de trinta dias para a desocupação, antes do ajuizamento do pedido de despejo. É a interpretação, a nosso ver, que melhor se harmoniza com o sistema da lei. 9. Nas outras hipóteses de retomada deste art. 47 essa dúvida também está presente. Há entendimento firme na jurisprudência, inclusive do STJ, dispensando a notificação prévia nestes casos. Insistimos em dizer que a locação, prorrogada por tempo indeterminado, estabelece para o locatário a obrigação de restituir a coisa, não sujeita a termo, somente a partir da interpelação, de forma que deverá ser feita a notificação para a denúncia da locação (resilição) e a constituição do locatário em mora, condição necessária a qualificar o interesse do locador no pedido de retomada judicial. É natural e intuitivo admitir que essa interpelação (denúncia do contrato) conceda ao locatário o prazo razoável para cumprimento da obrigação (restituição da coisa) que, para a lei 8.245/91, é de 30 dias, como está indicado para situação semelhante no art. 46, § 2º,  e art. 57. É certo que o art. 61 concede seis meses de prazo para a desocupação ao locatário, nas hipóteses do art. 47, incs. III e IV, que manifestar a sua concordância com a desocupação requerida, o que levou os tribunais a afirmar que não é necessária a notificação prévia.  Ocorre que igual prazo é concedido também na hipótese do art. 46, § 2º, para a qual exige-se notificação e prazo de trinta dias para desocupação. A lei deveria conceder o prazo de seis meses para desocupação a partir do momento em que o locatário é interpelado (denúncia da locação), e não da sua concordância com o pedido de despejo ajuizado. Não obstante, para que se dê igual tratamento a duas situações semelhantes (locação por tempo indeterminado), a notificação com prazo de trinta dias deve ser feita. Com essa disposição que concede mais seis meses para a desocupação, a lei acabou incentivando o litígio. O locador não faz a notificação, porque sabe que o inquilino, quando demandado, contará com mais seis meses de prazo para desocupação. E o locatário não atende a notificação, se ela ocorrer,  porque sabe do prazo que lhe assegura a lei depois de ajuizado o pedido. Não fosse somente a criação artificial do litígio a justificar a modificação da Lei, há um erro técnico em admitir o pedido de despejo antes da resilição contratual e da constituição do locatário em mora. O que impede a extinção dos processos ajuizados sem a notificação prévia, por falta de interesse de agir, é o fato de que a citação constitui o locatário em mora (art. 240, CPC) e produz o mesmo efeito. Não obstante a solução que a jurisprudência tem dado nesse sentido, emprestando esse efeito à citação, não se pode deixar de apontar a falta de técnica que decorre da interpretação que dispensa a notificação. É importante lembrar que todas as locações residenciais que tenham sido celebradas anteriormente à vigência desta lei serão automaticamente prorrogadas por tempo indeterminado, ao término do prazo ajustado no contrato (art. 77). Neste caso, as locações residenciais que tenham sido celebradas anteriormente à vigência desta lei e que já vigorem ou venham a vigorar por prazo indeterminado, poderão ser denunciadas pelo locador, concedido o prazo de doze meses para a desocupação (art. 78). Decorre das disposições dos arts. 46 e 47 a recomendação da lei para que a locação seja contratada por escrito e com prazo igual ou superior a trinta meses, porque são estes os requisitos que asseguram ao locador a retomada do imóvel por mera conveniência ao final da locação ou quando prorrogada por tempo indeterminado. Recomendo ao leitor, para maior aprofundamento no tema, que consulte a grande obra coordenada por Jaques Bushatsky e Rubens Carmo Elias Filho (Locação ponto a ponto: comentários à Lei n. 8.245/91), publicada pela Editora IASP, da qual tive a honra de participar.
Ainda hoje, entre locadores e locatários, há muitas dúvidas sobre o regime jurídico da contratação da locação por tempo determinado e por tempo indeterminado. O desconhecimento do regime jurídico da locação urbana pode trazer surpresas aos contratantes. De outra parte, o mercado da locação urbana mudou bastante nos últimos anos e novas demandas se apresentaram, mas a lei 8.245/91 não foi atualizada nesse ponto. Em 2020 tive a honra de participar da grande obra, coordenada por Jaques Bushatsky e Rubens Carmo Elias Filho (Locação ponto a ponto: comentários à lei 8.245/91), publicada pela Editora IASP, na qual escrevi algumas notas sobre esse tema. Na primeira edição desta Coluna em 2023, pretendemos trazer ao público nossas anotações a respeito do art. 46 da Lei n. 8.245/91, com o propósito de esclarecer as dúvidas e orientar a contratação.  SEÇÃO I Da locação residencial Art. 46. Nas locações ajustadas por escrito e por prazo igual ou superior a trinta meses, a resolução do contrato ocorrerá findo o prazo estipulado, independentemente de notificação ou aviso. § 1º Findo o prazo ajustado, se o locatário continuar na posse do imóvel alugado por mais de trinta dias sem oposição do locador, presumir-se-á prorrogada a locação por prazo indeterminado, mantidas as demais cláusulas e condições do contrato. § 2º Ocorrendo a prorrogação, o locador poderá denunciar o contrato a qualquer tempo, concedido o prazo de trinta dias para desocupação. 1. Desde logo se deve atentar para o título desta seção da lei (Da locação residencial) a indicar a restrita aplicação do quanto disposto à locação residencial. Em dois dispositivos (arts. 46 e 47) a lei estabeleceu um regime distinto para a locação residencial. A diferença de regime está fundada essencialmente na forma e no tempo da contração. Para a locação residencial contratada por escrito e por tempo determinado igual ou superior a trinta meses, aplica-se o art. 46. Para a locação residencial contratada verbalmente ou por escrito por tempo inferior a trinta meses, aplica-se o art. 47. Procurou a lei estimular a contratação por escrito e com prazo igual ou superior a trinta meses, favorecendo o locador, neste caso, quanto ao direito de retomada do imóvel. O intérprete deve estar atento a estes dois regimes diferentes. Estes dois dispositivos (arts. 46 e 47), sem dúvida, foram determinantes no equilíbrio tão difícil nas relações locatícias residenciais, porque reintroduziu a possibilidade de denúncia vazia na locação residencial, prorrogada por tempo indeterminado, não permitida pela lei anterior (lei 6.649/79), e deu ao contrato por tempo determinado, igual ou superior a trinta meses, o efeito natural que tem o advento do termo, que é a sua extinção, malgrado utilizada a expressão resolução, que no direito contratual tem outro significado técnico (extinção do contrato por inadimplemento). 2. Vencidos os trinta meses de locação contratados por escrito, o locador tem trinta dias para manifestar a sua oposição à continuidade do contrato, sob pena de prosseguir a locação, agora prorrogada por tempo indeterminado. Adotou a lei expressamente a técnica da prorrogação do contrato se a relação locatícia continuar ao final do termo previsto (trinta meses), sem oposição do locador.  Ao locador que não desejar a prorrogação da locação, cabe manifestar a sua oposição até trinta dias do termo do contrato. Essa oposição, que não é preciso ser motivada e decorre exclusivamente da conveniência do locador, pode ser feita extrajudicialmente, por aviso ou notificação, ou manifestada diretamente pelo pedido judicial de despejo, ajuizado nos trinta dias do vencimento do contrato. Já se entendeu que esse prazo é peremptório e não admite prorrogação (JTA-Lex 156/384). Nesta hipótese de oposição à continuidade da locação não se tem uma denúncia do contrato, cuja extinção se operou com o termo. A denúncia, como meio de exercer o direito à resilição do contrato, se refere evidentemente ao contrato em curso, que não é o caso. Essa oposição é um aviso de que o locador não deseja prorrogar a locação, já vencida. Quando não promovida a oposição, ou a equivalente ação direta de despejo pela extinção da locação, ocorrerá, na expressão de Francisco Carlos Rocha de Barros, "a ressureição do vínculo locatício".1 A oposição manifestada pelo locador antes de vencido o prazo do contrato não tem o efeito de impedir a prorrogação da locação, se nos trinta dias seguintes ao seu vencimento o locador não se manifestar pela efetiva oposição, porque a prorrogação da locação só pode ocorrer depois de vencido o prazo, e não antes. Logo, a notificação anterior não tem nenhum efeito. Ademais, esta notificação somente reitera o termo já escrito no contrato e não dispensa a exigida e formal oposição no momento seguinte ao seu vencimento. Não se pode ajustar no contrato de locação cláusula prevendo a não prorrogação, ou cláusula que estabeleça que a prorrogação depende de consentimento escrito do locador, porque cláusulas desta natureza são conflitantes com o texto da lei e, por consequência, são nulas (art. 45) (STJ - AgRgREsp  1.025.059, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 02.03.2010, Dj. 29.03.2010). Deve ser lembrado que o recebimento do aluguel nos trinta dias seguintes ao vencimento do contrato não é sinal de prorrogação da locação, porque é direito do locador e obrigação do locatário (STJ - REsp 20.559-5, rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 27.04.92, Dj. 18.05.92). O que prorroga a locação, objetiva e tacitamente, é a falta de oposição do locador à sua continuidade até trinta dias do vencimento do contrato. 3. No caso de prorrogação da locação por tempo indeterminado, decorrente da falta de oposição do locador, quando contratada por escrito e com prazo igual ou superior a trinta meses, a lei facultou ao locador denunciar o contrato a qualquer tempo, concedido o prazo de trinta dias para a desocupação. Essa verdadeira denúncia é direito potestativo do locador para o fim de resilir o contrato, e pode ser levada a efeito por uma notificação ou aviso, judicial ou extrajudicial, concedendo ao locatário o prazo de trinta dias para a desocupação. A lei se refere em outro momento ao "aviso por escrito" (art. 6º) como forma de denúncia do contrato (embora para a denúncia do locatário). Esse aviso por escrito (forma escrita), portanto, é a forma que melhor atende ao que exige a lei para formalizar a denúncia da locação em qualquer hipótese. Não obstante a forma preconizada, a jurisprudência empresta efeitos à denúncia promovida por outro meio, quando ela alcança o seu fim, que é levar ao conhecimento do locatário o desejo do locador de não continuar a locação e lhe conceder trinta dias para a desocupação. Esse entendimento ganha relevância atualmente diante dos meios eletrônicos de comunicação, mas não pode haver dúvida alguma sobre o conhecimento do destinatário. Há também entendimento no sentido de que a notificação promovida por procurador sem comprovação dos poderes, depois ratificada com a propositura da ação de despejo, atende ao quanto exigido neste dispositivo, porque ineficaz deve ser reputado o ato não ratificado (Sum. 22 do TJSP). Não atendida a notificação que rompe a locação prorrogada por tempo indeterminado, o locador poderá ingressar com ação de despejo imotivada, fundada exclusivamente na denúncia vazia e consequente extinção (resolução) do contrato (Sum. 21 do TJSP). Ocorre neste caso tecnicamente a resilição unilateral do contrato. Cabe lembrar que, seja qual for o fundamento do término da locação, a ação do locador para reaver o imóvel é a de despejo (art. 5º). A lei não estabeleceu prazo para o ingresso da ação de despejo depois da notificação, podendo ser ajuizada a qualquer tempo (Sum. 23 do TJSP). Todavia, a demora excessiva na propositura da ação pode significar a prorrogação da locação, o que impõe o exame dos fatos (STJ - REsp 37.621-0, rel. Min. Costa Lima, j. 12.05.93, Dj. 31.05.93; AgRg no AgIn n. 1.027.368-SP, rel. Min. Laurita Vaz, j. 10.06.2008, Dj. 04.08.2008) Quanto a essa demora do agir do locador não se deve deixar de atentar para o prazo de 90 dias que a lei concede para a ação de despejo, depois da notificação do inquilino, em outras duas hipóteses de denúncia imotivada (arts. 8º e 9º), que bem pode ser considerado pelo intérprete, por analogia, para esse fim. E muito importante notar que para os contratos com prazo inferior a trinta meses, ou firmados verbalmente, a lei não assegura ao locador a possibilidade de resilição unilateral pela denúncia imotivada  antes de cinco anos de vigência (art. 47, V). A lei atual permitiu, com o dispositivo em referência, a retomada imotivada do imóvel, desde que o contrato tenha vigência mínima de trinta meses. Cabe lembrar que para esse fim não se admite a soma do tempo dos contratos. É preciso que um único instrumento escrito tenha prazo igual ou superior a trinta meses (STJ - REsp n.1.364.668-MG, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 07.11.2017, Dj. 17.11.2017). Também não atende ao quanto disposto na lei aceitar a denúncia imotivada para contratos com prazo inferior a trinta meses, celebrados na sequência de outro que foi firmado por trinta meses. O segundo contrato é uma nova contratação, que não pode ser entendida como prorrogação da anterior. Nem se pode falar em direito adquirido do contrato extinto que se projeta a outro seguinte. 4. Procurou a lei, com estes dois dispositivos (arts. 46 e 47), estabilizar a locação residencial e estimular contratos mais longos, com prazo igual ou superior a trinta meses, prevenindo litígios que se verificaram na vigência da lei anterior por conta da impossibilidade da retomada do imóvel sem motivo. Não era incomum o locador pedir a retomada do imóvel para uso próprio ou simular outro motivo com o fim de contornar o impedimento da lei anterior para a chamada denúncia vazia. A lei encontrou o equilíbrio da relação ao assegurar a denúncia vazia condicionada. Este regime definido no art. 46 acabou modelando, no mercado, as locações residenciais urbanas desde a vigência da lei 8.245/91, e foi determinante para trazer a estas relações locatícias, tão sensíveis, o mínimo de estabilidade e segurança. No entanto, as condições do mercado se modificaram e hoje a lei se ressente de um regime jurídico mais adequado aos interesses das partes em contratos mais curtos. É comum se estabelecer hoje a liberação da multa do locatário em contratos de trinta meses, caso o locatário faça a restituição do imóvel antes do termo (ex. dose meses; dezoito meses). É uma forma criativa,  legal, e que nunca foi proibida, de ajustar a vontade das partes ao que estabeleceu a lei. Todavia, há espaço hoje para mais liberdade das partes na contratação da locação e seria benvinda uma modificação que pudesse reduzir o tempo mínimo de locação a dezoito ou doze meses, assegurada a denúncia fazia em caso de prorrogação, atendendo melhor aos interesses de ambas as partes e às condições econômicas do mercado. 5. Para as locações mistas, comerciais e residenciais, tem prevalecido o entendimento de que se deve identificar a natureza preponderante da locação para estabelecer o regime de retomada do imóvel. Quando a locação é não residencial, e a residência é acessória, cabe a qualquer tempo a denúncia vazia do contrato de locação vencido, mesmo quando o contrato é inferior a trinta meses (art. 57). Ao contrário, se a locação é preponderantemente residencial, permitindo-se ao locatário usar parte do imóvel para o comércio, deve ser aplicado o regime dos arts. 46 e 47 da lei. O contrato escrito pode bem definir a natureza preponderante da locação. A locação verbal presume-se por tempo indeterminado. É o entendimento da doutrina que foi afirmado em antigo enunciado (Súm. 24 do TJSP). É uma presunção relativa, mas difícil de ser vencida. Por isso a Lei 8.245/91 não admite prova em sentido contrário, presumindo-se, de forma absoluta, por tempo indeterminado, a locação contratada verbalmente. O disposto no artigo em referência (art. 46) só pode ser aplicado aos contratos com termo certo, o que não ocorre nos contratos verbais. Em consequência, o art. 46 só pode ser aplicado aos contratos escritos por tempo igual ou superior a trinta meses, como consta expressamente do caput. Para as locações residenciais celebradas anteriormente à Lei n. 8.245/91, há previsão específica para a denúncia da locação (arts. 77 e 78). A lei prevê, ainda, outras hipóteses de denúncia da locação (art. 6º; art. 7º, par. único; art. 8º, caput, § 2º; art. 50, par. único; e art. 57). 6. É importante lembrar que há um outro caso de denúncia vazia da locação previsto fora da Lei 8.245/91, estabelecida na regulação da alienação fiduciária pela Lei 9.514/97. Com a consolidação da propriedade, estabelece o art. 27, § 7º, da lei 9.514/97, o seguinte: "Se o imóvel estiver locado, a locação poderá ser denunciada com o prazo de trinta dias para desocupação, salvo se tiver havido aquiescência por escrito do fiduciário, devendo a denúncia ser realizada no prazo de noventa dias a contar da data da consolidação da propriedade no fiduciário, devendo essa condição constar expressamente em cláusula contratual específica, destacando-se das demais por sua apresentação gráfica." Não cabe a denúncia vazia se o contrato de locação é anterior à alienação fiduciária, quando o contrato de locação foi averbado na matrícula imobiliária, com cláusula de vigência em caso de alienação. 7. Há um efeito importante, e nem sempre notado, a respeito do vencimento da locação quando o locador se opõe à sua prorrogação nos trinta dias seguintes ao vencimento do contrato, ou quando vencido o prazo concedido para restituição do imóvel pela denúncia da locação, que está prorrogada por tempo indeterminado. É que o locatário se vê constituído em mora nestas duas hipóteses e, consequentemente, responde pelos efeitos da mora, o que tem reflexo sobre os riscos incidentes sobre a coisa (perda ou deterioração) e sobre a posse, que passa a ser injusta e de má fé pelo vício da precariedade que encerra. Haverá efeitos sobre as benfeitorias e acessões, assim como sobre eventual direito de retenção, caso admitida a indenização pelo contrato (arts. 35 e 36). 8. Por fim, estabeleceu o art. 61 que o locatário poderá concordar com o pedido de despejo fundado na denúncia vazia da locação que foi prorrogada por tempo indeterminado, ganhando seis meses para a desocupação:  "Nas ações fundadas no § 2º do art. 46 e nos incisos III e IV do art. 47, se o locatário, no prazo da contestação, manifestar sua concordância com a desocupação do imóvel, o juiz acolherá o pedido fixando prazo de seis meses para a desocupação, contados da citação, impondo ao vencido a responsabilidade pelas custas e honorários advocatícios de vinte por cento sobre o valor dado à causa. Se a desocupação ocorrer dentro do prazo fixado, o réu ficará isento dessa responsabilidade; caso contrário, será expedido mandado de despejo." Esse prazo de seis meses, embora importante para inibir o litígio, se mostra hoje excessivo e bem poderia ser reduzido pelo legislador, porque a lei já concedeu ao locatário 30 dias para a desocupação, a partir da notificação ou aviso. Conceder outro prazo se revela um erro técnico, porque torna sem efeito aquele da notificação. Melhor seria alargar o prazo para atender à denúncia levada a efeito pela notificação e eliminar a hipótese do art. 61 para os contratos prorrogados por tempo indeterminado. Na próxima edição desta Coluna vamos tratar do art. 47 da Lei n. 8.245/91, que regula locação verbal e a locação contratada com prazo inferior a trinta meses. __________ 1 Comentários à lei do inquilinato : Lei n. 8.245, de 18-10-1991, doutrina e jurisprudência do STJ, TACSP, TAMG, TACRJ e TARS, artigo por artigo. São Paulo : Saraiva, 1995, p. 20.4
É muito comum a dificuldade, não só de identificar, mas de aplicar corretamente o regime da responsabilidade civil contratual. Há geralmente a tendência de emprestar à responsabilidade contratual preceitos da responsabilidade extracontratual, nem sempre aplicáveis, e negar a autonomia das partes na antecipação e limitação de efeitos da responsabilidade, o que é próprio da responsabilidade contratual que se caracteriza pela previsão do dano. Ocorre, também, alguma dúvida sobre a implicação da conduta da vítima no campo da responsabilidade contratual. Pretendemos trazer nesta oportunidade algumas anotações sobre aspectos dessa simbiose, que ocorre nos regimes da responsabilidade civil, e salientar as suas diferenças. A responsabilidade civil se fundou na ideia de ato ilícito e de culpa lato sensu. É a responsabilidade subjetiva que recebemos no direito brasileiro por influência do Code de Napoleão. A vítima está incumbida, neste caso, de demonstrar o ilícito e a culpa ou dolo do agente causador do dano para obter a respectiva reparação. A partir da observação de que em certas situações a vítima enfrenta enorme dificuldade para produzir a prova da culpa, teve início uma mudança importante no entendimento da responsabilidade civil, verificada a partir do final do Século XIX1, voltando-se a atenção menos para o agente e mais para o dano. A hipótese de responsabilidade por acidente de trabalho foi precursora dessa mudança. Progressivamente se passou a admitir hipóteses de presunção de culpa e depois se avançou para hipóteses de responsabilidade pelo risco da atividade ou "responsabilidade sem culpa", surgindo os lineamentos da responsabilidade objetiva, que pressupõe o exercício de uma atividade, o dano e o nexo de causalidade. Torna-se, nesses casos, irrelevante a culpa, porque dispensada (prescinde-se) a vítima de fazer a sua prova, e se dá atenção maior ao risco.2 Não foi eliminada ou substituída a responsabilidade subjetiva, que continua a orientar a responsabilidade civil. O risco e a culpa consistem em duas fontes de responsabilidade que, embora distintas, convivem em nosso direito. A responsabilidade subjetiva se mostra mais adequada nas relações interindividuais, reservando-se a responsabilidade objetiva às hipóteses previamente definidas na lei, motivadas, quase sempre, pela diferente posição de forças em que se encontram as partes envolvidas. Não é por outra razão que se fala na responsabilidade objetiva como responsabilidade ex lege. A responsabilidade objetiva é adequada, e desde o início foi pensada, para as situações de desequilíbrio na relação das partes, como ocorre nas relações de consumo, ou em situações de elevado risco, e que alcançam vítimas que não podem evitar o dano, como na exploração de atividades perigosas (nuclear, petróleo, transporte aéreo etc.). Por isso ela vem definida em lei, porque a parte mais fraca na relação não tem poder para impor ou negociar condições de responsabilidade, ou porque à vítima não foi dado prever o evento ou interferir na sua ocorrência. O Código Civil de 2002 estabeleceu uma cláusula geral de responsabilidade objetiva no art. 927, par. único, para as atividades de risco. É o risco criado ou o risco proveito, conforme a doutrina, mas não é o risco comum e naturalmente existente em toda atividade. É o risco que assume maior potencial lesivo, desde que decorrente da atividade. O Código Civil nesse ponto não considerou, ao menos expressamente, a natureza da relação entre as partes para definir a aplicação da responsabilidade objetiva, especialmente nos casos em que há assimetria de forças nesta relação. Não quer dizer que essa consideração não deve ser feita no caso concreto para a definição da responsabilidade. A responsabilidade objetiva é excluída quando não há nexo de causalidade entre o dano e a atividade. Essa relação causal não ocorre quando se verifica o fato exclusivo da vítima, ou o fato de terceiro, ou quando se está diante do fortuito ou da força maior. Também não pode deixar de ser considerada a repartição de responsabilidades quando se verifica a hipótese de concorrência para o resultado em razão do comportamento da vítima, situação que igualmente interfere no nexo de causalidade. Seguindo a doutrina clássica, quando o dano decorre do ilícito contratual, caracterizado pela violação ao dever convencionado, ou propriamente pelo inadimplemento da obrigação contratada, estamos diante da responsabilidade contratual. Em qualquer outro caso de ilícito, a responsabilidade é extracontratual, aplicando-se, como regra, o art. 186 do Código Civil. Na responsabilidade extracontratual o agente infringe a um dever legal, porque não existe nenhum vínculo jurídico (relação jurídica) entre a vítima e o agente antes do evento, enquanto na responsabilidade contratual o agente ofende a um dever contratual - é inadimplente em relação a uma obrigação contratada. O vínculo, ou a relação jurídica, no caso de responsabilidade contratual é preexistente. Essa distinção tem enorme interesse no campo da responsabilidade, visto que opera sobre a previsibilidade do dano e, consequentemente, sobre as antecipações dos contratantes a respeito da composição da reparação, sujeita a limitações e condições que as partes podem estabelecer. Essa concepção clássica, no sentido de que a responsabilidade contratual decorre da violação do contrato, já não se mostra suficiente e passa a dar lugar a outra forma de ver a responsabilidade contratual. É que os deveres de conduta, eventualmente violados, como pressuposto da responsabilidade em geral, não encontram sua fonte tão claramente definida e apartada entre:  a) a Lei (como norma geral de conduta) e ;  b) o contrato ou negócio jurídico, fruto do exercício da autonomia privada. Diante da crescente intervenção do Estado nas relações privadas, mesmo nos chamados contratos paritários, há deveres de conduta que não foram contratados expressamente, mas existem na relação jurídica contratual, como é o caso do dever de boa-fé objetiva e todos os seus desdobramentos. A partir dessa observação é fácil chegar ao entendimento de que a distinção entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual não está situada na fonte do dever violado, mas sim na preexistente relação jurídica e no fato de que o dano tem origem nessa relação.3 Logo, "se o parâmetro distintivo entre as duas categorias de responsabilidade já não é a fonte do dever, mas a preexistente relação jurídica, é possível que a violação de deveres de conduta impostos pela boa-fé objetiva conduza ora à responsabilidade contratual, ora à extracontratual. Quando os deveres são impostos no âmbito da relação estabelecida por um contrato ou outra espécie de negócio jurídico, os danos resultantes dessa violação devem ser tutelados por meio da responsabilidade contratual; do contrário, quando os deveres decorrem apenas de um contato social qualificado entre as partes, incidem as regras da responsabilidade extracontratual, a exemplo do que se passa no rompimento injustificado das tratativas."4 A responsabilidade extracontratual está disciplinada mais amplamente nos arts. 186/188 e 927, todos do Código Civil. A responsabilidade contratual está indicada nos arts. 389 (e segs.) e 395 (e seg.) do Código Civil. Embora clara a distinção, não se encontra no Código Civil, quando se cuida dos atos ilícitos, diferença de tratamento (ver a respeito os arts. 186 a 188, 927 e seg. e 944 e seg.), talvez porque foi influenciado de alguma forma pela doutrina unitária ou monista, que não vê efeitos diferentes decorrentes do ilícito, seja ele contratual ou seja ele extracontratual. O que é necessário para a responsabilidade, de acordo com a posição unitária ou monista, são: o dano, o ilícito e a causalidade. Não importa (é indiferente) para essa posição a relação existente ou preexistente entre as partes. Não obstante a dubiedade assumida pelo Código Civil no tratamento da responsabilidade contratual e extracontratual,  há evidente distinção de efeitos e de função no campo da respectiva responsabilidade. Esclarece o jurista italiano CESARE SALVI, que a função da responsabilidade contratual é sempre a proteção contra um risco específico de dano, aquele criado pela relação particular que havia sido previamente estabelecida entre dois sujeitos, enquanto na responsabilidade extracontratual o surgimento da relação intersubjetiva é posterior ao julgamento da injustiça do dano. A referência à obrigação preexistente é, portanto, válida, na primeira figura, para identificar o responsável, qualificar o dano como injusto e determinar o conteúdo da obrigação de reparação; operações que, por outro lado, na responsabilidade aquiliana, devem encontrar sua base em outro fundamento.  Em outras palavras, uma vez abandonada a reconstrução de ambas as figuras de responsabilidade em torno do esquema do ilícito, emerge uma diversidade de estrutura e funções, correspondente ao caráter, do Instituto Aquiliano, de ordenamento dos casos em que o contato social ocorre fora de um 'projeto' anterior entre as partes. A qualificação ex post do facto abrange assim toda a sua dimensão, abrindo ao juízo de responsabilidade espaços sempre novos, e alheios à outra figura, em que a obrigação de indenização surge sempre como especificação de uma obrigação preexistente. A tutela que se entende satisfatória em via de interesse especificamente deduzido da relação obrigatória existente entre as partes, não é adequada ao problema que o ordenamento afronta na reação ao dano injusto no campo da responsabilidade aquiliana, na qual a imprevisibilidade do dano se mostra relevante em sede de juízo de responsabilidade, segundo os diversos critérios de imputação  (dolo, culpa e prova liberatória do caso fortuito).5 Há no direito italiano, inclusive, previsão expressa no Codice Civile no sentido da limitação da responsabilidade (contratual) à reparação do dano, que poderia ter sido previsto quando se constituiu a obrigação, como limite do dano ressarcível (art. 1225).6 É uma indicação segura da natureza diversa da responsabilidade contratual e do regime jurídico distinto a ser observado. Em outras palavras, admite-se naturalmente no campo da responsabilidade contratual a limitação ou repartição dos riscos e responsabilidades, exatamente porque as partes podem se antecipar (previsibilidade), o que não se verifica na responsabilidade extracontratual. Na responsabilidade contratual deve a vítima fazer a prova (tem o ônus) de que a obrigação (o contrato) não foi cumprida. Não tem o ônus de provar a culpa, como ocorre na responsabilidade extracontratual. A culpa na responsabilidade contratual também é considerada, mas de forma diferente, pois obedece, como anota CARLOS ROBERTO GONÇALVES, a um certo escalonamento, de conformidade com os diferentes casos em que ela se configure, ao passo que na delitual, ela iria mais longe, alcançando a falta ligeiríssima.7 Acrescentamos, de nossa parte, que essa distinção aproxima a responsabilidade contratual do regime próprio da responsabilidade objetiva, quando liberada a vítima do ônus da prova da culpa. Cabe bem lembrar nesse ponto, com a doutrina de GAETANO ANNUNZIATA, que a chave de todo o problema da responsabilidade civil não é apenas dar uma definição sistemática do conceito de responsabilidade civil nas várias hipóteses, mas também delinear com precisão o regime probatório.8 A dificuldade que possa apresentar, ou a existência de uma zona cinzenta, a respeito da natureza da responsabilidade (contratual ou extracontratual), como adverte GUIDO ALPA, não autoriza a tomar partido pela solução mais drástica (e simplista), isto é, pela equiparação, ou pior, pela identificação entre os dois tipos diversos de responsabilidade.9 Acrescentamos que essa dificuldade não justifica aplicar um regime jurídico de responsabilidade pelo outro. Portanto, a despeito das possíveis aproximações, há importantes diferenças no regime jurídico aplicável quando a responsabilidade é contratual ou quando a responsabilidade é extracontratual, tanto a respeito do próprio ilícito, como da imputação e da reparação, ressaltando-se o espaço para o exercício da autonomia privada nas chamadas "antecipações" e "limitações", que são naturalmente lícitas às partes no campo da responsabilidade contratual. __________ 1 É comum na doutrina a indicação, como precursora dessa mudança, da famosa obra do francês RAYMOND SALEILLES (Les acidentes du travail et la responsabilité civile, de 1897). 2 A respeito desta evolução consultar, por todos, WILSON MELO DA SILVA (Responsabilidade sem culpa. 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 1974). 3 Nesse sentido a doutrina de GUSTAVO TEPEDINO, ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA e GISELA SAMPAIO DA CRUZ GUEDES: "A distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual deixa, assim, de tomar por base a fonte do dever violado - autonomia privada ou lei, respectivamente -, e passa a se assentar na preexistência de relação contratual válida entre as partes, bem como no fato de o dano resultar do descumprimento de dever oriundo daquele vínculo, independentemente de este dever decorrer de fonte autônoma ou heterônoma. O traço característico da responsabilidade civil contratual reside, por conseguinte, na aproximação peculiar, prévia à ocorrência do dano, entre a vítima e o agente causador da lesão, consubstanciada na relação contratual em cujo bojo se dá a infração geradora do dever de indenizar." (Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil.  2. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 12) 4 Op. cit., p. 12. 5 La responsabilità civile. Trattato di Diritto Privato a cura di Giovanni Iudica e Paolo Zatti. Milano : Giuffrè. Seconda Edizione, p. 14-15. 6 Está disposto no referido dispositivo: "Art. 1225. Prevedibilità del danno. Se l'inadempimento o il ritardo non dipende da dolo del debitore, il risarcimento è limitato al danno che poteva prevedersi nel tempo in cui è sorta l'obbligazione." (em tradução livre: Art. 1225. Previsibilidade do dano. Se o incumprimento ou o atraso não depender do dolo do devedor, o ressarcimento é limitado ao dano que poderia ter sido previsto quando surgiu a obrigação.) 7 CARLOS ROBERTO GONÇALVES. Responsabilidade Civil.(20ª edição). Editora Saraiva, 2021, p. 31. 8 Le nuove fronteire dela responsabilità civile. Milano : Giuffrè Editore, 2.016, p. 20. 9 GUIDO ALPA. La responsabilità civile : principi. Milano : UTET Giuridica, 2015, p. 32.
É comum encontrar o uso da expressão "grupo econômico" para justificar a desconsideração da personalidade jurídica ou a responsabilização de outra sociedade pelo cumprimento da obrigação. O que é grupo econômico? As coligações societárias são relações entre sociedades comerciais que interessam ao direito pela dependência ou risco de dependência que podem ocorrer entre as sociedades.   Em geral, a atenção se volta a um tipo de coligação mais forte e intensa, no qual há efetivamente dependência, que é a figura do grupo de sociedades, expressão que encontra equivalente na Alemanha em Konzern, na Itália em Gruppo de Società, na França em Groupe de Societés, e na língua inglesa em Groupe of Companies. Na doutrina, a coligação de sociedades pode se dar quando as sociedades estão em relação de participação (no capital, no voto ou na designação de administradores). Essa participação pode ocorrer de forma unilateral ou bilateral (recíproca). A participação unilateral pode ser dominante (parcial ou total) ou não dominante, e ainda se pode dizer que essa participação se dá desde o início (desde a constituição da sociedade) ou de forma superveniente. A coligação ainda pode ocorrer quando as sociedades estão em relação contratual, ou por contrato de subordinação ou por contrato paritário. O grupo de sociedades se define por uma relação de domínio ou por contrato. Não há dúvida de que há grupo de sociedades quando a relação é de domínio total ou quando se tem um contrato de subordinação ou de grupo paritário. Dúvida pode haver na definição de grupo em relação a outras formas de coligação, especialmente quando se verifica o domínio parcial, se é que o domínio objetivamente pode ser graduado. É a participação no capital social da sociedade dependente que pode ocorrer de forma parcial ou por inteiro. Os grupos de fato ocupam quase sempre esse terreno, ou seja, o campo do domínio parcial. As sociedades em relação de participação, que é definida pela participação societária de uma sociedade em outra (participação simples) ou participações recíprocas, não revelam, a partir exclusivamente da participação societária, a existência de uma relação de grupo. No caso de participação recíproca há o risco de redução do capital social, porque a participação de uma sociedade em outra tem o efeito de anular efetivamente o capital envolvido, prejudicando os sócios e credores quanto à garantia de intangibilidade do capital. Há outro aspecto negativo dessa participação recíproca que diz respeito ao controle igualmente recíproco dos órgãos de deliberação e administração. Admite-se na lei portuguesa que esta participação recíproca ocorra até 10% do capital. Acima deste valor, os direitos decorrentes da participação adquirida ficam suspensos (Arts. 484.º e 485.º, CSC). No Brasil há vedação e suspensão do direito de voto (arts. 244 e seg., LSA). No direito alemão as participações recíprocas são previstas pela AktG (§ 19). É uma espécie de participação recíproca qualificada, porque se refere a participação superior a 25% do capital das sociedades e não afasta a hipótese de grupo quando ocorrer participação maioritária ou poder de influência de uma sociedade sobre outra. A coligação societária mais interessante ocorre quando as sociedades se encontram em relação de domínio. Essa relação de domínio pode ser entendida como suficiente para a identificação de uma relação de grupo. Há uma relação de domínio quando uma sociedade pode exercer diretamente sobre outra sociedade, ou por outra pessoa ou sociedade, influência dominante. Essa influência dominante não é um conceito preciso, mas se caracteriza sempre por pelo poder de controle. Decorre da influência dominante a dependência societária. Na verdade, a dependência societária pressupõe a influência dominante ou o poder de controle. A relação de domínio pode ser total ou parcial. Na lei brasileira a figura da subsidiária integral (prevista nos arts. 251-253, LSA), constituída integralmente pelo capital de outra sociedade, é hipótese de domínio total. Há uma outra forma de influência, chamada de relação de grupo paritário, que ocorre quando duas ou mais sociedades aceitam, por negócio jurídico, submeter-se a uma direção unitária e comum, exercida de fora, por outra sociedade. Também pode ser considerada a hipótese em que duas ou mais sociedades ajustam, por contrato, a gestão de suas atividades à direção de outra sociedade. Essa situação é chamada de sociedades em relação de subordinação. A figura da coligação societária, ainda quando representada pelos contratos de subordinação ou paritários, não pode ser confundida com as relações contratuais coligadas, como ocorre com a formação de consórcios, parcerias ou outras formas de colaboração empresária.  Deve-se investigar, portanto, a natureza dessas relações e a extensão da coligação para determinar os efeitos jurídicos produzidos por essa realidade, constituída formalmente ou de fato. A definição de grupo de sociedades nem sempre tem a relevância que é devida, porque os modelos de regime contratuais, como ocorre no Brasil, reconhecem a existência do grupo não pela natureza jurídica que lhe é apontada na doutrina, mas pelo instrumento jurídico utilizado para a formalização do grupo. Para esses regimes (contratuais), a definição de grupo está implícita na tipologia desses instrumentos previamente estabelecidos pelo legislador (como é o caso da "convenção" no direito brasileiro), de forma que se retira do intérprete, especialmente do intérprete judicial, o poder de sindicar e reconhecer a existência do grupo. Coube ao legislador, no modelo de regime contratual, pré-definir o grupo de sociedades. Logo, se o grupo de sociedades já se encontra tipificado no regime pelos instrumentos de constituição que foram dados, o conceito e a definição de grupo perdem relevância, de modo que a prévia e formal categorização do grupo não se importa em saber se efetivamente existe no conjunto de sociedades a direção unitária, a dependência econômica e administrativa e a existência de poder de controle. Tudo deixa de ser relevante diante da predefinição de grupo pelo instrumento jurídico utilizado. É o caso do regime brasileiro, que reconhece o grupo a partir da "convenção" (art. 265, LSA). Para outro modelo de regime, o modelo orgânico, é necessário identificar a existência do grupo para que se possa aplicar a ele o regime legal. Para este modelo, assume significativa importância definir os elementos de identificação do grupo de sociedades. Todavia, é necessário reconhecer, o grupo de sociedades não é fácil de definir, porque é variada a acepção que se lhe pode atribuir de acordo com o critério adotado no regime jurídico aplicável. Em geral, em sentido amplo, se faz uso desta expressão - grupo - para designar o fenômeno intersocietário de controle das sociedades. Designa-se por grupo de sociedades, em sentido estrito, segundo Engrácia Antunes, todo o conjunto mais ou menos vasto de sociedades comerciais que, conservando embora as respectivas personalidades jurídicas próprias e distintas, se encontram subordinadas a uma direção econômica unitária e comum.  Acrescenta o autor, como elementos definidores deste conceito, de um lado, a independência jurídica das sociedades agrupadas, e, de outro lado, a dependência econômica relativamente ao poder de direção da sociedade diretora ou dominante.1 A definição de direção econômica unitária não é enfrentada pelos ordenamentos. A doutrina econômica há identificado três aspectos fundamentais sobre os quais deve recair o poder de direção: planejamento, execução e controle. No âmbito do direito tem sido entendido que o poder de direção unitária se identifica com o planejamento e o controle empresarial, podendo-se afirmar que o planejamento é uma atividade substancial mínima da direção unitária.2 A identificação, portanto, da direção unitária permite definir não só o grupo de sociedades de direito ou contratual, que é aquele formalmente constituído por atos destinados a organizar as atividades das sociedades, mas também os grupos de fato, quando tais atos não existem, mas a direção unitária sim. O que define a relação de grupo, como uma relação de dependência societária, não é somente o exercício efetivo e concretizado na emissão de instruções, da direção unitária, mas o poder de fazê-lo. Esse poder de controle assume, portanto, absoluta relevância na identificação do grupo de sociedades e o que melhor indica a existência desse poder de controle é a deslocação do poder de direção da sociedade dependente para a sociedade dominante.3 Também a lei britânica (Companies Act 2006), embora não se refira diretamente à noção de grupo de sociedades, acaba por defini-lo indiretamente a partir de uma ideia de poder de controle ou exercício de uma influência dominante. É o que se verifica quando se define a sociedade-mãe e a sociedade-filha (subsidiária) pela detenção maioritária dos direitos de voto na empresa ou o direito de nomear ou destituir a maioria de seu conselho de administração, ou, ainda, pelo direito de exercer influência dominante sobre a sociedade, em virtude de um contrato de controle ou um acordo com outros acionistas ou membros, que lhe dê a maioria dos direitos a voto na empresa.4 Há uma forte resistência da doutrina em reconhecer relação de grupo nos casos de domínio externo (econômico), pois o entendimento prevalecente é no sentido de que o domínio, para caracterizar uma relação de grupo, deve ter a sua fonte na estrutura interna de organização da sociedade, daí a relevância da distinção entre domínio interno e domínio externo.5 A lei brasileira não define precisamente o grupo de sociedades, mas permite identificar a exigência de uma relação de controle para caracterizar o grupo (art. 265, "caput",LSA). No Brasil é muito comum encontrar a expressão "grupo econômico", que parece indicar bem o fato de que a unidade econômica das sociedades é considerada para fins de responsabilidade. Na verdade, e de forma técnica, o grupo econômico é sempre grupo de sociedades, coligadas pelo poder de controle.  e não grupo de empresas. O grupo de sociedades não é uma empresa ou grupo de empresas6, mas um conjunto de empresas "encadeadas", e a depender da espécie de grupo, essa relação poderá revelar mais a multiplicidade de elos (empresas) (grupos de fato subordinados), ou mais a unidade do conjunto (grupos contratuais de subordinação e grupos de domínio total). Essa cadeia, diz J.M. Coutinho de Abreu, poderá se verificar verticalmente, quando há uma verdadeira hierarquia entre a sociedade diretora e as demais integrantes do grupo (grupos de subordinação), ou horizontalmente, quando há uma relação paritária entre as sociedades (grupos paritários ou de coordenação), hipótese pouco comum.7 Neste cenário, merece atenção a holding ou sociedade holding.8 A organização grupal da empresa moderna (empresa plurissocietária) tem na holding apenas, como afirma Engrácia Antunes, um modelo jurídico-organizativo para a respectiva cúpula hierárquica, como uma das formas possíveis que pode revestir a sociedade-mãe de um grupo societário.9 Embora a holding seja um forte sinal da existência de um grupo de sociedades, pela possibilidade do exercício de uma direção unitária, é necessário que a participação que ela tem efetivamente nas sociedades participadas lhe possa assegurar esse poder (percentual de quotas ou ações e direito à voto) e que se verifique entre todas elas a direção unitária que identifica o grupo de sociedades, porque mesmo nesse caso poderá haver participação da holding em sociedades que não estão compreendidas na direção unitária ou que são dirigidas em outro sentido, sem que haja entre elas coligações societárias. O que importa para a definição de uma relação de grupo não é, a nosso ver, o instrumento jurídico utilizado para estabelecer o poder de direção unitária, mas o fato de que uma sociedade tem esse poder sobre outra. O grupo de sociedades, a nosso ver, é uma relação factual que deve atrair os efeitos do regime, independentemente da sua formalização por um instrumento legal. Seja de fato, ou de direito, o reconhecimento do grupo de sociedades não deve escapar do rigor dos conceitos, sob pena de impor responsabilidade a quem não a tem. __________ 1 Os grupos de sociedades - estrutura e organização jurídica da empresa plurissocietária. 2ª ed. Edições Almedina : Coimbra, 2002, p. 52. 2 Mónica Fuentes Naharro (Grupos de sociedades y protección de acreedores - una perspectiva societária. Editorial Aranzadi (Thomson/Civitas) : Navarra, 2007, p. 114-115. 3 Nesse sentido a doutrina de Ana Perestrelo de Oliveira (Manual de grupos de sociedades. Edições Almedina : Coimbra, 2017, p. 15. 4 Part. 38. N. 1159 Meaning of "subsidiary" etc. (Companies Act 2006) 5 Ver a respeito Mónica Fuentes Naharro, que destaca a relevância desta distinção e aponta os argumentos da doutrina nesse sentido (Op. cit., p. 100-106). Encontramos em María Luisa de Arriba Fernández outra distinção entre o domínio orgânico, como relação de dependência, e o domínio econômico, que se identifica com o controle. Reconhece a autora o estreito parentesco que une dependência e controle, porque ambos geram consequências similares, que é a influência sobre uma sociedade, mas se diferenciam em razão dos instrumentos utilizados para alcançar este poder de influência. O controle, diz a autora, é um conceito econômico, enquanto a dependência é um conceito jurídico (Derecho de grupos de sociedades, Civitas Ediciones, 2004, p. 78-79). 6 Grupo de sociedades e direito do trabalho. Separata do vol. LXVI do BFD - Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra, 1990, p. 130. A explicação do autor é didática: "Todavia, não poderão ser usadas sinonimamente as duas expressões (grupos de empresas e grupo de sociedades), uma vez que os grupos de sociedades serão, ao mesmo tempo, grupos das respectivas empresas (sociais)? Poder, podem (...). Mas não com inteiro rigor. Por um lado, a designação grupos de empresas é mais ampla que grupos de sociedades: há empresas não societárias em grupo. Por outro lado, nos grupos de sociedades pode haver uma ou mais sociedades sem empresas propriamente ditas: é o caso das sociedades holding (gestoras, tão-só, de participações sociais). (...)  Mas quer-se então com isto dizer que, afinal, é sempre incorrecto falar de grupos de empresas? Juridicamente, é-o quase sempre. Só será correcto quando as empresas em grupo sejam, não só objectos, instrumentos, organizações produtivas de empresários, mas também pessoas jurídicas. (...) De todo o modo, não vira mal ao mundo se se continuar a falar de grupos de empresas, enquanto expressão ampla, abrangente de relações entre sociedades, entre empresas e sociedades, entre sociedades e empresários individuais, entre empresas ... Tal forma de dizer está já arreigada na linguagem corrente. E mesmo na linguagem das leis, como se sabe, é frequente o uso translato ou metonímico de empresa (por empresário ou sujeito da empresa)" (op. cit., p. 130). A empresa é de fato um termo ambíguo e tem diferentes acepções no direito. Do ponto de vista científico não há um conceito unitário de empresa, como bem o demonstra J.M. Coutinho de Abreu (Da empresarialidade (as empresas no direito). Edições Almedina : Coimbra, 1999, p. 281-308). 7 Empresarialidade..., p. 271-272. 8 A holding (do inglês to hold) é de difícil definição doutrinária e quase sempre ausente dos regimes jurídicos societários. Geralmente é a designação que se dá a uma sociedade que tem como objeto a gestão de uma carteira de participação de várias outras sociedades (está é a holding pura ou não operacional). Há outras sociedades, também entendidas como holding, que, constituídas para a gestão de participações societárias, também têm, paralelamente, um objeto social empresarial, industrial ou comercial. É chamada de holding mista ou operacional. Uma série de preocupações (fiscais e sucessórias, quase sempre) tem motivado, no Brasil, a constituição de holding para gestão de participações societárias e também de patrimônio. Para maior desenvolvimento do estudo sobre o universo amplo e variado da holding ver Luca Boggio (Le holding societarie e la società europea. "Le società holging nell'Unione Europea: teoria e prassi". II Ed., IPSOA, 2013, p. 3-33) e Berardino Libonati (Opere Monografiche. Vol. I. Giuffrè Editore, 2014) 9 Op. cit., p. 90.
Antes de tudo é preciso pontuar que, desde a vigência da lei 11.101/05 (LRE), a falência deixou de ser um sistema liquidatório dirigido à extinção da empresa: é fundamental que o instituto possa ser reconhecido como método de pagamento dos credores e de preservação da empresa (pela venda de ativos organizados, art. 140 da LRE). E os operadores do direito devem buscar mecanismos para incrementar esses dois atributos da falência, a benefício dos credores, do devedor, e dos demais stakeholders afetados pela crise da empresa. O exercício da atividade econômica implica assunção de risco pelo empreendedor e a insolvência modifica, compulsoriamente, o sistema de alocação dos riscos empresariais para, em alguma medida, na recuperação judicial, compartilhá-los com os credores. Porém, se a empresa deixa de ter aptidão para gerar valor, a solução a ser adotada será a falência, como medida necessária de profilaxia do mercado. O atual objetivo da falência é maximizar os ativos para melhorar a performance no pagamento dos credores. Para esse fim busca-se, também na quebra, a preservação da atividade --- com a finalidade principal de tentar manter o sobrevalor que os ativos organizados possuem, para que dele se beneficiem os credores. Mas não se deve confundir, sob pena de subverter os fundamentos da falência, a busca de maior eficiência no pagamento dos credores (a ser alcançada com a elaboração de um plano de falência para venda dos ativos organizados, conforme art. 99, § 3º c/c art. 140, da LRE); com os mecanismos legais de responsabilização de terceiros (arts. 82 e 82-A da LRE). A responsabilização de terceiros no processo falimentar não pode ser vista como um método "Robin Hood" destinado a "melhorar" o resultado para os credores. A segurança jurídica que resulta da aplicação concreta do sistema de insolvência deve ter regras claras que incentivem o empreendedorismo --- pois, como já anotou Ellen Gracie, "impor confusão entre patrimônios da pessoa jurídica e da pessoa física no bojo de sociedade em que, por definição, a responsabilidade dos sócios é limitada compromete um dos fundamentos do Direito de Empresa, consubstanciado na garantia constitucional da livre-iniciativa." (RE n. 562.276). Na falência, a possível responsabilização de sócios de responsabilidade limitada e dos administradores é restrita a duas modalidades: (i) ação de responsabilidade (art. 82 da LRE) contra acionistas, controladores e administradores, com base nas regras de Direito Societário (arts. 117 e 158 da LSA), e (ii) a desconsideração da personalidade jurídica (art. 82-A, parte final da LRE, combinado com art. 50 do CC). Mas deixe-se bem vincado que tais mecanismos têm a função econômica de recomposição de ativos que deveriam integrar a massa falida (ou porque foram ilicitamente desviados ou porque a sociedade, antes da quebra, experimentou dano, a ser reparado). Por isso, seus efeitos são os mesmos que da ação de ineficácia (art. 129 da LRE) e revocatória (art. 130 da LRE). Antes de tudo, deve-se dizer que nosso ordenamento jurídico não admite a extensão dos efeitos da falência. No DL 7.661/45 o instituto era aplicado exclusivamente aos sócios de responsabilidade ilimitada (art. 5º) --- nunca aos sócios de responsabilidade limitada --- porque, nos termos da lei societária, os primeiros respondem subsidiariamente pelo passivo da sociedade (art. 1.024 do CC/02); mas a resposta dada pela lei 11.101/05 é que tais sócios têm a falência decretada (art. 81 da LRE). Portanto, o instituto da extensão dos efeitos da falência foi revogado quando entrou em vigor a lei 11.101/05, mas a equivocada interpretação do instituto exigiu que a regra fosse explicitada na parte inicial do art. 82-A introduzido pela reforma pela lei 14.112/20: "É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos...". A ação de responsabilidade prevista no art. 82 da LRE reflete regra de natureza processual que determina a competência (ratione materiae) de ajuizamento dessa lide, após a falência, como efeito da indivisibilidade do juízo falimentar (art. 76 da LRE). Note-se que a leitura atenta da referida norma (art. 82 da LRE) indica claramente que o direito material aplicável é a lei societária, que disciplina a responsabilidade dos sócios e administradores de sociedade limitada ou sociedade por ações. Trata-se de ação que visa a reparar dano (natureza indenizatória) decorrente de ato ilícito eventualmente praticado por sócio ou administrador, para repor perdas experimentadas pela sociedade como efeito daquele. Trata-se, portanto, de responsabilizar o sócio ou o administrador pelo descumprimento de seus deveres fiduciários para com a sociedade (antes da falência) com base, por exemplo, em abuso de poder de controle (art. 117 da LSA), infração ao dever de diligência (art. 153 da LSA ou art. 1011 do CC/02), recebimento indevido de lucros (art. 1059 do CC/02 ou art. 201, §1º da LSA), e assim por diante.  Repita-se: a base material para a ação de responsabilidade é a Lei Societária, ou seja, o Código Civil ou lei das S/A. E a medida de tal responsabilidade limita-se à extensão do dano, conforme art. 944 e seu parágrafo único do Código Civil, pois a responsabilidade é aquiliana, e exige prova de ato ilícito, dano e nexo causal, com reparação circunscrita ao prejuízo comprovado. O outro mecanismo de responsabilização de terceiro, previsto na parte final do art. 82-A da LRE, é a desconsideração da personalidade jurídica, instituto pelo qual se autoriza penetrar no âmago da personalidade jurídica permitindo-se responsabilizar administradores ou sócios por atos que, embora praticados pela pessoa jurídica, beneficiaram o terceiro cujo patrimônio estaria protegido pela personalidade jurídica da sociedade. Exige-se, todavia, prova de abuso de personalidade jurídica, por desvio de finalidade ou por confusão patrimonial, e a LRE remete ao art. 50 do CC/02 que os define com precisão. É indispensável, para a caracterização do abuso da personalidade jurídica, que exista um ganho efetivo (na mesma medida da perda experimentada pela pessoa jurídica) pelo sócio ou pelo administrador a ser responsabilizado. O desvio de finalidade ou confusão patrimonial correspondem a abuso cometido por intermédio da pessoa jurídica para benefício pessoal, e por isso o instituto da desconsideração autoriza que quem os cometeu (sócio ou administrador) por eles responda, sem que possa esconder-se sob o véu da separação de personalidade. Nesse sentido, "Os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica somente alcançam os sócios participantes da conduta ilícita ou que dela se beneficiaram, ainda que se trate de sócio majoritário ou controlador." (STJ, ministra Nancy Andrighi Resp 1.325.663, j.11/6/13). Em suma, na desconsideração, se a pessoa jurídica é utilizada ilicitamente (desvio de finalidade ou confusão patrimonial) para beneficiar um terceiro (sócio ou administrador) autoriza-se que quem os cometeu por eles responda (e somente a pessoa que se beneficiou), sem que possa esconder-se sob o véu da separação de personalidade. Em conclusão, e o que é mais relevante aqui destacar é que os institutos de responsabilização de terceiros na falência, previstos nos arts. 82 e 82-A da LRE, não geram, em hipótese alguma, responsabilidade pela totalidade do passivo falimentar. O art. 82-A da LRE é categórico: "É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos [...]". Assim, a eventual responsabilização de terceiros na falência exige prova do exato valor do dano à pessoa jurídica (no caso do art. 82 da LRE), ou do efetivo quantum desviado em prejuízo da empresa e a benefício do terceiro pelo uso indevido da personalidade (no caso da desconsideração, art. 82-A, parte final). Com efeito, em ambos as hipóteses --- responsabilidade do administrador ou sócio; ou desconsideração da personalidade jurídica, --- a recomposição da perda experimentada pela massa falida deve equivaler à extensão do dano ou do desvio de valor praticados; e nada mais além disso, com aplicação do art. 944 e seu parágrafo único do CC/02.
quarta-feira, 6 de julho de 2022

Paolo Grossi (1933-2022)

É com grande pesar que anunciamos ao público de língua portuguesa o falecimento do jurista italiano Paolo Grossi, na madrugada de 4 de julho. Nascido em 1933, era Professor emérito de História do Direito na Universidade de Florença e presidente emérito da Corte Constitucional italiana. Trata-se, sem dúvida, de um dos mais experimentados historiadores do direito de nosso tempo. Assim como o português António Manuel Hespanha (2019), o alemão Michael Stolleis (2021) e o argentino Víctor Tau Anzoátegui (2022), seu passamento representa um abrupto passar de gerações na área. Fundador da revista Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, Grossi tornou-se líder da escola florentina de história do direito, calcada nos estudos da história do pensamento jurídico, levando a área a novos ares, perscrutando a modernidade diante da tradição medievalista italiana. A presença de prof. Grossi foi fundamental na consolidação do estudo da história do direito no Brasil, um campo de pesquisa jurídica relativamente recente entre nós. Neste sentido, como maestro dos prof. Arno Dal Ri Jr. (UFSC), Ricardo Sontag (UFMG) e Ricardo Marcelo Fonseca (UFPR), todos tradutores de várias obras de Paolo Grossi para o português, foi fundamental para trazer ao Brasil a abordagem historiográfica-jurídica com o escopo de aprofundar uma visão dos fenômenos jurídicos com densidade própria, afastando-se de visões apologéticas, escatológicas, cronocêntricas e anacrônicas da história. Presente várias vezes no Brasil, recebeu inclusive títulos doutor honoris causa de nossas universidades, do mesmo modo que em vários ateneus europeus e latino-americanos. Em sua extensa carreira universitária, dedicou-se à história do direito canônico e privado1, mas seus discípulos espraiaram suas ideias para a história do direito constitucional, administrativo, penal, trabalhista e tantas outras declinações2. Porém, ainda há muito a ser feito no cenário nacional: mas, a partir de agora, não contaremos mais com a presença e conselhos diretos do professor; por outro lado, teremos à disposição uma extensa obra, em boa parte já em nosso idioma, para manter vivo o pensamento grossiano e dar novos impulsos à História do Direito no Brasil. Para uma maior aproximação à vida e obra de Paolo Grossi, recomenda-se a leitura do recentemente lançado "O mundo das terras coletivas"3. O presente livro cumpre tanto a função de nos ajudar a conhecer mais este autor como seu itinerário de pesquisa. De fato, o texto é escrito em tom testemunhal, em que a história de sua vida se confunde com o desenvolvimento do tema de pesquisa sobre as terras coletivas na Itália. É nesse contexto, portanto, que Grossi insere o seu itinerário, dentro de um conjunto de estudos que mostrava a pluralidade dos estatutos da relação da humanidade com a terra. Trata-se justamente de resgatar, nesta relação, a factualidade do direito, que com o modelo subjetivista da codificação restou reduzida a "direitos reais" como gravame ao livre exercício das faculdades inerentes à propriedade privada moderna. Assim, serve de porta de entrada para as obras anteriores do prof. Grossi já vertidas ao nosso vernáculo. O grande plano de trabalho da obra de Paolo Grossi sempre foi o diálogo entre os historiadores do direito e os juristas do direito positivo. A historiografia jurídica serve para chamar a atenção à provisoriedade das soluções, para não termos as atuais formas jurídicas como as melhores até então formuladas, ou que as soluções formuladas pelas elites políticas e sociais sejam melhores que aquelas construídas pela prática ordinária das pessoas simples. Esse exercício incessante de relativização fomenta a consciência crítica dos juristas. Por fim, não se pode deixar de falar do prof. Paolo Grossi sem mencionar seu amor pela docência e por seus estudantes. A eles, o mestre florentino sempre deu atenção prioritária. Sempre preferiu estar na sala de aula aos grandes salões de conferências. Mesmo após a aposentadoria na universidade e seu encargo na corte constitucional, nunca deixou de falar e escrever aos estudantes. Para ele, o cultivo da História do Direito pelos juristas e a sua presença na formação nas faculdades de direito sempre foram pontos inegociáveis. Fica, portanto, o sinal da passagem de um verdadeiro mestre: preocupado com a formação e o desenvolvimento de seus discípulos, com a grandeza de fazê-los voarem por suas próprias asas. Que os juristas brasileiros saibam retribuir tal dedicação desenvolvendo o direito nacional livre de dogmatismos e amarras teóricas que impedem o livre pensar sobre um direito que se manifesta no cotidiano, pelas pessoas comuns. _____ 1 Sobre isso, ver na coluna "Novos Horizontes do Direito Privado", coordenada por Carlos Alberto Garbi (cultor da obra de Grossi no direito civil nacional), o texto "O direito dos privados na obra de Paolo Grossi": disponível aqui. 2 Para uma visão mais extensa, ver o necrológio escrito por Arno Dal Ri Jr.: "Reencontros com Paolo Grossi (1933-2022)", aqui. 3 Para mais detalhes, veja-se o texto de Vanilda Honória dos Santos, "'Atiçar o fogo sob as cinzas': Comentários ao livro O mundo das terras coletivas - Itinerários jurídicos entre o ontem e amanhã de Paolo Grossi", aqui.
A extensão da falência, ou a falência derivada, como medida que estende os efeitos da falência aos sócios, sempre foi controvertida no direito brasileiro. E as dificuldades com a extensão da falência, abolida (assim como a própria falência) no moderno processo de insolvência europeu, aumentam diante da técnica da desconsideração da personalidade jurídica, que, aplicada, muitas vezes, nos processos de falência, acabam por determinar indevidamente a extensão da falência a outra sociedade. A origem desta ideia de extensão da falência remonta ao tempo em que não havia possibilidade de sujeitar ao processo concursal o não comerciante. A solução encontrada para a excussão dos bens dos sócios de responsabilidade ilimitada perante os credores concursais foi estender os efeitos da falência aos sócios, para trazer os seus bens ao processo concursal.1 No entanto, essa solução acabou algumas vezes desvirtuada e hoje se mostra verdadeiramente fora do seu tempo. Na vigência do decreto-lei 7.661/45 admitia-se a extensão dos efeitos da falência somente na hipótese do seu art. 5º, contra o sócio de responsabilidade ilimitada, como se vê claramente do texto da Lei: "Art. 5° Os sócios solidária e ilimitadamente responsáveis pelas obrigações sociais não são atingidos pela falência da sociedade, mas ficam sujeitos aos demais efeitos jurídicos que a sentença declaratória produza em relação à sociedade falida. Aos mesmos sócios, na falta de disposição especial desta lei, são extensivos todos os direitos e, sob as mesmas penas, tôdas as obrigações que cabem ao devedor ou falido." (grifamos) Não autorizava a Lei a decretação da falência dos sócios, mas sim a "extensão" dos seus efeitos aos sócios de responsabilidade ilimitada, e não a extensão a outra sociedade. E mesmo quando autorizada, o sócio respondia de forma subsidiária e não solidária. Explica Adriana Valéria Pugliesi que a distinção entre a falência e a "extensão" dos seus efeitos não é meramente semântica.  "A sentença que decreta a falência tem natureza constitutiva deflagrando não apenas o início do procedimento concursal, mas, sobretudo, criando um novo status jurídico para o devedor: o falido é desapossado de seus bens e com isso afastado da empresa (atividade); enquanto o sócio que sofre tão somente os efeitos da falência, do ponto de vista patrimonial, passa a ser corresponsável subsidiário pelas obrigações da falida, até que se extingam. Há sensível diferença no status jurídico de um e outro. Por outro lado, nas sociedades em que existam sócios de responsabilidade limitada, como é o caso das Sociedades Limitadas (art. 1.052 e ss. Do CC) e das Sociedades Anônimas (lei 6.404/76), tais sócios, em princípio, não deveriam sofrer os efeitos patrimoniais da falência."2 (destacamos em negrito) Desde a vigência da lei 11.101/2005 já não se admite a extensão da falência, porque o seu art. 81, a despeito de todas as críticas da doutrina, considera falido o sócio de responsabilidade ilimitada, tornando desnecessária a medida de "extensão" da falência antes prevista. Acolheu velha doutrina, bem representada por WALDEMAR FERREIRA, que defendia esta solução no projeto da Lei revogada. A responsabilidade dos sócios e administradores por desvios e irregularidades na gestão da sociedade deve ser apurada na falência, à luz dos preceitos societários (art. 82)3, não sendo autorizada a extensão da falência. A recente reforma da lei 11.101/2005, mais técnica, é expressa ao vedar a extensão da falência, reforçando o preceito, admitindo-se somente a desconsideração da personalidade jurídica, como se vê a seguir: Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica. (Incluído pela lei 14.112, de 2020)   Esse dispositivo, que agora claramente autoriza o uso da técnica da desconsideração da personalidade jurídica na falência, deve ser bem compreendido. Há diferenças importantes entre a "extensão", a falência e a "desconsideração". Como bem assinala Adriana Valéria Pugliesi, "na desconsideração da personalidade jurídica a responsabilidade patrimonial é restrita a uma situação de benefício concreto específico (por ato isolado ou sucessão de atos, do sócio controlador ou administrador), mantendo-se hígida a personalidade jurídica e, consequentemente, a separação patrimonial de bens do sócio e da sociedade para todos os demais efeitos de direito e atos não abrangidos pelo desvio de finalidade."4 E acrescenta a autora que "a desconsideração da personalidade jurídica também não pode ser considerada (ou sequer confundida) com as medidas de reconstrução do patrimônio da falida (ação revocatória e pedido de ineficácia), previstas nos arts. 129 e 130 da  LRF. Isso porque, na desconsideração da personalidade jurídica, como acima visto, deve haver um benefício daquele que é chamado a responder, exatamente em função da fraude ou confusão patrimonial perpetrada por disfunção (desvio de finalidade) da personalidade jurídica. Já nas medidas de reconstrução do patrimônio da falida (arts. 129 e 130 da LRF), ao contrário, não se perquire de benefício aos que são chamados a devolver os bens desviados da massa; mas sim do prejuízo desta última, o qual presumido diante da situação de insolvência. Portanto, o que é preciso divisar com clareza, é que desconsideração da personalidade jurídica, na falência, embora não esteja expressamente prevista no diploma concursal, poderá ser aplicada, desde que: (i) suas finalidades e suporte fático não se confundam nem com a extensão da falência ou dos efeitos desta, nem com a ação revocatória ou pedido de ineficácia (arts. 129 e 130 da LRF); e (ii) seja respeitada a disciplina de regência do instituto ..."5 Na "extensão" da falência, decretada na vigência do decreto-lei 7.661/45, determinava-se a responsabilidade subsidiária, e não a falência propriamente dos sócios ou das sociedades coligadas. Esta singular diferença, quando não percebida, representa o risco de arrastar para a falência um sócio ou uma sociedade "solvente" por atos que foram determinantes, não para a quebra, mas sim para a "desconsideração da personalidade jurídica", restrita como deve ser ao ato de desvio. O Tribunal de Justiça de São Paulo a respeito dos efeitos da "extensão" da falência afirmou, pelo voto do Eminente e saudoso Desembargador Araldo Telles, o seguinte: "A extensão dos efeitos da falência não tem natureza jurídica de sentença de quebra em desfavor de terceiros, sócios ou sociedades e empresários coligados, mas de desconsideração dos limites da responsabilidade do devedor, de levantamento do véu da sua personalidade jurídica e tem em vista desenlear trama urdida entre eles" (Ag. Instr. n. 0255977-13.2011.8.26.0000, d.j. 30.09.2013). Em outra oportunidade, o Tribunal de Justiça de São Paulo foi chamado a dizer sobre os efeitos da "extensão" da falência e decidiu, pelo voto do Eminente Desembargador Elliot Akel, com apoio em outros julgados, especialmente do Desembargador Romeu Ricupero, o seguinte: "Conforme já afirmei, em julgamento desta Corte, quando ainda integrava a então Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais, "uma coisa é a desconsideração da personalidade jurídica para submissão dos bens dos sócios à satisfação de uma obrigação, em se divisando abuso de direito, caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial (artigo 50 do Código Civil), vale dizer, a extensão, a essas pessoas, das repercussões patrimoniais da quebra. Outra, diversa, é a extensão da própria falência aos sócios, ao controlador, ou a outras empresas coligadas". "(...) Em qualquer hipótese de propositura de ação de responsabilização, de desconsideração da personalidade jurídica e de extensão da falência, a sua eventual procedência só pode ter conseqüências patrimoniais, ou seja, sujeitando os bens do sócio, controlador ou administrador ao pagamento das obrigações sociais, mas não o sujeitando à condição de falido" (Agravos de Instrumento nºs 521.791.4/2 e 553.068.4/2, Rel. Romeu Ricupero, j. 27.8.2008)" (Ag. Intr. n. 0029817-27.2008.8.26.0068, dj. 23.07.2013).6 Como bem esclarece mais uma vez Adriana Valéria Pugliesi, "na desconsideração da personalidade jurídica a responsabilidade patrimonial é restrita a uma situação de benefício concreto específico (por ato isolado ou sucessão de atos, do sócio controlador ou administrador), mantendo-se hígida a personalidade jurídica e, consequentemente, a separação patrimonial de bens do sócio e da sociedade para todos os demais efeitos e atos não abrangidos pelo desvio de finalidade. Bem por isso, distingue-se a desconsideração da personalidade jurídica da extensão dos efeitos da falência e também da extensão da falência ao sócio de responsabilidade ilimitada."7 Logo, havendo desconsideração da personalidade jurídica, ou a extensão dos efeitos da falência, como previsto na Lei revogada,  não cabe ação revocatória ou de ineficácia dos atos praticados pelo terceiro, porque falido não é, como não cabe arrecadação de bens ou qualquer efeito da falência. A desconsideração da personalidade jurídica, não é nada mais do que uma técnica de extensão da responsabilidade, e não pode ir além disso. Outro aspecto importante, como bem aponta a doutrina de Adriana Valéria Pugliesi, é que no caso de extensão da falência ocorre na verdade "uma segunda falência com causa originária na anterior"8, que inaugura e constitui um novo status jurídico falencial, o que altera também o marco temporal de vigência da Lei. Nesse sentido a disposição do art. 192, § 4º, da lei 11.101/2005, que estabeleceu a aplicação da Lei nova a partir do decreto de falência requerida anteriormente. Essa disposição altera por inteiro o regime jurídico aplicável a uma falência decretada, ainda que indevidamente, por extensão. A Lei atual em vigor admite a falência (e não a extensão dos seus efeitos) ao sócio de responsabilidade ilimitada. É uma posição que deveria ser superada, porque atenta contra a personalidade jurídica, sua autonomia e separação patrimonial. Todavia, não há previsão de extensão dos efeitos da falência na Lei vigente, assim como não cabe emprestar à desconsideração da personalidade jurídica o efeito, que ela não tem, de falência ou de sua extensão. São distinções importantes. __________ 1 A respeito, destacamos Catarina Serra (Falências Derivadas e Âmbito Subjectivo da Falência. Coimbra : Coimbra Editora, 1999, p. 76-79) e RUBENS REQUIÃO (Curso de Direito Falimentar. 1° vol. 8ª ed. São Paulo : Saraiva, 1983, p. 46-49). 2 A responsabilidade patrimonial do falido, a extensão dos efeitos da falência e a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida. "Dez anos da Lei nº 11.101/2005: estudos sobre a Lei de Recuperação Judicial." Coord. Sheila C. Neder Cerezetti e Emanuelle Urbano Maffioletti. São Paulo : Almedina, 2015, p. 502/503. 3 Nesse sentido pode ser anotado, ainda, o entendimento de Marcelo Barbosa Sacramone (A extensão da falência e a desconsideração da personalidade jurídica. "Falência, Insolvência e Recuperação de Empresas Estudos Luso-Brasileiros." Coord. Newton De Lucca e Miguel Pestana de Vasconcelos. São Paulo : Quartier Latin, 2015, p. 201/219). 4 Op. cit., p. 510. 5 Op. cit., p. 512. A autora escreveu antes da Lei n. 14.112/2020, quando ainda não fora estabelecido no art. 82-A a possibilidade do uso da técnica da desconsideração da personalidade jurídica na falência. 6 Nesse sentido pode-se acrescentar a correta observação feita por Erik Frederico Oioli e José Afonso Leirião Filho: "Não obstante a existência de questionável aplicação pelos tribunais da construção jurisprudencial referente à extensão dos efeitos da falência, conclui-se, da análise das previsões e do histórico das decisões, que os efeitos causados pela extensão apenas podem implicar consequências de natureza patrimonial; entendimento este já presente em determinados precedentes jurisprudenciais sem força vinculante, tratando-se, portanto, de matéria cuja análise é fundamental aos Tribunais Superiores. Caso se solidifique o entendimento de que a responsabilização é meramente patrimonial, passando-se a periciar as obrigações pelas quais deve responder o destinatário da extensão, tudo nos exatos moldes do artigo 50 do Código Civil (LGL\2002\400), o ideal é que se abandone o termo "extensão dos efeitos da falência", passando-se a aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, estritamente do modo previsto pela lei. Nos demais casos, os tribunais devem utilizar-se das previsões existentes no ordenamento para apurar e responsabilizar os sócios e administradores das sociedades, caso exista suspeita do cometimento de abusos com relação à falida." (A extensão dos efeitos da falência e a desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro - análise de caso. Revista de Direito Recuperacional e Empresa n. 4/2017). 7 Op. cit., p. 510/511. 8 Op. cit., p. 513.
Encontram-se em tramitação no Congresso Nacional importantes propostas legislativas destinadas à ampliação dos canais de acesso ao crédito e aprimoramento das regras de garantias, Entre elas estão o Projeto de Lei 4.188/2021, que propõe o aperfeiçoamento da legislação sobre as garantias do crédito, e a Medida Provisória 1.103/2022, que institui o regime jurídico geral da securitização de créditos. Trata-se de importante movimento de modernização do direito civil patrimonial, sobretudo na parte relativa aos direitos reais de garantia, há muito reclamada, pois o regime adotado pelo Código Civil de 2002, salvo algumas exceções, é o mesmo do Código de 1916, concebido no ambiente da atividade agrícola que caracterizava a sociedade brasileira do século XIX. Para transformar essa realidade, a reforma prevista no Projeto de Lei 4.188/2021 reúne propostas sobre a formação, execução e extinção dos contratos de crédito com garantia real, entre elas (i) recarregamento da hipoteca ou da garantia fiduciária, pela qual essa garantia acolha novas operações de crédito; (ii) efeitos do registro do contrato de alienação fiduciária da propriedade superveniente (CC, art. 1.361, § 3º); (iii) tratamento legal especial para financiamento de moradia, notadamente o que exonera o devedor inadimplente da responsabilidade de pagamento do saldo devedor remanescente, se o produto do leilão não for suficiente para satisfação integral do crédito; (iv) adequação dos procedimentos de intimação e de vedação de arrematação por preço vil às regras do Código de Processo Civil; (v) execução hipotecária extrajudicial no âmbito do Registro de Imóveis. A Medida Provisória 1.103/2022, por sua vez, institui as normas gerais sobre a atuação das companhias securitizadoras e sobre as operações de cessão de crédito vinculadas a emissão de títulos lastreada nos créditos cedidos e a colocação desses títulos no mercado, denominados Certificados de Recebíveis, reunindo em um só texto legal as normas que até então se encontravam dispersas no ordenamento. Nesse contexto merece atenção a proposta de tipificação do Agente de Garantia, mediante inclusão do art. 853-A, em novo capítulo, entre as várias espécies de contrato do Título VI do Livro I do Código Civil. Trata-se de gestão de operações de crédito e respectivas garantias, em regra convencionada mediante negócio jurídico pelo qual os direitos correspondentes à garantia, incluindo o eventual produto da excussão, são atribuídos em caráter fiduciário a um agente de garantia, com o encargo de administrar empréstimos concedidos por dois ou mais credores a um único tomador, nos quais em geral a garantia é compartilhada, assim como em project finance ou outras operações de crédito cuja complexidade demande ou justifique a concentração dos atos de gestão na pessoa de uma das instituições emprestadoras ou na pessoa de um terceiro. Caracteriza-se como negócio jurídico de transmissão condicional, em caráter fiduciário, há muito reconhecido como importante mecanismo de tutela especial em relação a certas modalidades de negócio, típicas da sociedade contemporânea, cuja administração, por exigir expertise, é confiada a terceiros, profissionais especializados, e exigem novas e complexas estruturas patrimoniais. Ressalta, nesses casos, a necessidade de transmissão da propriedade ao administrador, com indispensável segregação dos direitos transmitidos e sua alocação em um patrimônio separado, de afetação, como forma de evitar confusão dos direitos do investidor e do administrador em uma única massa, na qual o investidor não seria mais do que simples credor quirografário do administrador. O direito positivo brasileiro tem tratado desse tema em relação a algumas situações específicas, mas de modo tímido, esparso e errático1, e por isso se defende há muito a necessidade de reexame crítico desse emaranhado de textos legais dispersos e sua sistematização mediante instituição de um regime jurídico da fidúcia, no qual sejam definidas as regras gerais de atribuição, segregação e afetação patrimonial em termos precisos, como forma de delimitação de riscos e de responsabilidade capaz de incentivar investimentos da iniciativa privada2.   A proposta apresentada no PL 4.188/2021, assim como a Medida Provisória 1.103/2022, que institui o regime jurídico geral da securitização de créditos, evidenciam o renovado interesse pela regulamentação da atribuição fiduciária para administração, pela qual, entre outras funções, é possível atribuir "a um sujeito a titularidade das garantias a serem exercidas em benefício de um conjunto de credores (...), com a inegável vantagem otimizar o aproveitamento dos bens, potencializando o valor dos ativos e as chances de recuperação do crédito"3. Entretanto, a par da proposta de tipificação da administração fiduciária de garantias entre as espécies de contrato reguladas pelo Código Civil, mediante inclusão do art. 853-A, o mesmo Projeto de Lei 4.188/2021, nos seus arts. 2º ao 11, propõe novamente a regulamentação desse "serviço de gestão especializada de garantias", caracterizando-o de forma anômala como "contrato de gestão de garantias", que não se compatibiliza com os elementos do negócio jurídico de natureza fiduciária e os fundamentos do sistema de direitos reais. De acordo com essa proposição, o pretendente à obtenção de crédito contrataria uma empresa, a que o Projeto atribui a denominação de instituição gestora de garantias (IGG), que haveria de representar os interesses tanto do devedor como dos credores. Para esse fim, o contratante da IGG atribuiria bens a essa empresa em garantia antes mesmo da existência de crédito a ser garantido, encarregando-a de avaliá-los, buscar oportunidades de crédito, formalizar as operações de crédito e gerir essas operações no interesse do devedor (art. 5º), mas também no interesse dos credores, ao prever que, quando da constituição do crédito, a IGG "atuará em nome próprio e em benefício da instituição financeira, de acordo com os termos estabelecidos entre si" (art. 3º, § 5º). A partir desse momento a IGG passará a prestar serviços à instituição credora, correspondentes à avaliação da garantia, gestão, manutenção e controle da operação de crédito, gerenciamento do seu risco, declaração de vencimento antecipado e execução do crédito, entre outras atividades de gestão do crédito previstas no § 1º do art. 3º do Projeto de Lei. A prestação de serviços por um mesmo agente de garantias a ambos os contratantes - devedor e credor -, na mesma operação de crédito, sugere inexistência de equidistância e neutralidade necessárias ao cumprimento do seu dever fiduciário de lealdade, sobretudo em situação caracterizada por elevado potencial de contraposição de interesses dos seus representados, como seriam os casos de vencimento antecipado da dívida e divergências em procedimento de execução do crédito e excussão da garantia. Independentemente desse anunciado conflito de agência, potencializado por essa dupla representação, a criação dessa nova espécie de agente de garantia suscita reflexão de outra natureza, envolvendo a própria justificativa da proposição legislativa. Com efeito, segundo a exposição de motivos, a criação dessa instituição gestora e a atribuição de bens à própria IGG seriam necessárias para viabilizar a utilização desses bens em garantia de vários empréstimos, mas essa premissa é falsa, pois a utilização de um mesmo bem em garantia de múltiplas operações de crédito é legalmente possível independentemente da atuação de um agente de garantia, muito embora se possa reconhecer o ganho de tempo e custos dessas operações quando a cargo de um Agente de Garantia. Dispõem os arts. 9º e 9º-A da lei 13.476/2017 que qualquer pessoa física ou jurídica pode contratar múltipla oneração de seus bens mediante compartilhamento de garantia fiduciária independentemente de assistência de um agente de garantia, ficando claro que não é a existência de um agente especial de garantia que viabilizaria o aproveitamento do potencial de um bem para garantia de múltiplas operações de crédito. E, além disso, o art. 15 do PL 4.188/2021 propõe a inclusão do art. 1.478-A no Código Civil, para facultar ao proprietário a livre contratação de hipoteca em garantia de várias obrigações, independentemente da assistência de qualquer agente de garantia. A par desses aspectos e, ainda, da concentração da representação do credor e do devedor na pessoa da IGG, a tipificação anômala proposta pelos arts. 2º ao 11 do Projeto é incompatível com alguns dos mais elementares fundamentos do Direito Privado, entre os quais se apontam, a título ilustrativo: a) Inversão da relação de subordinação do acessório (garantia) ao principal (obrigação), pois o Projeto prevê a atribuição de bens em garantia à IGG sem que tenha sido constituída previamente qualquer obrigação, como exige o art. 1.419 do Código Civil; b) Dispensa de averbação das operações da IGG no Registro de Imóveis, redirecionando a essa empresa privada uma função que, por expressa disposição da Constituição Federal (art. 236), é atribuída a órgão central do sistema registral imobiliário brasileiro, no qual se concentram todos os dados sobre os direitos reais imobiliários. A partir do conflito de interesses que pode se verificar na atuação da IGG, o aspecto mais preocupante dessa proposição é, sem dúvida, a dispensa do registro das garantias em favor de múltiplos credores, quando a garantia é recebida diretamente pela IGG (art. 5°, § 2°, do Projeto). Não é sem razão a preocupação diante do que ocorreu com a crise americana de 2008 (Subprime) por conta da enorme dificuldade que existiu para identificar os credores no sistema MERS (Mortgage Electronic Registration Systems), utilizado como registro eletrônico de hipotecas, que dispensa aquele feito no "condado" do imóvel. Esse registro eletrônico de hipotecas parece ter sido a inspiração para o discutido Projeto de Lei brasileiro, e naquele momento de grave crise das hipotecas americanas se evidenciou a existência de confusão das identidades reais das entidades credoras, com reflexo dentro do sistema judicial e no processo de execução hipotecária. Outras dúvidas foram suscitadas nos tribunais americanos quanto à legitimidade da MERS para execução das garantias, a subversão da governança do sistema de registro de imóveis e a sua responsabilidade pela crise.  No Projeto discutido o risco se mostra ainda mais grave, visto que nem mesmo é criado um registro eletrônico dessas operações entre as instituições de crédito, porque simplesmente foi dispensado "qualquer novo registro ou averbação".4 Não se mostra conveniente adotar esse modelo, e com ele aceitar os seus riscos, sem que se faça a necessária e adequada regulação dessa atividade de modo a assegurar o interesse de todos os envolvidos, especialmente dos devedores. Por fim, a duplicidade de tipificação do contrato de administração fiduciária de garantias deve ser objeto de profunda revisão por incompatível com a noção de unidade e consistência do ordenamento, como deflui do art. 7º, IV, da Lei Complementar nº 95/1998, que veda a sujeição de uma mesma matéria a mais de um regime jurídico. A lei admite que, a par da tipificação estabelecida no Código Civil, sejam instituídas regulamentação que disponha apenas sobre as particularidades da situação especial, com remissão à norma legal adequada constante da codificação5. O caso específico, em que se depara com dupla proposição para a mesma situação, recomenda a opção por aquela que melhor se ajuste ao sistema, que, nesse caso, é inclusão do art. 853-A no Código Civil, proposta pelo art. 15 do PL 4.188/2021. Não obstante, merece atenção a conveniência de aproveitamento da proposta formulada pelos civilistas integrantes do Grupo de Estudos Temáticos criado pela Portaria SEPEC n. 826, de 19.1.2021, da Secretaria da Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia, que contempla a inclusão dos arts. 853-A a 853-E no Código Civil, além da instituição de normas especiais para disciplinar a atuação de agentes de garantia no Sistema Financeiro Nacional, suprimindo-se a dupla tipificação preconizada pelos arts. 2º ao 11 desse mesmo Projeto de Lei para evitar a subsistência de normas que constituam bis in idem. Assim, na medida em que o Projeto atende a importante demanda por melhoria do ambiente de negócios, confia-se em que os aperfeiçoamentos a que será submetido no Congresso Nacional preservarão a coesão e a unidade do ordenamento, afastando o risco de controvérsias que levem à judicialização e frustrem os propósitos do legislador. __________ 1 Disso é exemplo a Lei 8.668/1993, que dispõe sobre a atribuição da propriedade a uma sociedade administradora de fundos de investimento imobiliário, mas em caráter fiduciário, que condiciona o exercício do domínio à realização do escopo para o qual foi contratada, no interesse dos investidores. 2 Esse tema foi tratado por MELHIM CHALHUB em Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário, cit., e é objeto de anteprojeto aprovado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros e convertido no Projeto de Lei nº 4.758/2020, do Deputado Enrico Misasi, em tramitação na Câmara dos Deputados. 3 TEPEDINO, Gustavo Mendes, e OLIVA, Milena. Compartilhamento de garantias imobiliárias por meio da titularidade fiduciária, Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 21/2019, pp. 207 - 231, Out - Dez/ 2019. 4 Consultar a respeito o excelente artigo de Christopher L. Peterson, Foreclosure, Subprime Mortgage Lending, and the Mortgage Electronic Registration System, publicado no vol. 78, n° 4 (Summer 2010) da University of Cincinnati Law Review. (pode ser acessado aqui). 5 Lei Complementar nº 95/1998: "Art. 7º (...): IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa."
O modelo privatista de tratamento da insolvência empresarial, adotado pela lei 11.101/05, como é sabido, recebeu forte influência do direito norte-americano. Essa influência também é sentida na elaboração dos planos de recuperação judicial e de reorganização de empresas em dificuldades (crise econômico-financeira), que frequentemente aproveitam as experiências norte-americanas bem-sucedidas. É o que justifica o aparecimento no Brasil, nos planos de recuperação, da figura, pouco conhecida, do Stalking Horse, uma expressão que significa, na origem, uma tática usada na caça em que um caçador se esconde atrás de uma imagem de um cavalo para se aproximar de seu alvo. Na prática dos negócios de alienação de empresas em dificuldades, o devedor usa o Stalking Horse para estimular o processo de licitação e atrair outros interessados na compra. De acordo com expressa previsão do art. 50, da lei 11.101/05, constituem meios de recuperação judicial, a "venda parcial dos bens" (inc. XI). A venda de ativos, para o fim de satisfazer os créditos e dar cumprimento ao plano de recuperação, encontra na lei 11.101/05 uma importante inovação, que é a alienação da empresa1, com a venda de suas "unidades produtivas" isoladamente (arts. 60 e 140, inc. II). Essa alienação "terá por objeto o conjunto de determinados bens necessários à operação rentável da unidade de produção, que poderá compreender a transferência de contratos específicos" (art. 140, § 3º). Atenta-se, desde logo, para a natureza dessa alienação, que tem por objeto o conjunto de determinados bens, inclusive a transferência de contratos, tudo necessário à operação rentável da unidade. Não se cuida, portanto, da alienação de bens isolados, comum nas liquidações. O objeto da alienação, neste caso, "estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho" (art. 141, inc. II). Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver a alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, estabelece o art. 60, "o juiz ordenará a sua realização, observado o disposto no art. 142 desta lei". Com a redação que lhe deu a lei 14.112/20, o art. 142 da lei 11.101/05 autorizou, para a alienação de bens em geral, o uso de "qualquer modalidade, desde que aprovada nos termos desta lei" (inc. V). Acrescentou ao regime de realização de ativos o disposto no art. 144, in verbis: "Havendo motivos justificados, o juiz poderá autorizar, mediante requerimento fundamentado do administrador judicial ou do Comitê, modalidades de alienação judicial diversas das previstas no art. 142 desta lei." Esses dispositivos da lei brasileira, mais do que outros, conferem uma margem de liberdade para à realização de ativos nos processos de recuperação judicial e de falência. Essa liberdade, é certo, não é absoluta, porquanto sujeita à deliberação dos credores, à fiscalização do Ministério Público e ao controle do juiz, ao qual a lei concedeu o poder de autorizar outras modalidades de alienação, "havendo motivos justificados" e observados os princípios e demais disposições legais. O conhecido Chapter 11, do Bankruptcy (capítulo 11 do Código de Insolvência Americano), que regula a reestruturação das empresas norte-americanas em dificuldades, admite, e tem sido uma tendência, a possibilidade de venda da empresa, ou de uma parte dela, para organizar o pagamento dos credores e recuperar a empresa2. A venda de ativos desta natureza (parte do negócio ou UPI, como é designada pela lei brasileira) segue a seção 363, do Bankruptcy, que prevê a possibilidade da venda de uma parte do negócio do devedor, ou até mesmo de todo o negócio, mediante procedimentos de licitação que podem estar vinculados à existência do Stalking Horse, que é uma parte que se comprometeu a comprar os ativos a um preço certo, se nenhuma outra proposta melhor for oferecida. Este procedimento de alienação da empresa ou parte do negócio, na experiência norte-americana, geralmente envolve um acordo para a venda a um Stalking Horse. Esse licitante, sob a supervisão do Tribunal, assegura um preço mínimo para aquele ativo e se sujeita a ser vencido no procedimento de licitação, se outro oferecer mais do que ele e não lhe for possível cobrir a oferta. A sua presença no procedimento de licitação atrai outros concorrentes e incentiva uma disputa que certamente elevará o preço do ativo, beneficiando o devedor e os credores. O Stalking Horse deverá ter, claro, compensações, porque promoveu diligências, assumiu riscos e negociou com o devedor uma oferta firme e vinculante, que acaba por constituir o preço mínimo no procedimento de licitação. A compensação mais significativa para ele é a garantia de que poderá cobrir a oferta maior, se ocorrer. Não fosse essa garantia, o Stalking Horse não estaria disposto a correr riscos, com dispêndio de dinheiro e tempo, quando tudo poderia ser perdido por um lance mais alto. É comum, também, estabelecer em favor do Stalking Horse, uma "taxa de rescisão" (break up fee), para o caso de ficar vencido na licitação. Essa taxa tem sido justificada pelo tempo e esforço que se lhe exigiu, assim como pelas despesas e riscos que assumiu, ao lado da efetiva vantagem que promove em benefício do devedor e o conjunto de credores ao induzir a licitação e elevar o preço, ou seja, essa taxa "deve fazer sentido" para todos os envolvidos, deve ser justificada e proporcional aos benefícios econômicos obtidos. A procura de um Stalking Horse é uma tentativa do devedor de testar o mercado antes de um leilão ou leilão reverso. A intenção é maximizar o valor de seus ativos. Há um outro lado, não menos relevante, da participação do Stalking Horse no procedimento de venda de ativos em processos de insolvência, voltado para a garantia de um preço mínimo justo. É que o leilão, em terceira chamada, de acordo com a lei brasileira, admite a alienação por qualquer preço (art. 142, § 3º, III), o que, somado ao fato de que são ativos em situação de dificuldade - distressed assets - que levam adquirentes a estimar o seu valor muito baixo (por assimetria informacional, visto que os adquirentes não sabem tanto quanto os vendedores dos defeitos, mas especialmente das virtudes dos ativos), a garantia de um preço mínimo elevado e ajustado previamente, proporciona o melhor resultado na realização desses ativos. É necessário lembrar que o devedor, em processo de recuperação judicial, ao contrário do que ocorre na falência, continua na plena administração da empresa (debtor in possession), consoante expressa previsão legal (art. 64 da LRF). Logo, o devedor pode procurar (e certamente o terá feito) um adquirente possível para uma parte do seu negócio (UPI), quando essa alienação constitui um meio eleito para a recuperação da empresa, e negociar com ele as condições do chamado negócio de Stalking Horse. Não há nenhum impedimento legal ao devedor, no direito brasileiro, para este ajuste privado, promovido com ampla liberdade, sem se sujeitar a condições prévias ou se vincular ao interesse de qualquer credor. Presume-se que o devedor atua, com a liberdade que lhe confere os poderes de administração, guiado pelo interesse na recuperação da empresa, visando o melhor resultado na alienação do ativo. E a última palavra, em abono e confirmação de que agiu bem em favor dos seus interesses e igualmente dos interesses dos credores, será dada pela assembleia geral de credores. Qualquer favorecimento ao terceiro - Stalking Horse - poderá ser identificado como conluio ou fraude, e reprimido pelos credores em assembleia e pela ação do Juiz da recuperação. Não é esta excepcional situação de fraude que deve pautar o exame desse modelo de alienação, colocando-o, somente pela diferente natureza que tem e a proximidade que estabelece entre o Stalking Horse e o devedor, em permanente suspeição. É natural que se estabeleçam compensações em favor do Stalking Horse, porque não sendo assim não haveria incentivo algum à sua participação. As compensações em favor do Stalking Horse não podem ser vistas como "favorecimento", porque representam a contrapartida dos benefícios que a sua atuação proporciona ao devedor e ao conjunto de credores, para não dizer da preservação da empresa. O que é necessário examinar, objetivamente, é a licitude das condições e a sua aprovação pelos credores, como meio de recuperação da empresa. No Brasil, a alienação judicial de ativos com a participação do Stalking Horse foi aplicada em vários processos de recuperação judicial, com aprovação judicial e confirmação dos Tribunais. Esse modelo foi apresentado, de forma pioneira, na recuperação judicial da OAS. Embora não se tivesse feito expressa referência ao Stalking Horse, a alienação da UPI mais valiosa do Grupo OAS - a INVEPAR - foi proposta, antes da apresentação e aprovação do Plano de Recuperação, juntamente com o DIP FINANCING, oferecido pelo Grupo Brooksfield, que se apresentava como Stalking Horse, com preferência na alienação judicial da UPI pelo direito de cobrir a oferta maior e compensação (break up fee). O negócio foi admitido pelo Juiz da recuperação e depois confirmado por decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, por Acórdão que relatei quando integrava a 2ª câmara reservada de Direito Empresarial (AI. 2152879-36.2015.8.26.0000, dj. 17/2/16). No caso do Grupo ABENGOA, cuja recuperação judicial ocorreu perante a Justiça do Rio de Janeiro, também se apresentou o Stalking Horse para a compra da UPI OPERACIONAL. A proposta firme da adquirente fora levada, junto com o Plano de Recuperação Judicial, à aprovação da Assembleia Geral de Credores e do Juiz. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirmou o negócio e as suas condições (AI 0005568-65.2018.8.19.0000, dj. 22/5/18). Outros casos de participação do Stalking Horse no Brasil podem ser lembrados: RJ 1125658-81.2018.8.26.0100 (Avianca); RJ 0203711-65.2016.8.19.0001 (Grupo Oi); RJ 1001533-07.2019.8.26.0100 (Nova Vida); RJ 1103257-54.2019.8.26.0100 (Renova Energia); RJ 1077065-21.2018.8.26.0100 (Libra); RJ 5052498-75.2020.8.24.0023 (Transportes Biguaçu); RJ 1069420-76.2017.8.26.0100 (UTC Participações). O Tribunal de Justiça de São Paulo julgou recentemente outro caso (Grupo Estre) em que se impugnava a participação e o próprio negócio de Stalking Horse. Este julgamento é, de certa forma, um marco importante na jurisprudência, tendo em vista o exame direto desse modelo de alienação de ativos na recuperação judicial e a aprovação da taxa de rescisão (break up fee), destacando-se da decisão, nesse ponto, o seguinte: "Ainda que se possa considerar o valor da "break-up fee" um pouco acima dos padrões ordinários (6,5% do valor do lance), a fixação da verba neste patamar não constitui, per se, ilegalidade, sendo, portanto, prerrogativa exclusiva da Assembleia Geral de Credores sua fixação no patamar apropriado ao fim que se destina." (AI 2230472-34.2021.8.26.0000, rel. Des. J.B. FRANCO DE GODOI, dj. 30/3/22). Este modelo de alienação, que também é muito utilizado em fusões e incorporações, está de acordo com a lei brasileira e pode ser utilizado com enorme vantagem como meio de recuperação da empresa. A palavra final deve sempre ser dos credores, que têm a soberana decisão sobre o plano de recuperação da empresa. _____ 1 A "empresa" aqui é expressão utilizada com o sentido que lhe dá o art. 966, do Código Civil, como atividade econômica organizada e exercida profissionalmente para a produção ou circulação de bens ou de serviços. 2 Essa tendência é bem apontada em publicação do American Bankruptcy Institute - 39th Annual - Lawrence P. King and Charles Seligson Workshop on Bankruptcy & Businnes Reorganization (September 19-19, 2013- NYU School of Law -New York (acesso aqui). Essa tendência também pode ser confirmada no artigo de Juanita Schwartzkopf (Breaking Down the Role of a Stalking Horse Bidder) publicado pela abfjournal, uma revista independente de finanças comerciais, focada nos setores de empréstimos e na gestão de recuperação (acesso aqui).
quarta-feira, 16 de março de 2022

O Trust no Brasil - Algumas anotações - Parte 2

O trust não é regulado por lei no Brasil. Registra-se a iniciativa legislativa do PL 4.809/98, de autoria do Deputado José Chaves, que não teve prosseguimento, e, mais recentemente, o PL 4.758/2020, de autoria do Deputado Enrico Misasi, que dispõe sobre a "fidúcia", em tramitação na Câmara dos Deputados. Na esfera do direito internacional, a Conferência de Haia de Direito Privado (HccH), que já editou mais de 30 convenções internacionais, editou uma específica para o trust. Apesar do Brasil não ser signatário, a Convenção de Haia - "Convenção sobre a lei aplicável ao trust e ao seu reconhecimento", assinada em 1º de julho de 1985, com entrada em vigor em 1º de janeiro de 1992, busca regular, justamente, o reconhecimento do trust por países que não são de origem da common law. O relatório da mencionada convenção deixa claro seu objeto, que se limita a harmonizar os sistemas da common law e o direito romano-germânico, tudo, para que se possa reconhecer e dar o devido tratamento ao trust constituído no estrangeiro. Apesar da referida Convenção, a natureza jurídica do trust ainda é incerta, sendo muito comum o recurso à analogia. Alguns sustentam que o trust poderia eventualmente se assemelhar a um contrato, opinião com a qual discordamos. O beneficiário no trust não participa da declaração de vontade, o que representaria conflito com o princípio da relatividade dos contratos. Ademais, em geral, nos contratos as partes adquirem certa vantagem na transação, enquanto no trust, normalmente o trustee nada recebe e o beneficiário é "voluntário" na relação jurídica. Não há que se confundir o trust, também, com a figura do mandato. O trustee não é um representante do settlor ou do beneficiário. A representação nasce de comum acordo entre as partes, enquanto no trust não se exige concordância do trustee para se estabelecer a relação jurídica. O mandatário, ainda, não se torna proprietário da coisa, como ocorre no trust. Outros defendem que o trust se aproxima do fideicomisso. Apesar da existência de pontos em comum, entendemos que também não é possível fazer essa aproximação. O Settlor e o fideicomitente transmitem a outrem determinado bem (trustee e fiduciário), com o encargo de retransmitir a propriedade desse bem a outra pessoa (beneficiário e fideicomissário). Porém, os poderes que cada uma dessas figuras detém é diferente, sendo certo que no trust eles são muito mais amplos. Existem ainda outras tantas diferenças que se notam no regime próprio de cada instituto, como renúncia da herança, eventual caducidade do direito, falecimento que encerra o direito do fiduciário, o destino destes bens, poder de alienação, e outras. Buscar a acomodação do trust no sistema da civil law é questão que enseja peculiar reflexão. Neste sentido, MELHIM NAMEM CHALHUB: "Sob a perspectiva da civil law, é extremamente difícil, senão impossível, ajustar o instituto dentro de uma das grandes categorias dos sistemas de origem romana, não obstante a abrangência dessas categorias; de plano, deve ser afastada a comparação com a fidúcia, pois esta tem natureza contratual, enquanto a doutrina majoritária do direito anglo-americano classifica o trust como instituto do direito das coisas. De outra parte, os próprios autores do direito anglo-saxão revelam ser difícil fixar-se uma definição satisfatória para o trust e, consequentemente, sua natureza jurídica. [...] A estrutura desse instituto é extremamente complexa, circunstância que, segundo René David, torna quase impossível precisar-lhe a natureza jurídica, ou torna absolutamente dispensável a determinação de sua natureza jurídica, porque, na verdade, o que conta é o conteúdo dos estates de cada um dos figurantes da relação jurídica desse instituto, especialmente o cestui que trust".1 Passamos nossa atenção, agora, ao exame do trust pelos tribunais. Vale destacar a dificuldade em localizar decisões sobre o tema. Há muitas empresas e sociedade empresárias que cunham a expressão "trust" na sua razão social ou nome fantasia, o que também representa uma dificuldade. De toda forma, de acordo com os julgados selecionados percebe-se singela tendência de se interpretar o trust de acordo com as regras do ordenamento jurídico brasileiro, desde que não exista qualquer violação a preceitos de ordem pública, inexistindo, portanto, a princípio, motivos para se rejeitar o trust realizado. Foi submetido à apreciação da 3ª Câmara de Direito Privado, do Tribunal de Justiça de São Paulo, em Agravo de Instrumento nº 2150482-38.2014.8.26.000, de relatoria do Desembargador CARLOS ALBERTO DE SALLES, a questão da sobrepartilha de saldo em conta bancária no exterior, constituída através de trust. O litígio se estabeleceu entre o ascendente e cônjuge do falecido. A mãe do de cujus requereu a sobrepartilha dos respectivos valores, que se encontravam numa conta bancária constituída em trust para beneficiar a esposa (viúva). O eminente Desembargador ponderou que não se tratava de analisar a aplicabilidade de lei estrangeira ou não, ou ainda, a existência do trust no Brasil, mas sim, de compreender o ato jurídico praticado pelo autor da herança, sob a ótica do ordenamento jurídico brasileiro.  Desta forma, ao verificar os valores que existiam na conta bancária estrangeira (US$ 35.000,00), ponderou que eles não ultrapassavam a parcela disponível da legítima, e, portanto, o autor da herança poderia dispor daqueles valores. Neste caso, portanto, foi interpretado como mera doação, em vida, que não apresentaria qualquer vício de validade, pois, teria sido respeitado os preceitos de ordem pública e as regras sucessórias do direito civil, ou seja, a reserva da legal da legítima (art. 1.846, do Código Civil). Outro caso interessante foi relatado pelo Desembargador RUI CASCALDI, da 1ª Câmara de Direito Privado, no agravo de instrumento nº 2076494-42.2018.8.26.0000, do Tribunal de Justiça Bandeirante. Trata-se de inventário que não contemplou bens do de cujus localizados em território estrangeiro. A autora da herança detinha 100% da empresa Flowstone Investments Ltd., em trust administrado pela Morgan Stanley Private Wealth Management. O ativo, avaliado em valor superior a 2 milhões de reais, estava localizado nas Ilhas Virgens Britânicas e constava da declaração de imposto de renda do de cujus. Os herdeiros, inconformados com a decisão de primeira instância que retirou o ativo da partilha, com base em interpretação do art. 23, do Código de Processo Civil, interpuseram o recurso de agravo de instrumento. Entendiam que o art. 10, da LINDB, autorizava a sua inclusão, isto porque, prevê o mencionado dispositivo que "a sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que domiciliado o defunto ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens". No entanto, a interpretação a contrario sensu do art. 23, II, do Código de Processo Civil (correspondente ao antigo art. 89, II, do CPC/73), conforme destacou o desembargador relator, impede a contemplação de bens e direitos situados no exterior, vez que o texto legal dispõe que a jurisdição brasileira possui competência exclusiva para os bens aqui localizados, ainda que pertencente a pessoa domiciliada em país estrangeiro. Assim, existindo bens localizados em países estrangeiros, o respectivo inventário deverá ser proposto no país onde localizados. É o que a doutrina e a jurisprudência convencionaram denominar de princípio da pluralidade dos juízos sucessórios. Desta forma, mesmo se o bem constar na declaração do imposto de renda, se localizado no exterior, a justiça de São Paulo entendeu pela impossibilidade do bem ser inventariado no Brasil, e vice-versa, pois caso o autor da herança falecer no estrangeiro e naquele país for aberto o inventário, e existam bens no Brasil, o respectivo inventário deste patrimônio terá que ser aberto no território nacional. Esta interpretação representa verdadeira preocupação para aqueles que desejam constituir trust no estrangeiro, pois para o direito das sucessões, se confirmada a orientação esposada no julgado comentado, o respectivo inventário terá de ser proposto no local dos bens.     Não obstante os casos acima, relacionados diretamente ao direito das sucessões, de extrema relevância tratarmos aqui do Recurso Especial nº 1.438.142/SP, do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Cito o julgado, pois entendo ser de extrema importância para compreender a tendência que os tribunais darão a matéria do trust. O autor da ação, uma concessionária de rodovia estadual, celebrou contrato de financiamento com o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), que seria pago através das receitas oriundas das praças de pedágio. Para conferir maior garantia ao negócio, foi pactuado que as receitas do pedágio seriam depositadas num banco interveniente, que administraria essas receitas e faria os devidos repasses para amortizar o referido financiamento realizado. Para concretizar esta sistemática, foi realizado um "contrato" de trust. Portanto, os valores da concessionária de rodovias adquiridos com o pedágio eram depositados no banco interveniente, para que administrasse os valores e fizesse os devidos pagamentos ao BNDES. Importante registrar que não foi realizado propriamente um "contrato de trust". É que, no contrato celebrado entre as partes, constou em uma de suas cláusulas, que o banco interveniente faria o papel de "trustee". Durante a execução deste contrato, no entanto, sobreveio a falência do banco interveniente, tendo sido arrecadado todos os depósitos provenientes do pedágio em favor da massa falida. Diante deste fato, a concessionária buscou a restituição dos valores, o que foi negado, ensejando diversos recursos até chegar à apreciação do STJ. A defesa jurídica da concessionária, além de perquirir pela própria natureza do instituto do trust, traz outros argumentos interessantes. O art. 119, inciso IX, da lei 11.101/2005, prevê, em linhas gerais, que na hipótese de existir patrimônio de afetação, este deverá permanecer separado da massa falida, e em complemento, também se alegou a aplicação da Súmula 417/STF: "Pode ser objeto de restituição, na falência, dinheiro em poder do falido, recebido em nome de outrem, ou do qual, por lei ou contrato, não tivesse ele a disponibilidade". Especificamente em relação ao patrimônio de afetação, entendeu o STJ pela aplicação do art. 789, do Código de Processo Civil (antigo art. 591, do CPC/73), que trata de previsão em que o devedor responderá com todo o seu patrimônio pelo cumprimento de suas obrigações, salvo "as restrições estabelecidas em lei". Vale mencionar alguns exemplos de patrimônios de afetação atualmente previstos na legislação brasileira: sistema de consórcio (Lei n. 11.795/08); sistema brasileiro de pagamento (lei 10.214/01) e o depósito centralizado de ativos financeiros e valores mobiliários (lei 12.810/13). No caso concreto, o patrimônio de afetação resultaria de trust, que não possui qualquer previsão legislativa. Ainda que exista a já mencionada Convenção de Haia, lembramos novamente que o Brasil não é seu signatário. Assim, não há amparo legal para se reconhecer o patrimônio de afetação constituído em trust. Com esta premissa, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que a receita das praças de pedágio, por estarem na titularidade do banco interveniente por força do contrato celebrado, passou a integrar o seu patrimônio, logo, com a sua falência, e sem qualquer previsão legal do trust na legislação pátria, não há que se falar na sua afetação, o que justifica, assim, a sua arrecadação em favor da massa falida. Os julgados citados não escondem certa timidez e hesitação no exame do trust. Enquanto não existir previsão legal, os esforços em favor do seu reconhecimento e aplicação serão sempre limitados, privando a sociedade brasileira de um excelente instrumento de proteção patrimonial, afetação de bens e planejamento sucessório. __________ 1 CHALHUB, Melhim Namen. Trust : breves considerações sobre sua adaptação aos sistemas jurídicos de tradição romana. Revista dos Tribunais, vol. 790/2001, Ago/2001, p. 88.
quarta-feira, 9 de março de 2022

O Trust no Brasil - algumas anotações

O trust surgiu na Inglaterra. A doutrina especializada sobre o trust costuma situar o seu surgimento com o início do regime feudal, por volta do século V. O isolamento dos povos em feudos foi essencial para que o trust se desenvolvesse. A propriedade da terra, figura de essencial destaque e importância para a época, desdobrava-se entre os servos, que detinham o seu domínio útil, responsáveis pela produção agrícola, e o senhor feudal, seu verdadeiro proprietário. Neste período, caso o servo viesse a falecer, o título que possuía (de uso útil da terra) era transmitido a seus herdeiros que, até completarem a maioridade, deveriam pagar impostos ao senhor feudal pelo uso da terra. Se não existissem herdeiros, o título voltava ao senhor feudal. Desta forma, para buscar contornar a exigência de impostos aos herdeiros pelo senhor feudal, os servos enxergaram na "cessão de uso para terceiros" uma forma de se eximir dos referidos pagamentos. Assim, o servo, como cedente, transmitia ao cessionário a posição de titular da terra, para que pudessem usar conforme os interesses e critérios instituídos pelo próprio cedente, por determinado período de tempo, até que o herdeiro daquelas terras atingisse a maioridade. Esta prática, de cessão de direitos por tempo determinado e com poderes delimitados, ficou conhecida como use (uso), que se baseava na confiança de que o cessionário receberia a propriedade por tempo determinado e, depois, devolveria à pessoa indicada como beneficiária (o herdeiro do cedente quando completasse a maioridade). O use, na verdade, é uma das formas originárias do trust, que fundamentou posteriormente o seu reconhecimento e desenvolvimento jurídico. Encontramos na baixa idade média outro acontecimento que contribuiu para o trust: as Cruzadas. Quando os cavaleiros cristãos partiam da Europa Ocidental em direção à Terra Santa e à cidade de Jerusalém, com retorno incerto, muitos entregaram seus bens à administração e garantia de pessoas de confiança.   Somente no século XV, na Inglaterra, o Tribunal de Chancelaria (Chancellor) reconheceu a validade do use (instituto antecessor ao trust).1 Sucede que na Inglaterra a alienação inter vivos de terras era livre, podendo, inclusive, ser verbal, e não dependia do consentimento do senhor feudal. A prática se tornou popular e representou verdadeira evasão de impostos. No intuito de combater o problema, Henrique VIII, nos anos 1500, promulgou diversos estatutos sobre o tema, que culminou com a eliminação de qualquer possibilidade de se não pagar mais impostos pela transferência da propriedade. Dentre estes estatutos, o mais famoso deles foi o Statute of Uses 1536, que aboliu a possibilidade de se transmitir bens imóveis por testamento, tornando proprietários todos os beneficiários das terras, o que permitiu a exigência dos impostos. A medida, obviamente, não foi muito bem aceita, pois não só atingiu os servos, mas, também, diversos senhores feudais que se valiam dos uses. Como resultado, o monarca precisou ceder e promulgou o Statute of Wills 1540, que permitiu, pela primeira vez, a livre disposição de terras por testamento. Os mencionados estatutos representam o maior impacto na evolução do trust. Com eles, o direito inglês verificou verdadeira flexibilidade no instituto da propriedade, que até então era contornada pelos uses. E mais: foi em razão de omissões legislativas que o use evoluiu para o trust.2 O caminho para o reconhecimento do trust não foi fácil. O primeiro caso em que esta prática foi apreciada pela corte, mas ainda não aceita, foi Tyrrel's Case (1557). Neste caso, a viúva concedia seus imóveis em benefício de seu filho, que por sua vez, os recebia e, em ato contínuo, os concedia em benefício de volta para sua mãe. Aqui, a Court of Wards and Liverires, criada por Henrique VIII, especialmente para casos de uses, entendia que o primeiro era abrangido e protegido pelo Statute of Use 1536, porém o segundo era nulo, proibindo que a mãe fosse beneficiária de seu próprio filho. Posteriormente, em 1560, um outro caso, com um viés político, representou o primeiro reconhecimento do segundo e sucessivo use praticado. Trata-se do caso Bartie v Herenden. Neste caso, Katharine Bartie, Duquesa de Willoughby d'Eresby, instituiu use em favor de seu advogado, Walter Herenden, que se tornou beneficiário de todo seu patrimônio. A constituição do use se deu porque a Duquesa precisou fugir da Inglaterra. Receosa por eventual perseguição pela rainha Maria I (Bloody Mary) - famosa por perseguir protestantes - a Duquesa desejou se precaver e proteger seu patrimônio, constituindo o use em favor de seu advogado (Herenden). Posteriormente, a suspeita se confirmou, tendo a rainha Maria I determinado o confisco de todos os seus bens, que só não se concretizou, efetivamente, em razão do use realizado. A Duquesa e seu advogado, no entanto, constituíram um segundo use, de modo que os bens seriam administrados pelo advogado até que a Duquesa retornasse para a Inglaterra, quando então devolveria seu patrimônio. Porém, Herenden não cumpriu com o segundo use instituído, o que ensejou a irresignação da Duquesa contra seu advogado. Aqui, desta vez, a corte inglesa reconheceu o segundo use realizado - afinal, tratava-se da Duquesa - sendo determinado ao advogado que devolvesse todos os bens que ilicitamente havia retido, já que, até o momento, o segundo use constituído era considerado nulo. O caso levantou a questão de eventuais abusos que poderiam vir a ser cometidos pelos administradores (trustees) dos bens. O advogado Herenden foi o protagonista desta preocupação, que ensejou a inovação pela corte inglesa em se reconhecer o segundo use instituído, que culminou no reconhecimento jurídico do próprio trust. Em linhas gerais, o trust apresenta a seguinte estrutura básica: o instituidor do trust (settlor), que através da sua declaração de vontade, entrega os seus bens a um terceiro, o trustee, que irá fazer a sua administração em benefício de outro, o beneficiary.  Quando o instituidor realiza o trust, ele deixa de ser proprietário dos bens, pois ocorre verdadeira transmissão da propriedade para o administrador (trustee), não podendo mais reclamar ou exercer qualquer pretensão sobre eles. Normalmente, o settlor fixa e determina algumas obrigações e condições para o trustee (administrador). Não se trata aqui de regra intransponível, pois o trust pode ser criado sem qualquer ressalva ou comando específico, porém é muito comum, por exemplo, que o settlor determine que os bens entregues ao trustee só sejam repassados ao beneficiary quando este alcançar certa idade, quando constituir matrimônio, quando completar os estudos ou, até mesmo, quando o próprio settlor vier a falecer. Uma vez constituído o trust, verifica-se uma espécie de multipropriedade construída na common law, que não possui figura semelhante no ordenamento brasileiro. A propriedade é dividida em legal title e em equitable title, isto é, o trustee passará a ter o legal title, como se proprietário originário fosse daqueles bens, enquanto o beneficiary terá o equitable title ("titularidade equitativa sobre o bem"), que para o Direito Inglês consiste no direito de perceber os seus frutos. Embora esse modelo de trust se apresente como mais comum, existem outros. Pode ocorrer do settlor nomear a ele próprio como trustee, administrando aquela massa de bens em favor de um terceiro (o beneficiary), ou ainda, pode nomear um terceiro como trustee, mas se coloca, ele próprio, como beneficiary. Com o legal title dos bens confiados em trust, cabe ao trustee diversos deveres, que por sinal, foram construídos através da jurisprudência inglesa. O trustee, apesar de proprietário dos bens, precisa administrá-los com a devida cautela e diligência, com imparcialidade, sem poder delegar sua função a terceiros. Precisa ainda seguir e respeitar todas as obrigações e condições estipuladas pelo settlor, tudo, sob pena de responsabilidade. O trustee pode, ou não, ser remunerado pela sua função de administrador, a depender do que for estipulado pelo settlor. Caso não cumpra, poderá deixar de ser trustee, devendo, ainda, ressarcir eventuais honorários que recebeu, assim como pode ser condenado a indenizar o beneficiário do trust. A quebra da confiança - descumprimento das condições e obrigações estipuladas em relação aos bens deixados em trust para o trustee -, representa a figura denominada breach of trust, que nos ordenamentos jurídicos nos quais é reconhecido, pode, inclusive, trazer repercussões cíveis e criminais. Ações fraudulentas por parte do trustee, com eventual apropriação indevida dos bens confiados em trust, são reconhecidas como crime nos Estados Unidos da América, conforme caso State v McCann, analisado pela Suprema Corte do Estado da Carolina do Sul em 1932. Caso o instituidor do trust queira garantir maior segurança, pode ser nomeado uma quarta pessoa nesta relação, o protector (protetor), que irá fiscalizar a atuação do trustee para que se tenha maior segurança de que este patrimônio chegará, em definitivo, e bem administrado, às mãos do beneficiário:  Além de toda esta sistemática, importante destacar a principal característica do trust, que, na nossa opinião, seja a que mais faça despertar o interesse por este instituto: o patrimônio de afetação. O bem, ou conjunto de bens, confiados em trust, passam a integrar o patrimônio do trustee e não podem ser alcançados por seus credores, da mesma forma que, eventuais credores do settlor, também não poderão mais se valer destes bens para satisfazerem eventual crédito que possuem. Todo o patrimônio objeto do trust está afetado ao trustee constituído, que só poderá vir a responder por dívidas contraídas em razão do próprio trust criado. Existe verdadeira separação e proteção do patrimônio. A common law permite que a pessoa tenha diferentes esferas de patrimônio, nas quais uma não se comunica com a outra. Portanto, seja credor do instituidor do trust, ou do trustee, o patrimônio confiado em trust está a salvo de qualquer de seus credores originários. Esse aspecto do trust representa enorme interesse na sua instituição. Assim, de modo geral, o settlor constitui o trust através de uma declaração de vontade, denominada trust deed, que irá prever e reger todas as condições e orientações para o trustee administrar o bem dado em confiança, para que, em outro momento, ele seja entregue ao beneficiário, existindo verdadeira separação e proteção do patrimônio em razão de sua afetação. Esta declaração de vontade que faz surgir o trust é objeto de controvérsias. É o que procuramos abordar na próxima publicação desta Coluna. _______________ 1 DAVID, René. O Direito Inglês. 2ª edição. Editora Martins Fontes : São Paulo, 2000, p. 102. 2 OLCESE, Tomás. Formação histórica da real property law inglesa: tenures, estates, equity & trusts. YK Editora : São Paulo, 2016, p. 156.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Superendividamento ou insolvência?

O Brasil esperava há muito tempo pelo tratamento legal do superendividamento. A expectativa era grande a partir do projeto de lei 283/12, de autoria do Senador José Sarney. Esse projeto resultou, depois de longa tramitação, na lei 14.181/21, que entrou em vigor no dia 2 de julho de 2.021, alterando o CDC. Estabeleceu, como princípio de Política Nacional de Relações de Consumo, a prevenção e o tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor (art. 4º, X, CDC). Sabemos todos dos efeitos econômicos e sociais decorrentes da negativação do consumidor perante o mercado de crédito e as suas implicações para o acesso ao consumo. A questão do superendividamento está diretamente ligada, portanto, à dignidade da pessoa, à inclusão social e à garantia de acesso mínimo aos bens de consumo, daí a enorme relevância de uma lei que pudesse regular a matéria. Vale lembrar que, segundo o Mapa da Inadimplência e Renegociação de Dívidas no Brasil, publicado pelo SERASA, em dezembro de 2021 se registrou quase 64 milhões de inadimplentes, somando  dívidas no total de 252 bilhões de reais.1 Não é preciso dizer mais para que se possa entender que o tratamento do superendividamento não é somente um problema social, voltado para as pessoas e famílias, mas é também um problema da economia e do crédito. Na verdade, o superendividamento é uma parte do problema envolvendo outro maior, que é a insolvência em geral, tanto dos empresários e sociedades empresárias, como também das pessoas naturais. O tratamento desse problema avançou muito nos últimos anos em todo mundo, abandonando-se a ideia de falência, que deu lugar à insolvência. O Brasil avançou, mas não o suficiente. É uma carência que temos no direito brasileiro. A atenção do referido Projeto, que se tornou lei, foi dirigida à prevenção do superendividamento, garantindo ao consumidor, ao lado da educação financeira, as práticas do chamado "crédito responsável", preservado o "mínimo existencial", nos termos da regulamentação, por meio da revisão e repactuação da dívida, entre outras medidas (art. 6º, XI e XII, CDC). Já nos deparamos aqui com o primeiro grande problema: a lei não define o que é "mínimo existencial", deixando essa definição a um ato de "regulamentação". Não fosse somente a dificuldade, para não dizer impossibilidade, de encontrar uma definição para uma ideia tão abstrata como é a ideia do "mínimo existencial", também não cuidou a lei de dizer sobre a titularidade do poder de regulamentação. Não se afasta a possibilidade, por isso, de haver mais de uma regulamentação, talvez setorial (p. ex. imobiliária, financeira, mercado de consumo em geral), ou mesmo nenhuma. Enquanto não estabelecida a regulamentação, tudo ficará por conta do nosso Judiciário, e não é preciso dizer que este preceito poderá receber a mais variada interpretação até que encontre alguma definição consolidada. Essa ideia de assegurar o mínimo existencial na concessão do crédito e no tratamento do superendividamento veio, sem dúvida, por influência francesa do Code de la consommation, que se refere à uma limitação da percentagem apreensível do salário do consumidor, para que lhe seja reservada a parte dos recursos necessários às despesas correntes da família (art. L731-1). Não é exatamente o "mínimo existencial" que está previsto na lei brasileira, mas se identifica com o propósito do Projeto de limitar a 30% o comprometimento do salário do consumidor nos chamados empréstimos consignados. Sucede que essa proposição, a respeito dos consignados, foi vetada pela Presidência da República (estava no art. 54-E)2 e o "mínimo existencial", que encontrava algum sentido concreto na lei, ficou "solto" no texto aprovado, remetido para um ato de regulamentação, o que prenuncia dificuldades na sua aplicação. Os problemas da Lei do Superendividamento vão além e são, a nosso ver, estruturais. A lei 14.181/21 não distinguiu as situações de endividamento, multiendividamento, superendividamento e insolvência do consumidor. Há situações em que o devedor está endividado, mas cumpre as obrigações, no entanto o faz com sacrifício. Ele não é insolvente e o sacrifício pode lhe retirar o mínimo existencial ou não. Há outras situações de comprometimento total das receitas do consumidor para o pagamento das dívidas. Neste caso, parece que ao consumidor pode faltar o mínimo existencial.  Em outra situação, o devedor tem bens suficientes para o cumprimento das obrigações, mas lhe falta liquidez. Ele pode ser entendido como insolvente. Outra situação é de incapacidade de pagamento, porque o volume de dívidas está acima da capacidade do devedor. É um caso de insolvência. O endividamento ou superendividamento pode ser passivo e até involuntário, nos casos de doença, desemprego, acidentes, pandemia etc. Ele pode decorrer de uma conduta imprudente do consumidor ou até mesmo de má-fé. Há, portanto, situações objetivamente diversas que não foram consideradas. Ao contrário, a lei preferiu dar valor a um aspecto subjetivo na constituição das dívidas (má-fé do devedor e dívidas para aquisição de produtos de luxo de alto valor), o que muito dificulta o tratamento adequado do superendividamento e da insolvência. A lei apresentou uma definição de superendividamento que mais se aproxima da definição de insolvência ao dizer, no art. 54-A, § 1º, o seguinte: "Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação." Cabe lembrar que a lei 11.101/05, que regula a recuperação judicial e a falência, define a crise de insolvência, "pela insuficiência de recursos financeiros ou patrimoniais com liquidez suficiente para saldar suas dívidas" (art. 51, § 6º, I). Nota-se que, objetivamente, o superendividamento definido na lei se aproxima muito da definição de insolvência empresarial, pela impossibilidade do pagamento da totalidade das dívidas (cash flow). A diferença na definição está somente na consideração que a lei deu à "boa-fé" do devedor. Não é fácil, realmente, distinguir a insolvência do superendividamento. A doutrina especializada, especialmente estrangeira, sempre apontou essa dificuldade. No entanto, é no tratamento dessas situações que a diferença deve ser percebida. Como princípio, o tratamento do superendividamento se volta para o devedor, procurando devolver a ele o acesso ao crédito e aos bens de consumo, enquanto na insolvência o interesse prevalente é do credor e na satisfação das dívidas, olhando para a liquidação dos seus bens. Ocorre que a Lei do Superendividamento deu à hipótese de insolvência, que não distinguiu, o tratamento próprio do superendividamento, colocando todas as realidades diversas no mesmo regime. Há outros equívocos nessa solução. Diante de uma situação de insolvência, o melhor tratamento é aquele que estabelece o concurso de credores, no qual a igualdade deve ser assegurada (par conditio creditorum). Todavia, a lei brasileira se deixou contaminar, sob a influência francesa, pela ideia de que o consumidor pode ter contraído o superendividamento de má-fé, fazendo dívidas que não pretendia pagar, e afasta dos procedimentos previstos para o respectivo tratamento o credor que foi vítima desse consumidor, deixando de fora uma parte das dívidas, como se quisesse, nesse caso, aplicar uma sanção ao devedor. É evidente que o consumidor terá, nesse caso, todos os seus esforços de reorganização financeira prejudicados pela ação que esses credores continuam livres para promover. Nem faz sentido impor a todos os demais credores sacrifícios que não serão suportados pelos credores que foram vítimas do consumidor de má-fé, excluídos das medidas de tratamento, caso seja aplicado um plano de pagamento compulsório. A lei também deixou de fora do tratamento as dívidas decorrentes da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor (art. 54-A, § 3°), deixando esses credores livres. Em ambos os casos (dívidas contraídas de má-fé e dívidas decorrentes da aquisição de produtos de luxo de alto valor), incorre a lei no equívoco de confiar na reorganização financeira do devedor sem a participação de todos os seus credores. E mais: deixando de fora parte dos credores, a lei acaba por relativizar a garantia do "mínimo existencial", que só poderá ser observada pelo juiz no tratamento das dívidas contraídas de boa-fé, porque admite que ao devedor de má-fé se pode impor qualquer sacrifício, vez que ele não tem acesso às medidas de tratamento do superendividamento. A aplicação desses preceitos enfrenta a dificuldade de olhar para o consumidor e ver ao mesmo tempo a sua boa-fé, em relação a parte das dívidas, e a sua má-fé, em relação a outra parte, porque a lei defere as medidas para um conjunto de dívidas e nega ao outro. Deixou de fora do tratamento do superendividamento as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural (art. 104-A). Em face da insolvência, a igualdade de tratamento dos credores é um princípio universal que deve ser assegurado em um processo concursal. Excluir credores desse processo é o movimento contrário ao que preconiza toda a doutrina especializada no estudo da insolvência. De outra parte, essa espécie de "perseguição de culpados" (devedores e credores) e a consideração subjetiva que pretende a lei (devedor de má-fé, dívidas de luxo), ao lado da enorme dificuldade de caracterização objetiva que apresenta, retoma noções primitivas e já superadas de punição dos devedores, que não resolve a questão do superendividamento ou da insolvência. A par destas questões, para o tratamento do superendividamento, a lei estabeleceu dois procedimentos: a) processo de repactuação de dívidas (art. 104-A);  b) processo de superendividamento (art. 104-B). No primeiro deles, o consumidor superendividado (ou insolvente) apresenta uma proposta de Plano de Pagamento, com prazo máximo de 5 anos, preservado o mínimo existencial, com vistas à realização exclusivamente de uma audiência conciliatória. Nesse procedimento, que poderá se extinguir com essa audiência, o credor que não comparecer injustificadamente, terá suspensa a exigibilidade do seu crédito e só receberá depois do pagamento dos credores que compareceram à audiência. Se o acordo com "qualquer credor" ocorrer, a sentença judicial de homologação terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada. No Plano de Pagamento deverá constar medidas de dilação de prazo, redução de encargos, exclusão de banco de dados e cadastros de inadimplentes e o duvidoso "condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento". Estabelece a lei que esse pedido do consumidor não é uma declaração de insolvência civil, assegurando que o consumidor possa repetir o pedido depois de 2 anos, contados da liquidação das obrigações (que não pode passar de 5 anos). No entanto, define o superendividamento pela insolvência. Uma contradição assumida para que o consumidor não seja atraído ao concurso de credores, mas sem oferecer alternativa adequada. Se não houver acordo na referida audiência, "a pedido do consumidor", será instaurado processo por superendividamento "para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório". Note-se que esse processo depende de um pedido do devedor, que poderá não ter interesse em fazê-lo. Também temos dúvidas sobre o que se pretende com a "revisão" e "integração" de contratos em procedimento desta natureza. Para esse processo, os credores que não fizeram parte do acordo previsto na fase antecedente, serão "citados" para dizer das razões da negativa de aceder ao plano. Parece que a lei não pensou em outra matéria de defesa. O juiz poderá nomear um administrador, desde que não onere as partes, para apresentar em 30 dias um plano de pagamento. O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor principal corrigido, com o pagamento da primeira parcela em 180 dias e prazo máximo de 5 anos. Não há previsão para impugnação e decisão sobre os créditos, que naturalmente haverá. Esse processo de superendividamento, entrega ao juiz o poder de impor um plano aos credores, contrariando o modelo privatista adotado na maior parte dos países, que atribuiu aos credores a decisão sobre planos de pagamento dos devedores. Essa decisão monocrática do juiz, e não a decisão coletiva dos credores, bem evidencia a natureza compulsória da solução da lei para o superendividamento. O plano compulsório bem pode se justificar em alguns casos de superendividamento, mas não nos casos de insolvência. A lei, todavia, não fez distinção. Esse modelo de concentração de poderes no juiz em casos de insolvência e repactuação de dívidas se mostra fora do seu tempo. E para o superendividamento as soluções mais adequadas defendidas pela doutrina sempre passaram pela decisão dos credores. Também se vê, como já destacamos, que uma parte importante dos credores ficou de fora desse plano, livre para promover ações de constrição patrimonial contra o devedor e reduzir o seu patrimônio. Outros credores podem ter obtido acordos singulares e mais vantajosos com o devedor antes do processo ou na fase conciliatória antecedente prevista. É um plano compulsório, portanto, para alguns, e não para todos os credores, e não há garantia de igualdade de tratamento. A lei não é clara, mas tudo indica pelo fato de que o plano será apresentado de acordo com as possibilidades de pagamento do devedor, ressalvado o mínimo existencial, que ao final do prazo de cinco anos será extinta a dívida que não foi paga. Todavia, de forma contraditória, diz que o plano deve assegurar aos credores o pagamento do principal corrigido. Também não está claro na lei se o acordo ou o plano compulsório tem o efeito de novação, como se dá na lei 11.101/05, assim como não está claro na lei quais são as consequências do inadimplemento do plano, como por exemplo o restabelecimento da obrigação originária. O que sentimos efetivamente é a oportunidade perdida para atender a um reclamo antigo de criação de um procedimento adequado para regular a insolvência da pessoa natural e o superendividamento do consumidor, que já existe em muitos países. Recebemos um diploma que poderá ter sucesso parcial no tratamento do superendividamento dos consumidores. A lei é positiva na disciplina do crédito responsável e na formulação de um procedimento de aproximação do devedor e seus credores, mas deixou frustrada uma expectativa de cuidar melhor do superendividamento e da insolvência da pessoa natural, com a possibilidade de redução e perdão de dívidas e exclusão de encargos.  O saudoso professor Renan Lotufo dizia que as leis nem sempre são boas, mas com o tempo e o trabalho da doutrina e da jurisprudência elas se tornam melhores e úteis. Que assim seja. _____ 1 Acesso à informação disponível aqui. 2 Transcrevemos parte das razões do veto: "Entretanto, apesar da boa intenção do legislador, a propositura contrariaria interesse público ao restringir de forma geral a trinta por cento o limite da margem de crédito já anteriormente definida pela lei  14.131/21, que estabeleceu o percentual máximo de consignação em quarenta por cento, dos quais cinco por cento seriam destinados exclusivamente para amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito ou de utilização com finalidade de saque por meio do cartão de crédito, para até 31 de dezembro de 2021, nas hipóteses previstas no inciso VI do caput do art. 115 da lei 8.213/91, no § 1º do art. 1º e no § 5º do art. 6º da lei 10.820/03, e no § 2º do art. 45 da lei 8.112/90, bem como em outras leis que vierem a sucedê-las no tratamento da matéria, trazendo instabilidade para as operações contratadas no período de vigência das duas legislações. Mister destacar que o crédito consignado é uma das modalidades mais baratas e acessíveis, só tendo taxas médias mais altas que o crédito imobiliário, conforme dados do Banco Central do Brasil. Assim, a restrição generalizada do limite de margem do crédito consignado reduziria a capacidade de o beneficiário acessar modalidade de crédito, cujas taxas de juros são, devido à robustez da garantia, inferiores a outras modalidades. A restrição acabaria, assim, por forçar o consumidor a assumir dívidas mais custosas e de maior dificuldade de pagamento".
Publicamos nesta coluna artigo que abordava O Usufruto de participações societários e o planejamento sucessório, que atraiu enorme interesse, tanto que se encontra entre os mais lidos da coluna. Nesta oportunidade procuramos tratar de uma questão muito sensível envolvendo o usufruto, especialmente o usufruto de participações societárias no âmbito do planejamento sucessório.  Constituído o usufruto em favor de mais de uma pessoa (usufruto simultâneo), a morte de um dos usufrutuários causa a extinção da parte correspondente do usufruto, como determina o artigo 1.411 do Código Civil Brasileiro. Essa regra não é aplicada se, por estipulação expressa, o quinhão do usufrutuário morto couber aos usufrutuários sobreviventes. É o denominado direito de acrescer previsto na ressalva do dispositivo legal indicado e que impede, dado o ajuste convencionado, a extinção do usufruto, mesmo parcial, em razão da morte de um dos usufrutuários. O usufrutuário sobrevivente tem acrescido ao seu direito a parte daquele usufrutuário morto, que não se extingue, mas se transfere. O usufruto neste caso continua íntegro e não sofre redução. Encontrará extinção somente com a morte de todos os usufrutuários. O direito de acrescer, como visto, só pode ser aplicado ao usufruto constituído por ato entre vivos quando houver estipulação expressa nesse sentido (art. 1.411, CC). Ao usufruto constituído causa mortis a lei impõe, à falta do usufrutuário, uma outra solução (art. 1.946, C.C.). Nesse caso o direito de acrescer só é eficaz quando o legado é instituído de forma conjunta a duas ou mais pessoas (co-legatários). Mas não será aplicado, embora conjunto, quando só foi legado certa parte do usufruto, o que determinará a consolidação na propriedade das quotas dos que faltarem. Em outra situação sustenta AGOSTINHO ALVIM que: "... se o usufruto é constituído em favor de marido e mulher, e a título gratuito (como no caso daquele que é constituído pelo filho a favor dos pais), o direito de acrescer se dará entre usufrutuários, ainda que não haja convenção. Para afastar aquele direito é que se fará mister cláusula expressa nesse sentido." Explica o autor que: "Não há dúvida que assim deve ser, porque, em nosso direito, toda a transmissão gratuita de bens ou vantagens considera-se doação (Código Civil, art. 1.165) e rege-se pelos dispositivos que lhe dizem respeito."1 A interpretação do respeitado civilista é feita a partir da disposição do art. 1.178, do Código Civil de 1916, assim redigido: "Salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual". Essa interpretação ganha relevo hoje, aparentemente, na redação do art. 551, do Código Civil de 2002, que não só reproduziu o art. 1.178, revogado, como lhe acrescentou o parágrafo único, com a seguinte redação: "Se os donatários, em tal caso, forem marido e mulher, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo". Não concordamos com a interpretação feita no sentido de dispensar a cláusula expressa do direito de acrescer quando o usufruto é constituído sem ônus em favor do casal, porque exige o artigo 1.411, do Código Civil, que a estipulação seja expressa, o que não ocorre na hipótese2. Entender que o proprietário pretendia conferir ao casal usufrutuário o direito de acrescer, embora não tivesse feito estipulação expressa a respeito, é ler o que não foi escrito e atribuir a vontade a quem não a declarou. A semelhança existente entre o usufruto gratuito e a doação está somente na liberalidade, pois são negócios de natureza jurídica diversa. Não fosse por isso, a regra emprestada da doação está em conflito com aquela que exige expressa disposição em favor do direito de acrescer do usufrutuário, e não se deve dar abrangência a uma disposição restritiva, como preconiza a hermenêutica. Situação que igualmente desperta interesse se refere ao direito de acrescer no usufruto simultâneo, deduzido da doação feita em favor de descendente. SILVIO RODRIGUES sustenta que o direito de acrescer viola a legítima dos herdeiros necessários quando o casal faz doação aos filhos e reserva o usufruto. Na eventualidade da morte de um dos doadores e usufrutuários, a sua parte no usufruto não seria extinta, mas acrescida à parte do usufrutuário sobrevivente. Nesse caso, o herdeiro ficaria prejudicado, porque a ele seria imposta uma restrição à legítima, quando tem direito a recebê-la sem qualquer ônus, salvo aqueles do artigo 1.723 do Código Civil de 1916 (art. 1.848 do Código Civil de 2002). Para SILVIO RODRIGUES, a cláusula neste sentido é ineficaz e só valerá, segundo a lição de AGOSTINHO ALVIM, acolhida em seu texto, quando a restrição não alcançar a legítima, vale dizer, quando ela incidir apenas sobre a parte disponível dos bens, caso em que restariam outros do patrimônio do doador e usufrutuário, livres para assegurar a legítima3. AGOSTINHO ALVIM explica que: "Suposto que os herdeiros necessários têm direito à legítima, segue-se que ela não pode ser desfalcada, e nem sequer onerada, a não ser nos casos especificados em lei, que são os do art. 1.723 do Código Civil. Ora, entre aquelas restrições permitidas não está a de instituição de usufruto em favor de quem quer que seja. Logo, não poderá ter efeito a cláusula que o determinar. Do exposto se conclui que os pais não podem doar aos filhos todos os seus bens, com reserva de usufruto, e com a cláusula de subsistência integral do mesmo, após a morte dos doadores. Tal ato ofenderia o direito dos filhos à legítima, uma vez que estes, após a morte de um dos pais, continuariam como nus-proprietários, até que o outro viesse a morrer. E o consentimento que houvessem dado seria inoperante, uma vez que a herança de pessoa viva não pode ser objeto de contrato (Código Civil, art. 1.089)."4 Preconizava ainda AGOSTINHO ALVIM que: "... se a doação não é de todos os bens, ou melhor, se não atinge a legítima, valerá o direito de acrescer a favor dos pais usufrutuários; e se a legítima foi atingida, cairá aquele direito, tanto quanto baste para livrar a legítima integralmente."5 Não obstante o entendimento de AGOSTINHO ALVIM, o Código Civil de 1916 reconhecia ao testador o direito de gravar a legítima com inalienabilidade e incomunicabilidade, bem como o direito de converter os bens que a representavam em outra espécie (art. 1.723, do Código Civil de 1916).  Assim, a interpretação feita para negar a validade ao direito de acrescer em favor do usufrutuário sobrevivente não se conciliava com a possibilidade que a lei assegurava ao proprietário testador de onerar a legítima. Valia o argumento de que a legítima não era ofendida no caso, porque a propriedade dos bens já fora transmitida com a doação, e não com a sucessão, não obstante importar a doação feita ao descendente em adiantamento da legítima (art. 544 do Código Civil de 2002). Nesse sentido o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu, na Apelação Cível nº 185.459, relatada pelo Desembargador ODYR PORTO, pela validade da cláusula que determinava o direito de acrescer em favor do usufrutuário sobrevivente, que doou o bem aos seus descendentes com reserva de usufruto, destacando-se do julgado o seguinte: "O argumento central para a tomada de posição no caso é a norma do art. 1.723 que proíbe a oneração da legítima com outras cláusulas além das ali enumeradas de forma taxativa. Mas a verdade é que a doação é ato muito diverso da disposição testamentária, prevalecendo neste unicamente a vontade do testador, enquanto naquele, a doação, o que ocorre é uma liberalidade com restrições com as quais estiveram de acordo os beneficiários. Ademais, como já se ressaltou, o Código Civil, depois de prever a extinção do usufruto simultâneo parte a parte com o falecimento dos doadores, admitiu de forma expressa a subsistência do mesmo em favor do outro doador (art. 740)." Gravar a legítima com usufruto, na vigência do Código Civil de 1916, se encontrava nos limites do que a lei permitia ao doador estabelecer, como também estava de acordo com a natureza das demais restrições admitidas ao testador, tomadas neste caso por analogia. Contudo, o Código Civil de 2002 ouviu em parte a doutrina que sempre criticou a possibilidade de o testador gravar a legítima e condicionou a sua clausulação à existência de "justa causa" declarada no testamento (art. 1.848, CC). Proibiu ao testador converter os bens da legítima em outros de espécie diversa (art. 1.848, § 1º, CC). Orientou-se, portanto, pela intangibilidade da legítima6, de forma que o direito de acrescer em favor do cônjuge, como um ônus constituído sobre a legítima, não deve mais ser admitido, salvo quando recair sobre a parte disponível7.  Diante desta modificação significativa, promovida pelo Código Civil de 2002, em proveito da garantia quase absoluta da legítima, hoje não temos dúvida em concordar com a lição de AGOSTINHO ALVIM. Com a extinção parcial do usufruto, quando não há direito de acrescer, haverá consolidação da propriedade. O proprietário recupera a propriedade plena sobre a parte que cabia ao usufrutuário. Nessa hipótese, observa SILVIO DE SALVO VENOSA, "nasce o estranho estado jurídico de conviver o usufrutuário em comunhão com o nu-proprietário, que exerce os direitos de propriedade plena sobre parte ideal do bem sobre a qual foi extinto o usufruto. Concluímos, porém, que praticamente as relações entre usufrutuário remanescente e nu-proprietário não se alteram, continuando a ser regidas pelos mesmos princípios"8. Nem sempre se tem o cuidado de observar o direito à intangibilidade da legítima no caso de usufruto simultâneo de participações societárias. Só tem eficácia o direito de acrescer entre os usufrutuários quando recai sobre a parte disponível da herança. __________ 1 Artigo publicado na Revista dos Tribunais 194/585-586, com o título "Do Direito de Acrescer nos Atos Entre Vivos". O autor se refere no texto ao dispositivo legal do Código Civil de 1916, que foi reproduzido no art. 538 do Código Civil de 2002, sem alteração significativa para a tese defendida. 2 PONTES DE MIRANDA faz importante advertência a respeito desta regra do direito brasileiro: "Segundo a L. 34, pr., D., de usu et usu fructu et reditu et habitatione et operis per legatum vel fedeicommissum datis, 33, 2 (Cévola), a parte do premorto passava aos outros, se o contrário não se houvesse disposto. O direito brasileiro inverteu a regra jurídica:  só se dá a passagem aos outros co-titulares se foi isso disposto (Código Civil, art. 740). Há de prestar-se toda atenção a esse ponto, porque os outros sistemas jurídicos não têm a mesma solução (cp. Código Civil português, art. 1.442º; espanhol, art. 52; italiano, art. 678). A concepção procede de Teixeira de Freitas (Esboço, art. 4.676): 'Constituído o usufruto em proveito de duas ou mais pessoas vivas ao tempo de sua constituição, extinguir-se-á parcialmente pelo falecimento de cada uma delas, sem que o sobrevivente ou os sobreviventes tenham direito de acrescer, a menos que no instrumento constitutivo do usufruto se estipulasse, ou dispusesse, expressamente, o contrário.' No texto do Código Civil, não se alude a estarem vivos os outorgados, elemento do suporte fático da regra que Teixeira de Freitas formulou. Para os que não estavam vivos nada foi e só se têm como co-usufrutuários os que viviam ao tempo da constituição. A solução, no sistema jurídico brasileiro, tem de ser a mesma" (Tratado de Direito Privado. t. XIX. Atualizado por Nelson Nery Junior e Luciano de Camargo Penteado. Revista dos Tribunais, 2012, p. 426). A interpretação continua atual, visto que manteve o Código Civil de 2002 a regra segundo a qual, salvo estipulação em contrário, extinguir-se-á a parte do usufrutuário morto (art. 1.411), daí porque, com maior razão, não podemos aceitar a opinião de que o usufruto se estende ao cônjuge sem que expressamente tivesse sido convencionado o direito de acrescer. Anota-se nesse sentido decisão da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, no Processo CGJSP 4.693/2007, proferida pelo Desembargador Gilberto Passos de Freitas, que acolheu parecer do Juiz Álvaro Luiz Valery Mirra, publicado no D.O.E. de 20.12.2007, cuja ementa é a seguinte: "Registro de Imóveis - Usufruto constituído em favor de cônjuges - Morte de um dos usufrutuários - Cancelamento parcial de usufruto a requerimento dos nu-proprietários - Admissibilidade, ausente convenção expressa a respeito do direito de acrescer do cônjuge sobrevivente - Art. 740 do Código Civil de 1916 e art. 1.411 do Código Civil de 2002 - Recurso não provido." 3 Direito Civil. Vol. 5. 27ª ed. São Paulo : Saraiva, 2002, p. 310. Neste sentido também WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, que lembra a lição de Venezian: "No usufruto deducto os cônjuges não têm direito ao recíproco acrescimento." (Curso de Direito Civil. vol. 3. 37ª ed. São Paulo : Saraiva, 2003, p. 311); e SILVIO DE SALVO VENOSA (Direito Civil. Vol. V. 14ª ed. São Paulo : Atlas, 2014, p. 505). 4 Op. cit.(Revista dos Tribunais 194/583-584). O autor se refere aos artigos do Código Civil de 1916 correspondentes aos artigos 1.848 e 426, respecitivamente, do Código Civil de 2002. 5 Op. cit. 6 É certo que havendo "justa causa" o testador poderá gravar a legítima, mas a limitação legal a essa prerrogativa representa uma garantia quase absoluta da legítima, pois não justificada a clausulação em favor de interesses do herdeiro, e não do testador, a restrição deve cair. 7 EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE escreveu a respeito do art. 1.848, do Código Civil de 2002: "A proposta de Orlando Gomes, no sentido de que 'necessário se torna abolir a prerrogativa de clausular os bens com a inalienabilidade, ao menos os da legítima (já que) constitui uma aberração jurídica' concretizou-se na redação do artigo 1.848 do novo Código Civil. Com efeito, como reconhece o próprio Orlando Gomes, se a legítima pertence 'de pleno direito aos herdeiros necessários, a eles devendo passar nas condições em que se encontram no poder do autor da herança; da circunstância de que constituem reserva inalterável, os bens da legítima devem transmitir-se tal como se achavam no patrimônio do defunto'. Logo, não há que se admitir a ocorrência de cláusulas restritivas sobre direito, vocacionadamente absoluto. Ou é absoluto e não admite restrições, ou é relativo e a aceita a incidência da inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade. Por óbvio é direito absoluto que gera perplexidade pelo reconhecimento legal das restrições (em boa técnica jurídica, inadmissíveis) arroladas na lei" (Comentários ao Novo Código Civil, v. XXI, 2ª ed., p. 268-269, ed. Forense, 2003). 8 Op. cit., p. 504/505.
Ao encerrar o ano desejo trazer ao leitor um pouco de história e a reflexão que tem ocupado o nosso pensamento a respeito das mudanças do porvir. Para compreender o nascimento e a evolução do Direito Comercial é importante fazer o registro de que no Direito Romano não se cuidou de sistematizar normas aplicáveis ao comércio, distinguindo-as do Direito Civil, devido à sua organização social voltada precipuamente para a propriedade e a atividade rural, daí o pouco desenvolvimento do Direito Comercial entre os romanos. É certo que, na era cristã, Roma viveu transformações econômicas e um intenso capitalismo mercantil, logo interrompido pela invasão dos bárbaros e o fracionamento do território imperial. Com o fim do Império Romano do Ocidente (476 d.C.), ocorreu uma fragmentação do poder político, que resultou no fortalecimento do poder local e no surgimento do feudalismo.1 Os mais pobres procuravam a segurança dos seus senhores e a economia se interiorizou em torno do uso da terra e da propriedade. Muitos agricultores e artesãos, para fugir dos abusos dos senhores feudais, foram para as cidades e desenvolveram o comércio. Formou-se uma classe burguesa. A cidade se transformou em um centro de consumo e de trocas, promovendo-se feiras e mercados, e os seus mercadores passaram a se associar. Surgiu nesse período, também, a letra de câmbio e os títulos de crédito, papéis necessários a instrumentalizar os pagamentos. Essas corporações de comerciantes se organizaram. Fazia-se a eleição de Cônsules, que se incumbiam de dirimir os conflitos entre os mercadores, com base na equidade, nos costumes e nas práticas mercantis, ocupando o espaço existente em razão do fraco poder político central. Os costumes e as práticas do comércio, assim como as decisões dos Cônsules, passaram a ser observados pelos comerciantes nas feiras, portos e mercados europeus, e foram reunidos em repositórios, que representava efetivamente os primeiros traços do Direito Comercial (ius mercatorum). Era um direito que se afirmava internacionalmente e que não conhecia fronteiras. O direito dos mercadores (ius mercatorum ou lex mercatoria), como se convencionou designar a regulação das relações comerciais originariamente, apresentava, como visto, a particularidade de que nasceu e foi criado a partir dos próprios mercadores e dos seus costumes, sem a mediação da sociedade política. É por isso que Francesco Galgano2 afirma que a história da lex mercatoria é a história de um modo particular de criar o direito. O Direito Comercial, entendido como um conjunto de normas destinadas a regular a atividade mercantil, nasceu, portanto, no século XII e se desenvolveu nos séculos seguintes, especialmente nas cidades italianas. Diante de um poder político central fraco, os comerciantes, que formavam uma classe econômica e política forte, porque controlavam a produção e a distribuição, fizeram prevalecer uma espécie de direito especial do comércio, contraposto ao direito comum (romano-canônico), baseado nos costumes e nos estatutos das corporações dos mercadores. O Direito Comercial, portanto, nasceu na Idade Média, criado pelos comerciantes e para os comerciantes. Aplicava-se somente àqueles que faziam parte (eram inscritos) da corporação de mercadores, fundado essencialmente nos costumes da corporação. Os juízes (cônsules) eram escolhidos pelos mercadores e passaram com o tempo a ter jurisdição sobre qualquer pessoa que tivesse estabelecido relações com um comerciante da corporação, ainda que essa relação não fosse mercantil. Presumia-se que aquele que tivesse negócios com comerciantes também era comerciante. Aquele que não aceitasse a jurisdição dos cônsules ficava privado de fazer novos negócios. É um período da formação do Direito Comercial chamado de subjetivo, porque o direito dos mercadores era aplicado em razão do sujeito, o membro da corporação, uma espécie de direito de classe. No final da idade moderna e início da época contemporânea3, com a centralização de poder no monarca e o consequente fortalecimento do Estado, a classe dos mercadores deixou de fazer o Direito Comercial. A lei do Estado se impõe e prevalece sobre os costumes mercantis em favor de um ideal de igualdade que caracterizava o novo regime de 1.789. Os tribunais de comércio, controlados pelo Estado, passam a aplicar as leis, tudo em razão do fortalecimento do Estado inerente à nova ordem social. Com a Revolução Francesa (1.789), inspirada no Iluminismo, que inaugura a Idade Contemporânea, foram extintas as corporações e proclamada a liberdade de trabalho e de comércio. O Direito Comercial deixa de ser efetivamente classista e a força do Estado se faz sentir, especialmente pela legislação que se produziu. Destaca-se neste cenário o Código Comercial francês de 1807, no qual se verifica que o comerciante não se define pela sua inscrição na corporação, mas pela prática habitual dos atos de comércio, sujeitando-se à jurisdição especial. É o chamado período objetivo, no qual o Direito Comercial é aplicado pela prática dos atos de comércio e não pela qualidade do sujeito. Essa orientação decorreu principalmente do fato de que a França dividiu o direito privado em duas codificações, procurando distinguir o Direito Comercial do Direito Civil pela identificação dos atos de comércio, o que tinha interesse especialmente para definir a competência da jurisdição. O Direito Comercial, pelas suas características de origem, adquiriu autonomia em relação ao Direito Civil. Deu ao contrato a natureza de negócio, e não simplesmente de meio de transmitir a propriedade, como era a concepção romana daquele tempo. Com liberdade de formas, o Direito Comercial foi instrumentalizado a assegurar aos comerciantes o lucro e a criação de riquezas, enquanto o Direito Civil, romano-canônico, dirigia a sua atenção à fruição e transmissão de bens.  Esses traços marcantes e distintivos é que impõem ao Direito Comercial a autonomia necessária para o tratamento dessa categoria de relações. Embora não se possa estabelecer ainda hoje precisamente os limites da autonomia do Direito Comercial no âmbito do direito privado, é certo que se distingue do Direito Civil em razão da sua natural mutabilidade em favor do tráfico jurídico, e se apresenta com uma distinta nacionalidade, porque procura se ajustar às exigências do mercado internacional. O Direito Comercial, adverte Galgano, não regula todo o comércio e não é um sistema normativo autossuficiente a cuidar por inteiro de um setor da vida econômica. A disciplina jurídica do comércio sempre exige o concurso de outras normas, como ocorre com os contratos e obrigações, regulados pelo Direito Civil. Hoje se pode falar de um novo Direito Comercial ou um novo direito dos mercadores ou empresários, diante do movimento de uniformização do Direito Comercial verificado nas relações internacionais, por imposição das mudanças sociais e econômicas vividas a partir do final do século passado. A economia globalizada fomentou o comércio internacional e rompeu os limites territoriais ou soberanos na organização produtiva e distributiva. As grandes empresas assumem dimensão multinacional e suas relações potencializam a propagação de modelos uniformes de contratação, contribuindo, como afirma Galgano, para a formação de uma nova lex mercatoria. Neste mundo novo as empresas se aproveitam de benefícios fiscais ou melhores oportunidades do mercado de capitais e do mercado de trabalho para determinar, convenientemente, onde e como organizar as suas atividades. As empresas multinacionais, destarte, mudaram completamente as relações comerciais de outrora, não encontrando limites nas fronteiras dos Estados para formar um grande e complexo mercado global que não está sujeito a um ordenamento jurídico nacional. O Direito Comercial não tem fronteiras e essa sua característica de universalidade o distingue mais sensivelmente do Direito Civil, confinado territorialmente pela soberania do Estado. Essas características do mercado global, sujeito a uma espécie de ordenamento supranacional, que expõe a incapacidade do Estado soberano de regular essas relações, é a nova realidade do Direito Comercial. Voltam os mercadores a fazer o direito do comércio, como na Idade Média, utilizando-se de cláusulas gerais, comuns no mercado internacional, e de instrumentos de uniformização de costumes e do direito aplicado, como são aqueles provenientes da CCI - Câmara de Comércio Internacional, da UNCITRAL - Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional, da OCDE - Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico e do UNIDROIT - Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado. Os comerciantes se valem, ainda, de tribunais arbitrais ligados ao comércio internacional para decisão dos seus litígios à luz das fontes consuetudinárias, dos tratados internacionais e sobretudo das cláusulas dos próprios contratos. Tudo compõe uma nova disciplina do comércio no mundo globalizado, universalizada e supranacional, que volta a ser produzida pelos próprios comerciantes, o que evidencia a existência hoje de uma nova lex mercatoria e de um efeito, anotado por Pietro Perlingieri, de desterritorialização do direito.4 Há neste movimento a volta ao passado, quando se compreendia o Direito Comercial, especialmente, na absoluta liberdade e autonomia dos mercadores, longe da interferência do Estado. Representa a ideia de que o mercado é livre e se deve evitar qualquer intervenção estatal. Resulta desse sucinto panorama que o Direito Comercial, hoje designado por muitos como Direito Empresarial, apresenta como características bem definidas a especialidade e a universalidade. Resulta ainda desta sumária observação que o contrato, no âmbito das relações comerciais, passa a produzir uma espécie de direito interestatal e livre, em parte, das intervenções estatais, o que desperta também reflexões para a chamada nova lex mercatoria e o interesse do jurista para esse novo efeito das relações contratuais, inclusive quanto ao que se convencionou designar de externalidades do contrato, que são os efeitos produzidos pelas relações contratuais além das suas fronteiras, riscadas pelo velho princípio contratual da relatividade. O Estado já não tem plena soberania sobre as relações contratuais. É um fenômeno que deve interessar muito ao jurista moderno. ______ 1 O feudalismo se inicia com a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.) e termina com a queda do Império Romano do Oriente (1.453) - também chamado de Império Bizantino. É o período da história que corresponde à Idade Média. Durante a Baixa Idade Média (século XI ao século XV), no auge do feudalismo, se fortaleceu o comércio e surgiram os primeiros traços do Direito Comercial. 2 GALGANO, Francesco, Lex mercatoria, ed. Il Mulino, 5ª ed., 2010, p. 9. 3 Costuma-se situar a Idade Antiga entre 4.000 a.C. (invenção da escrita) e 476 d.C. (queda do Império Romano do Ocidente). A Idade Média situa-se entre 476 e 1.453 (tomada de Constantinopla). A Idade Moderna situa-se entre 1.453 e 1.789 (Revolução Francesa), quando se inicia a Idade Contemporânea.  4 Anotação de PIETRO PERLINGIERI extraída do prefácio à 1ª edição italiana de "O direito civil na legalidade constitucional", edição brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco, ed. Renovar.
A partir da celebração do casamento e da constituição da união estável, os cônjuges e companheiros passam a viver uma plena comunhão de vida (art. 1.511 do CC) que produz efeitos pessoais e patrimoniais. A possibilidade de comunicação de bens reclama a incidência de estatuto patrimonial com disposições próprias a respeito da responsabilidade de cada um dos cônjuges e companheiros por dívidas e obrigações, assim como sobre o patrimônio que se separa ou se comunica entre eles. Daí o interesse em definir o que deve constituir bem comum, porque os bens comuns serão necessariamente partilhados entre os cônjuges e companheiros com a dissolução do casamento ou da união estável, ainda em vida ou em razão da morte. Sem prejuízo das disposições do pacto antenupcial (casamento) ou do contrato escrito (união estável), que não são obrigatórios, é especialmente o regime de bens adotado no casamento ou na união estável, como estatuto mínimo das relações patrimoniais nessas uniões, que determinará as regras para identificar os bens comuns,  não só no interesse dos cônjuges e companheiros, mas também no interesse de terceiros. Cabe aos nubentes escolher livremente o regime de bens de sua conveniência a ser adotado no casamento (arts. 1.639 do CC). Se não lhes interessar o regime da comunhão parcial de bens, que tem natureza supletiva, para escolher outro regime os nubentes deverão fazer pacto antenupcial, por escritura pública, a ser levada tanto ao Registro Civil como ao Registro de Imóveis. Assim, mediante o pacto antenupcial os nubentes poderão escolher o regime de comunhão universal, de participação final nos aquestos ou de separação convencional absoluta de bens, ou combinar regras desses regimes. O Código Civil brasileiro ainda prevê o regime de separação legal de bens para as pessoas que se casam com mais de 70 anos, para os que dependem de autorização judicial para casar (falta de idade núbil) e ainda para os que o fazem sem observar as causas suspensivas do casamento (art. 1.641 do CC). Os companheiros que vivem em união estável poderão, se não querem a aplicação no que couber do regime da comunhão parcial de bens, compor um regime próprio de bens mediante contrato escrito (art. 1.725 do CC). Bem comum pode existir em todos os regimes previstos na lei brasileira, inclusive no regime de separação convencional ou absoluta. Para definir bem comum é necessário lembrar que os bens são todas as coisas com valor econômico e suscetíveis de apropriação pelo homem. Há uma clássica distinção entre coisas e bens. Nem todas as coisas são bens, porque existem coisas sem valor para o homem. Só as coisas que têm valor econômico, e que podem ser objeto de direitos (objeto de uma relação jurídica), são bens. Portanto, coisa é gênero, enquanto bens é espécie. No direito de família a expressão bem comum assume um significado particular: indica todas as coisas com valor econômico que, integrando o patrimônio comum, se sujeitam à partilha no caso de dissolução do casamento ou da união estável. No regime da comunhão universal, cuja adoção exige pacto antenupcial, são comuns todos os bens já pertencentes aos cônjuges no ato da celebração, assim como aqueles adquiridos na constância do casamento (art. 1.667 do CC). Os cônjuges podem excluir bens da comunhão universal, desde que essa exclusão se faça no pacto antenupcial. Não há impedimento para essa exclusão se os cônjuges têm liberdade para escolher o regime de bens que será adotado no casamento. Admite a doutrina que os nubentes, no exercício da autonomia privada, possam combinar regras de regimes diferentes e estabelecer um estatuto patrimonial próprio, desde que não atentem contra as disposições legais de ordem pública. Os bens recebidos em doação por qualquer um dos cônjuges entram na comunhão, mas estão fora do patrimônio comum aqueles recebidos por um dos cônjuges com cláusula expressa de incomunicabilidade, assim como os bens sub-rogados em seu lugar, ou seja, os que foram adquiridos com o produto da alienação dos incomunicáveis. Ocorre sub-rogação parcial quando o bem for adquirido apenas em parte com o resultado da alienação do bem incomunicável. Nesse caso, somente uma parte desse bem torna-se comum, porque adquirida com os recursos de ambos os cônjuges. Haverá, portanto, uma parte comum e outra particular sobre o mesmo bem. Essa situação não é rara, porque durante o casamento os cônjuges podem somar capital particular para aquisição de novos bens. Para prevenir litígio, recomenda-se que se anote essa circunstância nas escrituras e documentos de aquisição de bens. A herança ou legado recebidos por qualquer um dos cônjuges, no regime de comunhão universal, também integram o patrimônio comum, salvo se gravados em testamento com cláusula de incomunicabilidade. Os bens incomunicáveis são chamados bens particulares, porque pertencem a um dos cônjuges exclusivamente e por esse motivo não serão partilhados na dissolução do casamento. Verifica-se, portanto, que mesmo no regime da comunhão universal poderá ocorrer a exclusão de determinados bens do patrimônio comum por força da lei, da vontade dos nubentes ou de terceiros (doadores e testadores). A incomunicabilidade dos bens não se estende aos frutos (alugueis, juros, rendimentos  etc.), quando se percebam ou vençam durante o casamento (art. 1.669 do CC). Os frutos produzidos pelos bens particulares entram para o patrimônio comum. É uma regra do direito brasileiro nem sempre lembrada e está justificada pelo fato de que esses frutos foram adquiridos na constância do casamento. Nada impede que os nubentes também excluam da comunhão os frutos desses bens particulares mediante cláusula no pacto antenupcial. No regime da comunhão parcial de bens, aplicado ao casamento que não foi precedido de pacto antenupcial com indicação de outro regime, ou quando nulo aquele escolhido, também aplicado no que couber à união estável quando ausente contrato escrito, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal na constância do casamento (art. 1.658 do CC). Esse regime passou a ser o regime legal e supletivo a partir da Lei do Divórcio (lei 6.515/77), porque até então o Código Civil estabelecia o regime da comunhão universal de bens para os casamentos realizados sem pacto antenupcial. Ocorre nesse regime uma separação para os bens presentes e comunhão para os bens futuros. Os bens que cada cônjuge possuir ao casar e aqueles adquiridos por doação ou sucessão constituem bens particulares, assim como são particulares aqueles sub-rogados em seu lugar e os adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos particulares. Também não está sujeita à comunicação no regime da comunhão parcial, independentemente de cláusula expressa de incomunicabilidade, as doações feitas em favor de um dos cônjuges e a herança ou legado recebidos, salvo quando contemplados conjuntamente pelo doador ou testador. Também não está sujeita à comunicação a aquisição de bens que tiver por título uma causa anterior ao casamento (art. 1.661 do CC). É o caso, por exemplo, da aquisição feita pelo cônjuge com dinheiro que recebeu após o casamento, mas em pagamento de dívida anterior, ou com o dinheiro que recebeu em ação judicial iniciada antes das núpcias. Esse regime é caracterizado pela comunhão dos aquestos, que são bens adquiridos com esforço comum na constância do casamento, enquanto permanecem no patrimônio de cada cônjuge aqueles trazidos para a sociedade conjugal. São comuns também os bens adquiridos na constância do casamento por fato eventual, como ocorre com os prêmios em geral recebidos por qualquer um dos cônjuges (art. 1.660, II, do CC). No regime da comunhão parcial de bens, os móveis são presumidamente adquiridos na constância do casamento e considerados bens comuns, incumbindo ao cônjuge a prova em sentido contrário (art. 1.662 do CC). Se existirem bens móveis de valor, que o nubente quer conservar como particular, recomenda-se, para prevenir litígio, que faça documento escrito (não há forma prevista em lei) para registrar o fato de que existiam antes do casamento. Em ambos os regimes de comunhão (universal e parcial) são incomunicáveis, por expressa disposição legal, os bens de uso pessoal, livros e instrumentos da profissão, os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge e as pensões e outros rendimentos semelhantes. A doutrina, contudo, afirma que os frutos do trabalho dos cônjuges não podem ser considerados incomunicáveis, porque transmudaria o regime para o da separação total de bens. Quando os proventos do trabalho do cônjuge se convertem em patrimônio, com a aquisição de bens ou a constituição de reserva em dinheiro, devem entrar para a comunhão, porque esse patrimônio já não tem a natureza de origem (proventos do trabalho), sob pena de solução injusta na partilha de bens do casal. Com o Estatuto da Mulher Casada (lei 4.121/62) instituiu-se a incomunicabilidade dos bens adquiridos pela mulher casada com o fruto do seu trabalho. Esses bens eram chamados bens reservados. A incomunicabilidade dos bens reservados da mulher manteve-se em vigor até a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu a igualdade absoluta entre o homem e a mulher no casamento; consequentemente excluiu a causa que justificava o privilégio da mulher casada, já contestado por boa parte da doutrina antes da mudança constitucional. Os bens reservados da mulher são bens particulares e excluídos da comunhão. Embora incompatíveis com a Constituição atual, não se afasta a possibilidade da existência ainda remanescente no patrimônio dos cônjuges, se adquiridos na vigência do referido estatuto, em respeito ao direito adquirido. São particulares também os bens recebidos por doação ao nubente, mesmo no regime da comunhão universal de bens, desde que gravada a doação com cláusula de incomunicabilidade. Ausente essa cláusula, o regime da comunhão universal adotado anula os efeitos da doação, porquanto todo o patrimônio existente ao tempo do casamento se transforma em patrimônio comum. É preciso lembrar que as doações, heranças e legados gravados com inalienabilidade importam igualmente na incomunicabilidade e impenhorabilidade dos bens. Esse antigo entendimento está sumulado pelo STF (Sum. 49) e acolhido pelo art. 1.911 do Código Civil. É bem particular também a meação que o cônjuge excluiu judicialmente da penhora por dívida que não aproveitou ao casal. Essa meação constitui, portanto, bem particular do cônjuge, de forma que, dissolvido o casamento, não haverá partilha sobre esse bem. No regime da participação final nos aquestos, introduzido no direito brasileiro pelo Código Civil de 2002, os bens adquiridos conjuntamente pelos cônjuges durante o casamento são comuns. Nesse regime os bens adquiridos em nome exclusivo de um dos cônjuges, na vigência do casamento, ensejam apenas a compensação e não se sujeitam à partilha. De acordo com a moderna doutrina e jurisprudência predominante, extingue-se o regime de bens a partir da separação de fato dos cônjuges, que marca o fim da sociedade conjugal. A partir de então cessa a comunicabilidade do patrimônio e nesse momento será determinado o acervo patrimonial a ser partilhado. Os bens comuns estão sujeitos a uma comunhão ou mancomunhão (propriedade a duas mãos ou de mão comum, dos alemães - gemeinschaft zur gesamten hand), que se assemelha ao condomínio, porém não corresponde exatamente à mesma situação jurídica. Na comunhão existe um patrimônio único pertencente a mais de um titular, mas que constituem uma pessoa única. Não há cotas na comunhão. É uma espécie de titularidade de mãos juntas. Por conseguinte, não pode o cônjuge no estado de comunhão patrimonial alienar a sua parte a terceiro, porque ele não detém a titularidade de uma parte. A comunhão recai sobre um patrimônio (conjunto de bens) e não sobre coisas determinadas.  A administração e a colheita dos frutos ocorrem em comum. No condomínio, ao contrário, existe uma coisa (certa e individualizada) e sobre ela mais de um titular exercem direitos próprios enquanto indivisa. É a titularidade por cotas. Enquanto no condomínio se atribui uma fração da coisa a cada condômino, na comunhão não há divisão da coisa em partes ideais, porque o patrimônio (considerado como universalidade) representa um bem ou conjunto unitário de bens. O condômino que tem a posse exclusiva do bem responde ao outro pelos frutos percebidos (art. 1.319 do CC). Essa obrigação impõe ao condômino que tira proveito exclusivo do bem pagar ao outro a compensação respectiva, fixada em geral pelo valor de um aluguel. Quando ocorre a dissolução do casamento e a consequente partilha de bens, é comum o ajuizamento de ação de arbitramento de aluguel para exigir do cônjuge que permaneceu na posse exclusiva dos bens comuns o pagamento da parte respectiva dos frutos percebidos. Acontece que, muitas vezes, a partilha demora a ser julgada e enquanto o tempo passa um dos cônjuges mantém a posse e o proveito exclusivos dos bens do casal ainda não partilhados. Nessa situação encontram-se julgados que, ao reconhecer o estado de comunhão patrimonial, negam a pretensão do cônjuge ao recebimento da compensação, uma vez que não se pode identificar, antes da partilha, a qual dos cônjuges pertence este ou aquele bem. No entanto, a separação de fato do casal, como inequívoco sinal de desfazimento da união e sociedade conjugal, importa desde logo na produção de efeitos pessoais e patrimoniais. Para evitar o enriquecimento indevido nessa situação, há decisões judiciais acertadas no sentido de que, uma vez consolidada a separação de fato do casal, deixa de existir a comunhão, que dá lugar ao condomínio, ou seja, à propriedade comum, sujeita, consequentemente, à disposição do art. 1.319 do CC e ao pagamento de indenização pelos frutos percebidos. Essa interpretação permite ao cônjuge afastado da posse e proveito dos bens do casal exigir, mesmo antes da partilha dos bens comuns, a parte que lhe cabe dos frutos percebidos pelo outro que se mantém na sua posse exclusiva, calculando-se a compensação pelo valor correspondente ao aluguel. Essa compensação só é devida se o uso exclusivo do imóvel não representa parcela da prestação de alimentos (STJ, REsp 983.450/RS, rel. Min. Nancy Andrighy, DJe 10/02/2010; REsp 1699013/DF, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 04/06/2021).  
O nosso direito das sociedades ou direito societário, segundo o modelo adotado pelo Código Civil de 2002, distingue a sociedade empresária da sociedade simples (art. 982). Vale lembrar que empresário, segundo a definição legal, é quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços (art. 966). Logo, sociedade empresária é aquela que tem por objeto a atividade própria do empresário. Definida a sociedade empresária, as demais, por exclusão, são simples. Entre aquelas que são consideradas sociedades simples, encontram-se sociedades bem diferentes, como é o caso da sociedade de profissionais intelectuais (art. 966, par. único), da sociedade de advogados, sujeita a regime especial (Estatuto da Advocacia), e da sociedade com atividade rural, bem como da cooperativa (art. 982, par. único). A definição, por exclusão, como visto, reuniu nas sociedades simples tipos de natureza diferente, indicando desde logo a dificuldade de adoção de um único regime jurídico. A despeito da distinção feita pelo nosso Código Civil, permitiu-se que a sociedade simples se constitua segundo um dos tipos de sociedade empresária (art. 983), e determinou-se a aplicação às sociedades limitadas, nas omissões do Código, das normas da sociedade simples (art. 1.053). Esta simbiose, somada às deficiências do Código, resultaram em dificuldades importantes no regime de exclusão de sócio, determinadas especialmente pela adoção de um único regime jurídico para a sociedade limitada, seja ela empresária ou simples, tornando irrelevantes as diferenças substanciais entre elas. Ao dispor sobre a sociedade limitada, o Código Civil cuidou somente da exclusão do sócio minoritário, para a qual, sob a epígrafe da resolução da sociedade, estabeleceu, no art. 1.085, o seguinte: Ressalvado o disposto no art. 1.030, quando a maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social, entender que um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade, poderá excluí-los da sociedade, mediante alteração do contrato social, desde que prevista neste a exclusão por justa causa. O referido dispositivo remete ao art. 1.030, do regime da sociedade simples, que estabeleceu uma cláusula geral de exclusão de sócio, no sentido de que a exclusão, que só pode ocorrer judicialmente, mediante iniciativa dos demais sócios, deve ser motivada por falta grave no cumprimento de suas obrigações, ou, ainda, por incapacidade superveniente. Cabe lembrar que o sócio falido será de pleno direito excluído da sociedade (art. 1.030, par. único). A exclusão do sócio, portanto, de acordo com o regime do Código Civil e excepcionada a hipótese do sócio falido, só pode ocorrer judicialmente e motivada por uma falta grave, que se traduz na justa causa, ou na incapacidade superveniente, precedida da deliberação dos demais sócios. É necessário, para o pedido judicial de exclusão do sócio faltoso, que os demais sócios deliberem a respeito da sua exclusão. E não se poderá aceitar a velha imputação da quebra da affectio societatis para a exclusão, porque exige-se falta grave. Há uma ressalva neste dispositivo do Código ao seu art. 1.004, que prevê a exclusão do sócio remisso, aquele que, notificado pela sociedade para integralizar o capital na forma prevista no contrato, deixa de fazê-lo nos trinta dias seguintes, abrindo-se para a sociedade, por deliberação da maioria dos demais sócios, a faculdade de excluí-lo, extrajudicialmente, ou reduzir-lhe a quota ao montante já realizado, não importando o fato de que este sócio remisso é majoritário ou não. Com exceção da hipótese do art. 1.004, o sócio da sociedade limitada só poderá ser excluído da sociedade quando ocorrer uma justa causa, determinada pela falta grave aos seus deveres. Embora o fato determinante da exclusão do sócio da limitada é a falta grave, o Código estabeleceu formas diferentes para a exclusão quando o sócio é majoritário (art. 1.030) e quando o sócio é minoritário (art. 1.085), embora a diferença não recaia somente sobre a parcela do capital que detém o sócio. A diferença do tratamento resulta claramente dos termos do art. 1.085, que autoriza a exclusão do sócio por deliberação da maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social. Portanto, o sócio que se pretende excluir é aquele, nesta hipótese, que, necessariamente, detém parcela do capital menor do que aquela titulada pelos demais sócios, que é representativa de mais da metade do capital social. Por isso, corretamente, o Código estabeleceu nesta hipótese a resolução da sociedade em relação a sócios minoritários, desde que o contrato social contenha previsão da exclusão extrajudicial do sócio por justa causa. É preciso, portanto, para a exclusão extrajudicial do sócio, que, autorizado pelo contrato, se forme a vontade da maioria dos sócios majoritários, ou seja, detentores de mais da metade do capital social. Cabe notar, neste caso, que a maioria necessária à deliberação de exclusão é formada pela maioria do capital e não por cabeça, assim como é importante destacar que a deliberação de exclusão não é aquela resultante da deliberação da maioria dos sócios representativa do capital remanescente, mas a vontade da maioria que constituiu mais da metade do capital social. Exige-se, como visto, maioria absoluta. Note-se que o art. 1.085 estabeleceu que a exclusão ocorrerá quando a maioria, representativa de mais da metade do capital, entender (significa que deliberou nesse sentido) que um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa. Logo, a maioria que delibera pela exclusão é a maioria que tem mais da metade do capital social. Para a exclusão extrajudicial do sócio, o Código só autoriza a deliberação da maioria representativa de mais da metade do capital, quando um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade. A gravidade do ato é qualificada, como inegável, o que significa dizer que é reconhecida grave, de forma inequívoca, a qualquer pessoa. Mas não basta: é necessário que esse ato de inegável gravidade ofereça risco à continuidade da empresa. Veja que o Código usa o gerúndio (pondo) para caracterizar a ação prolongada, em andamento e ainda em desenvolvimento. Caso se verifique somente a falta grave praticada pelo sócio minoritário, não qualificada, não há autorização do Código para a sua exclusão extrajudicial, voltando-se nesta hipótese para o art. 1.030, de exclusão judicial, que não se aplica, como cláusula geral de exclusão, somente ao sócio majoritário. A interpretação que decorre do exame destes dispositivos do Código Civil é no sentido de que a exclusão do sócio por falta grave deve ocorrer, como regra, de forma judicial, precedida de deliberação dos demais sócios. Poderá ocorrer,  excepcionalmente, de forma extrajudicial, nos casos do sócio remisso (art. 1.004) e do sócio minoritário que praticou ato de inegável gravidade e que está pondo em risco a continuidade da empresa, desde que o contrato autorize a exclusão extrajudicial (art. 1.085). O segundo grande problema a respeito da exclusão de sócio da limitada está na questão da tomada de votos na deliberação de exclusão. O problema aqui decorre da aparente diferença de critério do Código, ao se referir expressamente à maioria do capital social no art. 1.085 (maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital), enquanto no art. 1.030 (assim como o art. 1.004) se refere à maioria dos demais sócios. Não é adequado admitir deliberação de sócios por cabeça, porque o princípio maior vigorante nas deliberações dos sócios é o princípio majoritário, definido pela maioria do capital, que bem pode ser entendido e justificado pelo fato de que aquele que tem mais a perder (risco), em razão do maior capital que empregou, deve ter proporcional direito de voto. A deliberação por cabeça importa em distorções graves, porque não é representativa dos interesses em jogo. Partindo-se deste ponto, encontramos no art. 1.085 do Código a confirmação de que as deliberações dos sócios devem ser tomadas pelo capital, critério que deve ser empregado igualmente para a deliberação prevista no art. 1.030, que antecede o pedido judicial de exclusão. De outra parte surge a questão do impedimento do voto do sócio ao qual se é imputada a falta grave, porque é expressa a proibição no Código (art. 1.074, § 2º) do voto do sócio em matéria que lhe diga respeito diretamente. Decorre daí a dúvida sobre a exclusão do seu voto, somente, ou a exclusão do seu voto e do capital que detém na sociedade. A resposta para essa questão determina a possibilidade ou não do sócio minoritário excluir o majoritário. A doutrina se coloca em favor da interpretação que assegura a exclusão do sócio majoritário, entendendo que o art. 1.030 representa solução eficiente para inibir o abuso do majoritário. É verdade que essa interpretação se conforma com o texto do Código e com a doutrina, já muito desenvolvida, a favor de conter os abusos do majoritário. No entanto, antes de recorrer a essa consideração, preferimos objetivamente a solução que restringe a deliberação somente ao capital votante, de modo que não deve ter peso maior o fato de que se cuida de sócio majoritário ou minoritário a ser excluído. Deduzido o capital que detém o sócio imputado, a deliberação de exclusão deverá ser apurada pela maioria absoluta do capital remanescente (votante), que diz respeito aos demais sócios referidos no art. 1.030. A deliberação exige maioria absoluta, apurada em relação ao capital de todos os sócios remanescente, presentes ou não na reunião ou assembleia de sócios. A imprecisão do Código, que não foi claro como deveria ao se referir ao capital votante, pode e deve ganhar exatidão na aplicação do princípio majoritário governante das deliberações sociais, próprio do risco assumido pelo sócio que é inerente à atividade econômica. Para concluir estas notas sobre a exclusão de sócio na sociedade limitada, vale lembrar da recente modificação do parágrafo único, do art. 1.085, introduzida pela Lei nº 13.792/2019, que procurou resolver o problema da exclusão do sócio quando a sociedade tem somente dois sócios. Neste caso, a nova redação do parágrafo dispensa a reunião ou assembleia, assim como não exige que se dê ao sócio imputado a oportunidade para o exercício de defesa. Reconheceu a Lei, nesse caso, que a convocação da reunião pelo único sócio remanescente, que propõe a exclusão do outro, não teria qualquer sentido, porque a deliberação de exclusão já fora tomada, de forma que qualquer argumento de defesa que tenha o sócio imputado não seria capaz de alterar a vontade do sócio majoritário. Para não permitir abusos do majoritário neste caso, o DREI - Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração inclui no Manual de Registro de Sociedade Limitada, alterado recentemente pela Instrução Normativa nº 55, de 2 de junho de 2021, a exigência de que se faça constar da alteração do contrato social respectiva, expressamente, os motivos que justificam a exclusão por justa causa, assegurando ao excluído o conhecimento pleno dos motivos para lhe facultar a impugnação judicial. Esse tema da exclusão do sócio, pela divergência de interpretação que suscita, merecia atenção do nosso Tribunal Superior, incumbido constitucionalmente de dar a última palavra na definição do sentido da Lei, e destaca-se entre os seus julgados aquele proferido no REsp n. 1653421/MG, relatado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, da Terceira Turma, de 10.10.2017, que passou em revista a boa doutrina a respeito e assentou importante interpretação da matéria, orientadora do direito das sociedades, do qual reproduzimos a ementa, sem deixar de recomendar a sua leitura na íntegra: RECURSO ESPECIAL. DIREITO SOCIETÁRIO. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. INEXISTÊNCIA. SÓCIO MAJORITÁRIO. PRÁTICA DE FALTA GRAVE. EXCLUSÃO. ART. 1.030 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. SÓCIOS MINORITÁRIOS. INICIATIVA. POSSIBILIDADE. 1. Controvérsia limitada a definir se é possível a exclusão judicial de sócio majoritário de sociedade limitada por falta grave no cumprimento de suas obrigações, mediante iniciativa da maioria dos demais sócios. 2. Nos termos do Enunciado nº 216/CJF, aprovado na III Jornada de Direito Civil, o quórum de deliberação previsto no art. 1.030 do Código Civil de 2002 é de maioria absoluta do capital representado pelas quotas dos demais sócios. 3. Na apuração da maioria absoluta do capital social para fins de exclusão judicial de sócio de sociedade limitada, consideram-se apenas as quotas dos demais sócios, excluídas aquelas pertencentes ao sócio que se pretende excluir, não incidindo a condicionante prevista no art. 1.085 do Código Civil de 2002, somente aplicável na hipótese de exclusão extrajudicial de sócio por deliberação da maioria representativa de mais da metade do capital social, mediante alteração do contrato social. 4. Recurso especial não provido. (REsp 1653421/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/10/2017, DJe 13/11/2017) Em outra oportunidade avançaremos neste tema da exclusão de sócio, dando maior atenção à intervenção judicial na sociedade, preconizada mínima, até como princípio, mas que não deve ser negada quando necessária.
No último dia 30 de setembro ocorreu o lançamento1 do mais recente livro do celebrado historiador do direito e referência fundamental para História do Direito Paolo Grossi, O mundo das terras coletivas: itinerários jurídicos entre o ontem e o amanhã2. Tive a honra e alegria de participar como comentadora do livro a convite do Professor Diego Nunes e da Editora Contracorrente neste momento ímpar para as ciências jurídicas no Brasil. De modo muito particular ler esse brilhante livro foi além de muito prazeroso, um grande estímulo para fomentar as pesquisas que desenvolvo há alguns anos acerca dos direitos dos povos e comunidades tradicionais (povos originários/indígenas e quilombolas) em relação com a história da cultura jurídica brasileira3. Direitos estes que são fundamentalmente marcados pela questão do território, que são as terras coletivas, entendidas como realidades vivas, conforme definido pelos próprios sujeitos históricos e de direitos das comunidades, e também abordado na obra do professor Grossi. Assim como ocorreu na Itália, houve na experiência jurídica brasileira a negação do vínculo dos sujeitos com a terra e que permanece no tempo presente por meio da negação ou da "indiferença" ao sentido do território. Essa negação fez parte da estratégia de firmar a concepção de que o sujeito deve dispor livremente da coisa, muito bem delimitada no livro. Reconhecer a existência de vínculo afetivo entre sujeito e coisa seria um empecilho à essa livre circulação patrimonial. Parafraseando o professor Paolo Grossi na conclusão do livro, expresso aqui a minha esperança, que sinceramente gostaria que fosse uma certeza, de que tenhamos a efetiva consciência de que as estruturas fundiárias coletivas, nas suas várias formas, contribuem muito para a compreensão da complexidade da paisagem socioeconômico e jurídica. A formação dessa consciência na seara do direito implica, entre outras ações, que o ensino nos cursos jurídicos não seja reducionista, assumindo unicamente a dimensão absolutista da propriedade privada individual, como historicamente tem sido no Brasil. Para a ampla maioria das faculdades de direito no Brasil o "planeta" ainda é visto como um "um grande mundo dominado pelo sólido individualismo da propriedade". Também aqui no Brasil "a doutrina civilista" é de tal modo prisioneira do dogma da propriedade individual que percebemos também tantas ocasiões perdidas, obstáculos, surdez e incompreensões por parte do legislador nacional brasileiro. Acredito que a tradução brasileira desse importante livro terá como efeito "atiçar o fogo que se aninhava sob as cinzas", parafraseando mais uma vez o professor Grossi. Destaco de forma sucinta alguns pontos do livro que considero basilares, diante da impossibilidade de aprofundar em todos os seus aspectos, tendo em vista a riqueza das abordagens e dada a limitação do nosso espaço. A obra ressalta a ação positiva das estruturas coletivas no plano da tutela ambiental, onde é possível estabelecer uma reflexão e uma correlação com o caso brasileiro. Tanto para os povos originários/indígenas quanto para os quilombolas, a propriedade coletiva da terra vai além da tutela ambiental, o que o livro também destaca, uma vez que para esses povos a natureza integra a categoria ser humano. Há uma integração entre homem e o ambiente natural, na qual não se separa material e espiritual. Nessa perspectiva, não há a dissociação dicotômica fundante da cultura ocidental moderna, homem/natureza, sujeito/objeto, material/espiritual, visão que solidificou o extrativismo e espoliação dos recursos. O que garante a tutela do ambiente natural são os conhecimentos tradicionais desses povos, que não se restringem à proteção, e sim são amplos, pois foram desenvolvidos ao longo do tempo técnicas de manejo que foram responsáveis pela propagação da vida nas florestas e nas águas. Destaco a força do pluralismo jurídico na obra e que é um marco teórico fundamental, com o qual é possível estabelecer um profícuo diálogo com as pesquisas sobre as estruturas coletivas no Brasil, embora a abordagem seja do contexto italiano e europeu. Me refiro a um diálogo enquanto intersubjetivação, ou seja, sujeitos em ação, sem hierarquizações e importação de experiências descontextualizadas e anacrônicas4. Segundo o professor Grossi, "a verdadeira propriedade coletiva é um ordenamento jurídico primário". E acrescenta que é um ordenamento jurídico primário porque se trata de uma comunidade que vive valores conservados intergeracionalmente, possuem capacidade de autonormatização, é dotado de capacidade de gestão do patrimônio natural, econômico e cultural ligado à base territorial da propriedade coletiva, que devem ser respeitados e compreendidos. Discorro de forma sucinta sobre as discussões que imagino que o livro do professor Grossi irá fomentar no cenário nacional e que são de primeira ordem no campo das ciências jurídicas no Brasil. Espero eu que cause incêndios. A história da propriedade privada no Brasil é marcada pela exclusão e pelo racismo que demarcou desde Lei de Terras de 1850 o "não lugar" o qual estava reservado às populações negras, indígenas e pobres. Me aterei sobretudo à experiência da população negra descendente de africanos escravizados, livres e libertos. O cenário da Lei de Terras que instituiu a propriedade privada no ordenamento jurídico brasileiro oitocentista permaneceu no período pós-Abolição com novas roupagens, o que se demonstra pelas políticas de formação do espaço urbano e da grilagem e esbulho das terras do espaço rural que fundaram as desigualdades fortemente presentes na realidade social. O que hoje conhecemos como "direito à cidade" vai além do acesso a oportunidades, infraestrutura e serviços de saúde, cultura, educação, esporte e áreas verdes, pois contempla uma vida integrada entre o sujeito e vínculo com a terra/território e todo o ambiente natural. O direito ao território foi e é sistematicamente negado à população negra, mesmo que as normas vigentes estipulem a igualdade formal dos direitos. Isso é consequência da visão de uma suposta neutralidade, sobretudo a racial que impera nas ciências jurídicas, destoando completamente da compreensão da formação história e social no contexto brasileiro. A autora Anna Lyvia Roberto em seu livro Racismo estrutural e a aquisição da propriedade5 reflete sobre essas questões, embora delimite sua pesquisa empírica à cidade de São Paulo. É possível perceber essa dinâmica em todo o país, por exemplo, as políticas de reformas urbanas demonstradas por planos diretores na primeira metade do século XX, que expulsaram as pessoas negras dos centros das cidades, destruindo as habitações, as Igrejas do Rosário, os cemitérios e seu lugares onde ser realizavam suas celebrações e manifestais culturais e religiosas em relação harmônica com o ambiente natural. O esbulho, a grilagem e a expropriação são a marca da aquisição de propriedade privada individual no século XX na experiência brasileira, embora essa realidade tenha sido apagada e silenciada. Evidencia-se na realidade nacional o privilégio na aquisição da propriedade privada individual e a negação da propriedade coletiva, sobretudo no tocante à expulsão dos povos originários e dos descendentes de africanos escravizados, livres e libertos dos lugares, ameaçando os seus modos de criar, fazer e viver. Em suma, considero essa batalha desproporcional, considerando que a cultura jurídica brasileira, apesar da normatização prevista no ordenamento jurídico, ainda está no "planeta" do absolutismo da propriedade privada individual. Contudo, permaneço com a esperança expressa pelo professor Grossi como objetivo do livro, que os "incêndios" possibilitem olhar além, rumo a um futuro de mudança de mentalidades. *Vanilda Honória dos Santos é doutoranda em Teoria e História do Direito pelo PPGD da Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia. Graduada em Direito e Filosofia. __________ 1 Disponível aqui. 2 GROSSI, Paolo. O mundo das terras coletivas: Itinerários jurídicos entre o ontem e o amanhã. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021. 3 Cf. NUNES, Diego; SANTOS, Vanilda Honória dos. Por uma história do conceito jurídico de quilombo no Brasil entre os séculos XVIII e XX. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, v. 66, n. 1 (2021). Disponível aqui; SANTOS, Vanilda Honória dos. O direito à memória histórica dos Quilombos: indícios e sinais na perspectiva da reparação e da história do direito. ANAIS X COPENE: (Re)Existência intelectual negra e ancestral. 12-17 out. 2018, Uberlândia/MG. Disponível aqui. 4 Sobre a intersubjetivação como categoria teórico-metodológica para as ciências jurídicas, vejam-se: e o curso Filosofia Africana e Direitos Humanos, disponível aqui. 5 RIBEIRO, Anna Lyvia Roberto Custódio. Racismo estrutural e a aquisição da propriedade. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.