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Novos Horizontes do Direito Privado

Abordagem de como se apresenta o Direito Privado.

Carlos Alberto Garbi
No último dia 30 de setembro ocorreu o lançamento1 do mais recente livro do celebrado historiador do direito e referência fundamental para História do Direito Paolo Grossi, O mundo das terras coletivas: itinerários jurídicos entre o ontem e o amanhã2. Tive a honra e alegria de participar como comentadora do livro a convite do Professor Diego Nunes e da Editora Contracorrente neste momento ímpar para as ciências jurídicas no Brasil. De modo muito particular ler esse brilhante livro foi além de muito prazeroso, um grande estímulo para fomentar as pesquisas que desenvolvo há alguns anos acerca dos direitos dos povos e comunidades tradicionais (povos originários/indígenas e quilombolas) em relação com a história da cultura jurídica brasileira3. Direitos estes que são fundamentalmente marcados pela questão do território, que são as terras coletivas, entendidas como realidades vivas, conforme definido pelos próprios sujeitos históricos e de direitos das comunidades, e também abordado na obra do professor Grossi. Assim como ocorreu na Itália, houve na experiência jurídica brasileira a negação do vínculo dos sujeitos com a terra e que permanece no tempo presente por meio da negação ou da "indiferença" ao sentido do território. Essa negação fez parte da estratégia de firmar a concepção de que o sujeito deve dispor livremente da coisa, muito bem delimitada no livro. Reconhecer a existência de vínculo afetivo entre sujeito e coisa seria um empecilho à essa livre circulação patrimonial. Parafraseando o professor Paolo Grossi na conclusão do livro, expresso aqui a minha esperança, que sinceramente gostaria que fosse uma certeza, de que tenhamos a efetiva consciência de que as estruturas fundiárias coletivas, nas suas várias formas, contribuem muito para a compreensão da complexidade da paisagem socioeconômico e jurídica. A formação dessa consciência na seara do direito implica, entre outras ações, que o ensino nos cursos jurídicos não seja reducionista, assumindo unicamente a dimensão absolutista da propriedade privada individual, como historicamente tem sido no Brasil. Para a ampla maioria das faculdades de direito no Brasil o "planeta" ainda é visto como um "um grande mundo dominado pelo sólido individualismo da propriedade". Também aqui no Brasil "a doutrina civilista" é de tal modo prisioneira do dogma da propriedade individual que percebemos também tantas ocasiões perdidas, obstáculos, surdez e incompreensões por parte do legislador nacional brasileiro. Acredito que a tradução brasileira desse importante livro terá como efeito "atiçar o fogo que se aninhava sob as cinzas", parafraseando mais uma vez o professor Grossi. Destaco de forma sucinta alguns pontos do livro que considero basilares, diante da impossibilidade de aprofundar em todos os seus aspectos, tendo em vista a riqueza das abordagens e dada a limitação do nosso espaço. A obra ressalta a ação positiva das estruturas coletivas no plano da tutela ambiental, onde é possível estabelecer uma reflexão e uma correlação com o caso brasileiro. Tanto para os povos originários/indígenas quanto para os quilombolas, a propriedade coletiva da terra vai além da tutela ambiental, o que o livro também destaca, uma vez que para esses povos a natureza integra a categoria ser humano. Há uma integração entre homem e o ambiente natural, na qual não se separa material e espiritual. Nessa perspectiva, não há a dissociação dicotômica fundante da cultura ocidental moderna, homem/natureza, sujeito/objeto, material/espiritual, visão que solidificou o extrativismo e espoliação dos recursos. O que garante a tutela do ambiente natural são os conhecimentos tradicionais desses povos, que não se restringem à proteção, e sim são amplos, pois foram desenvolvidos ao longo do tempo técnicas de manejo que foram responsáveis pela propagação da vida nas florestas e nas águas. Destaco a força do pluralismo jurídico na obra e que é um marco teórico fundamental, com o qual é possível estabelecer um profícuo diálogo com as pesquisas sobre as estruturas coletivas no Brasil, embora a abordagem seja do contexto italiano e europeu. Me refiro a um diálogo enquanto intersubjetivação, ou seja, sujeitos em ação, sem hierarquizações e importação de experiências descontextualizadas e anacrônicas4. Segundo o professor Grossi, "a verdadeira propriedade coletiva é um ordenamento jurídico primário". E acrescenta que é um ordenamento jurídico primário porque se trata de uma comunidade que vive valores conservados intergeracionalmente, possuem capacidade de autonormatização, é dotado de capacidade de gestão do patrimônio natural, econômico e cultural ligado à base territorial da propriedade coletiva, que devem ser respeitados e compreendidos. Discorro de forma sucinta sobre as discussões que imagino que o livro do professor Grossi irá fomentar no cenário nacional e que são de primeira ordem no campo das ciências jurídicas no Brasil. Espero eu que cause incêndios. A história da propriedade privada no Brasil é marcada pela exclusão e pelo racismo que demarcou desde Lei de Terras de 1850 o "não lugar" o qual estava reservado às populações negras, indígenas e pobres. Me aterei sobretudo à experiência da população negra descendente de africanos escravizados, livres e libertos. O cenário da Lei de Terras que instituiu a propriedade privada no ordenamento jurídico brasileiro oitocentista permaneceu no período pós-Abolição com novas roupagens, o que se demonstra pelas políticas de formação do espaço urbano e da grilagem e esbulho das terras do espaço rural que fundaram as desigualdades fortemente presentes na realidade social. O que hoje conhecemos como "direito à cidade" vai além do acesso a oportunidades, infraestrutura e serviços de saúde, cultura, educação, esporte e áreas verdes, pois contempla uma vida integrada entre o sujeito e vínculo com a terra/território e todo o ambiente natural. O direito ao território foi e é sistematicamente negado à população negra, mesmo que as normas vigentes estipulem a igualdade formal dos direitos. Isso é consequência da visão de uma suposta neutralidade, sobretudo a racial que impera nas ciências jurídicas, destoando completamente da compreensão da formação história e social no contexto brasileiro. A autora Anna Lyvia Roberto em seu livro Racismo estrutural e a aquisição da propriedade5 reflete sobre essas questões, embora delimite sua pesquisa empírica à cidade de São Paulo. É possível perceber essa dinâmica em todo o país, por exemplo, as políticas de reformas urbanas demonstradas por planos diretores na primeira metade do século XX, que expulsaram as pessoas negras dos centros das cidades, destruindo as habitações, as Igrejas do Rosário, os cemitérios e seu lugares onde ser realizavam suas celebrações e manifestais culturais e religiosas em relação harmônica com o ambiente natural. O esbulho, a grilagem e a expropriação são a marca da aquisição de propriedade privada individual no século XX na experiência brasileira, embora essa realidade tenha sido apagada e silenciada. Evidencia-se na realidade nacional o privilégio na aquisição da propriedade privada individual e a negação da propriedade coletiva, sobretudo no tocante à expulsão dos povos originários e dos descendentes de africanos escravizados, livres e libertos dos lugares, ameaçando os seus modos de criar, fazer e viver. Em suma, considero essa batalha desproporcional, considerando que a cultura jurídica brasileira, apesar da normatização prevista no ordenamento jurídico, ainda está no "planeta" do absolutismo da propriedade privada individual. Contudo, permaneço com a esperança expressa pelo professor Grossi como objetivo do livro, que os "incêndios" possibilitem olhar além, rumo a um futuro de mudança de mentalidades. *Vanilda Honória dos Santos é doutoranda em Teoria e História do Direito pelo PPGD da Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia. Graduada em Direito e Filosofia. __________ 1 Disponível aqui. 2 GROSSI, Paolo. O mundo das terras coletivas: Itinerários jurídicos entre o ontem e o amanhã. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021. 3 Cf. NUNES, Diego; SANTOS, Vanilda Honória dos. Por uma história do conceito jurídico de quilombo no Brasil entre os séculos XVIII e XX. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, v. 66, n. 1 (2021). Disponível aqui; SANTOS, Vanilda Honória dos. O direito à memória histórica dos Quilombos: indícios e sinais na perspectiva da reparação e da história do direito. ANAIS X COPENE: (Re)Existência intelectual negra e ancestral. 12-17 out. 2018, Uberlândia/MG. Disponível aqui. 4 Sobre a intersubjetivação como categoria teórico-metodológica para as ciências jurídicas, vejam-se: e o curso Filosofia Africana e Direitos Humanos, disponível aqui. 5 RIBEIRO, Anna Lyvia Roberto Custódio. Racismo estrutural e a aquisição da propriedade. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.
quarta-feira, 29 de setembro de 2021

O "Triunfo da Autonomia Privada" e a insolvência

É notável nos últimos anos o crescente valor da autonomia privada, não só entre os liberais, mas sobretudo no meio social. Percebe-se na sociedade claramente o desejo de reduzir a interferência do Estado e assegurar a mais ampla liberdade nos assuntos da vida privada. Esse movimento da sociedade tem provocado transformações importantes no Direito Privado. A afirmação do "Triunfo da Autonomia Privada"1 no tratamento da insolvência, que dá título a este artigo, foi lançada em decisão do Tribunale Civile di Roma, Sezione Fallimentare, no registro de concordata preventiva e acordos de reestruturação de dívidas n. 09/06, de 4 de outubro de 2006, feita em tom de crítica à reforma da lei, que substituiu o princípio da autoridade judicial pela soberania da decisão dos credores no processo de concordata. A referência a esta decisão italiana é feita por Juan Luis Goldemberg Serrano, jurista chileno, ao iniciar excelente monografia sobre "La Visíon Privatista del Derecho Concursal" (Thomson Reuters La Ley, 2015, p. 3). E a provocação que ela encerra é inevitável em face da Lei brasileira de insolvência (lei 11.101/2005). Não há dúvida sobre a influência da lógica privatista na formulação da nossa Lei, que regula a recuperação da empresa em crise e a falência no Brasil, fruto do movimento que, a partir do final do século passado, provocou sucessivas reformas nos países ocidentais no tratamento da insolvência e das empresas em crise. A mais significativa inovação da Lei está na outorga de poderes aos credores para decidir sobre o plano de recuperação da empresa em crise, substituindo-se a autoridade judiciária pela soberania da deliberação privada dos credores na decisão sobre os destinos da empresa. A partir desse novo modelo legal de recuperação da empresa em crise se sustenta que não cabe ao juiz interferir na deliberação dos credores e no plano de recuperação, porque a autonomia privada deve prevalecer ou triunfar. É uma mudança de modelo, tendo em vista aquele vigente na chamada terceira fase do direito falimentar no Brasil, inaugurada com o Decreto-lei n. 7.661/1945, resultado do anteprojeto de Trajano Miranda Valverde, que reduziu a influência dos credores no processo de concordata e concentrou os poderes nas mãos do juiz, a ponto de Valdemar Ferreira afirmar que concordata não é, mas reajustamento judicial da situação financeira do comerciante insolvente, independentemente da vontade dos credores (Tratado de Direito Comercial, vol. 15, p. 269-271). E a propósito da concentração de poderes do juiz na concordata deixou registrado Miranda Valverde, em sua famosa obra, o seguinte: "A lei vigente, com a estruturação processual da concordata, submete a magistratura à pesada prova de competência. Dá-lhe atribuições delicadas e poderes amplos, com duplo objetivo: o de resolver, honestamente, o conflito de interesses individuais e o de preservar a empresa mercantil contra a ameaça de sua destruição. Se os juízes falharem, a desmoralização do instituto evidenciará a incapacidade do judiciário para tão elevada missão. Mas esperamos que isto não suceda. E não sucederá, se os juízes forem intransigentes na observância dos preceitos legais que impõem condições e requisitos para a obtenção do favor, para cuja concessão é o juiz mero instrumento da lei" (Comentários à Lei de Falências, v. II, 4ª ed., Ed. Forense, revista e atualizada por J.A. Penalva Santos e Paulo Penalva Santos, p. 238) Até o decreto-lei 7.661/1945, por força do Código Comercial (primeira fase), e depois pelo Decreto n. 917, de 1890 - Lei Carlos de Carvalho (segunda fase), os credores tinham protagonismo nos processos de reorganização falimentar, moratória e acordo para evitar a falência, e ao juiz se reservava uma participação distante, quase limitada à decretação da falência quando não atendidas as condições para o acordo de reorganização, ou quando não cumpridas as obrigações assumidas. A lei de 1945 alterou este cenário ao concentrar poderes no juiz, de forma que a lei atualmente em vigor rompe com longo período de judicialização da concordata para marcar o início da quarta fase do direito falimentar no Brasil. É natural que a alteração do modelo de recuperação promovida pela lei atual, sob os influxos privatistas, e que se afastou do controle exclusivamente judicial do processo de concordata, tenha motivado o entusiasmo com o modelo de autonomia concedida aos credores. Não há dúvida quanto ao fato de que a lei entregou aos credores a legitimidade para deliberar a respeito do plano de recuperação judicial da empresa em crise, alterando o modelo fundado na autoridade judiciária. Todavia, ao valorizar a deliberação dos credores a Lei não afastou a necessária interferência do juiz nesse processo. A questão está em definir o papel do juiz e os limites do poder que tem para efetivamente intervir no processo de recuperação judicial. A ideia que moveu esse processo de reformas, e que ganhou impulso com as crises subprime e europeia, é a de entregar aos credores a responsabilidade pela busca da melhor resposta para a crise do devedor, porque são eles efetivamente que sofrerão as consequências da insolvência. Propõe-se a retirada do Estado desta relação para que o juiz passe a uma função heterônoma, subordinada ao quanto deliberado pelos credores. Há, portanto, nesse modelo privatista, de um lado a decadência do "princípio autoritário", e de outro, a outorga de poderes aos particulares (credores) para decidir sobre os meios de recuperação da empresa em crise (Juan Luis Goldenberg Serra, op. cit., p. 11). Para compreender a lógica privatista e procurar definir os limites de atuação do juiz no processo de recuperação judicial é necessário lembrar que a particular atenção que se verifica na doutrina a respeito da falência e da concordata se deve ao fato de que o devedor não honrou a palavra dada, fenômeno que tem enorme relevância no ordenamento liberal. Afinal, falir vem do latim fallo e fallere, que significa, de acordo com o registro de António Gomes Ferreira, enganar, induzir em erro, trair (a palavra dada), faltar (às promessas) (Dicionário de Latim Português, Porto Editora, p. 474). A ideia de enganar é a que mais se encontra no registro dos dicionários para a origem latina de falir e remonta, com o mesmo sentido, a Roma e Grécia antigas, em textos de Ovídio e Ésquilo, como registra Renzo Tosi (Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas, trad. de Ivone Castilho Benedetti, ed. Martins Fontes, n. 268, p.124-125). A quebra da palavra dada afeta naturalmente as relações sociais. Todavia, o efeito da promessa quebrada é mais grave quando se verifica no ambiente de negócios, no qual se dá especial valor à confiança. A ideia de que o devedor deve cumprir a obrigação, custe o que custar, própria do liberalismo, continua atual, daí a repercussão que se verifica quando ocorre a falência ou o pedido de recuperação judicial, porque o devedor faltou com a palavra. E a reação dos credores nesse momento nem sempre é ditada pela racionalidade, especialmente porque, como anota o Ministro Luis Felipe Salomão, a propósito da evolução do direito falimentar, "em relação ao devedor falido, todavia, a evolução foi bem mais penosa, porquanto a ideia da 'quebra' sempre esteve aliada ao de comerciante desidioso ou de má-fé" (Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência, 3ª ed., ed. Forense, p. 6). É histórica a pretensão de impor castigos a certos comportamentos que dão lugar a situações de insolvência e este aspecto sancionador, que é comum no concurso de credores, decorre da ideia de que o devedor inadimplente não é honesto e cumpridor das obrigações assumidas. De outra parte, explica-se a rigidez absoluta que se impõe ao cumprimento das obrigações em razão do legado que recebemos do liberalismo a partir da revolução francesa, que moldou os códigos oitocentistas e a formação da cultura jurídica. Na visão liberal, o devedor deve cumprir exatamente o que prometeu, no tempo e na forma. Se faltar ao cumprimento devido, e na forma devida, o devedor deverá acertar as contas com o credor, e esta relação, na visão liberal, é exclusivamente privada, na qual não há interferência do Estado. Sucede que essa visão liberal do inadimplemento da obrigação como assunto privado se modificou a partir, especialmente, da quebra da Bolsa de Nova York (1929), quando o mundo ocidental assistiu mais claramente a uma mudança importante do papel do Estado, que deixou a sua posição equidistante para interferir diretamente nas relações privadas, com o propósito de promover o bem de todos. Essa postura do Estado intervencionista sempre foi criticada pelos liberais, e a tensão das posições resultou em mudanças legislativas, ora para fortalecer os poderes do Estado, ora para abrigar teses liberais ou neoliberais. E nesse ambiente de continua transição do Estado Liberal para o Estado Social, de avanços e retrocessos, se insere a atual lei 11.101/2005, que volta a ver no inadimplemento da empresa uma relação exclusivamente privada entre o devedor e os seus credores. Ao menos é o que parece ao intérprete mais entusiasmado com o valor que se deu à autonomia privada na lei brasileira. É importante lembrar que o concurso de credores, desde os primeiros diplomas legislativos, sempre foi marcado pela natureza pública, assinalada pela doutrina clássica, no escopo de garantir a expansão do crédito e o desenvolvimento do comércio (José Xavier Carvalho de Mendonça in "Tratado de Direito Comercial Brasileiro", v. VII, p. 27, 2ª ed., Liv. Ed. Freitas Bastos). Há outras razões históricas a caracterizar o concurso de credores como um processo executivo público e estão relacionadas com a evolução pela qual passou o direito das obrigações a partir da lei Paetelia Papiria, que fez recair sobre os bens, e não mais sobre a pessoa do devedor, a execução das dívidas. Desde então o direito romano passou a conhecer a missio in bona (os credores entravam na posse dos bens do devedor por decreto do juiz) e a cessio bonarum (o devedor de boa-fé entregava a totalidade de seus bens aos credores - direito de vende-los -, independentemente da aceitação desses), como medidas no sentido de promover o pagamento das dívidas com os bens do devedor, alcançados diretamente no processo executivo. A participação de todos os credores em igualdade de condições exigia a atividade do magistrado no concurso, o que evidencia a natureza pública que assumiu. Como se nota, desde que a satisfação da obrigação passou a recair sobre os bens do devedor, assumindo natureza exclusivamente patrimonial, a execução coletiva passou das mãos privadas dos credores às mãos do magistrado. Portanto, por esse conjunto de fatores, o concurso de credores foi submetido a um processo público, com protagonismo do magistrado. Também é fato que a partir do segundo pós-guerra surge o interesse maior do Estado pela remoção da insolvência das empresas, seja por conta da ampla cadeia de efeitos prejudiciais decorrentes da falência, seja por conta do que ela representa como fonte de emprego e produção de bens e serviços. A crescente proteção do interesse dos trabalhadores e consumidores, somada aos interesses do Estado intervencionista, atento às consequências sociais da insolvência das empresas, levou boa parte das legislações concursais, a partir da segunda metade do século passado, baseadas na ideia da preservação da empresa2, a considerar esses novos interesses no tratamento da crise das empresas e a colocar, consequentemente, o interesse dos credores em outro plano. Essas ideias parecem ter encontrado alguma decadência nos últimos tempos, de modo que se passou a pensar, numa visão contratualista, que a legislação concursal pode ser utilizada para manter as empresas em operação, mas esta não é a sua principal função. A partir dessa visão privatista, os credores optaram pela conservação da empresa na medida em que esta alternativa produz maior retorno para a satisfação de seus créditos. Há, portanto, uma preocupação com a eficiência das ferramentas colocadas à disposição da recuperação da empresa em favor, primordialmente, do interesse dos credores. Não significa, nessa visão privatista, o desconhecimento dos reflexos sociais da insolvência, mas os incentivos da lei devem ser dirigidos à reorganização da empresa viável, no sentido de obter resultados para o pagamento dos credores (Juan Luis Goldenberg Serrano, op. cit., 37). O empoderamento dos credores nesse modelo privatista desloca o eixo do direito concursal do campo do direito público para mais próximo do direito privado. Em consequência, fortalecida a posição do credor no processo, a desjudicialização do direito concursal é corolário natural desse modelo, passando o juiz a uma participação auxiliar e menos invasiva possível do espaço de autonomia dos credores. Perde-se o poder de direção heterônomo no processo de recuperação da empresa, que dá lugar à autonomia dos credores na gestão do patrimônio do devedor. O direito concursal, baseado em uma justificação meramente econômica, como ocorre nesse modelo, passa a se preocupar essencialmente em dotar os credores de uma organização e coordenação capaz de produzir o mais eficiente resultado para o recebimento do crédito. Nessa visão privatista, explica Juan Luis Goldenberg Serrano, a "eficiência se plantea como un objetivo abstracto de la normativa, esto es, como una herramienta de politica legislativa. Pero no es la finalidade misma del Derecho concursal, sino en cuanto se ha enderezado a un objetivo concreto. Y éste estará representado por el espíritu subyacente que pretende la "maximización del beneficio de los acreedores, que se traduce en una mayor tasa de recuperación de sus créditos" (op. cit., p. 56-57). A lei brasileira atual mudou o rumo do direito concursal até então fundado na autoridade do juiz e seguiu o modelo liberal, comum nas legislações modernas, outorgando aos credores o poder de aprovar ou rejeitar o plano de recuperação apresentado pelo devedor. No entanto, a lei em vigor não colocou entre as finalidades da recuperação judicial a satisfação coletiva dos credores. Ao contrário, no seu art. 47 declarou que "A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica". Percebe-se, portanto, que a lei em vigor deu relevância e prioridade à conservação da empresa, concretizando um elemento chave de interpretação que deve orientar todo o processo de recuperação judicial. Afastou-se do rigor do modelo liberal verificado em outras legislações, o que levou o experiente Professor Manoel Justino Bezerra Filho a dizer que "a lei, não por acaso, estabelece uma ordem de prioridade nas finalidades que diz perseguir, colocando como primeiro objetivo a "manutenção da fonte produtora", ou seja, a manutenção da atividade empresarial em sua plenitude tanto quanto possível, com o que haverá possibilidade de manter também o "emprego dos trabalhadores". E recomenda: "Deverá o juiz sempre ter em vista, como orientação principiológica, a prioridade que a Lei estabeleceu para a "manutenção da fonte produtora", ou seja, recuperação da empresa" (Lei de Recuperação de Empresas e Falência, 15ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, p. 209). Devemos encontrar este equilíbrio entre a autonomia privada e a preservação da empresa, que o nosso modelo, liberal, pero no mucho, estabeleceu, e o Juiz não tem neste cenário os poderes do credor, mas também não é um mero observador. __________ 1 Desenvolvi este tema in: "O triunfo da autonomia privada no âmbito concursal" (WAISBERG, Ivo; RIBEIRO, José Horácio Halfeld Rezende (org.). Temas de direito da insolvência: estudos em homenagem ao professor Manoel Justino Bezerra Filho. São Paulo: IASP, 2017, p. 87-101. 2 Quanto ao significado do princípio da preservação da empresa na doutrina consulte, por todos, Sheila C. Neder Cerezetti, in Tratado de Direito Comercial, v. 7, coord. De Fábio Ulhoa Coelho, ed. Saraiva.
Para o direito privado a cláusula resolutiva expressa é uma disposição natural, muito comum e de enorme efeito prático no direito contratual, que define a distribuição de riscos, confere uma espécie de autotutela ao credor e compõe uma complexa equação econômica. O inadimplemento do contrato, diante da cláusula resolutiva expressa, autoriza o credor a dar por resolvido o negócio, independentemente de intervenção judicial. Resolvido o contrato, aplicam-se os efeitos da resolução previstos pelas partes e se extingue a relação contratual. Não faz parte dos cálculos econômicos das partes a judicialização da resolução do contrato. Todos os dias milhares de contratos são resolvidos por força da cláusula resolutiva expressa, inclusive os contratos de aquisição de imóveis, especialmente aqueles adquiridos diretamente dos incorporadores, sem que as partes recorram à intervenção judicial, satisfeitas, presume-se, com os efeitos predeterminados da resolução. Portanto, para aqueles que interpretam o nosso direito no sentido de que é necessária a intervenção judicial para a resolução do contrato, estamos diante de uma espécie de revolta dos fatos contra a lei, quando a realidade social se mostra divorciada do Direito. A cláusula resolutiva é inerente ao contrato bilateral, admitindo ao contratante prejudicado pelo inadimplemento o direito ou faculdade de dar por resolvido o contrato. Essa cláusula, quando não é expressa, é admitida no contrato como tácita (art. 474, CC). Vale anotar que há registro na doutrina de que a cláusula resolutiva expressa passou a ser praticada desde a Idade Média, e em razão da importância que assumiu passou a ser presumida a vontade das partes (tácita), quando não formulada expressamente. Não se cuida hoje, evidentemente, de presumir a vontade dos contratantes para aceitar a existência da cláusula resolutiva tácita, mas de reconhecer o direito próprio dos contratos bilaterais. Quando a referia cláusula é ajustada expressamente, não deveria haver dúvida alguma quanto a aplicação do efeito resolutivo do contrato mediante a intervenção direta da vontade da parte inocente. Neste caso, não pode ser demandada, e não é necessária, a intervenção judicial. Afinal essa é a finalidade dessa cláusula inserida no contrato pela autonomia das partes.  É necessário esclarecer que à parte inocente é assegurada, exclusivamente pela sua vontade, a escolha pela resolução (e não pela execução) do contrato. O Código Civil é expresso nesse sentido (art. 475), embora não se possa defender posições abusivas. Logo, ao contratante cabe fazer uma simples declaração de vontade no sentido da resolução do contrato, sem necessidade da intervenção judicial, para fazer operar os efeitos da cláusula resolutiva. Nesse sentido é a orientação moderna dos Princípios UNIDROIT dos Contratos Comerciais Internacionais de 2004, assim como do Código Europeu dos Contratos. A sentença judicial não integra o ato resolutivo, que opera efeitos por força do contrato, e não da decisão do juiz. É importante lembrar, ainda, que a recente reforma do Código Civil francês, promovida pela Ordonnance n° 2016-131 du 10 février 2016, eliminou do texto do Code a exigência de intervenção judicial para a resolução do contrato, que tanto influenciou o direito brasileiro, passando a estabelecer que a cláusula resolutiva expressa produz o seu efeito a partir da declaração de resolução promovida pela parte prejudicada, sem impedir, no entanto, que essa declaração de resolução seja demandada em juízo.1 É certo que se conservou no Code, em alguns casos, a exigência de notificação prévia para caracterizar o inadimplemento absoluto (e não a mora) e motivar a resolução do contrato, mas essa disposição do direito francês não desnatura o efeito da cláusula resolutiva expressa, que opera independentemente da intervenção judicial. O nosso interesse neste artigo não é examinar a reforma francesa do Code, que modificou substancialmente o tratamento da resolução do contrato, mas abordar o tema da intervenção judicial nas relações contratuais, que está relacionado a uma recente decisão da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, proferida em 10.08.2021, no REsp n. 1.789.863/MS, da qual foi relator o Ministro Marco Buzzi. O Acórdão ainda não foi publicado, mas o Informativo n. 704 do STJ, de 16.08.2021, destaca o entendimento adotado, por maioria de votos, no sentido de que: "É possível o manejo de ação possessória, fundada em cláusula resolutiva expressa, decorrente de inadimplemento contratual do promitente comprador, sendo desnecessário o ajuizamento de ação para resolução do contrato". Para entender o que representa a referida decisão, é necessário lembrar que o nosso direito civil sofreu inegável e forte influência do direito francês que, por razões de segurança e estabilidade jurídica, e por desconfiança de abusos do contratante, exigia a intervenção judicial na resolução do contrato quando a cláusula resolutiva não fosse expressa,  diferentemente do que ocorre com o modelo alemão. A maior parte da doutrina brasileira se colocou de acordo com essa interpretação francesa aplicada ao nosso direito e entendeu que, nos casos de cláusula resolutiva tácita, somente ao juiz cabe resolver o contrato, apreciando a conduta do contratante reputado inadimplente. Nosso legislador, no entanto, foi além e estabeleceu, em algumas hipóteses, que é necessário interpelar o devedor, já em mora e a despeito da existência de expressa cláusula resolutiva, para que se produzam os efeitos da resolução do contrato. E nossos tribunais consolidaram o entendimento de que é necessário que a resolução do contrato seja declarada por decisão judicial. É o que ocorre, especialmente, com os compromissos de compra e venda, por força do Dec.Lei n. 58/1937, modificado pelo Dec.Lei n. 745/1969. Essa interpretação, muito forte nos tribunais brasileiros, afirmada e reafirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (ver a respeito, o julgamento do AgInt no Agravo em RECURSO ESPECIAL n° 1.278.577/SP, de 18.09.2018,  DJe 21/09/2018, relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão), foi agora revista para admitir os efeitos da resolução do contrato, no caso a reintegração de posse, produzidos pela cláusula resolutiva expressa, dispensando-se a intervenção judicial. Essa inovadora interpretação da nossa Corte Superior foi recebida com aplausos pelos agentes econômicos e está em consonância com a realidade social e com a nossa Lei, cujo sentido agora se vê reforçado pelas disposições da Lei de Declaração da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019), que defende a intervenção mínima nas relações negociais, ao lado de um movimento de desjudicialização, principiado há alguns anos. De fato, no rigor dos termos, o Código Civil em nenhum momento impõe a intervenção judicial para a resolução do contrato, que se opera efetivamente por força da cláusula resolutiva, expressa ou tácita. O equívoco da interpretação sempre recaiu sobre a parte final do art. 474 do Código Civil, quando se refere a "interpelação judicial".  Não exige o Código, como resulta da literal interpretação, a "intervenção judicial". Basta, para os casos de cláusula resolutiva não escrita (tácita) a interpelação, e nem é preciso que seja feita judicialmente. A interpretação que sempre se deu ao Código Civil no sentido da necessidade da intervenção judicial (e em relação ao Código de 1916 não foi diferente) incorre em um grave equívoco, tanto quanto ao direito privado, quanto na forma de pensar a atuação jurisdicional do Estado. Ao se exigir a intervenção judicial para a resolução dos contratos, se elege a sentença como parte integrante do ato resolutivo, desqualificando a cláusula resolutiva. E mais: ao exigir a intervenção judicial para a resolução do contrato, quando ainda não se estabeleceu o litígio entre as partes, se apresenta ao Judiciário uma demanda que não atende ao mínimo interesse processual, definido pela utilidade e necessidade da providência jurisdicional. Não havendo litígio entre as partes a respeito dos efeitos da resolução do contrato, não há razão para exigir o pronunciamento judicial a respeito da resolução do contrato, como se fora o magistrado um tutor da autonomia privada. Bem por isso cuidou a reforma francesa do Code de estabelecer que o devedor pode, a qualquer momento, apelar ao juiz para contestar a resolução do contrato e os seus efeitos (artigo 1226.[...] Le débiteur peut à tout moment saisir le juge pour contester la résolution. Le créancier doit alors prouver la gravité de l'inexécution.). Ou seja, o juiz é chamado a atuar a jurisdição depois, e somente depois, que se instaura entre as partes um verdadeiro litígio sobre os efeitos da resolução do contrato. Essa forma de pensar a atuação jurisdicional deve prevalecer em outras áreas do direito privado. É o caso, a título de exemplo, da exclusão de sócios nas sociedades em geral, que deveria ocorrer exclusivamente no plano das deliberações sociais, assegurando ao sócio que se sentir prejudicado o acesso à jurisdição, mas sempre depois, e não antes, da deliberação social. Hoje, ao contrário, o Código Civil impõe que a exclusão seja determinada por ato do juiz - sentença judicial (art. 1.030, CC), judicializando a vida da sociedade antes que se verifique a existência do litígio entre as partes. A inovadora decisão do Superior Tribunal de Justiça referida (direito vivente), que rompe com a longa e persistente influência francesa no direito brasileiro e restabelece a efetividade da cláusula resolutiva, augura-se, poderá abrir caminho para uma nova interpretação da atuação da jurisdição em matéria de direito contratual, que deve, por imperativo lógico, se ocupar dos litígios, e somente dos litígios, interferindo nos negócios privados apenas quando necessário. Uma mudança da cultura que adquirimos ao longo do século passado é necessária, não apenas no sentido de valorizar a autonomia privada, mas também no sentido de qualificar a atividade jurisdicional, repensando-se a ideia da permanente tutela do Estado na vida privada. __________ 1 No original o texto atual e vigente do Code: "Article 1226 (Modifié par Ordonnance n°2016-131 du 10 février 2016 - art. 2) Le créancier peut, à ses risques et périls, résoudre le contrat par voie de notification. Sauf urgence, il doit préalablement mettre en demeure le débiteur défaillant de satisfaire à son engagement dans un délai raisonnable. La mise en demeure mentionne expressément qu'à défaut pour le débiteur de satisfaire à son obligation, le créancier sera en droit de résoudre le contrat. Lorsque l'inexécution persiste, le créancier notifie au débiteur la résolution du contrat et les raisons qui la motivent. Le débiteur peut à tout moment saisir le juge pour contester la résolution. Le créancier doit alors prouver la gravité de l'inexécution."
As sociedades empresárias controladoras procuram manter em equilíbrio as contas das sociedades controladas e estruturam os grupos de sociedades dispondo de contragarantias e compensações internas a prevenir a ocorrência da insolvência no âmbito do grupo de sociedades. A insolvência de uma sociedade controlada não repercute bem no mercado e pode abalar a confiança e o crédito da sociedade controladora. É natural, portanto, que ao surgir a crise econômico-financeira no âmbito do grupo de sociedades, a sociedade-mãe1 procure solução para superar a crise, seja pelo financiamento da sociedade dependente, seja por outro tipo de arranjo que possa afastar a insolvência. Quando a insolvência se manifesta na sociedade dependente e controlada é sinal de que a crise não foi resolvida pela sociedade controladora e que a insolvência contagiou o grupo de sociedades, incapaz de mobilizar recursos para superá-la. Por isso é que se pode dizer que a insolvência de uma sociedade em relação de grupo é um problema de insolvência no âmbito do grupo de sociedades. Assim como ocorre com o direito societário, os ordenamentos jurídicos também não foram criados para regular a insolvência no âmbito do grupo de sociedades. A falência ou a recuperação de empresas são ainda cuidadas com a visão voltada para as sociedades autônomas e individuais (monossocietárias). O fenômeno dos grupos de sociedades passa longe em geral dos regimes de insolvência. E a questão não tem sido objeto de grande atenção pela doutrina, como bem assinala Catarina Serra.2 Esta é a maior dificuldade para lidar com a insolvência das sociedades em relação de grupo e da insolvência do próprio grupo, como conjunto de sociedades ou unidade econômica.3 Na doutrina italiana também se aponta para o fato de que o direito da insolvência, ou o direito da crise, continua a ter como ponto de referimento a sociedade autônoma, não pertencente a um grupo, ignorando-se os esquemas societários envolvidos na crise da empresa, não obstante o fato de que, a sociedade, e o grupo de sociedades, se encontram no centro da crise e da insolvência dos últimos anos, especialmente a partir da crise de 2008. Umberto Tombari ainda salienta outro aspecto importante, e não observado geralmente pelos regimes de insolvência. É que se tem centrado esforços na gestão negocial e não falimentar da crise, deixando-se de olhar para a disciplina societária das sociedades. A reorganização societária, promovida nos negócios de revitalização ou recuperação das sociedades, se configura muitas vezes em um processo negocial de refundação da sociedade, que envolve não só os sócios e os órgãos sociais, mas também os credores e todos os interessados no capital, no crédito e no fornecimento de bens e serviços de um modo geral. Olhando para as experiências europeias, Umberto Tombari afirma que o diálogo entre o direito societário e o direito de crise está ainda num estágio inicial.4 A carência de um regime adequado para a insolvência no âmbito do grupo de sociedades, e a falta de discricionariedade dos tribunais para criar soluções próprias para essa realidade, certamente conduzirá a insolvência que se verifica nestes casos a um tratamento que é previsto para as sociedades singulares, separadas e autônomas, fora da relação de grupo, cujos resultados nem sempre serão adequados e aceitáveis. Essa situação se evidencia e se torna mais aguda quando uma sociedade em relação de grupo desenvolve atividades importantes para a empresa do grupo, ou seja, para a consecução dos interesses empresariais do grupo. A incapacidade de encontrar solução para vencer a crise econômica-financeira da sociedade de grupo poderá levá-la ao processo de liquidação, alcançando as demais sociedades em relação de grupo que, tratadas igualmente de forma isolada, serão também levadas à liquidação, o que poderá resultar na perda por inteiro de organizações empresariais. Em outras palavras, a falta de um regime adequado de insolvência para a fenomenologia dos grupos de sociedades poderá frustrar seriamente o escopo moderno do direito da insolvência, compreendido em sentido mais amplo, que é o de recuperar a empresa pelo valor que ela representa. Um regime de insolvência no âmbito de grupo de sociedades deve ter como objetivo ampliar o rígido esquema de irrelevância jurídica do grupo de sociedades e do reconhecimento de um interesse geral, que não é mais da sociedade singular, mas do grupo por inteiro. Com fundamento nesta premissa, Alessandro Di Majo sustenta na doutrina italiana que cresce o consenso internacional pela aplicação de um procedimento único como verdadeiro e próprio consolidamento de patrimônios, como ocorre no direito norte-americano. Forma-se um único patrimônio a respeito do qual concorrem indistintamente todos os credores das diversas sociedades do grupo (substantive consolidation), o que poderá ocorrer se o credor confiava na unidade do centro de interesse do grupo e que, em razão da estrema confusão patrimonial entre as sociedades, a consolidação resulta vantajosa para todos os credores.5 Estamos convencidos de que o bom tratamento da insolvência no âmbito do grupo de sociedades deve passar pela consideração de que o grupo de sociedades é uma unidade econômica6 para os fins de aplicação dos meios e técnicas de recuperação e liquidação das sociedades. Admitimos a possibilidade de que uma nova definição ou conformação de grupo de sociedades, como uma unidade econômica, pode ser estabelecida exclusivamente para efeito do direito da insolvência. É uma medida que se pode dizer compreendida no direito societário da insolvência. Se no campo do direito societário a doutrina é muito bem desenvolvida a respeito do grupo de sociedades, na insolvência as coisas não se passam assim. Continuamos a pensar as sociedades como sociedades singulares e continuamos a restringir o reconhecimento do grupo de sociedades (especialmente nos regimes contratuais) com o propósito, que se mostrou fracassado, de atrair os grupos para o regime legal.7 Presos a essa ordem de preocupações, encontramos enorme dificuldade em aceitar, para as soluções eficientes no campo da insolvência, a ideia de que as sociedades estão ligadas ou coligadas, regularmente ou não (de fato), e que essa relação entre elas lhes confere uma unidade cujo reconhecimento se torna imprescindível para se alcançar um resultado aceitável na insolvência. Decorre da ideia de unidade econômica no grupo, consequentemente, a ideia de um único processo de recuperação judicial e de um plano unitário para a recuperação do grupo de sociedades. Há um aspecto interessante para efeito de tratamento do grupo de sociedades na insolvência. É que a maior parte dos regimes não tem uma definição uniforme de grupo e é muito comum encontrar definições diferentes quando o grupo se apresenta em outro setor (trabalhista, fiscal, comercial etc.), o que evidencia a flexibilidade dessa definição e a possibilidade de se adotar uma outra, que não se amolda exatamente, para fins de insolvência, ao direito societário como o conhecemos. É a crise econômico-financeira do grupo de sociedades que impõe olhar para o grupo de forma diferente do direito societário. Há uma tendência em considerar o grupo de sociedades, para efeito de insolvência, como uma empresa única. É o que se verifica especialmente no direito norte-americano, que lida com a desconsideração da personalidade jurídica e a consolidação substancial com uma visão de unidade do conjunto de sociedades integrantes do grupo.8 No Brasil há inúmeras decisões dos tribunais também no sentido de considerar o grupo econômico como uma unidade para certos fins de responsabilidade. O grupo de sociedades não tem personalidade jurídica ou patrimônio autônomo. Mas entre as sociedades integrantes do grupo, afirma Catarina Serra, existe uma unidade sob o ponto de vista econômico e os interesses subjacentes à recuperação do grupo apontariam no sentido de uma coligação ativa.9 Na insolvência de sociedade em relação de grupo, ou na insolvência do próprio grupo, há situações em que a consolidação processual e a consolidação substancial são imperativos de solução adequada e equitativa para todos os envolvidos. A omissão dos regimes a respeito deste tema, ou as suas disposições restritivas (como é o caso do direito brasileiro), não podem ser interpretadas como proibitivas. Ao contrário. Essa omissão abre caminho para uma construção adequada de soluções da crise e da insolvência a partir da experiência casuística, aproveitando-se de certos stardards já consolidados em outros regimes, como é o caso do regime norte-americano, que podem ser desenvolvidos e melhorados na experiência viva dos casos que se apresentam. Há um outro aspecto substancial na relação de grupo de sociedades que não tem sido levado em consideração no tratamento das questões relacionadas à crise das empresas, e especialmente nos processos de recuperação judicial, que é justamente a característica mais distintiva da relação de grupo, qual seja a existência de uma direção unitária. Evidentemente, não se pode esperar para o superamento da crise do grupo que as decisões não sejam tomadas de forma unitária. Separar as sociedades do grupo ou afastar as sociedades dos seus controladores, e separar igualmente os respectivos planos de recuperação, é medida que contraria a própria existência e a natureza do grupo de sociedades e que se revela disfuncional no tratamento da crise, sem prejuízo da separação das massas patrimoniais societárias. Em outras palavras, não se reproduz na fase de crise ou insolvência a mesma unidade de direção que caracteriza o grupo de sociedades e, muito frequentemente, se nega a possibilidade de o Grupo governar a crise no processo de recuperação, impondo-se soluções separadas para cada uma das sociedades. Impede-se, quase sempre, que a sociedade controladora ou holding possa continuar a exercer o poder de direção que sempre existiu no grupo de sociedades, e quando ela própria se vê envolvida, também se nega a ela a prerrogativa de dirigir outras sociedades do grupo em favor do superamento da crise. Em razão de uma interpretação voltada ao modelo de sociedade singular, se anula a possibilidade de uma solução global da crise para o grupo. Parece que a nova Lei brasileira também não avançou muito neste ponto quando deixa de prever solução para os planos interferentes ou interdependentes, ou quando admite plano unitário apenas para a hipótese de consolidação substancial, que só pode ocorrer quando autorizada pelo juiz. A questão se apresenta mais sensível quando a sociedade controladora é solvente, ocorrendo nesse caso a dúvida, que a nova Lei não resolveu, sobre a possibilidade da sua participação no processo de recuperação da controlada em crise. A Lei nova ainda deixa dúvida sobre a solução a ser dada em caso de aprovação do plano único ou unitário em relação a uma parte das sociedades do grupo e não aprovação em relação a outra parte das sociedades. A flexibilidade que se defende para a definição de grupo é também a flexibilidade que se deve dotar a Lei para o tratamento da crise no âmbito dos grupos de sociedades, permitindo-se a solução unitária para o grupo - processo unitário, com o máximo de coordenação compatível com a separação das massas patrimoniais. Também deve ser aberta a possibilidade de levar somente uma das sociedades do grupo ao processo de recuperação, quando essa solução representar medida de maior eficiência e resultado. A lei deveria ser clara a este respeito. A lei 14.112/2020, que alterou a lei 11.101/2005, passou a reconhecer a fenomenologia plurissocietária, introduzindo-se a Seção IV-B, no sentido de admitir expressamente a consolidação processual e a consolidação substancial dos devedores, "que integrem grupo sob controle societário comum" (art. 69-G), facultando-lhes requerer a recuperação judicial sob consolidação processual. A Lei nova ainda estabeleceu que o juiz poderá, de forma excepcional, autorizar a consolidação substancial, "apenas quando constatar a interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores, de modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos, cumulativamente com a ocorrência de, no mínimo, 2 (duas) das seguintes hipóteses: I - existência de garantias cruzadas; II - relação de controle ou de dependência; III - identidade total ou parcial do quadro societário; e IV - atuação conjunta no mercado entre os postulantes" (art. 69-J). O novel diploma legal, não obstante algum reparo que se possa fazer, representa enorme avanço no direito brasileiro em direção a um tratamento adequado do grupo de sociedades na insolvência. Certamente a jurisprudência, que tem construído com boas decisões o Direito da Insolvência e o Direito Societário da Insolvência no Brasil se encarregará de lhe dar a melhor interpretação.10 __________ 1 Vale fazer o registro da interessante observação de J.M. Coutinho de Abreu: "No direito comparado, sociedade-mãe serve para, genericamente, designar a sociedade dominante do grupo. [Mas não se fala apenas em sociedades-mães. Deparamos também com sociedades-filhas (ou filiais), sociedades irmãs, sociedades netas ... Como se vê, famílias muito curiosas: só há mães, não há pais (chega a falar-se em mais do que uma mãe para a mesma filha, a filial comum), e os descendentes são todos do sexo feminino; a fertilidade das mães chega a ser prodigiosa (com centenas de filhas), e podem coexistir numerosíssimas gerações ... Todavia, atenção: muitíssimas vezes, nestas famílias não reina o amor - as mães são tiranas ...]" (Grupos de sociedades e direito do trabalho. Separata do vol. LXVI do BFD - Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra, 1990, p. 136). 2 Lições de direito da insolvência. Edições Almedina. Coimbra : 2018, p. 370. 3 É oportuno reproduzir o que vem deduzido no item 5 da introdução do Guía Legislativa de la CNUDMI sobre el Régimen de la Insolvencia - Tercera parte: "Pese a que los grupos de empresas sean hoy una realidad económica que no cabe ignorar, una gran parte del derecho de las sociedades mercantiles y, en particular, su régimen de la insolvencia han sido pensados en función de la empresa individual con personalidad jurídica propia. Pese a esta laguna legal, los jueces y representantes de la insolvencia de muchos países, al enfrentarse a cuestiones que pueden dirimirse mejor por referencia a la empresa comercial única (constituida por un grupo de sociedades) que a la entidad jurídica única, han hallado soluciones más acordes con la realidad económica del mundo empresarial moderno". 4 O jurista italiano se refere especificamente ao regime da lei falimentar italiana e da lei de insolvência alemã (InsO), que quase ignorava a dimensão da empresa e suas estruturas sociais, mesmo depois da reforma de 2012. Olhando para os demais regimes europeus o autor aponta que foram deixados de lado no direito da insolvência, por exemplo, os deveres dos órgãos administrativos e de controle das sociedades em caso de crise da empresa. Sustenta que há uma fratura interna da tutela dos credores sociais, porque o direito societário e o direito falimentar parecem ter fundamentos diferentes. Enquanto o direito societário se mostra estático e atento exclusivamente à consistência patrimonial da sociedade, o direito falimentar se apresenta dinâmico, focalizado na situação financeira da sociedade em crise. Falta, portanto, maior integração entre o direito societário e o direito da insolvência, embora, reconhece o autor, na doutrina tem surgido muitos estudos aproximando e aprofundando este nexo de relação entre duas realidades diferentes. Levanta a hipótese de que a crise financeira da sociedade impõe deveres aos órgãos administrativos, aos sócios e à sociedade controladora, deveres em geral de governo da empresa em situação de crise. Lembra que o financiamento infragrupo na iminência da crise é considerado pelo direito societário em geral como uma anomalia, enquanto para o direito de crise ou da insolvência esse financiamento é uma oportunidade para o saneamento da empresa e, por isso, contempla o financiador com privilégios entre os credores. Um outro exemplo interessante está no Art. 182-sexies da Lei Falimentar italiana, que determina a suspensão da causa de liquidação ou dissolução da sociedade quando se verifica a redução do seu capital abaixo do mínimo legal, deixando-se de aplicar o Art. 2.486 do Codice Civile, o que atenua o dever do administrador ou controlador de conservar a integridade e o valor do patrimônio social. Afirma que neste último caso o capital da sociedade deixa de ser a garantia dos credores, que passa, no processo de concordata ou reestruturação,  a ser dada pelo controle da autoridade judiciária e do comissário sobre as atividades da sociedade. Neste caso Umberto Tombari vê no Art. 182-sexies um verdadeiro princípio societário da crise. São exemplos que apresenta o autor das diferenças importantes entre o direito societário em geral e o direito societário da crise.  Propõe o autor, portanto, um direito societário da crise da empresa como um sistema autônomo, não para regular episódica e emergencialmente a crise global de 2008 ou qualquer outra, mas destinado a superar e a sobreviver essa crise global, e que deve regular a sociedade como organização e atividade na fase patológica da crise (Principi e problemi di "diritto societário dela crisi". Diritto Societario e Crisi D'Impresa, a cura de Umberto Tombari. G.Giappichelli Editore. Torino, 2014, p. 5-33). 5 O jurista italiano anota decisão do Tribunale di Roma (decreto del 7 marzo 2011) que admitiu um único processo de concordata preventiva a respeito de várias empresas de um mesmo grupo, reconhecendo a realidade econômica do grupo de sociedades (se refere a um revival da economia sobre o direito) e a atividade unitária do grupo. Defende, portanto, o superamento da unitariedade e subjetividade que pode assumir as diversas conformações das sociedades para reconhecer a unidade do grupo na insolvência. Por isso anota que se pode falar propriamente de "empresa de grupo" e não de "grupo de empresas". (Alessandro Di Majo.  I gruppi di società - responsabilità e profili concorsuali. Giuffrè Editore : Milano, 2012, p. 66-67 e 75-78). 6 Na doutrina brasileira se encontra importante e alentado estudo de J. Lamartine Corrêa de Oliveira sobre a crise da pessoa jurídica. Identificando na fenomenologia de grupo de sociedades a falta de nítida separação entre o interesse do sócio e o interesse da sociedade, porque o sócio controlador tem domínio total sobre a formação da vontade social, aceita como razoável a ideia de que no grupo de sociedades se pode ver uma pessoa jurídica de segundo grau, que não suprimiria a pessoa jurídica de primeiro grau (a sociedade), o que poderia resolver o problema de imputação à sociedade dominante como sucedâneo da inexistência da personalidade de grupo. Vê nesse caso que a crise de função da personalidade jurídica pode levar a um capítulo da crise do sistema, o que impõe o reconhecimento e qualificação de certas realidades, como é o grupo de sociedades, como sujeitos de direito. O profundo estudo da crise da pessoa jurídica desenvolvido pelo autor cumpriu uma importante etapa no pensamento jurídico brasileiro do direito societário e não se afasta substancialmente da ideia, que vai ganhando força, de que o grupo de sociedades deve ser visto como unidade, especialmente para fins de insolvência (A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo : Saraiva, 1979). 7 Vale lembrar que no direito brasileiro o grupo de sociedades é aquele formado a partir de uma Convenção (art. 265 da lei 6.404/76), ignorando-se a relevância dos grupos de sociedades de fato, que permanecem passivamente na clandestinidade. 8 A propósito desta tendência vale a transcrição do que se encontra no Guía Legislativa de la CNUDMI sobre el Régimen de la Insolvencia - Tercera parte (itens 38-39): "38. En un país (Nova Zelância), cuyo derecho interno de las sociedades mercantiles se inspira ya en el concepto comercial de la empresa única, está legalmente permitido que el personal directivo de una empresa de un grupo cuyo capital social esté total o parcialmente en manos de la sociedad matriz actúe más en interés de la sociedad matriz que de su propia empresa; en dicho país se han dictado reglas para facilitar la fusión empresarial de los grupos y se han promulgado leyes que autorizan a los tribunales para dictar mandamientos de aportación de fondos y de mancomunación de bienes o consolidación patrimonial. 39. En otro país (Estados Unidos), la normativa aplicable a las sociedades mercantiles se apoya cada vez más en el concepto de la empresa única a fin de evitar que la política legislativa subyacente a ciertas leyes especiales se vea frustrada por un recurso indebido a los grupos de empresas. La jurisprudencia de este país ha respaldado esa tendencia recurriendo al concepto de la empresa única para poder lograr los objetivos en los que se inspira la legislación mercantil en vigor. La jurisprudencia ha aplicado ese concepto al régimen de la insolvencia para declarar impugnables ciertas operaciones internas de un grupo de empresas, para confirmar las garantías internas del grupo y, en unos cuantos casos, para ordenar la consolidación patrimonial. Los tribunales están también facultados para alterar la prelación de los créditos en la liquidación de una empresa del grupo, ya sea asignando a los préstamos internos del grupo, otorgados a la empresa deudora, la prelación de participaciones en su capital social o ya sea subordinando el cobro de esos préstamos al de los créditos de los acreedores externos de la empresa" (versão original em espanhol que pode ser acessada em aqui. 9 Lições de direito da insolvência..., p. 370-375. 10 Desenvolvi um pouco mais esse tema em "O grupo de sociedades e a insolvência - uma abordagem comparativa em face da lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020" (Direito Empresarial Aplicado. Coord. Fernando Antonio Maia da Cunha e Alfredo Sérgio Lazzareschi Neto. São Paulo : Quartier Latin, 2021.).
No último artigo desta coluna procuramos distinguir os direitos reais e os direitos pessoais. Esse contraste possibilitou dar relevo a um estatuto ou regime jurídico da relação jurídica de direito real. Nesta oportunidade pretendemos ingressar em um outro aspecto de grande interesse no conhecimento dos direito reais, que diz respeito aos tipos de direitos reais limitados, especialmente os tipos de fruição ou gozo, como é o caso do usufruto, da servidão e da superfície. Estas relações de direito real não têm sido enfrentadas sob uma perspectiva do direito pessoal, que se mostra ofuscada pela força e oponibilidade do direito real. A questão da concorrência de poderes estabelecidos sobre o mesma coisa em favor de titularidades diversas, como é o caso, no usufruto, do proprietário e do usufrutuário, nos impõe penetrar nessa complexa situação jurídica real até identificar uma dupla relação jurídica, que compreende simultaneamente o direito real (exterior), que se projeta em boa parte para fora da estrutura de poder sobre a coisa, e o direito pessoal (interior), que se volta para o interior dessa relação, ambas atuando ao mesmo tempo sobre as partes envolvidas e terceiros, destacando-se o forte conteúdo obrigacional que está presente nessa relação interior, que se apresenta conexa ou coligada ao direito real. A percepção desse conteúdo obrigacional, presente mais nitidamente no usufruto e na servidão, pode levar a uma melhor compreensão dos direitos e obrigações que decorrem dessa complexa relação jurídica, como também posicionar corretamente o terceiro em face do poder decorrente do direito real. O interesse no estudo sistemático da conexão ou coligação real, observam Gustavo Tepedino e Gabriel Rocha Furtado, "não reside apenas na identificação dos valores e princípios jurídicos que permitem harmonizar o exercício de situações jurídicas incidentes sobre o mesmo bem, mas também na verificação dos efeitos que a criação, modificação ou extinção de algum desses direitos pode surtir nos demais - propósito para o qual será necessário identificar efeitos ínsitos à coligação de situações reais de fruição, de situações reais de garantia e de ambas as categorias entre si."1 A perspectiva dessa dupla relação impõe, ainda, uma revisão dos velhos conceitos a respeito da chamada obrigação passiva universal e do reconhecimento, encontrado em geral na doutrina, de uma natureza absoluta própria dessa categoria de direitos.2 A autonomia que tem o direito real limitado, em relação à propriedade, importa na existência de uma relação lógica, não com o proprietário, mas com outra situação de poder autônoma que concorre sobre a mesma coisa, objeto de ambas as relações de direito real, relação de coexistência que exige uma distinção entre ambas as situações de poder que só pode ser delimitada pela existência de elementos de uma estrutura de natureza obrigatória capaz de harmonizar as distintas relações de utilidade de que gozam. Ocorre que, segundo a doutrina de Manuel Albaladejo: "... en la realidad se dan también casos en los que derecho real (poder sobre cosa) y obligación o derecho de crédito (poder de exigir una conducta a otra persona) se dan mezclados de una u otra forma"3. É o que se verifica, de acordo com a indicação do jurista espanhol, na "Situación en la que se da como figura central un derecho real, junto al que el titular del mismo tiene ciertas obligaciones hacia otra persona o ciertos derechos de crédito contra ésta (para la que son obligaciones). Contenido obligacional que se podría llamar conexo al derecho real. Por ejemplo, las obligaciones de hacer o de no hacer que entre si tienen quien es usufructuario (usufructo, derecho real) de una cosa, y el propietario de ésta, o que tienen entre sí los que son copropietarios de una cosa. Este contenido obligacional conexo al derecho real, se suele dar porque recayendo sobre una misma cosa los derechos reales de dos personas (en los ejemplos puestos, usufructuario y propietario, o copropietarios entre sí), tienen éstas una serie de puntos de contacto que hay que disciplinar estableciendo obligaciones a cargo de una y otra."4 Os deveres presentes nessa relação jurídica são concretos, determinados, desde o início, por lei ou pelo título constitutivo do direito real limitado, e afastam essa relação jurídica concreta daquela outra posição que o titular de direito real limitado mantém frente a todos os terceiros indeterminados, dos quais se pode reclamar apenas um abstrato dever de respeito e abstenção5.  Aqui se tem, portanto, bem definida essa dupla relação, ou esse conteúdo obrigacional conexo, expressão utilizada por Albaladejo, que caracteriza o direito real sobre coisa alheia. Portanto, como bem observado na obra de Jose Luis Lacruz Berdejo em referência ao usufruto, e que se aplica igualmente a outras espécies de direitos reais sobre coisa alheia: "Hay, pues, un rico entramado de derechos, facultades, obligaciones, que vinculan a los dos protagonistas de la relación de usufructo."6 Não há como negar, portanto, o forte conteúdo obrigacional presente nos direitos reais limitados, especialmente no usufruto e na servidão, que impõe reconhecer uma dupla relação criada a partir da constituição desses direitos. Uma delas é tipicamente de direito real, envolvendo uma obrigação universal de respeito mais intensa e dirigida a terceiros não determinados, decorrente da natureza absoluta que tem o direito real e da oponibilidade que lhe é assegurada, relação jurídica que só é concretizada quando violado esse direito e que pode ser estabelecida inclusive entre o proprietário e o usufrutuário. Outra se estabelece desde o início, e não a partir da violação do direito, entre o proprietário e o titular do direito real concorrente, porque ambos têm direitos incidentes sobre uma só coisa. É uma relação jurídica delimitada por deveres de conteúdo positivo e, portanto, de natureza obrigacional, cuja violação encontra a tutela do direito pessoal (dever de ressarcimento) na própria relação jurídica constituída e não na responsabilidade aquiliana. A coexistência desses direitos sobre a mesma coisa cria essa relação complexa que não pode ser simplesmente comparada à outra, que é a propriedade, porquanto não há desmembramento de faculdades ou poderes reais em favor do titular de direito real limitado, mas uma situação nova e autônoma que deve ser regrada por uma disciplina própria capaz de harmonizar essa dupla e complexa estrutura, o que depende necessariamente da identificação da relação jurídica que se põe em questão, se de direito real ou de direito obrigacional, quando será definido o seu estatuto próprio. É um aspecto das relações de direito real pouco desenvolvido na doutrina em geral7 e raro nas discussões judiciais, mas certamente tem enorme peso na adequada decisões dos conflitos envolvendo a concorrência de poderes sobre a mesma coisa. Na nova economia compartilhada essas questões serão cada vez mais recorrentes. __________ 1 Direitos reais coligados: uma investigação que se anuncia. XXIV Encontro Nacional do Conpedi - UFS - Direito Civil-Constitucional, 2015, p. 143/162. Coord. : Ilton Garcia da Costa, Clara Angélica Gonçalves Dias, César Augusto de Castro Fiuza. Florianópolis : Conpedi, 2015 (acesso aqui). 2 Como anotam Gustavo Tepedino e Gabriel Rocha Furtado , "Tal investigação visa ao desenvolvimento de critérios valorativos para a conciliação dos exercícios de direitos reais constituídos sobre um mesmo bem. De fato, não é incomum que haja conflitos entre titulares de situações reais coligadas entre si, sejam elas de domínio, de fruição ou de garantia, ocasionados diretamente pelo nexo estrutural que une tais situações. A disciplina legal dos direitos reais sobre coisa alheia não apresenta soluções para boa parte desses conflitos (sobretudo quando eles ocorrem entre dois direitos independentes entre si, e não entre o domínio e um direito dele derivado). A multiplicidade de interações possíveis entre direitos reais constituídos sobre um mesmo bem gera uma dinâmica própria no exercício daqueles direitos - em princípio oponíveis a todos, mas que, na relação interna entre seus titulares, podem se tornar relativamente não oponíveis entre si, no âmbito de uma escala de preferência de exercícios ainda pouco analisada pela doutrina. Em outros termos, quando coligados entre si (e internamente a essa coligação), direitos reais podem se tornar relativos, a partir de critérios valorativos que determinam a tutela prioritária de certos exercícios em detrimento de outros, e que carecem de estudo pormenorizado para sua aplicação segura e adequada." (op. cit.). 3 ALBALADEJO, Manuel. Derecho civil III. 8ª ed., Barcelona: José Maria Bosch Editor, 1994. 4 Op. cit., p. 21. 5 Jesus Dominguez Platas extrai importante conclusão: "... hay que afirmar que existe una limitación al derecho de propiedad, pero ésta es sólo el efecto de la existencia de un derecho real limitado, y no basta entonces con constatar que tal límite se da; sino partiendo de él, conocer cuál sea la estructura de los derechos reales limitados, porque esa limitación no es más que el reflejo de la coexistencia sobre un mismo bien de dos derechos. Esta coexistencia, que requiere ciertamente una relación entre ambas situaciones de poder, no podrá nunca entenderse si se desconoce la verdadera relación intersubjetiva que la substenta: la que se establece entre los titulares de ambas situaciones jurídicas." (PLATAS, Jesús Domínguez. Obligación y derecho real de goce. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994.p. 105). 6 BERDEJO, Jose Luis Lacruz; REBULLIDA, Francisco de Assis Sancho; SERRANO, Agustin Luna et al. Elementos de derecho civil, III, derechos reales. 2ª ed., Barcelona: Jose Maria Bosch Editor, 1991, v. 2., p. 21. 7 Escrevi a respeito há algum tempo (Relação jurídica de direito real e usufruto. Ed. Método: São Paulo, 2007), provocado pelo Professor José Manuel de Arruda Alvim, que me orientou no meu mestrado.
As relações jurídicas de direitos reais pertencem a uma categoria própria que é identificada pelas suas características particulares. Conhecer estas características representa uma compreensão mais ampla e ao mesmo tempo aprofundada sobre a diversidade da relação jurídica de direito real, permitindo afastar dúvidas que são comuns no confronto entre os direitos reais e os direitos pessoais. Essas características são identificadas a partir do exame das duas grandes categorias das relações jurídicas privadas (direito real e direito pessoal) e passa pela revisão ou revisitação de velhos conceitos, assentados nas máximas romanas e repetidos nos antigos manuais que se encontram hoje superados. A definição das características dos direitos reais passa pela necessária distinção entre os direitos reais e os direitos pessoais. Os jurisconsultos romanos não conheceram esses dois conceitos - direito real e direito pessoal - e a própria denominação ius in re, com a qual se designam os direitos reais, não se encontra nas fontes com esse sentido1. Logo os juristas medievos impuseram à construção romana uma mudança de perspectiva que deu ao tema, definitivamente, a sua feição atual. Considerando que toda a ação tem por pressuposto um direito, deslocaram o problema para o campo substantivo, passando a falar em ius in rem e em ius in personam. Estes poderão ser definidos, numa fórmula que reflete no essencial a posição dos autores anteriores à Pandectística, respectivamente como um direito que recai diretamente sobre uma coisa, e como o direito de receber de pessoa determinada uma prestação2. Lembra Arruda Alvim que na doutrina há quem sustente um Direito Patrimonial que compreenderia o direito das obrigações e os direitos reais, procurando integrar ambos os grupos de normas, numa realidade mais ampla, num só sistema. É a Teoria Unitária Realista. Mas tem razão quando afirma: "tal como concebidos ambos os sistemas, o direito das coisas e o dos direitos obrigacionais, parece-nos difícil unificá-los num só sistema, dada a diversidade de princípios que os inspiram e que os orientam. Parece que a teoria que comumente se designa por dualista é a correta"3. Há, no entanto, uma distinção maior a ser feita entre as relações jurídicas patrimoniais e as relações jurídicas não patrimoniais, na medida em que "diversos são os valores que informam ambas as categorias de situações jurídicas. A Constituição Federal considera a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, CF), alçando as situações jurídicas não patrimoniais ou existenciais ao vértice da hierarquia dos interesses juridicamente tutelados. Para expressar a tábua axiológica (conjunto de valores estabelecidos) no direito positivo brasileiro, pode-se dizer, em linguagem comum, que, para o constituinte, o ser é mais importante que o ter"4. Limitada a nossa atenção ao direito patrimonial, e seguindo a teoria dualista, importa assinalar que os direitos destacados do domínio são direitos reais e que a relação que estabelecem do sujeito ao objeto é direta, pois não depende da intervenção de outrem, como ocorre com os direitos de obrigação, que exigem a intervenção do obrigado5. Nos direitos pessoais existe uma relação indireta ou mediata entre o seu titular e o benefício ou utilidade que esse direito implica para ele, pois o credor depende do cumprimento da prestação pelo devedor. Quanto à sua essência, os direitos pessoais representam uma faculdade, enquanto os direitos reais um poder jurídico. As coisas constituem o objeto imediato dos direitos reais, enquanto nos direitos pessoais o objeto imediato é uma determinada conduta do devedor em favor do credor, que se identifica por um dar, fazer (positiva) ou não fazer (negativa). O sujeito passivo nos direitos pessoais é certo (individualizado) e determinado. Nos direitos reais, seguindo a orientação predominante na doutrina, o sujeito passivo é sempre indeterminado e geral. Mas, observa Arruda Alvim, ocorrendo um ilícito em que se desrespeite o direito real, antes protegido genericamente de todos, individualiza-se o sujeito passivo. Assim, continua o autor, "no que diz com a identificação de um sujeito passivo de uma ação real, comparativamente à identificação de um sujeito passivo de um ilícito civil (que não seja contratual), há certa similitude. E ocorre essa semelhança porque, igualmente, em tal ilícito civil, identifica-se o sujeito com a prática do ilícito. Nasce, então, a relação obrigacional com a perpetração do ilícito, oportunidade em que se identifica, igualmente, e, pela mesma razão, o sujeito passivo. No direito real, a relação de senhoria ou de pertinência do titular com a coisa é preexistente à lesão possível ao direito real"6. Trata-se, na verdade, de uma característica decorrente do elemento externo do direito real. Do sujeito passivo nos direitos pessoais pode ser reclamada uma obrigação positiva (fazer, dar) ou negativa (não fazer). Nos direitos reais, sob a perspectiva daquele elemento externo, a obrigação do sujeito passivo é negativa e consiste em um não fazer (inação, omissão ou abstenção). É interessante notar que nos direitos pessoais o sujeito passivo, ao cumprir a obrigação de não fazer, se priva de realizar o que poderia, não fosse a obrigação assumida, o que não ocorre com o sujeito passivo nos direitos reais, pois cada pessoa ao respeitar os direitos reais não se priva de nada que se encontrava à sua disposição. É certo que, violado o direito real se tem por concretizada uma relação jurídica da qual poderá nascer outras obrigações positivas, como desfazer uma construção, pagar indenização ou entregar a coisa. A obrigação nos direitos pessoais implica em um ativo no patrimônio do credor e um passivo no patrimônio do devedor, o que não ocorre nos direitos reais. Nos direitos pessoais predomina o regime legal da autonomia da vontade que encontra limites apenas nos princípios de ordem pública, na moral, nos bons costumes e na boa-fé. Ao contrário, os direitos reais são dominados pelo princípio da ordem pública e só se deixa uma margem pequena a autonomia da vontade. A vontade das pessoas é livre para criar as mais variadas relações jurídicas pessoais, porque é ilimitado o número de direitos pessoais. Quanto aos direitos reais a situação é diferente, porquanto a liberdade das pessoas é limitada a dar nascimento apenas às figuras (tipos) de direitos reais estabelecidas em lei, de forma taxativa e em número reduzido.7 Tanto os direitos reais como os direitos pessoais nascem sempre de fatos ou atos jurídicos, mas em relação a alguns direitos reais não basta ao seu nascimento o fato ou o ato jurídico, pois é necessário que sobrevenha outro fato ou ato jurídico (modo) para que o primeiro produza o efeito da aquisição do direito determinado pelo segundo, como ocorre na aquisição de coisa imóvel, exigindo a lei, para efetiva alienação do domínio, o registro do título de aquisição no registro de imóveis. O perecimento da coisa, que é objeto imediato dos direitos reais, determina a extinção do direito. Já proclamava o art. 77, do Código Civil de 1916, que "perece o direito, perecendo o seu objeto". Em consequência, dispõe o art. 1.275, inc. IV, do Código Civil de 2002, que "perde-se a propriedade por perecimento da coisa".  Não há efeito semelhante para os direitos pessoais, porque o perecimento do objeto não determina a extinção da obrigação, que pode ser convertida eventualmente em perdas e danos. O objeto imediato dos direitos reais é a coisa atual e determinada. Admite-se nos direitos pessoais que a prestação possa recair sobre coisa atual ou futura, determinada ou indeterminada. O direito real, de acordo com José Dominguez Platas, se caracteriza pela união inseparável de dois elementos: "El denominado interno, representado por la inmediatividad sobre el bien, y el conocido como externo, instrumental respecto del anterior, que se traduce em el poder ejercitable frente a qualquier tercero llamado a respetar la relación existente entre el titular del derecho real y el bien"8. O jurista español critica, todavia, o entendimento comum encontrado na doutrina segundo o qual a relação jurídica real é estabelecida entre o titular e a coisa (teoria realista). Sustenta que não se pode chamar de relação jurídica esta situação, que compreende o elemento interno do direito real, entre a pessoa e a coisa, pois uma relação jurídica só pode ser estabelecida entre sujeitos de direitos, envolvendo especialmente o titular de um direito real de quem se exige um determinado comportamento, portanto, um dever, situação que conta, assim, com um sujeito passivo mais ou menos determinado9. Este elemento interno se traduz, na verdade, em um poder autônomo que o titular tem sobre a coisa para obter dela as utilidades necessárias à satisfação de seus interesses e que se apresenta de forma estática. O elemento externo de que fala o autor é representado em geral pelo dever universal de abstenção exigido de todos, menos o titular, para o respeito ao poder estabelecido sobre a coisa, dever negativo do qual resulta identificado o caráter absoluto do direito real, que pode ser exercitado contra todos aqueles que eventualmente tenham produzido alguma perturbação a esse poder sobre o bem. Mas há que se distinguir esse dever geral de abstenção exigido de todos, da faculdade que tem o titular do direito real de exercitar essa oponibilidade contra aquele que violou esse seu poder sobre o bem, pois somente nesse caso se pode entender a existência de uma verdadeira relação jurídica decorrente do direito real10. São relativos os direitos pessoais a respeito da sua oponibilidade, porquanto o credor só pode exigir o cumprimento da obrigação da pessoa determinada, que está vinculada àquela relação jurídica. A oponibilidade dos direitos reais, ao revés, é absoluta11, porque o seu titular pode opor contra todos - "erga omnes" - o direito e poder que tem sobre a coisa, já que todas as pessoas devem respeitar esse direito, desde que a ele se tenha dado a publicidade exigida pelo registro do título de aquisição (coisa imóvel) ou pela tradição (coisa móvel). Observe-se que a publicidade, facultativa nos direitos pessoais, é exigida para a constituição dos direitos reais, visto que sem ela o direito real não adquire a sua prerrogativa mais característica, que é a oponibilidade contra todos, e por isso não se identifica como um direito absoluto. Explica Serpa Lopes que a submissão da coisa ao homem tem por objetivo satisfazer-lhe as necessidades econômicas de sua própria existência. Mas esse poder jurídico de domínio sobre a coisa não bastaria, se não viesse completado por um outro poder jurídico assecuratório da exclusividade dessa submissão, resguardando e reprimindo qualquer intervenção de terceiro visando perturbar essa submissão que se deve processar de um modo pacífico. E daí esse poder real "erga omnes", que impede qualquer embaraço à utilização pacífica e normal do direito real12. Dessa característica, própria dos Direitos Reais, Arruda Alvim extrai importante lição: "avulta o predicado de que os direitos reais são direitos absolutos, e, por isso mesmo, justamente por isso, tem validade e eficácia 'erga omnes'. Todo o regime jurídico dos direitos reais é voltado para essa caracterização como direito absoluto, e, por isso mesmo, ao direito real agrega-se instrumental para efetivar-se essa validade e eficácia 'erga omnes'. Se os direitos reais são direitos absolutos, dentro do sistema jurídico, este predicado é, desde logo, indicativo de que - salvo leis e textos expressos, cujas hipóteses são excepcionais, e, portanto, taxativamente indicadas, porque derrogatórias desse atributo - no confronto com outros direitos, que são, precisamente, os de caráter obrigacional (pessoais ou creditórios), prevalecem os direitos reais. Deflui, precisa e justamente, desse atributo - direito absoluto - a validade e a eficácia de tais direitos, em relação a todos, quer dizer, têm os direitos reais validade e eficácia 'erga omnes'. O que se deseja sublinhar é que esses atributos - dentre outros - não são atributos discutíveis, senão que o entendimento doutrinário é absolutamente uniforme a respeito de sua existência, nos dias correntes, como, também, ao longo da história do direito. Nesse sentido, pode-se dizer que são mais do que, propriamente, princípios, mas pelo grau de certeza de que existem como tais, e, justamente porque as leis os consagram e sempre os consagraram, praticamente galgam a categoria de verdadeiros axiomas."13 É esse caráter absoluto, do qual é inerente a oponibilidade "erga omnes", que concretiza a relação jurídica quando o direito é agredido, momento em que se estabelece entre o seu titular e o agressor, agora sujeito passivo determinado, um dever concreto e positivo, de entregar a coisa, reparar o dano e restabelecer a situação anterior, e um correspondente direito subjetivo que se encontrava latente na situação jurídica real. É o poder de se opor e agir contra aquele que ofender a situação jurídica de poder sobre a coisa, que o titular do direito real tem para impor deveres, numa interação que faz nascer uma concreta relação jurídica de direito real14. Uma parte da doutrina, contudo, sustenta que esse caráter absoluto não pode servir à identificação do direito real, pois os direitos pessoais também reclamam de todos o dever de respeito. Assim, respeitar o direito real, como o direito pessoal, é obrigação que está compreendida em um dever geral de conduta. Não obstante, o dever de respeito aos direitos subjetivos se manifesta com outra densidade nos direitos reais. De acordo com Luís A. Carvalho Fernandes, não se pode de modo algum confundir o caráter absoluto dos direitos reais com a relevância externa dos direitos de crédito (eficácia externa das obrigações)15. Pensamos que a natureza absoluta dos direitos reais não decorre exclusivamente dessa oponibilidade contra todos, mas também do poder que é conferido ao titular sobre a coisa, pois há uma afetação da coisa à realização dos seus interesses que não se encontra no direito pessoal. Acrescente-se que o aproveitamento de todas as utilidades que a coisa pode produzir é imediato e extraído diretamente em favor do titular do direito real, sem pressupor a intervenção de outra pessoa, como ocorre no direito pessoal. É forte na doutrina a ideia da existência de um sujeito passivo universal nas relações jurídicas de direitos reais.  Defendemos o entendimento de que a relação jurídica de direito real se estabelece a partir da violação desse direito, não existindo um sujeito passivo universal e indeterminado. A criação de uma imagem de sujeito passivo universal, que a teoria personalista usou para negar a existência de uma relação jurídica entre a pessoa e a coisa, deve ser superada a partir do reconhecimento de que há na relação jurídica de direito real uma relação social e, portanto, uma relação entre pessoas determinadas ou determináveis. Defendemos, destarte, a existência concreta de uma relação jurídica de direito real, com a determinação do sujeito passivo, a partir da violação ou ameaça de violação do direito sobre a coisa16. A passagem do individualismo a uma visão social do direito civil, bem definida com o reconhecimento da função social da propriedade e dos contratos, não altera substancialmente o caráter absoluto do Direito Real, como direito exclusivo e oponível contra todos17. __________ 1 Anota Moreira Alves: "A distinção que hoje fazemos com base nos conceitos de direito real e de direito pessoal, os romanos a faziam no plano processual, com a dicotomia actio in rem - actio in personam (ação real - ação pessoal). Aquela é uma ação erga omnes (contra todos), em que o autor afirma o seu direito sobre a coisa, e em que o réu surge como a pessoa que se colocou entre o autor e a coisa; esta é uma ação contra determinada pessoa (o devedor), e em que o autor reclama contra a obrigação que o réu deixou de cumprir (MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano, p. 316-317). 2 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil - Reais, 4ª ed. Coimbra : Coimbra Editora, 1987, p. 15. 3 ARRUDA ALVIM NETO, José Manuel de. Breves Anotações para uma Teoria Geral dos Direitos Reais.  Posse e Propriedade, sob a coordenação de CAHALI, Yussef Said. São Paulo : Saraiva, 1987, p. 47. 4 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil, tomo II. Rio de Janeiro : Renovar, 2006, p. 137. 5 ALMEIDA, Lacerda. Nas obrigações de dar, afirmava o autor, "é que se vê clara a diferença entre o direito real e o direito pessoal. O intuito final do titular do direito, real ou pessoal é - chegar à posse e disposição da coisa ou exercer direitos sobre a coisa: no direito real esse poder se exerce diretamente; no pessoal ou creditório indiretamente, por intermédio do devedor" (ALMEIDA, Francisco de Paula de Lacerda de. Direito das Coisas. Rio de Janeiro : J. Ribeiro dos Santos, 1908, p. 19, nota n. 5). 6 ARRUDA ALVIM NETO, José Manoel de. Breves Anotações para uma Teoria Geral dos Direitos Reais.  Posse e Propriedade, sob a coordenação de CAHALI, Yussef Said. São Paulo : Saraiva, 1987, p. 49. 7 Ver a respeito da tipicidade dos direitos reais o nosso artigo "A tipicidade dos direitos reais e os fatos e negócios jurídicos com repercussão no registro de imóveis - O caso Maison de Poésie", publicado nesta coluna. 8 PLATAS, Jesús Dominguez. Obligacion y Derecho Real de Goce. Valencia : Tirant lo Blanch, 1994, p. 38. 9 Op. cit., p. 42-43. 10 Explica Jesus Dominguez Platas que: "... la absolutividad del derecho real no hay que explicarla necesariamente mediante el esquema de la relación jurídica con todos los terceros, pues sólo después de la violación podrá nacer una relación entre el titular del derecho e el tercero responsable de tal transgresión. En toda relación jurídica, la pretensión, entendida como exigencia concreta, sólo es referible a personas determinadas, y em materia de derechos reales únicamente surge con la lesión del derecho." (Op. cit., p. 56-57). 11 Lembra Serpa Lopes que a oponibilidade do direito real não é sempre absoluta e frequentemente ela pode ser restrita aos terceiros que tiveram, ou puderam ter conhecimento do direito, citando, como exemplo, a falta de averbação na matrícula de cada imóvel, do pacto antenupcial, bem como a falta de averbação da restauração da sociedade conjugal, e ainda, quanto aos bens móveis, a falta de transcrição, no Registro de Títulos e Documentos, dos pactos de reserva de domínio (SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil. 4ª ed. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, v. 6,  p. 31). 12 Op. cit., p. 28-29. 13 ARRUDA ALVIM NETO, José Manoel de. No Confronto entre uma Situação de Direito Real e outra de Direito Obrigacional - salvo Lei Expressa em Sentido Contrário - Prevalece, Sempre, a Situação de Direito Real, Legitimamente Constituída. Revista de Direito Privado, São Paulo :  RT, nº 4, 2000,  p. 171-172. 14 Em vista dessa peculiar situação JESUS DOMINGUEZ PLATAS afirma que: "... la absolutividad considerada como deber de respeto o de abstención significa eficacia, si bien desde uma perspectiva estática: referida a la defensa del derecho. Por contra, la oponibilidad, como significado más estricto de aquélla, hace referencia también a la eficacia, pero desde un punto de vista dinámico: el de su realización, de su exigibilidad. Estas razones podrián hacer considerarlas como dos modos diferentes de entender la eficacia del derecho real, aunque no por ello pierdan su carácter homogéneo" (Op. cit., p. 69). 15 FERNANDES, Luíz A. Carvalho. Lições de Direitos Reais. 2ª ed. Lisboa : Quid Juris,1997, p. 44-45. 16 Estas ideias estão expostas em obra de nossa autoria ("Relação Jurídica de Direito Real e Usufruto", publicada pela Editora Método, 2008). 17 ARRUDA ALVIM escreveu a esse respeito que: "Em nosso sentir, nem pela circunstância de ter-se alterado o panorama valorativo que serve de pano de fundo ao direito civil, passando-se do individualismo para uma visão social do direito em geral, do direito civil e do direito privado, desde que nos encontremos diante de um direito real, legitimamente criado, este não haverá de deixar de ser considerado como direito absoluto. Por outras palavras, nem pela circunstância de se terem alterado os valores que presidiram o direito civil, para os que, atualmente o presidem, dever-se-á alterar essa categoria, para o caso, dentro da qual continuam a se encartar os direitos reais. O que, de resto, e, paralelamente, não há de significar ignorância em relação a essa mutação de valores. A noção de direito absoluto é a que explica o fato de que a propriedade envolve o direito à exclusividade (art. 1.231, CC)" (ARRUDA ALVIM NETO, José Manoel de. Princípios Gerais do Direito das Coisas: Tentativa de Sistematização. Atualidades de Direito Civil, v. I, ARRUDA ALVIM, Angélica; CAMBLER, Everaldo Augusto. (coord). Curitiba : Juruá, 2006, p. 173-174).
Há algum tempo me interessou investigar a rigidez das regras legais de adimplemento da obrigação. O enorme poder que a lei confere ao credor sempre  incomodou o meu espírito acadêmico. Escrevi a respeito na minha tese de doutorado1 e um pouco depois publiquei um artigo em obra coletiva2. Volto ao tema, contido pelos limites da nossa coluna, com o propósito de compartilhar as minhas reflexões e questionar esse poder olímpico que os nossos códigos liberais concederam ao credor. Orlando Gomes afirmava que "a satisfação da prestação devida é indispensável ao cumprimento exato da obrigação. Se consiste em dar coisa certa, há de entregar precisamente essa coisa, e não outra. Nas obrigações de fazer, está adstrito a prestar o serviço ou praticar o ato a que estritamente se obrigou. E assim por diante. Nas obrigações de dar o devedor não pode substituir a coisa por outra, somente por acordo entre as partes se admitindo a substituição, mediante dação em pagamento - datio in solutum -, que produz o mesmo efeito, como ocorre quando o devedor, não podendo saldar uma dívida pecuniária, oferece ao credor, em troca, um bem imóvel. Se este aceita a substituição, a obrigação extingue-se. No Direito moderno não se admite a dação em pagamento coativa que, sob a forma de benefício, era aceita no Direito Romano. O beneficium dationis in solutum consistia na faculdade de substituição concedida ao devedor que não possuísse dinheiro ou móveis. Permitia-se que pagasse dívida pecuniária, transmitindo ao credor bem imóvel, para o qual não houvesse encontrado justo preço. Não se tolera, outrossim, o pagamento parcelado da dívida exigível por inteiro, ainda que a prestação seja divisível. A execução há de ser integral"3. Percebe-se nitidamente na doutrina clássica uma interpretação rigorosa a respeito do adimplemento da obrigação, o que se explica pelo valor que sempre se deu à autonomia da vontade nos Códigos Liberais. O rigor se reflete particularmente em dois dispositivos do Código Civil. No art. 313 a lei acolheu o princípio da correspondência ou identidade da prestação e estabeleceu a impossibilidade de substituição do objeto da prestação (O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa), e no art. 314 a lei firmou o princípio da indivisibilidade ou integridade da prestação (ainda que a obrigação tenha por objeto prestação divisível, não pode o credor ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por partes, se assim não se ajustou)4. Ambos os dispositivos representam o princípio da intangibilidade da obrigação. Esse rigor não existia no Direito Romano. José Carlos Moreira Alves anota: "No período justinianeu, admitia-se o beneficium dationis in solutum, que era uma dação em pagamento (datio in solutum) coativa, pela qual o devedor, independentemente do consentimento do credor, se eximia da obrigação; esse beneficium se concedia a devedor de quantia certa que, possuindo apenas imóveis, não encontrasse comprador que lhe oferecesse preço justo com que pagasse o débito, motivo por que podia, então, desobrigar-se com a entrega ao credor de um ou de alguns dos imóveis, pelo valor da avaliação por autoridade competente. Por outro lado, alguns devedores somente podiam ser condenados in id quod facere possunt (naquilo que podem fazer), em virtude do beneficium competentiae, cuja função variou no direito clássico e no direito justinianeu"5. O devedor, de acordo com José Carlos Moreira Alves, não poderia ser condenado a pagar mais do que seu patrimônio permitia. E o autor registra: "No direito justinianeu, modifica-se a função do beneficium competentiae: o devedor que dispõe dele contra o credor não pode ser privado, para o cumprimento integral da obrigação, dos meios indispensáveis à sua subsistência"6. A questão da indivisibilidade da prestação7, quando a natureza do objeto admite fracionamento (divisibilidade objetiva), está diretamente ligada à vontade das partes ou da lei, o que determina outra visão sobre o problema e atenua o rigor com o qual sempre se tratou a possibilidade de modificação do cumprimento da obrigação originariamente constituída. Se a vontade não tem hoje o valor absoluto que a ela emprestou o Liberalismo, já não há dificuldade maior para admitir a modificação do que foi estritamente contratado8. A rigidez no direito obrigacional se situa mais precisamente, como visto, no princípio que reclama o cumprimento exato da obrigação. Defende-se, a partir da ideia de que a justiça está nos termos do contrato e de que a vontade tem valor absoluto, que a obrigação deve ser rigorosamente cumprida, na forma, tempo e lugar contratados. Qualquer desvio representa inadimplemento e autoriza a parte a resolver o negócio e a exigir perdas e danos. Por isso o credor não está obrigado a aceitar em partes o que se convencionou entregar por inteiro, como não está obrigado a aceitar coisa diversa, ainda que de maior valor. Não se propõe, quando se fala em flexibilização das regras legais de adimplemento do contrato, o relaxamento do vínculo obrigacional, e por isso não se sustenta a quebra dos princípios que se traduzem na intangibilidade do contrato. O que se propõe é o reconhecimento de que o princípio que exige o exato cumprimento da obrigação comporta certa flexibilidade, não para descaracterizá-lo, mas, ao contrário, para que se possa encontrar os meios necessários à execução da obrigação, evitando o rompimento do contrato. Conduzir as partes ao cumprimento do contrato, ainda que de forma diversa daquela programada, é reconhecer a força obrigatória que ele tem. A ideia de flexibilização do cumprimento das obrigações não é nova e Pothier, a seu tempo, já defendia a possibilidade de pagamento parcial da prestação que se convencionou por inteiro, por decisão do juiz, em consideração da pobreza do devedor9. Reconhece Orlando Gomes que a regra proibitiva de o devedor pagar em parcelas a dívida não é absoluta e anota duas exceções: a) a que é imposta pelo preceito segundo o qual os herdeiros do devedor, feita a partilha, só respondem, cada qual, em proporção da parte, que na herança lhe coube. b) a que decorre da insuficiência dos bens do devedor executado judicialmente; se não são bastantes, o credor recebe a parte cobrável, remanescendo o crédito na parte restante10. Acrescenta Pontes de Miranda outra hipótese de exceção: concurso de credores. O credor pode cobrar somente parte, embora tenha ação e pretensão pelo todo11. O credor tem o direito de exigir o cumprimento exato da obrigação, dada a intangibilidade da relação, da qual decorre o princípio da integridade da prestação. No entanto, há certas situações que a modificação da forma de execução da obrigação não é capaz de prejudicar o fim para o qual ela foi constituída e que representa o interesse de ambas as partes programado no contrato. Em vez do contrato irrevogável, fixo, cristalizado de ontem, sustenta Arnoldo Wald, "conhecemos um contrato dinâmico e flexível, que as partes devem adaptar para que ele possa sobreviver, superando, pelo eventual sacrifício de alguns dos seus interesses, as dificuldades encontradas no decorrer da sua existência. A plasticidade do contrato transforma a sua própria natureza, fazendo com que os interesses divergentes do passado sejam agora convertidos numa verdadeira parceria, com maior ou menor densidade, na qual todos os esforços são válidos e necessários para fazer subsistir o vínculo entre os contratantes, respeitados, evidentemente, os direitos individuais"12. Trata-se "de uma verdadeira nova concepção do contrato, já agora como ente vivo, como vínculo que pode ter um conteúdo variável, complementado pelas partes, por árbitros ou até pelo Poder Judiciário"13. O anteprojeto do Código Europeu dos Contratos, que constitui verdadeira teoria geral dos contratos e que deve orientar a aplicação do direito nos países da comunidade europeia, admite a possibilidade de dilação de prazo para o cumprimento das obrigações, concedido pelo juiz por motivos razoáveis. Está é a redação do respectivo dispositivo: "Art. 96. Mora del deudor 1. No puede considerarse que el deudor incurre en mora: a) si no se ha pactado para el cumplimiento ninguna fecha final, ni término constituido por un periodo determinado de días, meses o años, y el acreedor no ha requerido previamente al deudor, por escrito, el cumplimiento de la obligación fijándole un plazo razonable; b) si el acreedor o el juez han concedido previamente al deudor un plazo adicional para el cumplimiento."14 O aprazamento está sujeito a certos requisitos: "Si el acreedor o el juez han concedido al deudor la facultad de pagar a plazos la deuda, éste pierde el beneficio del aplazamiento si no efectúa un desembolso superior a la octava parte de la deuda" (art. 110.2)15. No mesmo sentido a exigência de fixação de prazo adicional de cumprimento da obrigação para a resolução do contrato encontrada no art. 8.106 dos Princípios de Direito Europeu de Contratos: "En caso de retraso en el cumplimiento, que no sea sustancial, la parte prejudicada que ubiera notificado la fijación de un nuevo plazo de una duración razonable, puede dar por terminado el contrato al finalizar ese período."16 Também se vê a relativização das regras sobre a execução da obrigação nos Princípios UNIDROIT sobre os Contratos Comerciais Internacionais (2004), cujo art. 6.1.3 admite a oferta de cumprimento parcial da obrigação se o credor não tem legítimo interesse para recusá-la. A relativização das regras de adimplemento é, como visto, um imperativo de justiça nas relações obrigacionais e um fenômeno presente nos movimentos de universalização ocidental do direito privado. Não há mais aceitação no moderno direito contratual das posições absolutas fundadas na antiga autonomia da vontade. O superamento das vicissitudes da execução das obrigações passa pela razoável flexibilização das regras que, no modelo liberal, enrijeceram para atender interesses que não estão mais presentes no Estado Social (queiram ou não é o Estado definido pela nossa Constituição). Vencer o egoísmo, o abuso e o individualismo exigem a aplicação inteligente das regras de adimplemento, colocadas finalisticamente em proveito não só do interesse das partes, mas da sociedade, num processo de humanização das relações que está hoje amparado e promovido pela Constituição. A flexibilização das rígidas regras de adimplemento e a possibilidade de criteriosa dilação da execução da obrigação ou divisibilidade da prestação são, nos casos justificados, medida de justiça. À doutrina e à magistratura, nas palavras de Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, "cabe romper definitivamente com a tradição liberal e individualista, buscando construir um direito obrigacional coerente com a legalidade constitucional, que se proponha não à manutenção neutra e acrítica de uma pretensa submissão do devedor ao credor, mas à proteção de interesses compatíveis com a dignidade humana, com a solidariedade social e com a igualdade substancial, caracterizando a tendência à eticização das relações negociais. A persecução desse objetivo - que corresponde ao ditado constitucional - consiste na premissa metodológica que deve guiar a interpretação do direito das obrigações no Código Civil"17. Os códigos geralmente não surgem muito bons, observa Renan Lotufo, "mas, pouco a pouco, com o trabalho da doutrina e da jurisprudência, vai-se lendo o que neles não está escrito, deixando-se de ler, muitas vezes, o que nele está e, no final de certo tempo, por força da sua utilização, da comutação dessas lacunas, da eliminação de certos princípios da sua literalidade, o código vai melhorando e, no final de certo tempo, já se considera que é um bom código"18. A mudança de paradigmas incomoda o espírito conservador do civilista e as novas soluções encontradas para antigos problemas se afiguram às vezes teratológicas diante da velha lógica subsuntiva. Por isso já observava Orlando Gomes que "passando o modo de agir na sociedade a se condicionar a interesses coletivos, vigilantemente defendidos pelo Estado e por grupos de potencialidade social desenganada, a quantidade das ações orientadas nesse sentido converte-se necessariamente em qualidade, isto é, determina novo tratamento, a que se tornaram imprestáveis princípios, construções e conceitos ordenados em função de outro tipo de conduta. Os juristas acadêmicos, atônitos diante de novos fatos que desacreditam velhos conceitos, encaram como insuportáveis monstruosidades jurídicas as soluções criadas para atender às novas exigências da convivência social, e tentam reduzir os fatos novos aos conceitos tradicionais a que repugnam. Mas o esforço que fazem nesse sentido tem concorrido apenas para avivar a incompatibilidade"19. ---------- 1 O texto integral da tese de doutorado foi publicado pela Escola Paulista da Magistratura, com o título: A intervenção judicial no contrato em face do princípio da integridade da prestação e da cláusula geral da boa-fé - uma nova visão do adimplemento contratual. Pode ser acessado livremente aqui. 2 A flexibilização do princípio da integridade da prestação e a possibilidade do parcelamento da dívida. "Temas Relevantes do Direito Civil Contemporâneo". Coord. de Renan Lotufo, Giovanni Ettore Nanni e Fernando Rodrigues Martins. São Paulo : Atlas, 2012. 3 GOMES, Orlando. Obrigações. Atualizada por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 112. 4 São disposições iguais aos arts. 863 e 889 do Código Civil de 1916, com pequenas modificações de redação que não alteraram o conteúdo. Antes do Código Civil de 1916 preceitos semelhantes eram encontrados na Nova Consolidação das Leis Civis de Carlos Augusto de Carvalho (arts. 867, 1.046 e 888, § 2º). 5 ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, v. II. p. 41. 6 Op. cit., p. 41-2. 7 Na verdade, a indivisibilidade ou divisibilidade da prestação está ligada ao adimplemento. É, portanto, o adimplemento que se divide ou não. Nesse sentido também é o comentário feito por Judith Martins-Costa: "Isto está a significar que a indivisibilidade, ou divisibilidade, é do adimplemento, e não do objeto (indireto) da prestação." (Comentários ao novo Código Civil: volume V, tomo I - do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 184) 8 Esse valor absoluto conferido à liberdade, fonte da autonomia da vontade, revelou que o interesse privado e o social nem sempre se harmonizam naturalmente. Por isso Keynes atacou as bases do laissez-faire afirmando que "não é verdade que os indivíduos possuem uma 'liberdade natural' prescritiva em suas atividades econômicas. Não existe um contrato que confira direitos perpétuos aos que os têm ou aos que os adquirem. O mundo não é governado do alto de forma que o interesse particular e o social sempre coincidam. Não é administrado aqui embaixo para que na prática eles coincidam. Não constitui uma declaração correta dos princípios da Economia que o autointeresse esclarecido sempre atua a favor do interesse público. Nem é verdade que o autointeresse seja geralmente esclarecido; mais frequentemente, os indivíduos que agem separadamente na promoção de seus próprios objetivos são excessivamente ignorantes ou fracos até para atingi-los" (KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Tradução de Mário R. da Cruz. São Paulo: Nova Cultural, 1985. p. 120. - Os Economistas). 9 POTHIER, Robert. Tratado das obrigações pessoaes e reciprocas. Tradução de José Homem Corrêa Telles. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1906. t. II. p. 23. Era também, segundo Orosimbo Nonato, a doutrina de Dumoulin, segundo o qual "témoigne avoir vu diviser le payement, de la dette, afin de le rendre plus facile à dês débiturs malheureux et pauvres". Registra Orosimbo Nonato que os juristas antigos também pensavam assim e lembra Delvincourt, Toullier, Bononne, Rodière, Zachariae, Aubry et Rau e Colmet de Santerre. Anota, ainda, que esses juristas sempre invocavam, entre outras lições, aquela encontrada na Bíblia, no Evangelho de São Mateus, que se refere à "parábola do credor incompassivo" (cap. 18, vv. 23-35). A referida passagem bíblica conta a condenação do servo credor que, tendo sido ouvido e perdoado pelo senhor quando exigido o pagamento de suas dívidas, não foi tolerante e igualmente compreensivo com o seu devedor, que lhe suplicava o pagamento em parcelas (NONATO, Orosimbo. Curso de obrigações, segunda parte. Rio de Janeiro: Forense, 1960. v. I. p. 130-1). 10 Obrigações. Atualizada por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 112-3. 11 Tratado de direito privado. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. 1. ed. Campinas: Bookseller, 2003. t. XXII. p. 196). 12 Um novo direito para a nova economia: a evolução dos contratos e o Código Civil. In: DINIZ, Maria Helena; SENISE LISBOA, Roberto (Coord.). O Direito Civil no século XXI. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 86. 13 WALD, Arnoldo. Op. cit., p. 87. 14 Tradução para o espanhol de Gabriel García Cantero, Catedrático de Direito Civil, Emérito da Universidad de Zaragoza e Membro da Academia de Jusprivatistas Europeos de Pavía (Disponível aqui. Em outros dispositivos há regra semelhante (arts. Art. 92, 93 e 94). 15 Cuida este dispositivo do prazo suplementar e benefício de pagamento a prazo concedido ao devedor: "Art. 110. Plazo suplementario y beneficio de pago a plazos 1. Si el acreedor o el juez han concedido un plazo suplementario al deudor que todavía no ha iniciado el cumplimiento o que sólo lo ha efectuado parcialmente, el acreedor no puede, hasta el vencimiento del término, hacer uso de los remedios previstos en los artículos siguientes, a reserva de la facultad de solicitar al juez medidas cautelares o la suspensión de tal plazo, sin perjuicio de eventuales daños y perjuicios. 2. Si el acreedor o el juez han concedido al deudor la facultad de pagar a plazos la deuda, éste pierde el beneficio del aplazamiento si no efectúa un desembolso superior a la octava parte de la deuda." (Tradução para o espanhol de Gabriel García Cantero, Catedrático de Direito Civil, Emérito da Universidad de Zaragoza e Membro da Academia de Jusprivatistas Europeos de Pavía. Ibidem). 16 Tradução para o espanhol de DÍEZ-PICAZO, Luis; TRIAS, E. Roca; MORALES, A. M. Los principios del derecho europeo de contratos. Madrid: Civitas, 2002. p. 63. 17 Código Civil comentado: direito das obrigações - artigos 233 a 420. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça (Coord.). São Paulo: Atlas, 2008. v. IV. p. 3. 18 LOTUFO, Renan. Código Civil comentado: parte geral (arts. 1º a 232). São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. p. 5-6. 19 GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 5-6.
Completamos agora a publicação do artigo com a sua terceira parte (o leitor poderá acessar a primeira parte e a segunda parte nesta coluna). Procuramos destacar até aqui o poder de disposição da coisa que é conferido ao consignatário, como uma parcela do direito real. É um aspecto pouco desenvolvido pela doutrina, mas com enorme repercussão prática. Nesta última parte, examinamos outros efeitos jurídicos do contrato, com base, igualmente, no poder de disposição da coisa. Para determinar os efeitos jurídicos do contrato estimatório é necessário lembrar que ao consignatário se transmite a posse direta da coisa. Há um desmembramento da posse promovido pela relação jurídica estabelecida com o contrato estimatório, identificando a situação prevista no art. 1.197 do CC. O consignatário não tem detenção da coisa (art. 1.198, CC), porque, como visto, recebeu uma parcela de poder sobre a coisa (disposição) que lhe confere o exercício de algum dos poderes inerentes à propriedade (art. 1.196, CC). Esse poder que se reconhece em favor do consignatário é o que define a sua posse sobre a coisa. Levanta-se a questão da possibilidade de o consignatário fazer uso da coisa. A resposta deve ser negativa quando o consignatário não for autorizado expressamente pelo consignante. Se o fizer, motivará a rescisão do contrato estimatório com o efeito imediato da restituição da coisa. Se causou danos deverá indenizar o consignante. A proibição de uso da coisa decorre da obrigação de restituição da coisa ao final do prazo nas condições em que ela foi recebida. No entanto, o uso da coisa pode ser identificado com a vontade do consignatário de ficar com ela, o que o obriga a pagar o preço. A coisa poderá receber melhoramentos e acréscimos. Se a coisa recebeu melhoramentos ou acréscimos, sem despesa ou trabalho do consignatário, ela será restituída com os acréscimos sem que seja devida qualquer indenização (art. 241). Se para o melhoramento ou aumento da coisa (acréscimos) o consignatário empregou trabalho ou dispêndio, terá direito à indenização, desde que se reconheça a sua boa-fé, lembrando que a respeito das benfeitorias voluptuárias não haverá indenização. Se o consignatário agiu de má-fé, terá direito à indenização apenas pelas benfeitorias necessárias, perdendo as úteis e voluptuárias realizadas. Ao consignatário poderá ser reconhecido o direito de retenção pelas benfeitorias necessárias e úteis que realizou de boa-fé. Aquele que agiu de má-fé não terá direito de retenção. A respeito dos frutos percebidos deve ser aplicada a regra do art. 242, parágrafo único, do CC. Aquele que percebeu frutos de boa-fé não será obrigado a indenizá-los. Mas pertencem ao consignante os frutos pendentes e os colhidos com antecipação. A boa-fé do consignatário decorre do conhecimento que ele tem a respeito do exercício da posse do bem. Se ele sabe que a sua posse é injusta, age de má-fé. É o que se pode dizer do consignatário que, depois de vencido o prazo ou não cumprida a obrigação de restituir, insiste em reter a coisa, que não vendeu, sem pagar o preço. Neste caso o consignatário está em mora e tem a posse precária, que é injusta, e não pode alegar ignorância. Logo, só terá indenização pelas benfeitorias necessárias que fez de má-fé, sem direito a retenção. Contudo, lhe é assegurado o direito à indenização das benfeitorias que promoveu enquanto tinha posse de boa-fé (necessárias e úteis). O consignatário não poderá exigir do consignante qualquer despesa que tenha realizado para a venda do bem, ainda que frustrada no prazo previsto. Também não poderá, à evidência, pretender compensação dessas despesas com o preço. É que as despesas são realizadas em proveito do consignatário, que pode ganhar com o sobrepreço, daí não lhe ser lícito qualquer pretensão a esse respeito contra o consignante. A regulamentação do contrato estimatório veio a preencher um vazio no direito brasileiro e a dar maior segurança a esse negócio que sempre foi praticado. Em razão das lacunas deixadas pela lei brasileira, e a multiplicidade de relações jurídicas envolvendo esse contrato, devem as partes procurar regular bem, e por escrito, os seus interesses, definindo prazos, valores, encargos da mora e cláusulas sobre a indenização e retenção por benfeitorias. É importante, igualmente, que o contrato se preocupe em descrever o estado em que se encontra a coisa entregue ao consignatário, prevenindo litígios. A coisa é transferida pelo titular ao consignatário, naturalmente, para a venda. Essa é a finalidade do contrato. Por isso, adverte ARNALDO RIZZARDO, que não cabe pensar, antes da venda ou comercialização, deva o consignatário pagar o preço. Muito menos se cogita de se autorizar ao proprietário uma medida de recuperação, após a venda pelo consignatário, caso não receba o pagamento, salvo se o comprador agir de má-fé, quando eventualmente combinado com aquele que fez a entrega, numa venda aparente e não real. Daí, afirma, inserir um alto risco esta modalidade de negócio, pois se presta aos desonestos receberem os bens, vendê-los e não efetuar o pagamento a quem os entregou. Pressuposto primeiro, para a viabilidade dessa modalidade de venda, é a segurança (confiabilidade) que desperta aquele que recebe a mercadoria. Tem razão o experiente civilista gaúcho. Ao consignante não cabe nenhuma medida para a recuperação do bem alienado pelo consignatário, porque lhe outorgou o poder de disposição. O risco reclama cautela na escolha do consignatário e cuidado na realização do contrato, mas não deve inibir a prática desse importante negócio para as relações sociais e a circulação da riqueza. Referências ALPA, Guido. Istituzioni di diritto privato. 2ª ed. Torino: Utet, 1997. BULGARELLI, Waldirio. Contratos mercantis. 9ª ed. São Paulo : Atlas, 1997. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 3 : teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 20ª ed. São Paulo : Saraiva, 2004. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: contratos - teoria geral e contratos em espécie. 5ª ed. São Paulo : Altas, 2015. FARINA, Juan M. Contrato estimatório. Revista Jurídica Argentina La Ley. Buenos Aires : La Ley, 1966. GONÇALVES, Luiz da Cunha. Da compra e venda no direito comercial brasileiro. São Paulo : Max Limonad, 1950. KASER, Max. Direito privado romano. Tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. 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O projeto do novo código civil: situação após a aprovação pelo senado federal. 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 1999. RIZZARDO, Arnaldo. Contratos, 6ª ed.  Rio de Janeiro : Forense, 2005. SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Contratos nominados II : contrato estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo (comodato - mútuo). São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2005. - (Biblioteca de direito civil. Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale ; v. 4). Coordenação de Miguel Reale e Judith Martins-Costa. SANTOS, J. A. Penalva. Contrato estimatório. Doutrina, coordenação James Tubenchlak. Rio de Janeiro: Instituto de Direito, 1996. SOUZA, Sylvio Capanema de. Comentários ao novo código civil, volume VIII: das várias espécies de contrato, da troca ou permuta, do contrato estimatório, da doação, da locação de coisas. Coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2004. TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código civil interpretado conforme a Constituição da República - vol. II. Rio de Janeiro : Renovar, 2006.
Na última semana publicamos a primeira parte do artigo. Segue agora a segunda parte, que cuida dos elementos e dos efeitos do contrato estimatório. O contrato estimatório tem como objeto coisa móvel infungível. Entenda-se coisa móvel como corpórea, concreta e tangível. Bens imateriais não podem ser objeto desse contrato, que tem natureza real e exige a sua entrega material ao consignatário. Há quem admita a posse como objeto deste contrato, porque ela tem valor econômico e pode ser transferida independentemente da propriedade (PAULO LUIZ NETTO LÔBO). As coisas imóveis, porque não podem ser objeto de tradição real, estão excluídas. PONTES DE MIRANDA e PAULO DE TARSO VIEIRA SANSEVERINO não encontram proibição no contrato estimatório de coisas imóveis. No âmbito do direito privado predominam as normas dispositivas e não havendo regra proibitiva expressa deve ser aceita a celebração do contrato estimatório de coisa imóvel. Esse é o argumento utilizado. Nesse sentido também a opinião de ROSENVALD e FARIAS, que invocam o direito austríaco em abono da tese de que não havendo proibição é possível celebrar o contrato estimatório sobre imóveis.   Com o devido respeito, não aceitamos essa opinião, porque o poder de disposição do consignatário impõe o recebimento da coisa. Sucede que a coisa imóvel só pode ser transmitida pelo registro, espécie de tradição ficta, que não tem tipificação real para o contrato estimatório, impedindo a vontade das partes de fazer celebração dessa natureza sem ofensa ao princípio da legalidade e da continuidade aplicados no registro de imóveis. O consignatário não poderia vender o imóvel e outorgar a escritura, pois o bem está registrado em nome do consignante. Assim, poderia ser outorgado um mandato ou firmado contrato de corretagem, figuras que se aproximam do negócio estimatório, embora inconfundíveis. As coisas fungíveis e as consumíveis podem também ser objeto do contrato estimatório. Todavia, neste caso a entrega dessas coisas ao consignatário opera a transmissão da propriedade, restando ao consignante, que deixa a qualidade de proprietário, apenas um crédito, pois outras coisas poderão ser restituídas ao final do prazo previsto no contrato. Cuida-se de uma espécie imprópria de contrato estimatório. O valor da coisa (preço) pode ser estimado desde logo ou poderá ser determinado no momento da opção do consignatário, podendo ser fixado pela cotação em bolsa, tabelas ou periódicos. Nada impede, também, que seja estabelecido por um terceiro designado no contrato. Lembra PENALVA SANTOS que o valor pode ser estimado abaixo do preço de mercado para motivar o consignatário a aceitar o negócio. O que prejudica a validade do negócio é a indeterminação do preço, por falta de elementos previamente definidos no contrato, porquanto o valor da coisa constitui elemento essencial do negócio. SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA lembra que é nulo o contrato quando o preço ficar ao arbítrio de qualquer uma das partes, o que caracteriza a condição meramente potestativa (art. 122, CC). O contrato estimatório pode ser realizado entre pessoas naturais ou jurídicas. É necessário que o consignante seja proprietário do bem e dele tenha disponibilidade, pois o contrato entrega ao consignatário a sua disponibilidade absoluta. Embora o art. 534 do CC faça referência a um contrato com prazo determinado, nada impede que ele seja firmado com prazo indeterminado, entendendo-se que nesse caso o prazo será aquele necessário à venda do bem, de acordo com os usos e os costumes (art. 134, CC). Caberá ao consignante, nesse caso, interpelar o consignatário a restituir o bem ou pagar o preço, dependendo dessa notificação para que ele seja constituído em mora (ex persona), de acordo com o art. 397, par. único, do Código Civil. É a opinião de CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA e SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA. Entende-se que o prazo é estabelecido em favor do consignatário (art. 133, do Código Civil), de forma que a ele deve ser assegurado o direito de fazer a restituição do bem antes de vencido o prazo, salvo se o contrato estabelecer de forma diversa (SILVIO VENOSA). Ao consignante, por esta razão, não será dado exigir a restituição do bem antes de vencido o prazo contratado, que deverá respeitar para que o consignatário possa tirar o proveito esperado do negócio com a venda do bem e o lucro do sobrepreço. Embora ao consignatário não se possa exigir a exibição da coisa, as partes podem convencionar obrigação dessa natureza para impor ao consignatário a obrigação de expor a coisa à venda em certo lugar ou não expor em outro. Também pode ser convencionado que a coisa não será vendida em certas circunstâncias ou abaixo de certo valor. Tudo com o propósito de proteger a marca ou outros interesses do consignante. Não impõe o Código Civil uma forma solene para o contrato estimatório. Logo, é livre a sua celebração, que poderá ser verbal ou escrita, seguindo o negócio a forma que melhor interessar às partes. Mas é sempre conveniente que se faça o contrato por escrito, com testemunhas, para prevenir litígio futuro. Para a validade do negócio são exigidos os requisitos necessários a qualquer contrato, como a capacidade, legitimidade e o consentimento das partes. Não há nenhuma consequência para a devolução do bem ao consignante quando não realizada a venda, como não há responsabilidade prevista para o consignatário se ele não encontrar comprador ou não se empenhar em fazê-lo. Ele se compromete a vender o bem, mas não assume a obrigação de resultado (SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA). Não se olvide, contudo, que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé (art. 422, CC), o que significa que o consignante não poderá embaraçar a venda ou criar impedimentos para que ela se realize. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA enumera as principais características do contrato estimatório: a) exige a entrega da coisa; b) esta deve ser bem móvel; c) acarreta obrigação para o accipiens de restituí-la ou pagar o preço; d) o preço é elemento essencial, devendo ser previamente estimado; e) é contrato a termo, devendo ser cumprido no prazo estipulado; f) transfere ao consignatário a disponibilidade da coisa. O contrato estimatório transfere os riscos de perda e deterioração da coisa ao consignatário, que não se exime de pagar o preço ainda que a impossibilidade de restituição da coisa seja decorrente de fortuito ou força maior (art. 535). Há neste caso uma inversão da teoria dos riscos (res perit domino), que atribui ao dono da coisa o prejuízo.  Alguma dúvida poderia ser levantada a respeito, pois há quem sustente que essa obrigação sem culpa só poderá ser exigida quando a perda ou deterioração ocorreu após o prazo do contrato, mas é forte a redação do dispositivo legal citado a atribuir ao consignatário toda a responsabilidade pela coisa em razão da singularidade da situação em que a coisa se encontra em seu poder. Cuida-se, nas palavras de ROSENVALD e FARIAS de responsabilidade objetiva com risco integral. Como consequência, poderá o consignante recusar a restituição da coisa, caso pretenda o consignatário devolvê-la deteriorada, porquanto se refere o art. 535 do Código Civil à restituição em sua integridade. Daí se infere, nas palavras de SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA, que é da maior importância a perfeita descrição do estado da coisa no momento da consignação, sem a qual responderá o consignatário pela sua restituição em perfeito estado, presumido, assim, embora relativamente, se o recebimento ocorreu sem ressalva alguma a respeito. Caso a perda ou deterioração possa ser imputada ao consignante, como lembra PENALVA SANTOS a respeito de coisa entregue com vício, o consignatário não responderá pela perda ou deterioração. O consignatário tem a posse direta do bem, que não anula a posse indireta do consignante. Mas o consignatário não é proprietário. Por isso, enquanto não pagar integralmente o preço, o bem não poderá ser penhorado ou sequestrado pelos credores do consignatário (art. 536 do CC Brasileiro e 1.558 do CC Italiano). Mas com razão admite CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA que o terceiro, credor do consignatário, poderá validar o ato de constrição pagando ao consignante, dentro do prazo estabelecido no contrato, o preço estimado, que não poderá enjeitá-lo porque não ocorrerá nenhum prejuízo. A posse do consignatário não poderá ser perturbada enquanto está em curso o prazo para a consignação, facultando-se a ele o uso dos interditos possessórios, inclusive contra o consignante. É certo que o consignatário que não restitui a coisa está obrigado a pagar o preço, mas não se pode negar ao consignante o direito de obter a restituição da coisa enquanto ela está na posse livre do consignatário, depois de vencido. A alternativa de exigir o preço ou a coisa, caso o consignatário não a tenha vendido, ou caso ele também não tenha manifestado interesse em ficar com ela, é do consignante. Manifestando o consignatário, de forma inequívoca, que aceitou a aquisição do bem, mas sem lhe pagar o preço, só poderá o consignante promover a resolução do negócio ou a sua execução, mas não lhe será assegurada a simples restituição da coisa. Convém destacar que o consignatário deve manifestar o seu interesse na coisa dentro do prazo assinado no contrato, pois não lhe será permitido, vencido o prazo, fazer a opção com a qual o consignante já não esperava e talvez já não tivesse interesse. Importa assinalar, igualmente, que o art. 537 do CC permite que o consignatário faça a comunicação da restituição ao consignante. É espécie de resilição ou denúncia unilateral do contrato. Se a comunicação foi feita dentro do prazo do contrato, ainda que a restituição material se faça depois, não está o consignatário obrigado a pagar o preço. Nesse ponto o legislador brasileiro avançou, pois o CC Italiano não prevê a possibilidade de simples comunicação com o efeito que deve ser reconhecido a essa manifestação da vontade. Questão interessante se refere ao momento em que deve ser feito o pagamento do preço estimado caso vendida a coisa antes de vencido o prazo da consignação. Não havendo disposição a este respeito no contrato, o preço deverá ser pago imediatamente, pois não há nenhuma autorização legal para a retenção do preço pelo consignatário. De outra forma o contrato estimatório seria convertido em mútuo, que não foi objeto da vontade das partes. O consignante não pode dispor da coisa enquanto ela não lhe for restituída ou comunicada a sua restituição (art. 537). Como o objeto do contrato estimatório é coisa móvel, cuja propriedade só pode ser transferida pela tradição, o consignante sem a posse direta da coisa não terá meios para dispor da coisa e nem poderes para fazê-lo, porque outorgou o poder de disposição ao consignatário. Ainda que o faça, a alienação contratada não prejudicará o consignatário ou o terceiro ao qual o consignatário alienou, porque autorizado a dispor da coisa e entregá-la ao adquirente. A lei brasileira deixou de repetir, contudo, importante disposição encontrada na lei italiana. Declara o art. 1.558, do Código Civil Italiano, que são válidos os atos de disposição realizados por aquele que recebeu a coisa. Com isso, o descumprimento do contrato estimatório, não poderá prejudicar a validade do negócio realizado com terceiro, pois o consignante terá apenas um crédito a exigir do consignatário, sem qualquer direito sobre o bem, agora nas mãos de terceiro. A omissão da lei brasileira a esse respeito pode criar incerteza e insegurança quanto ao poder de disposição do consignatário, que realiza o negócio em seu nome e não em nome do consignante. Ele não é representante do consignante no negócio, o que reforça a interpretação no sentido da validade do negócio de alienação. Em nome da segurança e da estabilidade das relações jurídicas a interpretação deverá ser feita no sentido de dar valor aos atos de disposição praticados pelo consignatário, salvo quando comprovada a má-fé do terceiro. Consequentemente, o consignatário, que contrata em nome próprio com terceiro, responde perante o adquirente pelos vícios redibitórios e pela evicção, ressalvado o direito de regresso contra o consignante. Não se afasta, contudo, a responsabilidade direta do consignante, perante o terceiro adquirente, em razão da evicção. Cabe lembrar que a doutrina sustenta a possibilidade do adquirente se voltar diretamente contra o alienante anterior pela evicção. Essa possibilidade foi expressamente admitida pelo originário art. 456 do CC, hoje revogado pelo NCPC. Pode ocorrer a alienação, perda ou deterioração do bem enquanto estava sob a posse do consignatário. Nesse caso, ao consignante se constitui um crédito contra o consignatário, caso não prefira, e a escolha é sua, receber a coisa como está e reclamar indenização. Tudo se resolve com as regras da obrigação de restituir (arts. 238-240, CC). Outra questão diz respeito à falência do consignatário. A coisa deverá ser restituída ao consignante se ainda não vendida a terceiro ou se o consignatário ainda não havia manifestado a sua aceitação. Todavia, se já vendida a coisa ou se aperfeiçoada a compra com a aceitação do consignatário, o consignante deve ser reconhecido como simples credor da massa, não lhe assistindo direito de obter a entrega do dinheiro (VITTORIO NEPPI). Outra solução importa em reconhecer ao consignante privilégio que ele não tem na falência, em detrimento da igualdade de tratamento dos credores no concurso. Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça decidiu de forma diversa: "Assim, se a recorrente vendeu as mercadorias entregues em consignação pela recorrida antes da decretação da sua falência e recebeu o dinheiro da venda também antes da quebra, inclusive contabilizando-o indevidamente, conforme reconhecido na sentença, deve agora devolver o valor devidamente corrigido, pois já deveria tê-lo feito antes da quebra, já que não tinha disponibilidade nem propriedade do dinheiro da venda, que era por contrato da recorrida. A situação do consignante é de credor reivindicante e não a de simples credor quirografário" (REsp. n. 710.658/RJ, rel. Min.  Nancy Andrighi, DJ 26/09/2005). Na próxima semana será publica a terceira e última parte, incluindo a bibliografia referida.
Para desenvolver mais profundamente o tema do contrato estimatório, que apresenta interesse particular ao Direito Privado, pedimos licença ao leitor desta coluna para dividir a publicação do texto em três partes. Alertamos o leitor que preferimos deixar as referências bibliográficas para o final. O processo de recodificação do Direito Privado brasileiro de 2002 procurou aproximar o Direito Empresarial do Direito Civil, com a formação de um único estatuto de Direito Privado. Antes de uma nova codificação, o trabalho da Comissão Reale assegurou a sobrevivência do velho Código Civil, promovida pela necessária concreção constitucional e revitalização dos seus institutos, resultado do difícil trabalho de combinação da modernidade com as tradições do passado da nossa cultura jurídica. O Código Civil de 2002 é fruto do esforço empreendido sob a coordenação de MIGUEL REALE para dar uma nova e unitária fisionomia ao Direito Privado, vencendo-se a tendência de descodificação evidenciada na doutrina e na edição de micro estatutos. A despeito do sucesso ou não da proposta de atualizar o direito privado brasileiro, e da crítica que se oferece ao aproveitamento de um velho código para a modernização do direito civil, é preciso enaltecer o revigoramento natural que ganhou o direito privado com um novo código. Se de um direito novo não se pode falar propriamente com o código de 2002, certo é que há uma nova interpretação, capaz de renovar as mais antigas instituições do direito privado. O contrato estimatório bem se ajusta a essa fisionomia recodificadora, porque cuida de um contrato antigo, de origem romana e natureza mercantil, que entrou para o Direito Privado codificado pela porta que se abriu em 2002. O estudo do contrato estimatório, de outra parte, se apresenta como um verdadeiro desafio ao civilista moderno, pela interface com o Direito Empresarial e a complexidade que apresenta. É contrato que estabelece múltiplas e amplas relações com o do direito obrigacional e o direito real, de forma que o seu estudo é um convite à revisitação e aggiornamento do Direito Civil. O contrato estimatório, de natureza mercantil, tem origem romana (MAX KASER) e não era disciplinado pela lei brasileira, embora conhecido e praticado há muito tempo. No Direito brasileiro, assinala WALDIRIO BULGARELLI, não havia registro do negócio estimatório como contrato autônomo. Encontrava-se apenas referência à consignação nos arts. 170 a 173 do Código Comercial, como mera modalidade da comissão, com natureza diversa do típico contrato estimatório. Na comissão de venda, diz PONTES DE MIRANDA, há a atividade do comissário como conteúdo, o que de modo nenhum se observa no contrato estimatório. Outra referência, mais moderna, ao negócio estimatório no direito brasileiro é encontrada nos arts. 4º e 5º da lei 5.474/68, que dispõe sobre as duplicatas, regulando a emissão de faturas em caso de concretização da venda por consignação. Não obstante omissa a lei brasileira a respeito, o negócio estimatório sempre foi comum no comércio de arte e livros, assim como nas relações entre produtores e varejistas, e ganhou espaço atualmente com o comércio de veículos usados, joias, móveis e equipamentos de tecnologia.  Com o Código Civil de 2002 passou a ser tratado como contrato de direito privado típico e nominado, encontrando-se em quatro artigos a sua regulamentação (534-537). Não se tem memória de quando o homem conheceu esse modelo de contratação, mas há registro expresso desse contrato no Direito Romano, como se vê dos textos de ULPIANO, que se referia a uma "actio de aestimato" (Digesto, Livro XIX, tít. III, fr. 1, e tít. V, fr. 13). Embora conhecido nos países da Europa, valendo lembrar do Código Civil Austríaco de 1811, que tratou do negócio jurídico estimatório como cláusula de compra e venda (arts. 1086 e 1087), o legislador brasileiro de 2002 buscou especialmente no Código Civil Italiano de 1942, que regula em três artigos o contrato estimatório (arts. 1556-1558), a inspiração e paradigma para a sua disciplina legal. TEIXEIRA DE FREITAS já havia proposto a disciplina, do que chamou de "venda com cláusula estimatória", no Esboço (arts. 2.105-2.108). E o Projeto de Código de Obrigações, presidido por OROSIMBO NONATO, do qual participaram CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, THEOFILO DE AZEVEDO SANTOS, SYLVIO MARCONDES, ORLANDO GOMES e NEHEMIAS GUEIROS, apresentado em 1965, dedicava dois artigos ao contrato estimatório, também projetados com base na lei italiana. Cumpre anotar que os quatro artigos do Código Civil Brasileiro, dedicados ao contrato estimatório, têm a redação que receberam do seu anteprojeto, que não foi alterada quando convertido em projeto e depois aprovado pela Câmara dos Deputados (nº 634-B/1975 - publicado no Diário do Congresso Nacional em 17.05.1984) e pelo Senado Federal. Pelo contrato estimatório, ou venda em consignação, como é mais conhecido, uma pessoa, denominada CONSIGNANTE ou "TRADENS", entrega bens móveis a uma outra, denominada CONSIGNATÁRIA ou "ACCIPIENS", que fica autorizada a vendê-los no prazo estabelecido, quando pagará ao consignante o preço ajustado, se não preferir restituir a coisa. Esta definição, encontrada no art. 534 do Código Civil Brasileiro, corresponde quase exatamente àquela escrita no art. 1.556, do Código Civil Italiano. Na lei italiana, contudo, não consta expressamente a autorização que é conferida ao consignatário para vender a coisa. Essa autorização prevista na lei brasileira, na verdade, é indiferente ao consignante, visto que ele deverá receber o preço do consignatário quando vencido o prazo, seja qual for o destino dado ao bem. Poderá o consignatário vender ou até mesmo ficar com a coisa, visto que a sua obrigação pelo pagamento do preço não decorre propriamente da venda do bem, mas da sua não restituição no prazo estabelecido, ainda que sem culpa do consignatário, pois a lei atribui a ele a responsabilidade absoluta pelos riscos da coisa, mesmo em caso fortuito ou de força maior (art. 535 do CC Brasileiro e art. 1557 do CC Italiano). O Código Civil brasileiro se deixou influenciar pela doutrina italiana, no sentido de que a outorga de poder de disposição da coisa constitui uma autorização (VISALLI e BETTI), interpretação a que se chegou para afastar a ideia de uma cessão ou de uma concessão. Preferimos identificar o poder de disposição da coisa, outorgado ao consignatário, como um direito real, superando a tentativa do seu enquadramento em modelos de direito pessoal, todos sujeitos aos efeitos da vontade do consignante e que encontra por isso forte incompatibilidade com o negócio estimatório, não sujeito à revogação pelo consignante. Assim, o consignatário poderá ficar com a coisa ou vendê-la, bem como poderá fazer doação, permuta, dação em pagamento ou lhe dar qualquer outro destino. Nada modificará o direito do consignante a receber o preço, razão pela qual não era necessário que a lei brasileira fizesse a restrição encontrada no art. 534 do Código Civil, que limita de certa forma o poder do consignatário a vender a coisa, pois a própria natureza do contrato permite a ele dar outro destino ao bem. Ademais, a autorização referida na lei é implícita ao poder de disposição da coisa que o consignante outorga ao consignatário. Nada impede, contudo, que o consignante estabeleça certas regras para o destino que deve ser dado ao bem, proibindo que a sua alienação se faça a certa pessoa, como o concorrente do consignante, ou em certas condições, que podem desvalorizar o produto. O consignante poderá até mesmo, sem descaracterizar o contrato, estabelecer que o consignatário não poderá ficar com a coisa, limitando-se a negociá-la com terceiro. Poderá, também, impor ao consignatário a obrigação de promover a divulgação do bem de certa forma ou em determinado lugar. Mas se a determinação do consignante anular totalmente a liberdade do consignatário e retirar dele o poder de disposição da coisa podemos ter outra figura contratual na espécie, como o mandato, a comissão, a agência ou a corretagem. O contrato é estimatório porque o consignatário se obriga a pagar o preço previamente estimado pelo consignante, podendo ganhar com o sobrepreço que obtiver. Interessante notar que não há autorização expressa na lei brasileira que assegure ao consignatário vender o bem por um preço maior do que aquele estimado, mas ela deve ser entendida, não só pela natureza do negócio, mas a partir da determinação do art. 534 do Código Civil, no sentido de que o consignatário pague ao consignante o preço ajustado, de modo que ele estará livre para vender o bem por outro preço. Não importa, igualmente, que o consignatário venda a coisa por um preço menor, o que é indiferente ao consignante, visto que a obrigação do consignatário é pagar o preço estimado.  A estimativa do preço, portanto, vincula as partes como um elemento do contrato de compra e venda que poderá ou não ser realizado com o consignatário, caso ele queira a coisa para si. O preço estimado obriga também o consignante, que não poderá exigir do consignatário outro valor quando negociada ou não restituída a coisa. Ao consignatário cabe a escolha entre restituir a coisa ou pagar o preço, escolha que se qualifica, segundo SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA, como uma obrigação facultativa ou como uma faculdade de substituição da prestação. Logo, não está o consignatário obrigado a prestar contas do valor da venda ou do destino que deu ao bem, desde que pague o preço estimado, salvo quando for limitada a sua liberdade pelas condições estabelecidas no contrato, situação que poderá ser resolvida em perdas e danos se ocorrer eventual descumprimento do negócio. Melhor era a redação do Projeto de Código de Obrigações de 1965, presidido por OROSIMBO NONATO, que definia o contrato estimatório, em seu art. 400, destacando aquela que é a sua característica mais importante, qual seja o poder de disposição da coisa, sem fazer qualquer referência à autorização para venda, verbis: "Quem recebe coisa móvel, com a obrigação de restituí-la ou pagar ao consignante o preço dentro de certo prazo, tem a faculdade de disposição da mesma". É um contrato de uso muito frequente a respeito da venda de joias, antiguidades, objetos de arte, livros, eletrodomésticos e automóveis. Também é utilizado no comércio em geral quando o fabricante entrega seus produtos na rede varejista ao contato direto com o consumidor, liberando o comerciante e intermediário da imobilização do capital. É um recurso eficiente na circulação de riquezas e no fomento da atividade econômica. É negócio que, como assinalam NELSON ROSENVALD e CRISTIANO CHAVES DE FARIAS, facilita o tráfego jurídico através de vantagens recíprocas. Para o consignante, amplia-se o potencial de vendas de seus produtos, e para o consignatário, há uma sensível diminuição de riscos do negócio, na medida em que poderá devolver a coisa que não conseguir vender. Há muita incerteza a respeito da natureza jurídica do contrato estimatório. Alguns entendem que se trata de uma venda com condição suspensiva ou resolutiva.  Mas não se pode aceitar a ideia porque o consignatário tem o direito de restituir a coisa e não pagar o preço, o que impede a concretização da venda. Outros pensam em uma promessa de venda ou em um contrato de depósito preparatório da compra e venda. Promessa de compra e venda não é, porque, como visto, o consignatário pode restituir o bem. Igualmente não pode ser admitido o depósito, porque a restituição da coisa não é obrigação do consignatário, já que a ele é assegurado o poder de disposição e o direito de ficar com ela. Entendem outros que se trata de um mandato para vender, com opção de restituição. Esbarra essa interpretação na possibilidade que tem o consignatário de reter o sobrepreço, o que seria impossível no mandato, pois o mandatário não pode se apropriar de bens do mandante ou exercer o mandato em proveito próprio, não se olvidando ainda que ele deve sempre prestar contas dos atos praticados, o que o consignatário não está obrigado a fazer. Há também boa doutrina no sentido de que o chamado contrato estimatório nada mais é do que o contrato de comissão (CUNHA GONÇALVES). Esse entendimento se assenta na ideia de que o sobrepreço representa a comissão e reembolso de despesas em favor do comissário. Afirma-se, nesse sentido, que o accipiens atua sobre a esfera jurídica do tradens, o que revela a identidade causal entre a comissão e o contrato estimatório. Não obstante a qualidade dos argumentos da doutrina em sentido diverso, há diferenças importantes entre a comissão e o contrato estimatório que impedem assemelhar esses negócios (JUAN M. FARINA), especialmente o poder de disposição que se confere ao accipiens. O consignatário pratica os atos de disposição em nome próprio, sem interferência do consignante, que não mantém com o adquirente qualquer relação jurídica. Não precisa o consignatário, destarte, exibir a autorização para a venda ao adquirente, que nem mesmo toma conhecimento que a coisa que lhe está sendo vendida pertence ao consignante (SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA). Hoje deve ser reconhecido no contrato estimatório um tipo novo e autônomo no direito positivo brasileiro, que tem características próprias, superando-se a discussão doutrinária que recorria a outras figuras para definir a sua natureza (SERPA LOPES e TÂNIA S. P. DE CAMPOS MELO). E a respeito das suas características próprias pode-se dizer que é um contrato real, que exige a entrega da coisa para se aperfeiçoar, a exemplo dos contratos de mútuo, comodato e depósito. Sem a entrega da coisa não pode o consignatário vender o bem. Adverte SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA que a simples autorização para a venda não tipifica o contrato estimatório, que pressupõe que as coisas já estejam à disposição do consignatário para que possam ser vendidas. Mas a entrega não transfere a propriedade, porque ela não equivale à tradição translatícia. A entrega, entretanto, não é uma obrigação do consignante, que pode desistir do contrato antes que ela se faça, visto que é a tradição que aperfeiçoa o negócio. Responsabiliza-se o consignante, neste caso, por qualquer prejuízo causado em razão da quebra injustificada da expectativa do negócio. É contrato oneroso ou gratuito. É certo que o contrato estimatório visa o lucro do consignatário, mas nada impede que ele aceite as condições do consignante interessado apenas em fazer a venda do bem sem proveito próprio. Não se deve confundir o negócio estimatório com a compra e venda ou com o negócio que será realizado pelo consignatário e o terceiro. Este outro negócio poderá ser oneroso, o que pode não ocorrer com o estimatório. É contrato bilateral e comutativo, porque cria obrigações para ambas as partes e se assenta em razoável equilíbrio. Contudo, o aspecto jurídico mais interessante desse contrato é o destaque ou dedução que o outorgante faz do poder de disposição da coisa, que entrega com exclusividade ao consignatário e do qual fica privado (art. 537). A atribuição de disponibilidade da coisa marca de tal modo o contrato estimatório que ele não se caracteriza, caso seja autorizado o outorgado a fazer somente a demonstração da coisa ou tê-la como amostra (SILVIO VENOSA).  Nesse ponto (poder de disposição conferido ao accipiens) reside a inovação que trouxe o direito italiano para esse negócio, seguida pelo código brasileiro. A doutrina aponta, a nosso ver com razão, que o Codice Civile não somente regulou o contrato estimatório, mas verdadeiramente criou um modelo de contrato ao modificar a sua função econômica, porquanto no contrato estimatório a finalidade do tradens é preordenada a vincular a atividade do accipiens exclusivamente para a venda da coisa. Sucede que no modelo de contrato estimatório italiano esse fim típico e característico da entrega da coisa (para venda) é situado fora da estrutura do negócio, mudando radicalmente a sua natureza (J. Mª. MUNHOZ M. PLANAS). Consequentemente, ao deixar em dúvida a finalidade do contrato, porque o consignatário pode vender, comprar ou dar qualquer outra disposição à coisa, aponta a doutrina que é esse aspecto da nova fisionomia do contrato estimatório a causa de graves confusões doutrinárias. Adotando o direito brasileiro o modelo de contrato estimatório italiano, com especial destaque ao poder de disposição, atrai igualmente alguma incerteza na sua interpretação pela doutrina e jurisprudência. Alguns têm entendido que esse poder de disposição é destacado do direito de propriedade e constitui direito real em favor do consignatário. É a opinião de PONTES DE MIRANDA e J.A. PENALVA SANTOS. Também admite essa interpretação, de certa forma, SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA, quando afirma que o consignante tem a propriedade limitada, enquanto a coisa está com o consignatário. Encontrando-se o bem nas mãos do consignatário, que está autorizado a vendê-lo e a fazer a sua tradição, não se pode admitir retratação do consignante, de sorte que a venda não está sujeita a nenhuma manifestação sua, que só poderá reclamar do consignatário a falta de pagamento do preço. É forçoso reconhecer que o consignatário tem um poder sobre a coisa que não é de natureza pessoal e que muito se identifica com as características dos direitos reais. Como consequência, ao consignatário devem ser reconhecidas certas prerrogativas dos direitos reais nos limites do poder de disposição outorgado. Destacado o poder de disposição, não poderá o consignante dispor da coisa antes de lhe ser restituída ou comunicada a restituição, exatamente como prevê o art. 537 do Código Civil. Entende MARIA HELENA DINIZ que a alienação feita pelo consignante nesta situação é nula, conforme previsto no art. 166, inc. VI, do Código Civil, porque realizada com o objetivo de fraudar lei imperativa. Na verdade, qualquer ato de disposição do consignante, antes de restituído o bem, não poderá ser realizado porque, tratando-se de coisa móvel, a transferência da propriedade só pode ser feita pela tradição, impossível para o consignante enquanto o bem se encontrar nas mãos do consignatário. Outro aspecto muito estudado e discutido na doutrina a respeito deste contrato se refere à natureza da obrigação do consignatário, visto que alguns sustentam que ela é alternativa e outros que ela é facultativa. Na obrigação alternativa o devedor se libera executando uma das prestações. Assim, no contrato estimatório, o consignatário cumpre o contrato pagando o preço ou restituindo a coisa. Nas obrigações facultativas existe apenas uma prestação, permitido ao devedor liberar-se com a substituição dela por outra prestação preestabelecida. Nesse sentido o consignatário tem a obrigação de pagar o preço, mas poderá se liberar dela restituindo a coisa. A doutrina italiana prefere ver no contrato estimatório uma obrigação facultativa (CARLO GIANNATTASIO, ORAZIO BUCCISANO e GUIDO ALPA), interpretação também seguida no Brasil por SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA.  Há entendimento diverso sustentado por TEPEDINO, BARBOZA e MORAES, no sentido de que ao consignatário não se dá uma pluralidade objetiva,  que é própria da obrigação alternativa, mas somente uma única prestação (simples), que é de pagar o preço estimado.  Nesse sentido é opinião de ANTONIO MARTINS, anotada por WALDIRIO BULGARELLI. É o que se vê do art. 535 do CC, que não exonera o consignatário de pagar o preço se a restituição da coisa se tornar impossível. A restituição da coisa é, portanto, verdadeira exceção na sistemática do Código, que representa, a rigor, frustração dos principais efeitos do contrato estimatório, e não propriamente uma alternativa ou faculdade do consignatário. Na próxima semana publicaremos a segunda parte deste artigo.
Recentemente o Superior Tribunal de Justiça julgou um caso no qual a união estável, com todos os seus efeitos, inclusive sucessórios, foi reconhecida nas instâncias inferiores. Cuidava de um relacionamento de dois meses e duas semanas de convivência. Destaco a ementa do julgado: "RECURSO ESPECIAL. CIVIL. FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL POS MORTEM. ENTIDADE FAMILIAR QUE SE CARACTERIZA PELA CONVIVÊNCIA PÚBLICA, CONTÍNUA, DURADOURA E COM OBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA (ANIMUS FAMILIAE). DOIS MESES DE RELACIONAMENTO, SENDO DUAS SEMANAS DE COABITAÇÃO. TEMPO INSUFICIENTE PARA SE DEMONSTRAR A ESTABILIDADE NECESSÁRIA PARA RECONHECIMENTO DA UNIÃO DE FATO. 1. O Código Civil definiu a união estável como entidade familiar entre o homem e a mulher, "configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família" (art. 1.723). 2. Em relação à exigência de estabilidade para configuração da união estável, apesar de não haver previsão de um prazo mínimo, exige a norma que a convivência seja duradoura, em período suficiente a demonstrar a intenção de constituir família, permitindo que se dividam alegrias e tristezas, que se compartilhem dificuldades e projetos de vida, sendo necessário um tempo razoável de relacionamento. 3. Na hipótese, o relacionamento do casal teve um tempo muito exíguo de duração - apenas dois meses de namoro, sendo duas semanas em coabitação -, que não permite a configuração da estabilidade necessária para o reconhecimento da união estável. Esta nasce de um ato-fato jurídico: a convivência duradoura com intuito de constituir família. Portanto, não há falar em comunhão de vidas entre duas pessoas, no sentido material e imaterial, numa relação de apenas duas semanas. 4. Recurso especial provido." (REsp 1761887/MS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 06/08/2019, DJe 24/09/2019).  Corretamente o Superior Tribunal de Justiça, pelo voto do Ministro Luis Felipe Salomão, deu provimento ao recurso especial para julgar improcedente a pretensão da convivente. Neste caso a convivência foi rompida pela morte quando já havia preparativos para a formalização da união. Entendeu o Superior Tribunal de Justiça que não ocorreu no caso a "duração" necessária a dar efeitos a essa união. Esse caso revela muito claramente o equívoco de interpretação no qual muitas decisões judiciais acabam por incorrer quando não se faz a distinção entre a união de fato e a união de fato estável. Não se põe em dúvida a liberdade  das pessoas em se unir sem as formalidades do casamento. A questão está em atribuir ou não efeitos a uma união de fato, realizada sem o compromisso formal assumido perante a Lei, como ocorre no casamento. Pode haver, e evidentemente há, união de fato que não ingressa no mundo dos efeitos jurídicos, e essa percepção parece faltar em algumas decisões judiciais. O direito civil infraconstitucional brasileiro não tinha contemplado nenhuma regulação importante para a união de fato até a Lei nº 8.971/1994, já na vigência da Constituição de 1988. Para cuidar do direito a alimentos e da sucessão do companheiro, enunciava a lei de 1994, no seu art .1º, o seguinte: "A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na lei 5.478, de 25 de julho de 1968, enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade." A estabilidade da união se definia na lei de 1994 pela duração da convivência por mais de cinco anos, ou pela existência de prole comum. Seguiu a Lei os passos já firmes da jurisprudência, que sempre exigiu, até então, duração de mais de cinco anos para o reconhecimento de efeitos à união de fato. Logo depois, a lei 9.278/1996, a propósito de regular o § 3º, do art. 226, da Constituição Federal, eliminou do direito brasileiro o requisito temporal (cinco anos), que há pouco havia sido estabelecido, e deixou de dar relevância para a existência de prole comum. Estabeleceu, no seu art. 1º, que: "É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família." Esta mudança atendeu a uma crítica que se fazia à existência de uma medida de tempo (cinco anos) rígida, sempre arbitrária, para a caracterização da estabilidade da união. Os juristas sustentavam que outros elementos poderiam determinar a estabilidade da união de fato, independentemente do tempo de convivência. Esta interpretação deu maior relevância a outros elementos caracterizadores da união de fato, em prejuízo da "duração", concedendo liberdade mais ampla ao intérprete no reconhecimento da união estável. Sucede que a liberdade que a lei de 1996 concedeu ao intérprete, pelo modelo aberto que seguiu, bem serviu ao indevido reconhecimento de efeitos plenos da união de fato a relacionamentos que não adquiriram efetiva estabilidade. Foi tão longe essa interpretação, passando ao largo da duração, que trouxe o temor da possibilidade de reconhecimento de efeitos às relações afetivas eventuais, e ainda não estabilizadas, tudo agravado pela falta de outros requisitos formais para o reconhecimento da união de fato, como o registro exigido pela legislação de muitos países. Não é incomum, a partir dessa interpretação larga que se formou, a recomendação de advogados à elaboração de um contrato escrito de namoro para prevenir efeitos indesejados a uma relação eventual. Uma distorção que trouxe efeitos sociais negativos ao relacionamento afetivo entre as pessoas. O Código Civil de 2002 seguiu a lei de 1996 e dispensou a medida de tempo da convivência, embora firme na exigência de duração (convivência contínua e duradoura), dispondo que "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família" (art. 1.723). Essa duração é uma medida de tempo, que se verifica, evidentemente, a posteriori. No casamento, ao contrário, a estabilidade se dá a priori, desde a celebração, por força do vínculo jurídico decorrente do ato e não do fato.1 Embora tenha optado o legislador por um modelo aberto, ao deixar a rigidez do requisito temporal, não foi autorizado ao intérprete desprezar a estabilidade para o reconhecimento de efeitos à união de fato. É certo que esta estabilidade pode ser demonstrada não só pela duração da união. A Lei de 1994 conferia à existia de prole comum, como ocorre com a legislação de outros países, uma forte demonstração de estabilidade. No entanto, seguramente, é a duração desta relação o elemento mais importante na caracterização da união estável prevista na Constituição, que não pode ser dispensada mesmo no caso da existência de prole comum ou de outros elementos. A duração é, portanto, elemento indispensável a dar estabilidade a uma união de fato. Se é certo que não é somente o tempo que caracteriza a união estável, não menos exato é que sem o tempo (duração) ela não existe. Impossível aceitar a ideia de duração sem o tempo. E a questão que se coloca a respeito da duração é justamente a busca da medida de tempo necessária ao reconhecimento da estabilidade. É a busca do tempo que se perdeu na interpretação de parte da doutrina, e em alguns julgados, a partir do modelo aberto escolhido pelo legislador brasileiro, que levou a emprestar indevidamente efeitos a relações de fato que não são estáveis, com graves consequências para a segurança das relações jurídicas e reflexos importantes nas relações pessoais. Defende-se, portanto, a necessidade de se estabelecer um índice de estabilidade das uniões livres, como sustenta o jurista espanhol Eduardo Estrada Alonso2, para que o reconhecimento dos efeitos da união de fato não seja determinado por uma interpretação subjetiva do juiz, que neste caso passa a ter a última palavra sobre a existência ou não da união estável.3 Em busca da duração (tempo) perdida, podemos encontrar no direito brasileiro indicações importantes. Com efeito, o Regulamento do Imposto de Renda e Proventos de qualquer Natureza, aprovado pelo decreto  9.580, de 22 de novembro de 2018, estabelece no seu art. 71, § 1º, o seguinte:  "Poderão ser considerados como dependentes, observado o disposto no § 3º do art. 3º e no parágrafo único do art. 4º (Lei nº 9.250, de 1995, art. 35): I - o cônjuge; II - o companheiro ou a companheira, desde que haja vida em comum por mais de cinco anos ou por período menor se da união resultou filho". (grifamos) A lei 8.213, de 24 de julho de 1991, alterada pelo lei 13.135/2015, que disciplina o direito previdenciário, estabelece expressamente que são necessários dois anos, pelo menos, para a caracterização da união estável, para qualquer benefício previdenciário. O Código Civil, no seu art. 1.830, só reconhece direito sucessório a outro quando a separação de fato do cônjuge dura mais de dois anos, in verbis: "Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente." Infere-se da Lei o entendimento no sentido de que, para que se possa reconhecer efeitos jurídicos decorrentes da affectio maritalis com o novo companheiro, ou seja, o rompimento efetivo das relações do casamento anterior, é necessário lapso de tempo para a sua consolidação, que deve durar mais de dois anos. O tempo de dois anos também é considerado pelo Código Civil, no art. 25, para reconhecer o cônjuge separado de fato como curador do ausente: "O cônjuge do ausente, sempre que não esteja separado judicialmente, ou de fato por mais de dois anos antes da declaração da ausência, será o seu legítimo curador." (grifamos) O Código Civil também só considera a ruptura da vida em comum depois de dois anos, no caso do art. 1.572, § 2o, in verbis: "O cônjuge pode ainda pedir a separação judicial quando o outro estiver acometido de doença mental grave, manifestada após o casamento, que torne impossível a continuação da vida em comum, desde que, após uma duração de dois anos, a enfermidade tenha sido reconhecida de cura improvável." (grifamos) No mesmo sentido previa o Código Civil o divórcio direto depois de dois anos, como estabelece o art. 1.580, in verbis: "Decorrido um ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos, qualquer das partes poderá requerer sua conversão em divórcio. [...] § 2o O divórcio poderá ser requerido, por um ou por ambos os cônjuges, no caso de comprovada separação de fato por mais de dois anos." (grifamos) Como bem sustenta Guilherme Calmon Nogueira da Gama, com base na previsão de dois anos da Constituição Federal para o divórcio direto, como índice para verificação da irreversibilidade da situação fática, "o prazo de dois anos foi considerado razoável e plausível para se aferir a instabilidade do casamento, proporcionando, assim, a sua pronta dissolução. O mesmo espírito na fixação desse prazo de dois anos (para a descaracterização da affectio maritalis) deve ser considerado para efeito de estabilidade das uniões extramatrimoniais, ou seja, o período necessário e razoável para a construção da affectio maritalis entre os companheiros".4 Embora a sua interpretação tenha sido baseada no texto da Constituição Federal anterior à Emenda 66/2010, seu pensamento continua válido. Cabe lembrar, ainda, que a Lei do Divórcio (lei 6.515/77), sabidamente restritiva, estabelecia que a separação consensual dos cônjuges só poderia ocorrer depois de dois anos do casamento, o que indicava o tempo necessário à estabilização da união (art. 4º), mesmo matrimonial. Está no próprio Código Civil e em outros diplomas do nosso ordenamento, como visto, a indicação do índice de estabilidade necessário à orientação do intérprete na determinação da duração. Essa medida de tempo mínimo de dois anos é defendida pela doutrina e adotada igualmente no direito estrangeiro. Em Portugal exige-se o requisito temporal de dois anos para a sua configuração. E' o que estipula o art. 1.º da lei 7/2001, com alterações posteriores promovidas pela lei 23/2010: "Artigo 1.º [...] 1 - A presente lei adopta medidas de proteção das unioões de facto. 2 - A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos". (grifamos) No Novo Código Civil e Comercial argentino, a "união convivencial", como é designada, exige igualmente dois anos de duração para ser reconhecida, e mesmo assim, sem direito sucessório.5 A questão do tempo assume importância enorme no direito brasileiro, que ao contrário de outros países, empresta à união de fato efeitos plenos, inclusive sucessórios. É preciso atentar, neste ponto, para o fato de que o nosso direito sucessório perdeu a sua ratio quando deixou de perceber que o casamento já não é um vínculo indissolúvel. E a união de fato seguiu uma tendência de equiparação, sem ter em conta essa mudança importante na família. No entanto, a lei continua a favorecer tanto o cônjuge, e por empréstimo, o companheiro, sobreviventes, que tiveram uma curta jornada de vida ao lado do autor da herança, em flagrante e injusto desrespeito ao direito da descendência. Como afirma Pasquale Laghi, "não se mostra adequado tratar igualmente o companheiro de um dia e aquele de uma vida"6. É preciso atentar também para o fato de que a escritura de declaração de "união estável", quando deveria ser de "união de fato", apenas reconhece a intenção das partes de convivência, a partir daquele momento (assinatura da escritura). Não é nada mais do que um contrato de convivência. Mas a estabilidade, que exige duração, depende do tempo e só pode ser verificada a posteriori. A escritura pública não é prova da união estável. O documento não constitui a relação jurídica atributiva de direitos, como ocorre no casamento, porque a união estável é relação de fato, que depende de duração. Bem assinala Guilherme Calmon Nogueira da Gama a respeito da união de fato: "Não se trata, entretanto, de uma estabilidade a priori tal qual acontece com o casamento. Verifica-se a posteriori, seu prolongamento no tempo é que fornecesá a sua evidência".7 É interessante, neste ponto, chamar a atenção para um aspecto pouco apreciado na jurisprudência brasileira. É que os efeitos da união estável não podem ser retroativos ao momento em que se iniciou a convivência, porque esta união só estará apta a produzir efeitos quando alcançar a "duração" exigida para a sua estabilidade. A união de fato é regulada em quase todos os países com restrições, emprestando-se a ela raros efeitos e sempre sob rígidas condições. A interpretação da doutrina e da jurisprudência brasileiras tem seguido uma tendência de igualdade entre a união estável e o casamento e pouco tem percebido a diferença entre a união de fato e a união de fato com estabilidade. Todavia, se é possível estabelecer igualdade de tratamento e efeitos jurídicos entre a união estável e o casamento, e a nosso ver essa igualdade não está definida na lei brasileira, não se pode aceitar seguramente a ideia de igualdade de tratamento na constituição destas uniões, ao tomar o fato como ato e desprezar a "duração" como elemento indispensável à sua caracterização. O tema da união de fato, e a diferença de tratamento entre o direito estrangeiro e o direito brasileiro, motivou a realização no ano passado de Congresso Internacional promovido pela ADFAS - Associação de Direito de Família e das Sucessões, que reuniu juristas de várias partes do mundo e que resultou na publicação recente do Tratado da União de Fato, uma belíssima edição bilingue da Almedina, sob a coordenação de Regina Beatriz Tavares da Silva, Atalá Correia e Alícia García de Solavaginone.8 __________ 1 É uma distinção bem anotada por Guilherme Calmon Nogueira da Gama, em notável monografia sobre o tema, com apoio na doutrina de Noemia Alves Fardin (O Companheirismo: uma espécie de família. 2ª edição. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 158). 2 A opinião de Eduardo Estrada Alonso é citada por Carlos Alberto Menezes Direito, que defende prazo de dois a cinco anos para a união estável (Da união estável como entidade familiar. Revista dos Tribunais | vol. 667/1991 | p. 17-23 | Maio/1991). Também é apoiada por Guilherme Calmon Nogueira da Gama (op. cit., p. 195). 3 Recomendo a leitura do artigo "União familiar de fato e seu estudo comparatístico" de Regina Beatriz Tavares da Silva, Atalá Correia e Alícia García de Solavagione, in Tratado da União de Fato. Coord. dos autores. São Paulo : Almedina, 2021. 4 Op. cit., p. 199-200. 5 "Artículo 510. Requisitos. El reconocimiento de los efectos jurídicos previstos por este Título a las uniones convivenciales requiere que: a) los dos integrantes sean mayores de edad; b) no estén unidos por vi'nculos de parentesco en línea recta en todos los grados, ni colateral hasta el segundo grado; c) no estén unidos por vínculos de parentesco por afinidad en línea recta; d) no tengan impedimento de ligamen ni est. registrada otra convivencia de manera simultánea; e) mantengan la convivencia durante un periodo no inferior a dos años." 6 LAGHI, Pasquale. Famiglie "ricomposte" e successione necessaria: problematiche atuale, soluzioni negoziali e prospettive de iure condendo. Rivista Contratto e impresa, n. 4/2017, p. 1.371. Nesse sentido o artigo que produzimos em sede acadêmica, publicado in "Proposições para um novo direito sucessório no Brasil, em obra coordenada por Regina Beatriz Tavares da Silva e Ursula Cristina Basset, sob o título "Família e pessoa: uma questão de princípios", pela ADFAS - Associação de Direito de Família e Sucessões e pela Academia Iberoamericana de Derecho de Familia y de las Personas (Editora YK, São Paulo, 2018). 7 Op. cit., p. 158/159. 8 Nesta obra o leitor poderá encontrar, com profundidade, o desenvolvimento do tema.  Entre os artigos publicados na referida edição está aquele que escrevi a respeito: "A união de fato duradoura - em busca do tempo perdido."
A alienação do estabelecimento empresarial é negócio que, embora comum, suscita muitas dúvidas, especialmente no campo da responsabilidade. Abordamos a seguir um sucinto panorama jurídico deste negócio, que poderá servir de orientação básica para a sua realização, o que não dispensa, obviamente, a assessoria técnica. Pode o Estabelecimento ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza (Arts. 90, 91 e 1.143, CC). A venda do Estabelecimento se faz pelo negócio conhecido como trespasse, de trespassar, no sentido de transferir, negociar, passar à frente. Naturalmente a alienação do Estabelecimento, que é um bem com valor patrimonial, está sujeita a certas formalidades e restrições, especialmente porque esse valor que representa o Estabelecimento é também a garantia dos credores. Portanto, o contrato que tenha por objeto a alienação, o usufruto ou arrendamento do estabelecimento, só produzirá efeitos quanto a terceiros depois de averbado à margem da inscrição do empresário, ou da sociedade empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis, e de publicado na imprensa oficial (Art. 1.144, CC). Essa averbação equivale ao arquivamento previsto na LRE. Por isso é necessário que o negócio seja feito por escrito, para que se faça a sua averbação. Enquanto não averbado, o trespasse não produz efeitos (eficácia) contra terceiros, embora válido. Na prática, infelizmente, não é comum essa averbação, o que representa risco maior para o adquirente. Se ao alienante não restarem bens suficientes para solver o seu passivo, a eficácia da alienação do estabelecimento depende do pagamento de todos os credores, ou do consentimento destes, de modo expresso ou tácito, em trinta dias a partir de sua notificação (Art. 1.145, CC). É preciso não confundir a venda do estabelecimento com a cessão da própria sociedade. Por isso é que o empresário ou a sociedade empresária, no caso de trespasse, continua devedor. Logo, o empresário ou sociedade empresária não pode se desfazer desse patrimônio sem reservar outros ativos suficientes ao pagamento dos seus credores. O Estabelecimento é, como visto, a garantia dos credores e responde pelas dívidas (que poderão recair sobre ele), mesmo depois de transferido ao adquirente. Por isso, ao alienante, se não restarem bens suficientes a responder pelas dívidas, cabe colher o consentimento expresso dos seus credores ou promover a notificação deles, com prazo de trinta dias, para que venham, se quiser, opor-se ao trespasse. O silêncio será interpretado como consentimento (tácito). Se o credor concordar, ele está renunciando à garantia que tinha no Estabelecimento do empresário devedor não poderá se voltar contra o adquirente. As consequências para a não observância do art. 1.145 do Código Civil são graves. O empresário poderá ter a falência decretada (Art. 94, III, "c", LRF), considerando-se ineficaz a alienação em relação à massa falida (Art. 129, VI, LRF), o que autoriza reivindicar o estabelecimento do adquirente, ainda que de boa-fé, ou seja, que não tenha conhecimento do estado de crise econômico-financeira do alienante ou a intenção deste fraudar credores. É fácil perceber, portanto, que a preocupação maior no trespasse deve ser do adquirente. O adquirente do Estabelecimento é considerado pela lei como seu sucessor. Logo, o adquirente do Estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento (Art. 1.146,CC).1 É interessante notar aqui que o Estabelecimento tem uma afetação às obrigações precedentes ao trespasse, vinculando-se ao seu cumprimento. O adquirente terá direito de regresso contra o alienante pelas dívidas que tiver de pagar, anteriores ao trespasse. Não vale contra os credores a cláusula, muito comum em trespasse, liberatória do adquirente do passivo. A garantia dos credores está expressa na lei, não se admitindo derrogação por contrato sem a participação dos credores. É válida, todavia, a cláusula de transferência de passivo ao adquirente, que assume a obrigação pelo pagamento das dívidas. Caso surja depois do trespasse dívida não conhecida pelo adquirente, caberá em favor dele direito de regresso contra o alienante. É o caso de condenações judiciais que ocorreram depois do trespasse, mas encontram causa em fato anterior. Em relação aos credores trabalhistas a CLT é expressa no sentido de que a mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de trabalho dos respectivos empregados (Arts. 10 e 448, CLT). Ao sucessor é imputada pela lei a responsabilidade pelas dívidas trabalhistas anteriores: "Art. 448-A. Caracterizada a sucessão empresarial ou de empregadores prevista nos Arts. 10 e 448 desta Consolidação, as obrigações trabalhistas, inclusive as contraídas à época em que os empregados trabalhavam para a empresa sucedida, são de responsabilidade do sucessor. Parágrafo único.  A empresa sucedida responderá solidariamente com a sucessora quando ficar comprovada fraude na transferência." A responsabilidade do alienante, de acordo com as novas disposições da CLT, só ocorre em caso de fraude. Há aparente conflito entre a redação atual da CLT e o CC. Mas deve prevalecer a disposição do art. 1.146 do CC para impor ao alienante, até um ano, a obrigação solidária pelas dívidas em geral, independentemente da prova da fraude.2 Quanto às dívidas tributárias, o CTN estabelece que o adquirente responde, subsidiariamente com o alienante (se este prosseguir na atividade empresária) ou integralmente (se o alienante cessar a atividade). Esta responsabilidade não se aplica em caso de alienação judicial.3 Para superar a crise econômico-financeira do empresário, a LRF admitiu a venda de filiais ou UPIs - Unidades Produtivas Isoladas do devedor e estabeleceu que o adquirente não será considerado sucessor e não responderá pelas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista (Arts. 60 e 141, LRF).4 Estas disposições visam preservar o fundo de empresa e proporcionar o melhor resultado para os credores do empresário em crise econômica-financeira. A recente reforma da LRF procurou dar mais segurança ao adquirente. O tema das UPIs recomenda uma abordagem exclusiva em outra oportunidade. Prevê a Lei também que o alienante não pode concorrer com o adquirente nos cinco anos subsequentes ao trespasse, salvo autorização expressa no contrato (Art. 1.147, CC). É o que se chama também de restabelecimento do alienante. Procura-se proteger o adquirente da concorrência desleal, impondo-se na aplicação da proibição o exame da natureza da nova atividade empresária e o território para se verificar a ocorrência ou não de efetiva concorrência que se quer impedir. É possível que o Estabelecimento seja objeto de arrendamento ou usufruto. Naturalmente durante o tempo deste negócio não poderão o arrendante e o proprietário fazer concorrência ao arrendatário e ao usufrutuário (Art. 1.147, par. único, CC). A ideia de que o adquirente do Estabelecimento é sucessor do alienante determina também que, "salvo disposição em contrário, a transferência importa a sub-rogação do adquirente nos contratos estipulados para exploração do estabelecimento, se não tiverem caráter pessoal, podendo os terceiros rescindir o contrato em noventa dias a contar da publicação da transferência, se ocorrer justa causa, ressalvada, neste caso, a responsabilidade do alienante" (Art. 1.148, CC). Essa regra é genérica e não afasta o cumprimento dos requisitos especiais exigidos de acordo com a natureza da relação jurídica. É o caso do contrato de locação, que não se transfere ou se sub-roga somente por força do trespasse.5 Os contratos de natureza pessoal podem ser rescindidos, como é o caso dos contratos de trabalho. Igual efeito se aplica aos créditos do estabelecimento: "Art. 1.149. A cessão dos créditos referentes ao estabelecimento transferido produzirá efeito em relação aos respectivos devedores, desde o momento da publicação da transferência, mas o devedor ficará exonerado se de boa-fé pagar ao cedente." A esta cessão de crédito devem ser aplicadas as disposições dos Arts. 286-298 do Código Civil. Destaca-se o impedimento da cessão quando a isso se opuser a natureza da obrigação, a lei ou a convenção com o devedor (Art. 286, CC). O Estabelecimento pode ser objeto, ainda, de garantia real, como o penhor (Art. 1.451, CC). O trespasse é negócio jurídico importante para o desenvolvimento da atividade empresarial e existe um grande mercado de aquisições no Brasil, não só das sociedades empresárias, ou do controle das sociedades empresárias, mas igualmente dos estabelecimentos empresariais. Com o cuidado necessário, as boas oportunidades podem ser aproveitadas. __________ 1 O Superior Tribunal de Justiça decidiu que "O suporte fático normativo previsto no art. 1.146 do Código Civil, impõe outros requisitos além da mera transferência do estabelecimento comercial para a cristalização da solidariedade entre alienante e adquirente, notadamente a exigência de regular contabilização dos débitos anteriores à alienação, circunstância que não foi sequer alvo de argumentação da parte em sede recursal." (AgInt no REsp 1457672/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 20/09/2018, DJe 25/09/2018). 2 Nesse sentido a interpretação do Enunciado n. 13, Comissão 1, da ANAMATRA, da 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho (2017) - XIX Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho - Conamat (2018): "Sucessão trabalhista. A teor do art. 1.146 do código civil, aplicável ao Direito do Trabalho (CLT, art. 8º), é cabível a responsabilidade solidária do sucedido e do sucessor pelos créditos trabalhistas constituídos antes do trespasse do estabelecimento, independentemente da caracterização de fraude." 3 É esta a disposição do CTN: Art. 133. A pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou outra razão social ou sob firma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até à data do ato: I - integralmente, se o alienante cessar a exploração do comércio, indústria ou atividade; II - subsidiariamente com o alienante, se este prosseguir na exploração ou iniciar dentro de seis meses a contar da data da alienação, nova atividade no mesmo ou em outro ramo de comércio, indústria ou profissão. § 1º O disposto no caput deste artigo não se aplica na hipótese de alienação judicial: I - em processo de falência; II - de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial. § 2º Não se aplica o disposto no § 1º deste artigo quando o adquirente for:  I - sócio da sociedade falida ou em recuperação judicial, ou sociedade controlada pelo devedor falido ou em recuperação judicial; II - parente, em linha reta ou colateral até o 4º (quarto) grau, consangüíneo ou afim, do devedor falido ou em recuperação judicial ou de qualquer de seus sócios; ou III - identificado como agente do falido ou do devedor em recuperação judicial com o objetivo de fraudar a sucessão tributária. § 3º Em processo da falência, o produto da alienação judicial de empresa, filial ou unidade produtiva isolada permanecerá em conta de depósito à disposição do juízo de falência pelo prazo de 1 (um) ano, contado da data de alienação, somente podendo ser utilizado para o pagamento de créditos extraconcursais ou de créditos que preferem ao tributário.      4 Dispõe a LRF: "Art. 60. Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observado o disposto no art. 142 desta Lei. Parágrafo-único.  O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei." (Redação dada pela lei 14.112, de 2020)     5 O Superior Tribunal de Justiça decidiu exatamente nesse sentido: "RECURSO ESPECIAL. TRANSFERÊNCIA DO FUNDO DE COMÉRCIO. TRESPASSE. CONTRATO DE LOCAÇÃO. ART. 13. DA LEI N. 8.245/91. APLICAÇÃO À LOCAÇÃO COMERCIAL. CONSENTIMENTO DO LOCADOR. REQUISITO ESSENCIAL. RECURSO PROVIDO. 1. Transferência do fundo de comércio. Trespasse. Efeitos: continuidade do processo produtivo; manutenção dos postos de trabalho; circulação de ativos econômicos. 2. Contrato de locação. Locador. Avaliação de características individuais do futuro inquilino. Capacidade financeira e idoneidade moral. Inspeção extensível, também, ao eventual prestador da garantia fidejussória. Natureza pessoal do contrato de locação. 3. Desenvolvimento econômico. Aspectos necessários: proteção ao direito de propriedade e a segurança jurídica. 4. Afigura-se destemperado o entendimento de que o art. 13 da Lei do Inquilinato não tenha aplicação às locações comerciais, pois, prevalecendo este posicionamento, o proprietário do imóvel estaria ao alvedrio do inquilino, já que segundo a conveniência deste, o locador se veria compelido a honrar o ajustado com pessoa diversa daquela constante do instrumento, que não rara as vezes, não possuirá as qualidades essenciais exigidas pelo dono do bem locado (capacidade financeira e idoneidade moral) para o cumprir o avençado. 5. Liberdade de contratar. As pessoas em geral possuem plena liberdade na escolha da parte com quem irão assumir obrigações e, em contrapartida, gozar de direitos, sendo vedado qualquer disposição que obrigue o sujeito a contratar contra a sua vontade. 6. Aluguéis. Fonte de renda única ou complementar para inúmeros cidadãos. Necessidade de proteção especial pelo ordenamento jurídico. 7. Art. 13 da lei 8.245/914 aplicável às locações comerciais. 8. Recurso especial provido." (REsp 1202077/MS, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 01/03/2011, DJe 10/03/2011).
Introdução A Parte geral do Código Civil aplica-se a todos os ramos do Direito. Dispõe sobre as Pessoas, os Bens e os Fatos Jurídicos. O tratamento jurídico da Pessoa natural é o mais importante tema do Direito, pois o centro e o vértice dele é o ser humano. Humano, social, com necessidades a serem satisfeitas por bens espirituais e materiais, o que se dá com a projeção de cada um no seu agrupamento, exteriorizando as condutas ativas e omissivas que, reguladas pelo Direito, classificam-se como fatos jurídicos. A pessoa natural, física, muitas vezes, precisa da cooperação de outra ou de outras pessoas físicas, para a realização de finalidades comuns, associando-se entre elas e, assim, formando a pessoa coletiva que, por sua vez, assume personalidade jurídica própria, distinta da personalidade jurídica das pessoas físicas que a compõem. A pessoa natural, física, é o "indivíduo dotado de autonomia quanto ao ser, de autoconsciência, de comunicação e de autotranscendência".1 "Entre todos os seres que vivem na Terra, só o homem é pessoa. Uma das notas da pessoa é a liberdade. Com a liberdade, o homem escapa ao reino da necessidade, em que estão inseridos, sem possibilidade de o transcender, os vegetais e os animais".2 A pessoa jurídica, coletiva, é a reunião desses indivíduos, harmonizando as potencialidades - espirituais e materiais - de cada um deles para, segundo regras gerais e específicas, conquistar um bem da vida, no exercício da personalidade própria desse ente moral coletivo, de forma que a vontade da pessoa jurídica é a vontade autônoma dela pessoa jurídica, distinta da vontade de cada pessoa natural que a integra.  A pessoa natural é capaz de direitos e deveres na ordem civil (art. 1º e segs., CC). Segundo o direito positivo, adquire personalidade civil com o nascimento com vida.3 A pessoa coletiva tem personalidade jurídica própria, é capaz de direitos e obrigações na vida de relação, tem existência legal a partir do registro dos atos de sua constituição (art. 40 e segs., CC) que, por sua vez, disporão sobre o modo "porque se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente" (art. 46, inc. IV, CC). Tanto são distintos os direitos e as obrigações da pessoa física e do ente coletivo que a lei civil, expressamente, consagra que o exercício da personalidade jurídica pela pessoa moral não implica a responsabilidade das pessoas físicas, claramente distinguindo-as daquele e, somente por exceção, na hipótese de abuso da personalidade jurídica, cuidará da desconsideração da personalidade jurídica, em face de pessoas físicas determinadas e por atos concretos e identificados (arts. 47 e 50, CC). Assim como a pena criminal não ultrapassa a pessoa do condenado,4 a infração civil é reparável pela pessoa física ou jurídica que participou do negócio jurídico descumprido; a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas dos sócios e o patrimônio da pessoa jurídica não se confunde com os patrimônios das pessoas físicas que a compõem. Essa regra admite exceção que, como toda excepcionalidade, deve ser interpretada restritivamente,5 e nos termos de um preceito legal promulgado; justifica-se a exceção porque algumas pessoas físicas podem se valer da pessoa jurídica que integram para praticar iliceidades; essa a "ratio legis" do instituto da desconsideração da personalidade jurídica acolhido pelo Código Civil.6 Esse preceito que agasalha a exceção é bastante claro; em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, o juízo natural poderá decidir que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos ao patrimônio particular do administrador ou do sócio da pessoa jurídica. Somente em caso de mau uso da personalidade jurídica é que se pode aplicar o dispositivo e não qualquer mau uso, mas tão somente aquele derivado de desvio de finalidade ou que implique a confusão dos patrimônios sociais e particulares; abuso caracterizado, isto é, provado;7 a decisão atingirá os efeitos de relações jurídicas concretas e delimitadas, causadas por sujeitos identificados que perpetraram o abuso8 e, sobretudo, fundamentará exaustivamente o seu conteúdo e especificará as partes afetadas. Portanto, pessoas físicas podem se reunir a outras pessoas físicas, conjugando esforços pessoais e aplicando recursos materiais, para atingir uma finalidade comum, firmando um ato de constituição que, registrado no órgão competente, dará início à personalidade jurídica desse ente coletivo.9 Esse ato constitutivo, chamado estatuto (associações), contrato social (sociedades simples ou empresárias), escritura pública ou testamento (fundações), especificará o nome, os fins, a sede e o tempo de duração da pessoa jurídica; declarará o nome dos componentes; o modo de administração e quem a representará; a possibilidade ou não de alterar o modo de administração e a forma desta; a assunção ou não de responsabilidade subsidiária pelos membros do ente coletivo; e, por fim, as condições de extinção e o destino do patrimônio (art. 47, CC). O modo de administração e o representante legal da pessoa jurídica são dois temas essenciais à segurança dos negócios. Modo de Administração. Representação Legal e Sistema Jurídico As pessoas naturais reúnem-se, formam uma pessoa jurídica com um projeto a ser executado em função de um fim a ser alcançado. A execução desse projeto comum exige a gestão do mesmo, a administração do ente coletivo. O modo - forma, feição ou jeito particular - dessa administração precisa ser estabelecido no respectivo ato constitutivo. Dá-se algo semelhante à execução do plano individual de uma pessoa natural: uma ideia, o jeito de a concretizar, os meios para conseguir o objetivo, os recursos destinados ao projeto e a aplicação da inteligência para obter o conhecimento do objeto e a vontade para o transformar em uma realidade. A pessoa jurídica indicará os órgãos encarregados de cada função, as pessoas físicas que integrarão os mesmos, os limites de suas respectivas atribuições, a maneira de prestar contas de cada atuação e o modo de as exigir. A natureza familiar ou profissional do ente coletivo também causa importante feição ao empreendimento comum, pois as relações de parentesco e a afetividade, por mais objetividade que se proponha, acabam moldando a administração da pessoa jurídica. É vital a forma de apurar a vontade da pessoa jurídica, pois a expressão volitiva de cada membro - pessoa física - precisa ser cuidadosamente avaliada e, conjugada às manifestações dos demais componentes, proclamar a vontade uniforme do ente coletivo, desaparecendo as posições individuais, emanando a vontade concreta da pessoa jurídica não como simples somatório de vontades dos integrantes, mas vontade própria do ente coletivo. Essa vontade da pessoa jurídica, em regra, é apurada nas assembléias dos membros, ordinárias ou extraordinárias. A unidade, a harmonia da pessoa jurídica depende muito do traçado desse modo de administração e, principalmente, do perfil do administrador. A sua capacidade de conhecer o projeto comum, executá-lo com eficiência e ética, voltado ao fim colimado, redunda no sucesso da empreitada comum. Além dos muitos predicados que a realização de qualquer empreendimento demanda, a capacidade de liderança é imprescindível para o bom exercício da função e, por outro lado, a capacidade de obediência dos demais membros é essencial para evitar a dissipação de forças, a perda da finalidade, a administração caótica e ruinosa. Nesse sentido, a hierarquia é muito importante, na medida em que colabora para prestigiar o líder e centrar os liderados nas suas respectivas áreas de atuação. Projeto, seres humanos, meios e fins, vinculados ao modo de administração capaz de outorgar a todos a satisfação de suas necessidades, construindo uma sociedade livre, justa e solidária, com o emprego da pessoa jurídica como realidade do Direito para manter a pessoa humana no centro e no vértice da vida. A pessoa jurídica movimenta-se no mundo dos negócios e uma pessoa física representará aquela. O representante, pessoa física, age em nome da pessoa jurídica. Os atos do representante legal beneficiam e obrigam o ente coletivo. A existência, a validade e a eficácia da representação é matéria do direito privado. Como o Direito é um sistema e a sua especialização em diversos ramos jurídicos é para a melhor compreensão do próprio Direito, a instituição do representante legal da pessoa jurídica deve observar a lei civil e os atos constitutivos daquela. E os diversos ramos do Direito, por sua vez, sempre que disciplinarem a representação legal devem observar os princípios e as regras do Direito Privado. Enfatizando, se a parte geral do Código Civil é um conjunto de normas que regula todo o Direito em vigor, a noção de sistema é essencial para que a ciência jurídica permita a justa atribuição do devido a cada um. "Em sentido amplo, sistema é visto como esse conjunto de componentes que mantêm um nexo entre si em razão do seu objetivo global. Trata-se de um complexo de mecanismos, procedimentos e normas interligadas que, funcionando como uma estrutura organizada, gera um modelo ou modo de pensar".10 Essa noção abrange os sistemas políticos e jurídicos.11 "No sistema, há uma estrutura operacional integrada por entes distintos e com funções diversas, vinculados pelo fim comum a ser alcançado, comunicando-se entre si, justificados por uma necessidade externa a eles e que se satisfazem com a resposta à demanda que os ativa".12 É muito mais do que uma operação mecânica. É uma concepção orgânica, essencial à preservação da unidade. É mais do que a estrutura organizada, pois há a finalidade comum, a consecução do bem de todos. Preleciona-se, que Kant, "partindo da natureza 'arquitetônica' da 'razão' (Vernunft), afirma que sistema é uma relação entre o todo e as partes, onde a retirada ou acréscimo de uma só parte destrói ou modifica o todo como unidade orgânica. Aqui se abandona o modelo mecânico, substituído pelo orgânico, o qual pressupõe uma força única, central, interna, agindo de modo teleológico, diferente da mera soma das partes do sistema. Um tal sistema não poderia ser desmontado e montado de novo, pois ao fazê-lo, algo se perderia, pois o todo precede as partes sendo mais que a simples agregação de elementos".13 Veja-se que o Direito Processual Civil disciplina o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 133 e segs., CPC), exigindo o preenchimento de requisitos para a instauração desse procedimento (art. 133, § 1º, CPC) e, além disto, a demonstração prévia dos pressupostos legais específicos desse instituto (art. 134, 4º, CPC). Contudo os requisitos do modelo legal do incidente estão no Código Civil, isto é, o abuso da personalidade jurídica, o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial (art. 50, CC). Sem a caracterização do abuso da personalidade jurídica, o incidente é um adjetivo sem substantivo. Sem o devido procedimento legal, o abuso da personalidade jurídica é substantivo sem adjetivo. Juntos, em harmonia, integrando o sistema jurídico, tutelam a autonomia da vontade do ente coletivo e, nos casos de abuso no exercício da personalidade jurídica, permitem a desconsideração desta, tutelando os prejudicados com o meio para a proteção de seus interesses e a pessoa jurídica com um procedimento devido para que se defenda o uso e não o alegado abuso da personalidade jurídica. E o sistema, bem interpretado, funciona em favor da justiça. Há recente reforma criminal que condiciona o exercício da ação penal à representação da vítima nos casos de estelionato (art. 171, § 5º, CP). Vítima é quem sofre a ação criminosa. A pessoa jurídica pode ser vítima de estelionato. A representação para a persecução do autor de estelionato contra a pessoa jurídica depende de manifestação da vontade do representante legal dessa pessoa jurídica patrimonialmente ofendida (art. 24, caput, CPP). O representante legal da pessoa jurídica é a pessoa física que, por seu ato constitutivo, na forma da lei civil, foi incumbido dessa representação do ente coletivo. Integram-se, no sistema jurídico, o Direito Civil, o Direito Penal e o Direito Processual Penal. Os membros da pessoa jurídica que não estiverem satisfeitos com a instituição e a atividade do representante legal dela, na forma da lei civil e do ato constitutivo do ente coletivo, poderão exercitar a pretensão de afastar este representante legal, mediante ação própria, no juízo cível, especializado ou comum, sempre cível, competente para a aplicação  do Direito Civil. O juízo penal não é competente para decidir sobre a capacidade, investidura e atuação do representante legal da pessoa jurídica. Todavia, e se volta à noção de sistema, o juiz criminal não ficará sem poderes jurisdicionais para se instruir e decidir a questão, pois há regra ensejando a suspensão do processo criminal até à decisão do ponto na justiça cível (art. 92 e segs., CPP). É o sistema jurídico a permitir que a pessoa jurídica opere na plenitude de suas potencialidades, assegurando a unidade e a harmonia interna do ente coletivo, o respeito à liderança e a outorga de segurança jurídica a todos com o prestígio dos atos do representante legal que, todavia, na hipótese de abuso, poderá ser removido, segundo o devido processo legal, no juízo natural da causa, cível. Conclusão A parte geral do Código Civil disciplina as relações jurídicas do Direito em seu todo, aplicando-se aos diversos ramos jurídicos. O tratamento legal da pessoa é vital para a ciência jurídica e para a sociedade. É cada vez mais importante a ação das pessoas jurídicas no mundo em evolução. A segurança jurídica depende da disciplina no modo de administração dos entes coletivos, da formação da vontade destes e da instituição e poderes de seu representante legal. A noção de sistema é essencial para que o Direito realize a Justiça. Os diversos ramos jurídicos, integrados no sistema e operando segundo os seus princípios e regras, torna funcional e segura a vida das pessoas físicas e jurídicas, o que contribui para o bem comum. Referências bibliográficas Battista Mondin, O homem, quem ele é?, São Paulo, Paulus, 1980. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1980. Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, v. 1, Parte Geral, Kindle, 2019. Jaques de Camargo Penteado, Acusação, Defesa e Julgamento, Campinas, Millennium, 2001. ­­__________. O Devido Processo Legal e o Abortamento in "A vida dos Direitos Humanos", Coords. Jaques de Camargo Penteado e Ricardo Henry Marques Dip, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. Osvaldo Ferreira de Melo, Dicionário de Direito Político, Rio de Janeiro, Forense, 1978. Rafael Gomes Perez, Problemas morais da existência humana, Lisboa, Cas, 1983. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Conceito de Sistema no Direito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1976. __________ 1 Battista Mondin, O homem, quem ele é?, São Paulo, Paulus, 1980, p. 303. 2 Rafael Gomes Perez, Problemas morais da existência humana, Lisboa, Cas, 1983, p. 31. 3 Sustento que a personalidade jurídica da pessoa natural começa no instante de sua concepção, segundo a mais rigorosa doutrina: "'aceptar el hecho de que una vez producida la fertilización há surgido un nuevo ser humano, ya no constituye una cuestión de gustos u opiniones. La naturaleza humana del ser humano, desde la concepción a la vejez, no es una hipótesis metafísica, sino una evidencia experimental'. Son palavras de Jerome Lejeune(...). E, para não deixar cousa alguma sem esclarecer, acrescentou Lejeune: 'No es la vida que comienza en la concepción, es la vida del nuevo ser. O sea que cada individuo en la cadena de la generación tiene un comienzo muy preciso... En el caso de este individuo determinado, que más tarde reconoceremos, estamos seguros de que su propria vida há comenzado cuando há sido concebido, y no hay escapatorio científica alguna al respecto'. Trata-se da posição que conta com o prestígio de Jean Rostand, Prêmio Nobel de Biologia que (...) afirmou: 'Existe un ser humano desde la fecundación del óvulo. El hombre, todo entero, ya está en el óvulo fecundado'" (Jaques de Camargo Penteado, O Devido Processo Legal e o Abortamento in "A vida dos Direitos Humanos", Coords. Jaques de Camargo Penteado e Ricardo Henry Marques Dip, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1999, p. 147). 4 Art. 5º, inc. XLV, CF. 5 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1980, p. 225. 6 Art. 50. Aplica-se esse dispositivo legal porque as partes são pessoas jurídicas e não se identifica relação de consumo, mas negócio jurídico que se enquadra na codificação civil. "Ao caso não se aplicam os dispositivos do Código do Consumidor, pois não existiu qualquer relação de consumo entre os litigantes" (RT 791/258). 7 "Para a admissibilidade da desconsideração da personalidade jurídica, visando o comprometimento de bens particulares dos sócios por atos praticados pela sociedade, é necessário que haja prova de que a empresa tenha sido utilizada como instrumento para a realização de fraude ou abuso de direito" (RT 784/282). 8 "De fato, a aplicação da disregard doctrine tem de ser apoiada em fatos concretos que demonstrem o desvio da finalidade social da pessoa jurídica, com proveito ilícito dos sócios. A existência de ações e de protestos, por si só, não a autoriza, tampouco a não localização de bens a penhorar. Aliás, nem mesmo a falência da sociedade seria suficiente para justificar necessariamente essa aplicação (Fábio Ulhoa Coelho, Código Comercial e legislação complementar anotados, Saraiva, 1995, p. 211)" (RT 791/258). 9 "A capacidade jurídica adquirida com o registro estende-se a todos os campos do direito, não se limitando à esfera patrimonial" (Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, v. 1, Parte Geral, Kindle, 2019, posição 4742). 10 Jaques de Camargo Penteado, Acusação, Defesa e Julgamento, Campinas, Millennium, 2001, p. 3. 11 Osvaldo Ferreira de Melo, Dicionário de Direito Político, Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 118. 12 Jaques de Camargo Penteado, op et loc cit. 13 Tércio Sampaio Ferraz Jr., Conceito de Sistema no Direito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1976, p. 12.
Entre os modelos de sociedades, a Sociedade em Conta de Participação oferece enorme interesse jurídico. É um daqueles temas pouco visitado na graduação, embora essa modalidade de sociedade tem sido cada vez mais utilizada. A doutrina indica que a sociedade em conta de participação tem origem no contrato de comenda. Era negócio que se fazia, inicialmente, entre um capitalista que entregava dinheiro ao capitão de um navio para a expedição. O capitão fazia negócios em seu próprio nome com o capital recebido e os frutos eram partilhados. Como o capitão agia em nome próprio, o investidor capitalista se tornava oculto. Daí nasceu a figura da sociedade em conta de participação que tem, de um lado, o participante (sócio) investidor e de outro o participante (sócio) ostensivo. Também se encontra registro na doutrina no sentido de que a sociedade em conta de participação serviu em algum momento a ocultar sócios que não poderiam praticar o comércio, como ocorria com os nobres. O comércio não era uma prática bem-vista pela sociedade medieval, porque praticado nos Burgos, por aqueles que procuravam escapar do poder feudal. Havia também a condenação da usura, que se reconhecia na prática do comércio. Por isso, nobres e clérigos se ocultavam nessas sociedades em conta de participação para colher proveito do comércio sem que pudessem ser notados. Não há na doutrina consenso sobre a natureza jurídica da sociedade em conta de participação. Uma sociedade deve oferecer a possibilidade de ser identificada por um ente sujeito de direitos e obrigações, com uma estrutura que lhe pode atribuir a possibilidade de se tornar sujeito de direitos. No entanto, na sociedade em conta de participação o sócio ostensivo age em seu nome e se obriga pessoalmente perante terceiros, enquanto o participante apenas, distante dos negócios, quase sempre entra somente com o capital. Esta figura mais se aproxima de um contrato de participação do que de uma sociedade. No Código Civil de 2002 esse modelo de sociedade pode ser utilizado para o exercício de qualquer atividade econômica (empresarial, intelectual ou rural).1 Apesar de antiga, a sociedade em conta de participação tem sido muito utilizada hoje por capitalistas (investidores), que entregam capital a empresários ou sociedades empresárias para fomento de negócios, partilhando-se os lucros. Este modelo de sociedade pode ser encontrado nos empreendimentos imobiliários. Os adquirentes dos imóveis por construir (sócios participantes) entregam o capital ao empreendedor e depois recebem imóveis como resultado. É comum também em negócios eventuais, como importação de mercadorias. É um meio interessante de financiamento da empresa, com o uso do capital de investidores na aquisição de equipamentos e realização de projetos. Chega-se a dizer que a sociedade em conta de participação está revivendo. O sócio ostensivo gerencia a sociedade e responde ilimitadamente pelas obrigações que contrair, porque age perante terceiros em nome próprio.2 O participante-investidor tem a sua responsabilidade limitada ao quanto foi investido. Esta sociedade não tem registro, como não tem personalidade jurídica. Não é uma sociedade secreta ou ilícita. Ela pode ser conhecida e até levada a registro no Cartório de Registro de Títulos e Documentos, mas a publicidade não altera a sua natureza, porque o contrato social produz efeito somente entre os sócios, e eventual inscrição de seu instrumento em qualquer registro não confere personalidade jurídica à sociedade (art. 993, CC). O eventual registro do contrato, portanto, não tem qualquer efeito em relação a terceiros, porque a sociedade só vale entre os sócios. Há na doutrina quem prefira dizer que é uma sociedade discreta, porque ela só existe entre os sócios e tudo ocorre internamente. Não há forma definida para a sua constituição, que pode ocorrer por escrito ou verbalmente. Também não há restrição alguma à sua prova, que pode ser feita por qualquer meio (art. 992, CC). É comum fazer a prova da sociedade em conta de participação pelo conjunto de documentos (cartas, mensagens, escritos, notas etc.). O contrato escrito, no entanto, é o meio de prova mais eficiente e previne litígios entre os participantes. A Instrução Normativa da Receita Federal RFB 1.863, de 27 de dezembro de 2.018 obriga a inscrição da sociedade em conta de participação no CNPJ. Todavia, esta inscrição não interfere na forma de constituição da sociedade, prevista no art. 992 do CC, e não confere a esta sociedade personalidade jurídica (art. 993, CC). A inscrição é feita exclusivamente para fins tributários. A contribuição de cada sócio deverá formar um fundo social - patrimônio especial (art. 994, CC). Interessante notar que esse patrimônio especial ingressa no patrimônio do sócio ostensivo, porque a contribuição do participante (investidor) é transmitida à titularidade do sócio ostensivo. A sociedade em conta de participação não tem uma forma especial e pode ser provada, como visto, por qualquer meio (art. 992, CC). Não tem firma ou denominação social, assim como não tem personalidade jurídica. Logo, não pode agir em juízo. Esta sociedade não está sujeita à dissolução ou liquidação, porque tudo se encerra com a prestação de contas do sócio ostensivo. Também não está sujeita à falência. No entanto, os participantes podem falir. Se a falência é do sócio ostensivo, a sociedade em conta de participação se extingue, apurando-se em prestação de contas se ao participante caberá crédito ou débito. O crédito será habilitado na falência como quirografário. O débito será cobrado pelo administrador da falência do sócio ostensivo. Caso ocorra a falência do participante (sócio oculto), o contrato de sociedade segue com o sócio ostensivo, assegurando-se ao falido o recebimento dos resultados. Havendo dívida do participante falido, o administrador da falência deverá deliberar sobre o cumprimento da obrigação para o prosseguimento do contrato de sociedade em conta de participação. Como se vê, a sociedade em conta de participação não pode falir, porque ela não existe perante terceiros. Estabelece o Código Civil que o sócio ostensivo não pode admitir novo sócio sem o consentimento dos demais (art. 995), assim como não pode o participante, ainda que tenha maior capital, admitir outro sócio. Não há restrição expressa à transferência ou cessão da participação dos sócios, mas em razão da natureza pessoal, que pode se definir na sociedade, a concordância dos demais será necessária. Melhor seria que esta questão fosse resolvida pelo contrato. A sociedade em conta de participação não se confunde com a figura do investidor-anjo, prevista no art. 61-A, do Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte3. Esse investidor, que a Lei expressamente declara que não é sócio, não participa da gerência e não responde por dívidas, é remunerado pelo seu capital e tem direito à apuração de haveres ao final da sua participação. Também não pode ser confundida a sociedade em conta de participação com a sociedade em comum, que pressupõe uma relação externa da sociedade.  Recai justamente nesta vida externa da sociedade, que se apresenta como se fosse uma sociedade regular (embora não seja), a característica mais marcante da sociedade em comum, para distingui-la da sociedade em conta de participação, de vida secreta e desconhecida de terceiros.4 __________ 1 Nesse sentido o enunciado n. 208 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: "Arts. 983, 986 e 991: As normas do Código Civil para as sociedades em comum e em conta de participação são aplicáveis independentemente de a atividade dos sócios, ou do sócio ostensivo, ser ou não própria de empresário sujeito a registro (distinção feita pelo art. 982 do Código Civil entre sociedade simples e empresária)." 2 A clara explicação de João Pedro Scalzilli e Luis Felipe Spinelli não deixa dúvida a respeito: "Ao sócio ostensivo cabe exercer a atividade prevista no objeto social em seu nome próprio e por sua conta e risco; ele é o protagonista da operação, o senhor do negócio, e como tal o dirige. Ao sócio participante resta, em princípio, tão somente fornecer parte dos meios necessários para possibilitar a exploração do negócio - leia-se investir na atividade -, não se responsabilizando pessoalmente pelo eventual insucesso na operação perante terceiros. Daí a menção de Francesco Galgano no sentido de ser o participante um financiador externo da empresa, um investidor de capital que expõe o próprio aporte aos riscos do negócio explorado por terceiro. Tal situação põe em evidência duas facetas da conta de participação: a externa e a interna, o que faz com que possua a SCP uma estrutura legal tanto quanto diferente das outras espécies societárias." Os autores acrescentam: "[p]ercebe-se que a figura em exame é uma sociedade ad intra, ou, como diz Carlos Gomes de Oliveira, uma sociedade intra muros, sem relações jurídicas com terceiros, para os quais é, na verdade, ineficaz (arts. 991 e 993). Por isso, é equivocado dizer que a sociedade só existe e vale somente entre sócios. Na realidade, ela existe e vale perante todos (sócios e terceiros), porém, produz efeitos única e exclusivamente entre os sócios, daí porque Malagarriga salienta ser o contrato social res inter alios acta. Acertada, portanto, a redação do art. 993 do Código Civil." ((Sociedade em Conta de Participação. Ed. Quartier Latin, 2015, p. 67 e 77).  3 A Lei Complementar n. 155/2016 introduziu a figura do investidor-anjo no Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (Lei Complementar 123, de 14 de dezembro de 2016)., nos termos seguintes: Art. 61-A.  Para incentivar as atividades de inovação e os investimentos produtivos, a sociedade enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte, nos termos desta Lei Complementar, poderá admitir o aporte de capital, que não integrará o capital social da empresa. § 1º  As finalidades de fomento a inovação e investimentos produtivos deverão constar do contrato de participação, com vigência não superior a sete anos. § 2º  O aporte de capital poderá ser realizado por pessoa física ou por pessoa jurídica, denominadas investidor-anjo. § 3º  A atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente por sócios regulares, em seu nome individual e sob sua exclusiva responsabilidade. § 4º O investidor-anjo: I - não será considerado sócio nem terá qualquer direito a gerência ou voto na administração da empresa; II - não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, não se aplicando a ele o art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil; III - será remunerado por seus aportes, nos termos do contrato de participação, pelo prazo máximo de cinco anos. § 5º  Para fins de enquadramento da sociedade como microempresa ou empresa de pequeno porte, os valores de capital aportado não são considerados receitas da sociedade. § 6º  Ao final de cada período, o investidor-anjo fará jus à remuneração correspondente aos resultados distribuídos, conforme contrato de participação, não superior a 50% (cinquenta por cento) dos lucros da sociedade enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte. § 7º  O investidor-anjo somente poderá exercer o direito de resgate depois de decorridos, no mínimo, dois anos do aporte de capital, ou prazo superior estabelecido no contrato de participação, e seus haveres serão pagos na forma do art. 1.031 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, não podendo ultrapassar o valor investido devidamente corrigido. § 8º  O disposto no § 7º deste artigo não impede a transferência da titularidade do aporte para terceiros. § 9º A transferência da titularidade do aporte para terceiro alheio à sociedade dependerá do consentimento dos sócios, salvo estipulação contratual expressa em contrário. § 10. O Ministério da Fazenda poderá regulamentar a tributação sobre retirada do capital investido. Art. 61-B.  A emissão e a titularidade de aportes especiais não impedem a fruição do Simples Nacional.   Art. 61-C.  Caso os sócios decidam pela venda da empresa, o investidor-anjo terá direito de preferência na aquisição, bem como direito de venda conjunta da titularidade do aporte de capital, nos mesmos termos e condições que forem ofertados aos sócios regulares. Art.  61-D.  Os fundos de investimento poderão aportar capital como investidores-anjos em microempresas e empresas de pequeno porte. 4 Nesse sentido a opinião de Waldemar Ferreira (Tratado de Direito Comercial. 3º vol, Saraiva, 1961, p. 539).
A grande modificação pela qual passou a atividade econômica empresarial, especialmente a partir da era industrial, impeliu o produtor a encontrar outros meios de colocar no comércio os seus produtos. Surgiram os contratos de colaboração empresarial ou contratos associativos que se tornaram absolutamente indispensáveis ao desenvolvimento da atividade produtiva. Há uma certa dificuldade em distinguir esses contratos e determinar os seus efeitos, agravada pela unificação do direito privado promovida pelo CC/2002. Nesta oportunidade pretendemos formular algumas proposições para enfrentar as dúvidas de interpretação dessas figuras contratuais, típicas da atividade empresarial, mas que passaram ao ambiente jurídico unificado dos contratos civis. Com o contrato de comissão o CC passou a regular algumas figuras contratuais comerciais. "O contrato de comissão tem por objeto a aquisição ou a venda de bens pelo comissário, em seu próprio nome, à conta do comitente" (art. 693). No C.Com. a comissão (art. 165) tinha alcance mais amplo, porque se referia a qualquer negócio mercantil. No CC foi restrita a compra e venda. O comissário era considerado um mandatário sem representação. Agia em favor do comitente, mas sempre em seu próprio nome. É uma forma de colaboração entre empresários? Ou a comissão também pode ser usada em relações em que não se verifique o exercício profissional da atividade do comissário? Essas dúvidas decorrem da unificação do direito privado pelo CC/2002 e, também, do fato de que o mandado (aqui é mandato) no CC pode ser outorgado sem poderes de representação, permitindo-se que o mandatário possa agir em seu próprio nome (art. 663). A distinção entre a comissão e o mandato, tudo indica, veio ao atual CC por influência do CC italiano, que reserva a comissão somente à compra e venda mercantil e não a outros negócios. Fazia sentido no C.Com. incluir outros negócios, porque havia uma divisão do direito privado entre as relações civis e as relações comerciais (ou atos de comércio), que não existe mais. De qualquer modo, aplica-se à comissão, no que couber, a disciplina do mandato (art. 709). Há, como traço distintivo da comissão, portanto, o objetivo específico da compra e venda mercantil e a natureza profissional de atuação do comissário, tanto que o comissário é sempre remunerado (art.701). Agindo o comissário em seu próprio nome, ele se obriga diretamente com quem contratar (art. 694). Não existe ação entre o comitente e o terceiro. As relações determinadas pela comissão são exclusivamente internas. O comissário não aproxima as partes ou faz a intermediação do negócio, como ocorre com a corretagem. Ele age e contrata em nome próprio. Entende-se que ele é um prestador de serviços, como autoriza os arts. 703, 705 e 707 do CC. O comissário deve seguir as ordens e instruções do comitente (art. 695). O comissário não é responsável pelo cumprimento da obrigação do terceiro com o qual contrata, embora em seu nome, mas no interesse do comitente, salvo se for estabelecida a cláusula del credere (art. 698), pela qual o comissário se obriga solidariamente pelo cumprimento integral da obrigação contraída pelo terceiro - é uma espécie de garantia. Neste último caso terá direito a uma remuneração maior.1 A Comissão entrou em declínio quando surgiu a figura do representante comercial ou agente. "Pelo contrato de agência, uma pessoa assume, em caráter não eventual e sem vínculos de dependência, a obrigação de promover, à conta de outra, mediante retribuição, a realização de certos negócios, em zona determinada, caracterizando-se a distribuição quando o agente tiver à sua disposição a coisa a ser negociada" (art. 710 - regra da exclusividade). O agente assume a obrigação de promover negócios, em caráter não eventual e sem dependência, em zona determinada. Não pode o proponente constituir mais de um agente na mesma zona ou o agente tratar de negócios do mesmo gênero em favor de outros proponentes (art. 711). Não é comissão, porque o agente não contrata em seu nome. Na comissão há mandato e na agência não. O agente atua na promoção da compra e venda, que será concluída pelo proponente. Por isso o agente era designado como "representante comercial autônomo" pela lei 4.886/65. O agente poderá ter poderes para representar o proponente na conclusão dos contratos (art. 710, par. único). Não é corretagem, porque tem natureza estável e permanente e delimitação de área. A agência se identifica com a representação comercial, regulada pela lei 4.886/65 (alterada pela lei 8.420/92). Prevalece o entendimento de que a agência é o antigo contrato de representação comercial, regulado agora pelos arts. 710 a 721 do CC. A rigor, continua em vigor a Lei Especial em tudo que não conflitar com o CC.2 Vale anotar a definição de representante comercial que está no art. 1º da lei 4.886/65: "Exerce a representação comercial autônoma a pessoa jurídica ou a pessoa física, sem relação de emprego, que desempenha, em caráter não eventual por conta de uma ou mais pessoas, a mediação para a realização de negócios mercantis, agenciando propostas ou pedidos, para, transmiti-los aos representados, praticando ou não atos relacionados com a execução dos negócios." O representante (ou agente) é considerado empresário, nos termos do art. 966 do CC, e deve ser inscrito no respectivo Conselho. O STJ tem entendimento a respeito da não inscrição do agente: "1. Controvérsia em torno da exigibilidade da  indenização prevista no artigo 27 da Lei 4.886/65, destinada aos representantes  comerciais,  a quem não tenha registro no respectivo Conselho Regional de Representantes Comerciais. 2. Pacífico o entendimento do STJ de que o artigo 5º da lei 4.886/65 não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, pois, por se tratar de profissão que não exige qualificação técnica específica, o condicionamento  ao  recebimento  de  qualquer  valor  por  serviços efetivamente  prestados violaria à garantia de "livre o exercício de qualquer  trabalho,  ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais  que  a lei estabelecer". 3. Reconhecimento do direito ao  recebimento  do  valor  correspondente aos serviços efetivamente prestados.  4.  Inaplicabilidade, porém, do regime jurídico previsto na  Lei  4.886/65,  cujo  pressuposto  de incidência é o registro no respectivo    conselho   regional,   requisito   estabelecido   pelo microssistema  normativo  para  que se possa atribuir a qualidade de representante  comercial  a  determinada  pessoa,  passando  a estar submetida a regime jurídico específico. 5.  A  exigência  de registro destina-se a assegurar a boa prestação dos  serviços,  com  o  controle do Conselho Regional, de modo que a aceitação irrestrita da aplicação do regime jurídico previsto na Lei 4.886/65  estimularia  a  atuação  sem  registro.  6.  Aplicação aos prestadores   de  serviços  de  representação,  não  registrados  no respectivo  Conselho Regional, das disposições do Código Civil, que, apesar  de  prever  a  remuneração  pelos  serviços  prestados,  não contempla a indenização prevista no artigo 27 da lei 4.886/65." (REsp 1678551/DF, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, DJe 27/11/2018) Ao disciplinar a representação comercial (agência), o CC não revogou integralmente a Lei Especial. Prevalece o CC, por exemplo, quanto ao aviso prévio previsto no seu art. 720 (e não o art. 34 da lei 4.886/65). No entanto, a indenização do agente é aquela prevista na Lei Especial, por força do próprio CC (art. 718). O contrato de agência poderia ser entendido como uma espécie de gênero, do qual a distribuição e a concessão comercial são espécies. Ao que tudo indica, o contrato de distribuição do CC se refere a produtos de outrem, ou seja, do fornecedor, tanto que o art. 710 se refere à distribuição quando o agente tiver à sua disposição a coisa a ser negociada. Assim, o contrato de distribuição do CC não se identifica com a concessão comercial da lei 6.729/79, conhecida como Lei Ferrari, porque neste último caso o concessionário ganha pela diferença entre o preço de compra e venda dos veículos, enquanto na distribuição o distribuidor recebe comissão. Por isso o art. 710 se aplica exclusivamente ao contrato de agência, antiga representação comercial. Nesse sentido o Enunciado 31 da I Jornada de Direito Comercial: O contrato de distribuição previsto no art. 710 do Código Civil é uma modalidade de agência em que o agente atua como mediador ou mandatário do proponente e faz jus à remuneração devida por este, correspondente aos negócios concluídos em sua zona. No contrato de distribuição autêntico, o distribuidor comercializa diretamente o produto recebido do fabricante ou fornecedor, e seu lucro resulta das vendas que faz por sua conta e risco. O contrato de distribuição do CC é na verdade um contrato de agência3, com a condição particular de que o agente tem a disponibilidade dos produtos do fornecedor ou "proponente". Há uma distinção entre a distribuição como revenda, na qual o fornecedor se obriga a entregar a mercadoria, e o revendedor obtém lucro com a revenda, e a distribuição que exige colaboração mais ampla, com interferência do fornecedor na atividade do revendedor. É o caso da concessão comercial, marcada por uma subordinação e dependência econômica. É negócio que envolve marca, assistência técnica, modelo de estabelecimento etc. Há quem sustente que entre os contratos de concessão comercial está a franquia. A franquia está regulada pela lei 8.955/1994 e o seu art. 2º a define: "Franquia empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo empregatício." Na franquia o essencial não é a distribuição de produtos, como ocorre com a concessão. O essencial na franquia é a licença de utilização da marca, como se fora o próprio franqueador. O franqueado não é um intermediário. Ele atua em nome próprio. Há outros traços característicos como a permanente assistência e uniformidade de métodos de venda e organização. O que separa a agência das modalidades de distribuição é a autonomia do distribuidor e a sua remuneração pela intermediação. Age o distribuidor em nome próprio, enquanto o agente sempre age em nome do representado. Mesmo quando o agente tem a disponibilidade da mercadoria, ele não se confunde com o distribuidor, porque a mercadoria é colocada em consignação ou depósito. O represente não a adquire do fornecedor. A afinidade dos contratos de agência e distribuição com outras figuras é reconhecida pelo art. 721 do CC: "Aplicam-se ao contrato de agência e distribuição, no que couber, as regras concernentes ao mandato e à comissão e as constantes de lei especial." O STJ procurou estabelecer essa distinção no julgamento do  REsp 1799627/SP, em 23/04/2019 (Dje 09/05/2019), relatado pelo Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA:  "(...) 3.  Necessidade prévia de estabelecer as distinções entre o contrato de distribuição autêntico - também denominado "contrato de concessão comercial" - e o contrato de representação comercial. 4.  Enquanto a atividade do representante comercial fica limitada ao agenciamento de propostas ou pedidos em favor do representado, sendo a  respectiva  remuneração normalmente calculada em percentual sobre as  vendas por ele realizadas (comissões), age o distribuidor em seu próprio  nome  adquirindo  o bem para posterior revenda a terceiros, tendo  como  proveito econômico a diferença entre o preço de venda e aquele pago ao fornecedor (margem de comercialização). 5.   A   despeito   de   ter  o  legislador  utilizado  a  expressão "distribuição"   para  nomear  uma  das  modalidades  dos  contratos disciplinados  pelos  arts. 710 e seguintes do Código Civil de 2002, tais  preceitos não se aplicam aos contratos de concessão comercial, conforme  compreensão  firmada  na  I  Jornada  de Direito Comercial realizada pelo Conselho da Justiça Federal (Enunciado nº 35). 6.  A  lei  6.729/1979  (Lei Ferrari), não obstante dispor sobre concessão  comercial,  tem  seu  âmbito  de  aplicação  restrito  às relações    empresariais    estabelecidas    entre    produtores   e distribuidores de veículos automotores de via terrestre. Precedentes. 7.  Tratando  a  hipótese  de  contrato  atípico,  deve  a pretensão recursal ser analisada com base nas regras ordinárias aplicáveis aos contratos   em  geral,  devendo  prevalecer  o  princípio  da  força obrigatória  dos contratos (pacta sunt servanda), notadamente por se tratar de relação empresarial. 8.  Impossibilidade  de acolhimento da alegação de que a exclusão da cláusula  de  exclusividade  nos contratos mais recentes ocorreu por imposição unilateral de umas das partes. 9.  A  exclusividade, compreendida como o direito do distribuidor de ser  o  único  a  comercializar o produto distribuído em determinado território ou em relação a determinados consumidores, não é elemento indispensável do contrato de concessão comercial. 10.  Suposta  inobservância de cláusula que imputava à fornecedora a obrigação  de  notificar a distribuidora sobre eventual constituição de  novo distribuidor dos seus produtos com antecedência mínima de 6 (seis) meses. 11.  Hipótese  em  que  os  contratos eram expressos ao dispor que a atividade  de  distribuição  se referia a produtos predeterminados e que  o  termo  "produtos",  adotado  em  tais  avenças,  tinha  como significado   determinada   categoria   de   produtos  e  acessórios previamente especificados. (...)" O agente e o distribuidor devem seguir as instruções do proponente (art. 712). Têm direito à remuneração de todos os negócios concluídos dentro de sua zona, ainda que sem a sua interferência (art. 714). Interessante disposição, contra o abuso do proponente, está no art. 715: "O agente ou distribuidor tem direito à indenização se o proponente, sem justa causa, cessar o atendimento das propostas ou reduzi-lo tanto que se torna antieconômica a continuação do contrato." Cabe assinalar que o contrato de agência não se confunde com o contrato estimatório ou a venda por consignação. No contrato estimatório o consignatário pode adquirir a coisa que está em seu poder, o que não ocorre normalmente no contrato de agência. A agência é uma relação duradoura, o que não se verifica no contrato estimatório. Está na natureza da agência a intermediação e o agente age em nome do vendedor, enquanto o consignatário age em nome próprio, como dono da coisa. O agente pode considerar rescindido (resolvido) o contrato se ocorrer recusa injustificada do preponente-representado de atendimento aos pedidos angariados (art. 36 da lei 4.886/1965). No contrato de concessão comercial, o concessionário compra o produto da concedente (veículos) e neste ponto está a substancial diferença para os demais contratos de colaboração empresarial. Na agência e distribuição o agente é um preposto. Na concessão, o concessionário não é preposto do fornecedor. Ele revende o produto e tem autonomia no seu negócio. O que distingue a concessão comercial da distribuição é a exclusividade. Mas há outras diferenças mais significativas, como a dependência econômica que se verifica na concessão comercial e o fato de que o concessionário compra a mercadoria para revender. O art. 710 deixa claro que o agente é um promotor de negócios e o distribuidor um intermediário, de forma que o concessionário está fora deste dispositivo. O Superior Tribunal de Justiça rejeitou a tese de aplicação, por analogia, da Lei Ferrari ao contrato de distribuição de bebidas.4 Aplica-se, no entanto, ao contrato de distribuição, para afastar o abuso, o disposto no art. 474 do Código Civil: "A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos." __________ 1 Nos contratos de representação comercial o pacto del credere é vedado (art. 43 da lei 4.886/1965). 2 Na Europa a Diretiva n. 86/653/CEE do Conselho, de 18 de Dezembro de 1986, relativa à coordenação do direito dos Estados-membros sobre os agentes comerciais, que está em vigor, regula a atividade do representante comercial no âmbito dos Estados europeus. Cuida este documento fundamentalmente do agente profissional independente e mandatário profissional, conferindo-lhe indenizações em caso de rompimento indevido do contrato. 3 Há uma interessante decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre o contrato de agência: "RECURSO  ESPECIAL.  AÇÃO  DE  PRESTAÇÃO  DE  CONTAS.  PRIMEIRA FASE. CONTRATO  DE  AGÊNCIA.  PROMOÇÃO  DE  VENDA  DE QUOTAS DE CONSÓRCIO. ADMINISTRAÇÃO   DE   BENS   DE  TERCEIROS.  APURAÇÃO  UNILATERAL  DA REMUNERAÇÃO.  POSSE  DE  DOCUMENTOS  RELEVANTES.  DEVER  DE  PRESTAR CONTAS.  RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.  1. O recurso especial debate a viabilidade  jurídica  da  ação  de prestação de contas e o dever de prestá-las  decorrente  de  contrato  de  colaboração  entre empresa promotora  de  vendas  de  quotas  consorciais  e  administradora de consórcio.  2. O vínculo entre as partes litigantes é típico contrato de  agência,  regulado  pelos  arts. 710 e seguintes do CC/2002, por meio  do  qual  a promotora das vendas se obriga a disponibilizar ao consumidor  a aquisição de quotas consorciais, mediante remuneração, recolhendo propostas e transmitindo-as a administradora do consórcio (contratante). 3.  O  vínculo  contratual  colaborativo  originado  do  contrato de agência  importa na administração recíproca de interesses das partes contratantes,  viabilizando  a  utilização  da  ação da prestação de contas  e  impondo a cada uma das partes o dever de prestar contas a outra. 4.  A remuneração devida à promotora é apurada, após a conclusão dos contratos de aquisição de quotas, podendo ser influenciada também em razão  de  desistências  posteriores, como no caso concreto, de modo que não é possível o conhecimento de todas as parcelas que compõem a remuneração final, sem a efetiva participação da administradora. 5.   A  apresentação  extrajudicial  e  voluntária  das  contas  não prejudica o interesse processual da promotora de vendas, na hipótese de não serem elas recebidas como boas. Precedentes. 6. Recurso especial desprovido. (REsp 1676623/SP, Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Dje 26/10/2018). 4 Nesse sentido: "RECURSO  ESPECIAL.  DIREITO  CIVIL.  AÇÃO INDENIZATÓRIA. CONTRATO DE DISTRIBUIÇÃO  DE  BEBIDAS.  RESILIÇÃO UNILATERAL. DENÚNCIA MOTIVADA. JUSTA   CAUSA.  VALIDADE  DE  CLÁUSULAS  CONTRATUAIS.  ATO  ILÍCITO. INEXISTÊNCIA.   DEVER   DE   INDENIZAR.  NÃO  CONFIGURAÇÃO.  LEI  Nº 6.729/1973 (LEI FERRARI). INAPLICABILIDADE. 1.   Ação  indenizatória  promovida  por  empresa  distribuidora  em desfavor  da  fabricante  de bebidas objetivando reparação por danos materiais  e  morais  supostamente  suportados em virtude da ruptura unilateral do contrato de distribuição que mantinha com a recorrente (ou  integrantes  do mesmo grupo empresarial), de modo formal, desde junho de 1986. 2.  Acórdão  recorrido  que, apesar de reconhecer que a rescisão foi feita  nos  exatos  termos  do  contrato,  de  forma  motivada e com antecedência  de  60  (sessenta  dias),  concluiu  pela  procedência parcial  do  pleito autoral indenizatório, condenando a fabricante a reparar  a  distribuidora  por  parte  de  seu  fundo  de  comércio, correspondente à captação de clientela. 3.  Consoante  a  jurisprudência  desta Corte Superior, é impossível aplicar,  por analogia, as disposições contidas na Lei nº 6.729/1979 à hipótese de contrato de distribuição de bebidas, haja vista o grau de  particularidade da referida norma, que, como consabido, estipula exclusiva   e   minuciosamente   as  obrigações  do  cedente  e  das concessionárias  de  veículos  automotores de via terrestre, além de restringir   de   forma   bastante  grave  a  liberdade  das  partes contratantes em casos tais. 4.  A  resilição  unilateral  de contrato de distribuição de bebidas e/ou  alimentos,  após  expirado  o  termo  final  da avença, quando fundada  em  justa  causa (inadimplemento contratual reiterado), não constitui ato ilícito gerador do dever de indenizar. Precedentes. 5. Recurso especial provido." (REsp 1320870/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA DJe 30/06/2017)
quarta-feira, 10 de março de 2021

A sociedade de advogados é empresária?

Na semana passada o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou um caso envolvendo a saída de um advogado (por retirada ou exclusão) de uma grande banca de advocacia. No caso envolvendo a saída do sócio fundador, a discussão da causa se concentrou na forma de apuração dos haveres. O sócio que deixou a sociedade defendeu que a apuração deve ser feita também pelos bens intangíveis e fluxo de caixa descontado, a exemplo do que ocorre com as sociedades empresárias. A outra parte sustentou que a sociedade de advogados não tem natureza empresária e por isso a apuração dos haveres se faz, essencialmente, pelo patrimônio líquido, por um balanço patrimonial. Essa causa reavivou uma antiga discussão que se faz muito timidamente no Brasil a respeito da natureza empresária de uma sociedade de advogados, especialmente em relação às grandes bancas, que têm expressivo faturamento e contratos de longo prazo. A saída de um sócio deixa para a sociedade um patrimônio que é resultado não só da sua atividade como advogado, mas muitas vezes das suas qualidades como empresário, que consegue bons clientes e contratos. Não havia no Direito brasileiro, à luz do Código Civil de 1916, distinção entre as sociedades de prestação de serviços, de forma que todas elas, mesmo as sociedades organizadas para o exercício de atividades intelectuais regulamentadas, como é o caso da advocacia, estavam sujeitas a um único regime jurídico estabelecido para as sociedades civis em geral. Foi a partir da lei 4.215/1963 (revogada pela lei 8.906/1994 - Estatuto da Advocacia) que a sociedade de advogados passou a existir, assumindo fisionomia especial diante das demais sociedades de prestação de serviços, em razão do particular regramento que recebeu. Destaca-se deste regramento especial, constituído a partir do Estatuto da Advocacia de 1963, a previsão de registro da constituição e de todos os demais atos da sociedade de advogados pelos Conselhos Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, valendo esse registro para aquisição da personalidade jurídica. O Código Civil passou a ser aplicado supletivamente, o que levou o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil a editar em julho de 1964 uma Resolução, embora provisória, para orientar a organização e funcionamento da sociedade de advogados, depois consolidada pelo Provimento 23, de 23 de novembro de 1965. O vigente Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil de 1994 seguiu a mesma orientação e regulou a sociedade de advogados (arts. 15 a 17). Em consonância com a orientação do direito brasileiro, firmada desde 1963, o Conselho Federal da Ordem do Advogados do Brasil editou o Provimento 112, de 10 de setembro de 2006, dispondo sobre a constituição e registro dos atos relativos à sociedade de advogados. Embora definida a sociedade de advogados, pela própria lei, como sociedade simples, não há dúvida alguma da sua natureza especial, que resulta confirmada da simples leitura dos dispositivos referidos (arts. 15 a 17). Destaca-se a redação do art. 15, in verbis: "Os advogados podem reunir-se em sociedade simples de prestação de serviços de advocacia ou constituir sociedade unipessoal de advocacia, na forma disciplinada nesta Lei e no regulamento geral." Também não há dúvida sobre a legitimidade do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil em editar atos normativos com o fim de regulamentar os dispositivos da lei (art. 78 do EAOAB). Resulta ainda bem definido na doutrina brasileira que as disposições do Código Civil de 2002, para a sociedade simples, são supletivas em relação à sociedade de advogados, tanto que nesse sentido o Conselho Federal da OAB deliberou, por unanimidade, que embora encartada no modelo de sociedade simples, continua a regrar-se pelos preceitos da lei 8.906/1994 (Proposição 24, de 2003, DJU 17/09/2004, p. 847, que resultou no Provimento 112/2006). Cabe neste ponto ressaltar, igualmente, que a sociedade de advogados não pode apresentar forma ou característica de sociedade empresária (art. 16 do EAOAB).1 Como afirma Alfredo de Assis Gonçalves Neto, não é lícito "nem ser enquadrada como tal em razão da atividade que exerça, mesmo quando se dê em grande escala, com complexidade de organização semelhantes às de uma empresa. Ou seja, jamais poderá, a sociedade de advogados, ser enquadrada como sociedade empresária".2  Portanto, não se aplica à sociedade de advogados o art. 983 do Código Civil, que permite a uma sociedade simples se constituir de conformidade com um dos tipos de sociedade empresária, nem pode adotar o regime da sociedade por quotas de responsabilidade limitada ou o modelo das sociedades em comandita ou por ações, como estabelece o Provimento 92/2000 do Conselho Federal da OAB.3 A sociedade de advogados não é constituída evidentemente para o exercício da advocacia, que é privativo do advogado, mas para o fim de "permitir ou facilitar a colaboração recíproca entre si dos sócios-advogados e demais advogados a ela vinculados, para a disciplina do expediente e dos resultados patrimoniais auferidos na prestação dos serviços por eles individualmente realizados".4 No ordenamento italiano (Legge 31 dicembre 2012, n. 247, art. 4), que contempla a sociedade de advogados, é expressa a advertência no sentindo de que as obrigações profissionais da advocacia sempre são pessoais do advogado e não da sociedade, e que a participação do advogado na sociedade não pode prejudicar a autonomia, liberdade e independência intelectual do profissional no desenvolvimento da atividade de advocacia.5 Admite-se para as sociedades de advogados a figura do sócio que integraliza a sua participação com serviços (art. 997, V, CC), o que não é possível nas sociedades empresárias de responsabilidade limitada. Ainda que se possa aceitar alguma restrição à ideia de affectio societatis, que para alguns está superada6, se ressalta a pessoalidade e a criação intuitu personae, inerentes à sociedade simples, e muito especialmente nas sociedades de advogados, a dar a essa relação características distintas a justificar a imposição de particular dever de colaboração recíproca entre os advogados organizados em sociedade. Como afirma Alfredo de Assis Gonçalves Neto, "o relacionamento pessoal existente entre os sócios é fator decisivo para a sua formação, ficando, em plano secundário, a reunião de recursos para o empreendimento comum".7 Referindo-se às sociedades desta natureza (intuito personae), A.J. Avelãs Nunes afirma: "[A] ideia de intuitus personae justifica-se nestas sociedades, segundo pensamos, como consequência da responsabilidade solidária e ilimitada que cada um dos sócios assume pelas perdas da sociedade. Por esta razão é que entre os sócios deve existir uma relação de mútua confiança; por isso é que a entrada de elementos estranhos está condicionada pela concordância de todos os sócios".8 Cabe dar relevo, ainda, a uma das mais importantes características da sociedade de advogados: "A sociedade de advogados é uma sociedade de trabalho. O pressuposto para ser sócio é estar inscrito na OAB e desimpedido para o exercício da advocacia. Não há espaço para sócios investidores. O sócio há de ser advogado militante para, na sociedade de advogados, exercer a advocacia."9 A sociedade de advogados pode ser classificada como uma sociedade simples, mas tem, como visto, características especiais, daí a afirmação de Antônio Corrêa Meyer e Mauro Bardowil Penteado, apoiada por toda a doutrina, no sentido de que "não existe, em nenhum dos tipos societários reconhecidos pela lei brasileira, sociedade que a ela se assemelhe em suas características mais marcantes."10 Orlando Gomes, que define a sociedade de advogados como sociedade profissional de caráter especial, ressalta bem as suas características: "Nesta configuração legal, a sociedade profissional de advogados apresenta características da Innengeselschaft do direito alemão, a chamada sociedade interna em tradução literal. Não é, seguramente, mas tem traços de semelhança porque sociedade propriamente dita só se manifesta na relação dos sócios entre si, indo para uma conta comum o resultado dos negócios realizados pelos sócios na sua própria individualidade. Ora, na sociedade de advogados do modelo adotado no Estatuto da OAB, também a atividade ou atuação dos sócios é individual, revertendo, entretanto, para a sociedade o resultado patrimonial auferido. Com muito maior razão, tem cabimento a estipulação da cláusula de exclusão de qualquer dos sócios por motivo importante, continuando a sociedade a existir. A separação implica apenas, em última análise, uma liquidação de contas, porquanto, não havendo interdependência da atuação dos sócios, nenhuma repercusão sobre o que é social tem, em princípio, o desligamento de um dos sócios, salvo, talvez, de ordem quantitativa, que não possui relevância jurídica."11 Em razão das peculiaridades da sociedade de advogados, não ignoradas certamente pelo legislador, o art. 983, parágrafo único, do Código Civil, abriu o regime da sociedade simples, concebido pelo Código Civil como regime subsidiário e complementar, para a aplicação de leis especiais, como é o caso da sociedade de advogados regulada pelo EAOAB.12 O Tribunal de Justiça de São Paulo teve oportunidade de decidir sobre a natureza da sociedade de advogados, e o regime jurídico aplicável, em julgado relatado pelo Desembargador Enio Zuliani. Do excelente voto se destaca o seguinte: "A sociedade de advogados não é empresária e sequer poderá ser classificada, pelo advento do CC, de 2002, como sociedade simples, porque dotada de regramento específico (lei 8906/94, art. 15 e provimentos internos da OAB, notadamente o n. 92, que disciplina a forma de apuração de haveres), com personificação apropriada. Não é permitido decidir os litígios envolvendo advogados associados da mesma maneira que se resolvem lides entre sócios de sociedades empresárias. A preliminar suscitada pela Sociedade de Advogados (falta de interesse processual da autora) estimula leitura dos respeitáveis pareceres que se encontram em brochura impressa em 1975, nas oficinas da Revista dos Tribunais, por Pinheiro Neto & Cia. Ltda., sobre o litígio da Ap. Cível 207.346, do TJ-SP (Orlando Gomes, José Frederico Marques, F.C. Pontes de Miranda, Washington de Barros Monteiro, Silvio Rodrigues e Ruy de Azevedo Sodré) para se ter certeza do efeito vinculativo do contrato celebrado entre advogados que formam uma sociedade para desenvolvimento das atividades advocatícias. Não discordam os ilustres juristas sobre a força do princípio pacta sunt servanda, cabendo destacar o que foi deduzido por FREDERICO MARQUES (pg. 153): "Quanto à participação dos sócios excluídos em honorários de causas em que intervieram, é problema que não pode surgir no âmbito de uma sociedade em que o trabalho é comum. Ao demais, assinando o contrato constitutivo da sociedade, e concordando com suas cláusulas e preceitos, não podem, agora, os sócios excluídos, tentar desfigurá-lo, ou insurgirem-se contra aquilo por eles próprios admitido". Do pronunciamento que PONTES DE MIRANDA fez para subsidiar o litígio que envolveu saída de sócios da sociedade Pinheiro Neto, Barros & Freire, filtra-se o seguinte trecho (p. 163): "Ao ser assinado o contrato, deliberaram os contratantes livremente e a respeito de direitos disponíveis. Isto posto, e como a "convenção constitui lei entre as partes" e assegura lhe está "a liberdade ampla de regular, como lhes convenha, as relações entre os associados, o seus deveres e direitos, salvos limites postos pela natureza especial das sociedades" ou pelos cânones do Direito positivo não podem os sócios excluídos virem agora insurgir-se contra o modus procedenti a que eles próprios acederam (cf. Rui Barbosa, "parecer", in Cândido de Oliveira Filho, "Prática Civil", 1928, vol. 6, pág. 240)" (TJSP - Apelação nº 0196863- 71.2010.8.26.0100, rel. Des. Enio Zuliani, j. 30.10.2012). (negrito nosso) Não chegamos a sustentar que os regulamentos do Conselho Federal da OAB prevalecem sempre sobre o Código Civil, que deveria ser aplicado apenas em caso de omissão, como defendem Antônio Corrêa Meyer e Mauro Bardawil Penteado e outros.13 Há disposições do Código Civil pertinentes às sociedades simples e às sociedades em geral que são de ordem pública e não comportam disposição. Todavia, é necessário reconhecer que a singularidade da sociedade de advogados exige que a interpretação do Código Civil se faça de modo a atender as suas especificidades. Não podem ser aplicadas as disposições do Código Civil para as sociedades simples que, em confronto com a legislação especial (EAOAB e atos normativos do Conselho Federal da OAB), se apresentem em desacordo com as características particulares da sociedade de advogados. Essa é a linha, a nosso ver, da correta interpretação. No caso referido, julgado na semana passada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, se negou a natureza empresária da sociedade de advogados, buscando solução dos haveres nos honorários pendentes de pagamento e realização quando ocorreu a saída do advogado. O regime jurídico estabelecido para a sociedade de advogados no Brasil não autoriza reconhecer a sua natureza empresária, mas a realidade se impõe e todos nós bem sabemos que as grandes Bancas de advocacia adquiriram características empresárias, que certamente não serão ignoradas pelo legislador e pelos tribunais. Enquanto isso, cuidem os advogados de bem esclarecer nos contratos de sociedades as condições para a saída dos seus sócios. __________ 1 Dispõe expressamente o EAOAB: "Art. 16.  Não são admitidas a registro nem podem funcionar todas as espécies de sociedades de advogados que apresentem forma ou características de sociedade empresária, que adotem denominação de fantasia, que realizem atividades estranhas à advocacia, que incluam como sócio ou titular de sociedade unipessoal de advocacia pessoa não inscrita como advogado ou totalmente proibida de advogar" (Redação dada pela lei 13.247, de 2016).  2 Alfredo de Assis Gonçalves in "Sociedade de Advogados", ed. Lex, 7ª ed., p. 49. 3 Há outros sinais distintivos da sociedade de advogados: i) exigir habilitação profissional de todos os sócios; ii) não admitir outro objeto; iii) exigir registro próprio;  iv) responsabilidade ilimitada pelos danos que forem causados a terceiros no exercício da advocacia. Na discussão do projeto, que resultou no Provimento nº 112/2006, do Conselho Federal da OAB, o relator na  Comissão, Doutor Eduardo Gleber, bem destacou na sua judiciosa manifestação o fato de que "a peculiaridade da sociedade de advogados reside justamente, na inexistência de autonomia plena da pessoa jurídica, a qual não pode praticar atos profissionais em nome próprio, nem segreda a responsabilidade dos sócios pelos danos causados aos clientes por ação ou omissão no exercício da advocacia. A sociedade de advogados é, pois, deste ponto de vista, pessoa jurídica imprópria, à qual se reconhece autonomia para certos efeitos, mas não para outros, e a sua existência e funcionamento estão visceralmente ligados à qualidade pessoal de seus sócios, de serem inscritos na OAB e de não estarem impedidos de exercer a profissão de advogados. [...] Decorre destas razões que a sociedade de advogados, ao ajustar-se à tipologia das sociedades no Código Civil, deverá caracterizar-se como sociedade simples pura, sujeita, contudo, aos requisitos e especificidades constantes do Estatuto da Advocacia e da OAB, lei especial que rege a sua existência e funcionamento." (extraído dos autos Proc. 013/2002/CSAD-GOC, datado de 10.02.2003). 4 Alfredo de Assis Gonçalves. Sociedade de Advogados..., p. 40. 5 Ver a respeito o estudo de direito comparado de Andrea Fusaro (Le Società per l'esercizio di attività professionali in Italia e all'estero), que examinou o regime jurídico da sociedade de advogados de vários países europeus e dos Estados Unidos, concluindo que, exceto os regimes liberais, como é o caso do regime inglês, os demais admitem a constituição de sociedade de profissionais forenses (advogados) sempre de forma coerente com a função constitucional de tutela dos direitos, afastando destas sociedades o regime societário de capital (Tendenze del Diritto Privato in Prospettiva Comparatistica. G.Giappichelli Editore - Torino, 2015, p. 501-534). O exame comparado levado a efeito permite perceber que em quase todo o mundo a sociedade de advogados apresenta essa característica muito particular de preservação da função do advogado e da sua autonomia na tutela dos direitos, não permitindo a introdução de sócio de capital a colocar em risco a atividade fundamental da advocacia. A sociedade de advogados, portanto, tem natureza distinta, mesmo quando comparada a outras sociedades de profissionais. Anote-se que hoje se admite na Itália a constituição de sociedade de advogados de pessoas, de capital ou cooperativa (LEGGE 4 agosto 2017, n. 124. Legge annuale per il mercato e la concorrenza.). 6 O que parece mais adequado é que a affectio societatis passou a um novo entendimento, como bem assinala José Waldecy Lucena ao conceituá-la "como uma colaboração ativa, consciente e igualitária de todos os contratantes, em vista da realização de um lucro a partilhar". Demonstra que a doutrina francesa continua a lhe emprestar relevância. Lembra que Paul Pic e Jean Kréher passaram a conceituá-la como: "collaboration active, consciente et égalitaire de tous les contractants, en vue de la réalisation d'un benéfice à partager".  Ou ainda com Alain Couret e Jean-Jacques Barbiéri: "L'affectio societatis, également appelé jus fraternitatis, exprime la volunté commune de tous les associes de gruper leurs efforts en vue d'un but commun. C'est l'esprit d'equipe." Lucena conclui a nota com a afirmação de Nadège Reboul: "força é constatar hoje que a affectio societatis, longe de estar moribunda, permanece sempre presente em nosso direito das sociedades. Literalmente definida como a intenção de se associar, a affectio societatis é um elemento cuja presença é indispensável em toda sociedade" (Das Sociedades Limitadas. Ed. Renovar. 5ª ed., p. 724-725, nota 121). A confirmar que a affectio societatis continua viva, basta ver que os julgados dos tribunais frequentemente recorrem a ela para solução dos casos que se apresentam no direito de sociedades. 7 Ver a respeito Alfredo de Assis Gonçalves Neto.  Sociedade de Advogados..., p. 42-43 e 48. No mesmo sentido salienta Silvio de Salvo Venosa: "[a] pessoalidade, a criação intuitu personae, é inerente à sociedade simples, tendo o affectio societatis especial relevo nesta espécie societária. Por isso, essa regra geral inserta no caput do art. 1.028 prevendo a extinção do seu vínculo social no caso de morte de um dos sócios" (Direito Civil. VIII, 4ª ed., Atlas, p. 130). A propósito do dever de colaboração na sociedade simples italiana, cujo modelo inspirou o legislador brasileiro, é válido, ainda, anotar a observação de Francesco Galgano: "Viene in considerazione, in particulare, il cosiddetto obbligo di collaborazione del socio alla società. È una obbligazione del socio che trova la propria fonte nello stesso art. 2247: le parti non si limitano, con il contrato di società, a destinare beni o servizi all'esercizio in comune di una attività economica." Galgano, para dizer da falta de colaboração entre os sócios, usa o exemplo do sócio que de forma sistemática e imotivada vota contra as atividades de desenvolvimento da sociedade ou que desaprova, por capricho, as contas dos administradores, impedindo a distribuição de lucros (Diritto commerciale - La società. Ed. Zanichelli, 2017, p. 87). 8 O Direito de Exclusão de Sócios nas Sociedades Comerciais. Ed. Almedina, 2002, p. 68-69. A confirmar a natureza intuitu personae da sociedade de advogados, como é próprio da sociedade simples, a disposição do art. 1.002 do Código Civil, que exige o consentimento unânime dos sócios para a substituição do sócio no exercício de suas funções mediante modificação do contrato social, o que denota a natureza personalista desta sociedade (Cláudia Rodrigues. Apuração de haveres na morte de sócio de sociedade de advogados. In "10 Anos do Código Civil - desafios e perspectivas". Coordenação de Sílvio de Salvo Venosa, Rafael Villar Gagliardi e Paulo Magalhães Nasser.  Editora Atlas, 2012, p. 470). 9 Alfredo de Assis Gonçalves Neto. Sociedade de advogados..., p. 319. Anota ainda o autor que "[o]s sócios capitalistas, patrimonialistas ou prestadores de capital, isto é, os que fornecem recursos para compor o capital da sociedade de advogados, são, portanto, indispensáveis. Mas, ao contrário do que se dá em outros tipos societários, mesmo nessa qualidade, tais sócios vinculam-se à sociedade, não só pela obrigação de realizar o valor em dinheiro que corresponde às entradas prometidas, mas, essencialmente, pela de prestar pessoalmente seus serviços profissionais". No mesmo sentido Nelson Eizirik, ao procurar a distinção entre a sociedade simples e a sociedade empresária, ressalta que "[n]as sociedades simples, a atividade econômica (produção e circulação do bem) é explorada de forma pessoal, sendo imprescindível para a sua realização o labor dos sócios. Neste caso, o sócio poderá até mesmo contar com colaboradores, porém, enquanto o exercício do objeto social depender de sua mão-de-obra, a sociedade será simples" (O novo Código Civil e as sociedades de advogados. RTDC - Revista Trimestral de Direito Civil n. 25 (janeiro-março 2006), p. 273). Oportuna, ainda, a anotação da clássica lição de Ángel Ossorio y Gallardo: "Siendo personalísima la labor en todas las profesiones intelectuales, quizás en ninguna lo sea tanto como em la Abogacía. La inteligência es isustituible, pero más insustituibles aún son la consciencia y el carácter" (El Alma de La Toga. Editorial Reus. Madrid, 2008, p. 57). Ricardo Negrão é ainda mais incisivo: "Para o bom desempenho das atividades prometidas e o cumprimento dos fins sociais, o sócio deve abster-se de empregar-se em ocupação estranha à sociedade, se sua contribuição consistir em serviços, salvo convenção em contrário. Exige a lei, no silencio do contrato, a dedicação exclusiva do sócio prestador de serviço" (Curso de Direito Comercial e de Empresa. V. 1. Editora Saraiva. 14ª ed., 2018, p. 352). 10 Sociedade de Advogados. Coordenação de Sergio Ferraz. v. II. OAB Editora, 2004, p. 9. Os autores se referem ainda a um tipo societário sui generis, lembrando a afirmação de Haddock Lobo e Costa Netto in Comentários ao Estatuto da OAB e às Regras da Profissão do Advogado. Editora Rio, 1978, p. 168. No mesmo sentido, de que a sociedade de advogados é sui generis, a opinião de Ruy de Azevedo Sodré (Sociedade de Advogados, Editora Revista dos Tribunais, 1975, p. 35), e de Marcia Carla Pereira Ribeiro e Nayara Tataren Sepulcri (Dissolução Total e Parcial das Sociedades de Advogados: um diálogo com a teoria da preservação da empresa a partir da análise da sua função econômica e social. Revista de Direito Empresarial nº 7 (janeiro-junho 2007), Editora Juruá, p. 165-191). Entendendo como sociedade simples especial o entendimento de Cláudia Rodrigues (Apuração de haveres na morte de sócio de sociedade de advogados. In "10 Anos do Código Civil - desafios e perspectivas". Coordenação de Sílvio de Salvo Venosa, Rafael Villar Gagliardi e Paulo Magalhães Nasser.  Editora Atlas, 2012, p. 470). 11 Questões de Direito Civil: pareceres. Editora Saraiva, 1988, p. 387-397. 12 Estabelece o Art. 983 do Código Civil: "A sociedade empresária deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092; a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o fazendo, subordina-se às normas que lhe são próprias. Parágrafo único. Ressalvam-se as disposições concernentes à sociedade em conta de participação e à cooperativa, bem como as constantes de leis especiais que, para o exercício de certas atividades, imponham a constituição da sociedade segundo determinado tipo." 13 Afirmam os autores indicados: "[E]m verdade, como tipo especial de sociedade, a sociedade de advogados deve, primeiro, seguir as regras específicas que norteiam sua disciplina e, posteriormente, observar, no que couber, as regras gerais aplicáveis às sociedades simples" (Sociedade de advogados..., p. 25). No mesmo sentido Antonio Corrêa Meyer in "A sociedade de advocacia e a sociedade simples no novo Código Civil", Revista do Advogado nº 74 (Dezembro de 2003), p.40-46). Nessa linha de entendimento a doutrina de Nelson Eizirick: "[a] aplicação às sociedades de advogados dos dispositivos que tratam das sociedades simples contidas no Código Civil deve ter natureza meramente subsidiária. Com efeito, o art. 983, parágrafo único, do Código Civil determina que as legislações especiais, quando em confronto com as normas de sociedades simples, devem prevalecer sobre estas. Tendo em vista que a sociedade de advogados são regidas pelo Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei nº 8.906/1994), pelo Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB, pelo Código de Ética e Disciplina e, ainda, pelos Provimentos do Conselho Federal da OAB, notadamente o de nº 92, conclui-se que somente se aplicam a estas sociedades os dispositivos relativos às sociedades simples naquilo em que a legislação especial for omissa." (O Novo Código Civil e as sociedades de advogados. RTDC - Revista Trimestral de Direito Civil nº 25 (janeiro-março 2006), p. 279-280). Defende também a prevalência do regulamento do Conselho Federal da OAB sobre o Código Civil, que deve ter aplicação subsidiária, entre outros, Marcia Carla Pereira Ribeiro e Nayara Tataren Sepulcri (Dissolução Total e Parcial das Sociedades de Advogados: um diálogo com a teoria da preservação da empresa a partir da análise da sua função econômica e social. Revista de Direito Empresarial nº 7 (janeiro-junho 2007), Editora Juruá, p. 165-191).
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

As Stock Options e as startups no PL 146/19

Esta Coluna também abre espaço para os novos juristas. Afinal, eles fazem parte efetivamente dos Novos Horizontes do Direito Privado. Apresento hoje o artigo de grande interesse envolvendo o tema das Startups e de um instrumento muito utilizado para o incentivo e a manutenção dos melhores profissionais na área da tecnologia, que são as stock options. A escolha do tema e o texto é de autoria de Suzan Kuda. Eu dei apenas uma pequena contribuição na sua orientação. Espero que o leitor aproveite. Vamos à leitura. O segundo setor da economia tem se mostrado em constante mudança, principalmente no âmbito da inovação tecnológica, mesmo em meio a pandemia, mudança que foi motivada principalmente pelas plataformas online desenvolvidas para o comércio. Com as constantes mudanças da tecnologia tem havido a necessidade de adequar os preceitos legais até então estabelecidos, impondo ao Legislativo operar de forma a incentivar e sanar certos déficits de regulação do mercado, como demonstra a atual redação do PL 146/19, que hoje tramita no Senado. O referido projeto de lei, que pretende ser o Marco Legal das Startups, possui como intuito respaldar as empresas incipientes do mercado, que trazem em seu âmago produtos ou serviços que fogem ao convencional, principalmente no que tange ao agregado tecnológico. Para tanto, este modelo de negócios também traz consigo um velho e problemático aspecto jurídico, o modelo de incentivo stock options, que na definição da Securities Exchange Commission1, são considerados como uma oportunidade de oferecer ao funcionário a possibilidade de compra de ações da sua empresa a um valor pré-definido, após certo período de tempo. Esta operação ocorre pelo fato da empresa querer incentivar a fidelização e dedicação do colaborador ao seu negócio, como meio de trazer melhores resultados às atividades empresariais. O problema em torno da temática está em definir qual é a natureza jurídica dessa relação, se remuneratória, e compreendida no âmbito da relação de trabalho, ou mercantil. Quando observada esta relação do ponto das relações trabalhistas, o mero incentivo à obtenção de melhores resultados à atividade laboral, corrobora com a manutenção da relação empregatícia, que visa através do pagamento e seus bônus a obtenção da dedicação e prestação de serviço adequada. Em contrapartida, no que tange a seara do direito empresarial, o contrato firmado entre as partes está atrelado ao mercado de opções2. Assim, a oferta contratual de opção de compra das ações encontra respaldo no fato de estabelecer previamente o valor e o prazo de vencimento do ativo, sujeitando o adquirente a uma relação contratual onerosa e à natural volatilidade do ativo, que pode ou não lhe gerar lucro e dividendos (a depender do desempenho das ações da empresa no mercado, na data de vencimento). A atual redação do projetado Marco Legal das Startups adotou a definição das stock options pelo seu caráter remuneratório, conforme indicado no art. 11: "Art. 11. A remuneração poderá ser variável levando em consideração a eficiência e a produtividade da empresa, do empregado ou do time de empregados, ou outros objetivos e parâmetros que as partes vierem a acordar, incluindo a remuneração por plano de opção de compra de ações (stock options), com dedutibilidade dos tributos na forma do art. X desta Lei."3 A forma adotada poderá ser um meio atrativo a retenção de profissionais qualificados, já que em início de operação, normalmente, as empresas incipientes, no caso as Startups, não possuem valor em caixa para arcar com altos custos da operação (Em nota, a Agência do Senado4 divulgou que tal espécie poderá ser adotada possibilitando de início a oferta de um salário reduzido, tendo como complemento a opção de compra das ações pelo participante). Entretanto, convalidar tal benesse como de natureza salarial, implicará em uma mudança nos julgados dos tribunais (caso, sancionada referida lei), que por vezes discutiam as decisões segundo a outorga das ações, cujo amparo legal se encontra na Lei das SA's em seu art. 168, § 3º, que retrata as delimitações acerca da emissão frente ao limite do capital social, e a necessidade de previsão estatutária. Assim, tal modalidade será retratada devido sua finalidade, que tange a tentativa de garantir maior lealdade e compromisso, dos administradores e empregados, como forma de reter os bons profissionais e melhorar os resultados da empresa. A ausência de segurança jurídica sobre a temática é notória quando observados os julgamentos dos tribunais e as manifestações do CARF a respeito do tema. Estas compreensões são antagônicas, pois, ao adotar o entendimento de remuneração, o ativo terá incidência de IRRF (art. 43, I CTN; art. 22 IN n. 1.500/14) e da Contribuição Previdenciária, que recairiam sobre a remuneração do empregado devido à contraprestação laboral (art. 457 CLT)5, enquanto para o entendimento de natureza mercantil, seria aplicado o IR sobre o exercício de opção de compra. Assim, muitos dos recursos analisados pelo CARF direcionaram as opções como vinculado à remuneração:  REMUNERAÇÃO INDIRETA. OPÇÃO DE COMPRA DE AÇÕES - STOCK OPTIONS. As verbas pagas pela empresa aos seus diretores, sob a forma de opções de compra de ações - stock options, como retribuição ao trabalho prestado, têm natureza remuneratória, sobre as quais incidem o imposto de renda que deve ser retido pela fonte pagadora. O ganho patrimonial deve ser apurado na data do exercício das opções e corresponde à diferença entre o valor de mercado das ações adquiridas e o valor efetivamente pago pelo beneficiário. (EMBARGOS, Processo nº 16327.720630/2015-46 - 2ª Seção de Julgamento / 2ª Câmara / 1ª Turma Ordinária, Julgamento 4 fev. 2020) (grifo próprio) CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. STOCK OPTIONS. INCIDÊNCIA. FATO GERADOR. BASE DE CÁLCULO. Incidem contribuições previdenciárias sobre benefícios concedidos a colaboradores, no âmbito de Programas de stock options, quando verificada que a operação tem nítido viés remuneratório, não apresentando natureza mercantil, não evidenciando qualquer risco para o beneficiário e estando claramente relacionada à contraprestação por serviços. O fato gerador da obrigação tem lugar no momento do exercício das opções de compra e a base de cálculo se verifica pela diferença entre o valor eventualmente pago pelos ativos e os valores praticados pelo mercado. FATO GERADOR. MOMENTO DA OCORRÊNCIA. A ocorrência do fato gerador se dá com o reconhecimento do direito à remuneração, ou seja, na data da reunião do Conselho de Administração que determina a emissão das ações em nome do beneficiário. BASE DE CÁLCULO. DIFERENÇA ENTRE VALOR EXERCÍCIO E O VALOR DE MERCADO DAS AÇÕES. A base de cálculo da exigência é remuneração dos segurados consistente no acréscimo patrimonial resultante da diferença entre os preços de mercado e de exercício, obtido na compra das ações pelos beneficiários do plano de STO, como contraprestação pelo trabalho. (grifo próprio) (RECURSO VOLUNTÁRIO. Processo nº 13864.720104/2017-72 - 2ª Seção de Julgamento / 2ª Câmara / 1ª Turma Ordinária Julgamento, 15 jan. 2020 Este entendimento se mostra divergente daquele acolhido pela C. 4ª Turma do TRF36, que descaracteriza a natureza remuneratória para o fim de incidência de IR sobre o ganho de capital, com alíquota de 15% em face a de 22,5% sobre a operação (no caso em questão), em decorrência do reconhecimento da natureza mercantil. Está implícita nesta decisão a compreensão sobre a onerosidade e o risco (volatilidade do ativo) da transação, que, mesmo em face do empenho do funcionário no exercício de suas funções para validar o ganho de capital, não descaracterizam a oportunidade de investimento. Neste sentido, com a validação do Stock Options como de natureza remuneratória, conforme indicado no projetado Marco Legal das Startups, a despeito do entendimento divergente, haverá a possibilidade de pacificar as decisões a respeito da natureza da relação, mesmo face à caracterização da onerosidade e volatilidade da operação. Essa estabilização legal também é importante para dirimir a questão no âmbito trabalhista. Porém, em contrapartida, outra questão se deve clarear: os tribunais trabalhistas se depararam com situações de dispensa no vesting period (período de carência da opção de compra das ações), e reconhecem neste caso uma arbitrariedade do empregador, frente a dispensa sem justa causa, pois, retira do participante o direito ao exercício da compra das ações. Sustenta o Des. Marcelo Pertence que a dispensa durante o vesting period demonstra ofensa ao direito, caracterizando o contrato de stock options como meramente potestativo, assim, em suas palavras: "(...) inadmissível a condição que retira dos obreiros o direito à opção de compra no caso de dispensa sem justa causa durante o período de carência, porquanto permite que a reclamada, ao dispensar o empregado, valendo-se de tal condição, obste a regular fruição do direito pelo obreiro. As circunstâncias reveladas nos presentes autos denotam, de modo indiscutível, que a referida cláusula permite que a empresa, de modo unilateral, impeça o empregado de usufruir o direito, constituindo-se em condição meramente potestativa, porquanto dependente apenas do arbítrio do empregador. 4. Assim, no caso de dispensa do obreiro no curso do período de carência, deve-se considerar preenchido o requisito temporal definido no Plano, nos termos do artigo 129 do Código Civil. 5. Recurso de Revista conhecido e não provido" (RR-363-05.2011.5.04.0021, 1ª Turma, Relator Desembargador Convocado Marcelo Lamego Pertence, DEJT 02/06/2017). (grifo próprio) Ainda, nesse sentido, o entendimento do Tribunal Trabalhista: "RECURSO DE REVISTA. RECURSO ANTES DA ÉGIDE DA LEI 13015/2014. DISPENSA OBSTATIVA - STOCK OPTIONS. VIOLAÇÃO AOS ARTS. 122 E 129 DO CCB. O plano de compra de ações estabelecido pela empregadora, ao prever que o desligamento do autor, mesmo sem justa causa, implica em automática extinção do direito de opção da compra de ações, deixa ao arbítrio da empresa a possibilidade de permitir ao empregado o exercício do direito, ou seja, pode uma das partes a seu critério impedir que uma das condições do Plano se concretize, o que a configura como condição defesa, a teor do art. 122 do CCB. Por consequência, há que se considerar efetivada a carência, quando do desligamento do autor, nos termos do citado art. 129 do CCB, garantindo-se ao empregado o direito à indenização postulada. Recurso de Revista conhecido e provido. (¿) " (RR-1328-50.2010.5.04.0010, 2ª Turma, Relator Desembargador Convocado Claudio Armando Couce de Menezes, DEJT 04/12/2015). (grifo próprio) Estas decisões, no sentido de que a benesse estaria intrinsecamente relacionada à demanda a qual o originou, porque a existência da opção de compra das ações teria por finalidade o desempenho do funcionário, no exercício da prestação ao qual foi contratado, descaracterizando as validações a respeito da rescisão na vigência do período de carência (vesting period), pode comprometer a busca da empresa em estimular o melhor desenvolvimento do funcionário, quando da concessão de tal benefício. A caracterização das stock options como benefício remuneratório pode onerar sensivelmente as startups e criar distorções que anulam a sua finalidade. A sanção de tal Projeto não implicará, somente, alterações no âmbito do judiciário, podendo ocasionar mudanças no modo de disponibilização de tais opções.  Ocorre que, para alguns representantes do setor privado, ligados ao ambiente de inovação, a medida não se mostra adequada, pois pode onerar ainda mais as empresas, que buscam investir principalmente no desenvolvimento de seu serviço e/ou produto e no próprio time. Em publicação recente, o Fecomercio/SP, por meio do Comitê de Startups7, e outras entidades e associações representantes de startups, encaminharam carta aberta ao senador Carlos Portinho (PL-RJ), relator do PL 146/19, com o intuito de que o Projeto de Lei seja modificado quanto ao tema stock options, reconhecendo o seu caráter mercantil: "Regulamentação das stock options para que não haja tributação na sua concessão, mas somente no eventual ganho de capital."8 Resulta deste breve estudo das consequências do modelo de natureza remuneratória para as stock options, a dúvida quanto ao efetivo resultado desejado, no sentido de fomentar a criação e o investimento em empresas de base tecnológica. *Suzan Kuda é bacharel em Direito pela FMU. Psicóloga formada pelo Mackenzie. __________ 1 US. Securities Exchange Commission. Employee Stock Ownership Plans (ESOPs). Disponível aqui. Acessado em: 09 de fev. de 2021. 2 EIZIRK. N; et al. Mercado de Capitais. Regime Jurídico, 4ª ed. Ed. Quartier Latin, 2020. 3 BRASIL. PL 146/19 (em trâmite no Senado), Marco Legal das Startups. Disponível aqui. Acessado em: 10 fev. 2021. 4 AGÊNCIA SENADO. Senado deve votar marco legal das startups. Disponível aqui. Acessado em: 02 de fev. de 2021. 5 MONTEIRO, L.G. Stock Options Plans: Análise dos planos de opções de compra de ações e sua tributação, sob a ótica jurisprudencial e de legislação. Instituição Insper. São Paulo, 2019. 6 TRF3. Ações adquiridas por funcionários deem Stock Options Plan não são consideradas salário para fins de Imposta de Renda. Disponível aqui. Acessado em: 03 fev. 2021. 7 FECOMERCIO/SP. Em carta aberta, Comitê Startups da FecomercioSP e entidades solicitam ajustes no Marco Legal das Startups. Direcionado ao relator do projeto no Senado, documento elenca ajustes necessários para que a proposta desenvolva, de fato, ecossistema de inovação no País. Disponível aqui. Acessado em: 21 fev. 2021. 8 Pediram a alteração em outros três pontos: 1."Equiparação de tratamento tributário do investimento em startups e promoção de políticas de estímulo". 2."Possibilidade de enquadramento das sociedades anônimas (S/As) e de empresas com participação de outra pessoa jurídica em seu capital social (ou que participem de outra pessoa jurídica) no Simples Nacional." 3."Possibilidade do uso de livros digitais e dispensa de publicações sem limitação de acionistas."
O tema das garantias é um daqueles que está sempre em discussão nos processos de insolvência. Ao tempo da concordata não foi diferente, consolidando-se o entendimento no sentido de que o credor não perdia as garantias reais e pessoais que lhe assegurava o direito de demandar os coobrigados e excutir bens, pelo valor integral da dívida. A lei 11.101/2005, embora tenha introduzido um modelo inovador no tratamento da crise econômico-financeira da sociedade empresária, parece ter a memória do passado da concordata, preservando o direito do credor. No seu art. 49, § 1º, afirmou que "Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso". Depois, no art. 50, § 1º, ao tratar dos meios de recuperação judicial, deixou claro que "na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou a sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia". Ao dispor sobre o efeito da novação decorrente da aprovação do plano de recuperação, a lei 11.101/2005 estabeleceu, no seu art. 59, caput, que o plano obriga o devedor e todos os credores, titulares de créditos anteriores ao pedido, "sem prejuízo das garantias". Por conta destas disposições, especialmente, se construiu o forte entendimento no sentido de que o plano de recuperação judicial não pode dispensar as garantias sem o expresso consentimento do respectivo credor. E se foi além: se o plano estabelecer disposição nesse sentido, o Juiz ou o Tribunal poderão, de ofício, aplicar a norma de ordem pública e anular a cláusula respectiva. Antes das modificações promovidas pela recente lei 14.112/2020, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, pela sua Terceira Turma, passou a decidir, por maioria de votos, que é válida a disposição do plano de recuperação judicial que dispensa as garantias reais e fidejussórias, se aprovado pelos credores da respectiva classe, de acordo com o princípio majoritário, obrigando, assim, aos demais credores que não aderiram, ou mesmo votaram contra o plano, a se sujeitar a dispensa da garantia. Esse entendimento foi aplicado no julgamento dos Recursos Especiais ns. 1.532.943/MT (DJe 10/10/2016) e 1.700.487/MT (DJe 26/4/2019). Destaca-se a recente decisão, também nesse sentido, proferida no REsp nº 1.863.842-RS, de 1º de dezembro de 2020 (DJe: 18.12.2020), por maioria de votos, no qual prevaleceu o entendimento defendido pelo Ministro Marco Aurélio Bellizze, relator para o acórdão, seguido pelos Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Moura Ribeiro. Ficaram vencidos os Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi. Os votos vencidos se firmaram no sentido de que a dispensa das garantias só poderia ocorrer validamente com a anuência prévia dos respectivos titulares. Esse entendimento, não obstante fundado na letra da Lei, também pesou a preocupação com as consequências que a dispensa da garantia para os credores não concordantes poderia trazer para o crédito no Brasil. O voto que prevaleceu está bem delineado nas premissas anotadas pelo Ministro Marco Aurélio Bellizze. Lembra a disposição do art. 49 da lei 11.101/2005, que determina a sujeição de todos os créditos existentes na data do pedido à recuperação judicial. Destaca, como ponto em comum ao entendimento de todos os Ministros (não obstante a divergência), que é válida a cláusula supressiva das garantias quando o credor votar pela aprovação do plano, o que reconhece a natureza disponível do direito sobre as garantias e a possibilidade de o plano dispor de forma diversa a respeito das obrigações e garantias originariamente contratadas (art. 49, § 2º). Segue o voto do Ministro Bellizze com a afirmação do modelo majoritário para a tomada de deliberações pelos credores na recuperação judicial, levando-se em conta o valor do crédito na respectiva classe. No silêncio do plano de recuperação judicial, anota o voto, "a lei é peremptória em possibilitar, em paralelo à recuperação judicial, a execução do mesmo crédito em face dos coobrigados, fiadores e obrigados de regresso. Todavia, a lei não veda (nem poderia vedar, em atenção à natureza disponível dos direitos em comento) a possibilidade de o plano de recuperação judicial estabelecer, eventualmente, cláusula supressiva de garantias - a qual, para produzir efeitos, haverá de ser aprovada pela respectiva classe de credores, em observância detida ao quórum legal." O ministro Marco Aurélio Bellizze prossegue com irrefutável argumentação, que destacamos: "Importante, nesse passo, tecer a seguinte assertiva: O princípio majoritário vale para todos, indistintamente, seja no caso de aprovação, seja no caso de rejeição, inclusive no que toca à cláusula supressiva das garantias. Efetivamente, em absoluto respeito ao poder de voto dos credores, caso a cláusula supressiva tivesse sido rejeitada segundo o quórum legal, não poderia ter aplicação nem sequer para aqueles que votaram favoravelmente. Aliás, nesse caso, não haveria nenhuma razão idônea para que os credores, com menor poder de influir no resultado da votação, não tivessem o mesmo tratamento daqueles que votaram favoravelmente pela aprovação da supressão das garantias. Na hipótese, como visto, os credores, com poder maior de influir no resultado da votação, segundo seu crédito na respectiva classe, compreenderam, ao contrário, ser viável suprimir as garantais fidejussórias, segundo as renúncias que se mostraram dispostos a suportar, este resultado haverá de repercutir em toda a classe, indistintamente. Bem de ver, assim, que considerações extrajurídicas, tais como o suposto encarecimento do crédito, a fim de sustentar a inviabilidade da disposição contratual inserta no plano de recuperação judicial, não se coadunam com a realidade dos fatos, já que são as instituições financeiras, na grande maioria dos casos (justamente pelo segmento de concessão de crédito em que atuam), os credores que possuem o maior poder de influir na votação da cláusula em comento. Assim, caso o órgão máximo representativo dos credores delibere por assentir com a supressão das garantias fidejussórias, é de se presumir que esta providência converge, numa ponderação de valores, com os interesses destes (credores) majoritariamente. De se reconhecer, portanto, que a supressão das garantias reais e fidejussórias, tal como previsto no plano de recuperação judicial e desde que aprovado pela assembleia geral, segundo o detido quórum legal, como parte integrante das tratativas negociais, vincula todos os credores titulares de tais garantias." Conclui o seu voto que a supressão das garantias nestas condições não impede a via executiva contra os terceiros garantidores, caso o plano não seja cumprido, porque os credores terão reconstituídos os seus direitos e garantias nas condições originariamente contratadas (art. 61, § 2º). Essas decisões causaram grande preocupação e, não se pode deixar de reconhecer, enorme surpresa para todos aqueles que durante anos se acostumaram com a preservação do direito dos credores sobre as garantias. A divergência no âmbito da Terceira Turma, e a não apreciação da matéria pela Quarta Turma, do Superior Tribunal de Justiça, provocou a afetação do tema à decisão da Segunda Seção daquele Tribunal, cujo julgamento, muito esperado, teve início no REsp 1.797.924/MT, mas não foi concluído, tendo em vista o acolhimento da prejudicial do recurso (o plano de recuperação objeto do recurso foi anulado pelo Tribunal de origem e outro fora aprovado, esvaziando o recurso no qual se afetou a matéria). Naquela oportunidade, o Ministro Luis Felipe Salomão proferiu voto-vista identificando quatro posições sobre o tema: "Existem basicamente quatro posições a respeito do tema: i) a primeira entende que é ilegal a cláusula de supressão de garantias prevista no Plano de Recuperação, uma vez que acaba impondo aos credores a desconsideração das garantias prestadas nos contratos que deram origem aos créditos objeto da novação, exonerando coobrigados, fiadores e avalistas; por conseguinte, deve haver o prosseguimento das execuções e ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados, já que o plano vincula apenas as partes envolvidas (devedor em recuperação e credores); ii) a segunda corrente, adotada pela ilustre Relatora, advoga a tese de que o Plano de Recuperação poderá novar a dívida dos coobrigados, desde que a eficácia de tal cláusula supressória se limite aos credores que a aprovaram sem ressalvas, não podendo alcançar os credores ausentes, os que não votaram (apesar de presentes) e os que votaram contrariamente à aprovação do plano; este entendimento é consubstanciado por parcela da Terceira Turma - Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi - conforme se extrai do voto prolatado nestes autos e dos votos prolatados no Resp 1.700.487/MT; (iii) a terceira corrente, por sua vez, defende que a cláusula supressória será existente, válida e eficaz para todos os credores da recuperanda, ainda que tenham votado contra os termos do plano ou efetivado qualquer ressalva sobre referida disposição, bastando para tanto que tenha havido a aprovação pelo quórum legal, devidamente homologado pelo juízo. É a tese majoritária da Terceira Turma do STJ, corroborada pelos Ministros Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro e Paulo de Tarso Sanseverino, conforme manifestações no Resp n. 1.700.487/MT; (iv) a quarta, capitaneada pelo professor Fábio Ulhoa Coelho, traz solução intermediária entre as duas anteriores." O ministro Luis Felipe Salomão, examinando a doutrina e o direito estrangeiro, entendeu que a Lei não autoriza a supressão da garantia fidejussória sem a concordância do credor e concluiu: "Diante disso, penso que a ineficácia da cláusula supressória deve ser restrita às garantias pessoais e desde que não tenha havido anuência posterior ao Plano pelos respectivos credores, sendo, no entanto, plenamente eficaz no que tange às garantias reais."1 A discussão iniciada no julgamento do REsp 1.797.924/MT não foi concluída, visto ter sido julgado prejudicado o recurso. O tema se encontra novamente afetado à Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.885.536/MT, sem previsão de julgamento. Embora respeitável o entendimento em sentido contrário, as razões sustentadas no voto do Ministro Marco Aurélio Bellizze, seguidas pela maioria da Terceira Turma, são muito convincentes e razoáveis, fundadas no princípio majoritário, que é essencialmente a base do modelo de tratamento da insolvência, entregando-se a decisão sobre o destino do crédito aos próprios credores, coletivamente. O que é melhor para a maioria, deve ser melhor para todos. __________ 1 Esse entendimento está expresso no direito italiano no novo Codice dela crisi d'impresa (Decreto Legislativo 12 gennaio 2019, n. 14), no seu art. 59, 2. in verbis: "2. Nel caso in cui l'efficacia degli accordi sia estesa ai creditori non aderenti, costoro conservano impregiudicati i diritti contro i coobbligati, i fideiussori del debitore e gli obbligati in via di regresso" (em tradução livre: No caso de eficácia estendida dos acordos aos credores não aderentes, eles conservam sem prejuízo os direitos contra os coobrigados, os fiadores do devedor e as obrigações em via de regresso).
Está em vigor a partir de 23 de janeiro de 2021 a lei 14.122/20, que incorpora à lei 11.101/05 (Lei de Falências e Recuperação de Empresas - LFRE) importantes alterações, visando conferir maior efetividade à recuperação judicial, entre as quais ressalta a disciplina do financiamento DIP Financing (debtor-in-possession), mediante incentivos à concessão de crédito a empresas em situação de crise, cuja atividade ainda se mostre viável. Ainda pouco explorado, o DIP Financing é um grande desafio no Brasil em razão do modelo previsto no artigo 67 (sem alteração legislativa) da lei 11.101/05. A positivação do tema na reforma da lei de insolvência (novo art. 69-A) preenche duas grandes lacunas até então existentes no direito brasileiro, quais sejam, (i) a proteção à prioridade (absolute priority rule) do repagamento desses financiamentos, matéria ainda não amplamente testada na lei brasileira, e (ii) a segurança jurídica para as garantias vinculadas aos financiamentos a empresas em crise. A Seção IV-A da "nova lei 11.101/05" é toda destinada ao "Financiamento do Devedor e do Grupo Devedor durante a Recuperação Judicial" e contempla as novas regras para o tema DIP Financing, circunscrito aos financiamentos celebrados pelo devedor após o pedido de recuperação judicial.  Essa interpretação decorre da leitura articulada de dois dispositivos da LFRE: o artigo 49 (que informa estarem sujeitos à RJ os créditos existentes até a data do pedido - créditos concursais) e o artigo 67 (que trata dos créditos decorrentes de obrigações contraídas pelo devedor durante a recuperação judicial - créditos extraconcursais). Assim, os financiamentos concedidos ao devedor a partir do pedido de recuperação não estarão sujeitos ao plano de recuperação e, por consequência, não poderão ser novados, justificando-se a extraconcursalidade, obviamente, em razão da publicidade da situação de crise econômico-financeira do devedor, que potencializa o risco de inadimplemento. É de se notar, desde logo, que a inovação legislativa vai além da definição dos requisitos da operação de crédito a empresas em recuperação judicial, estendendo-se aos efeitos das garantias da operação financeira de alto risco nesse contexto. A simples classificação desses créditos como extraconcursais, no cenário de futura e eventual falência, não chega a mitigar o risco de forma suficiente a incentivar os agentes financeiros (integrantes do Sistema Financeiro Nacional) à concessão desses financiamentos, pois, em razão do seu elevado risco operacional, pela sistemática até então vigente da lei 11.101/05 (antes da reforma) o provisionamento exigido pelas normas do sistema financeiro correspondia, em regra, a 100% do valor do crédito. É exatamente neste ponto que a inovação legislativa no empréstimo - DIP Financig merece aplausos. Com efeito, as inovações constantes dos artigos 66-A1 e 69-A2 da lei 11.101/05 (com a redação da lei 14.112/20) contemplam a exigência de autorização judicial ou mesmo previsão no plano de recuperação judicial e ampla publicidade, tanto para o financiamento concedido (valor, prazo, taxa de juros) como para a garantia a ele atrelada, deixando claro que a segurança jurídica do DIP Financing, doravante, não poderá ser comprometida por disposições dos planos de recuperação judicial. A lei 11.101/05 não exigia e continua sem exigir, em seu art. 67 (sem alteração legislativa), autorização dos credores ou autorização judicial para a celebração de contratos de financiamento durante a recuperação judicial. Em contrapartida, as disposições da mesma Lei 11.101/2005 (antes da reforma) também não conferiam segurança jurídica às garantias constituídas para obtenção desse tipo de financiamento. Aqui repousa a relevância das novas disposições dos artigos 66-A e 69-A da "nova" lei 11.101/05. Não existia no modelo anterior (vigente até 25/1/21) segurança jurídica para o mutuante sobre os bens e direitos que receberia em garantia, o que retirava a segurança e a certeza quanto à recuperação dos valores mutuados. Na hipótese de não pagamento desse financiamento, o credor financiador tinha fundada dúvida se conseguiria exercer seus direitos sobre os bens e direitos que havia recebido em garantia diante da ampliação irrestrita do conceito de "bem essencial" e da aplicação indiscriminada do "princípio da preservação da empresa", preceitos que passaram a atuar dentro do processo de insolvência como se fossem dogmas e que, exatamente por isso, acabaram atuando em desfavor das empresas em recuperação. Essas alterações legislativas sinalizam, doravante, no sentido de que uma operação de financiamento concedida a empresa em recuperação - (i) dotada de publicidade tanto sobre suas condições como em relação à garantia e (ii) coberta pela autorização judicial ou pelo caráter contratual do plano de recuperação - conferirá ao credor a segura expectativa de que em caso de inadimplemento, seja no curso da recuperação judicial ou mesmo em caso de convolação de recuperação em falência, exercerá seu poder jurídico sobre as garantias, aumentando sobremaneira suas chances de recuperação do crédito. Em uma visão de análise do risco de crédito, existem empresas que vistas isoladamente não "valeriam o crédito tomado", mas quando analisadas em concurso com a garantia concedida passam a "valer o crédito tomado". Daí a segurança da garantia ser elemento fundamental para o mercado de DIP Finacing, da qual se possam descortinar novos horizontes alvissareiros inclusive para fins de enquadramento nas regras de controle prudencial dentro do Sistema Financeiro Nacional.  Com efeito, para suprir as lacunas existentes no regramento até então vigente sobre o Dip Financing a lei 14.112/20 cria alternativas de negócio destinadas a compensar o risco, seja porque, em primeiro lugar, reconhece estarem habilitadas a conceder essa espécie de financiamento não apenas as instituições financeiras, mas também qualquer pessoa, física ou jurídica, inclusive sócios, familiares e integrantes do grupo da devedora, e, em segundo lugar, porque afasta qualquer restrição a que as garantias sejam prestadas por terceiros. Além disso, confere a esses créditos uma extraconcursalidade qualificada, que os coloca na frente dos créditos fiscais e dos créditos com garantia real, e afasta controvérsias quanto aos efeitos das garantias, especialmente quanto à extraconcursalidade do crédito com garantia fiduciária, mitigando, assim, o risco da operação. O simples reconhecimento de habilitação legal de qualquer pessoa para operar o financiamento DIP, por exemplo, pode abrir perspectiva para criação de novas fontes de captação de recursos, que, embora ainda não dimensionáveis, podem contribuir para a reestruturação da empresa em recuperação.  Importante medida de proteção do direito do provedor de financiamento DIP é a irreversibilidade da validade e eficácia da alienação ou oneração de bens "após a consumação do negócio jurídico com o recebimento dos recursos correspondentes pelo devedor", prevista no art. 66-A. Observe-se que, ao definir a "consumação do negócio" e o "recebimento dos recursos" como fatos impeditivos da anulação ou da ineficácia, essa norma dispensa, para esse fim, o requisito do registro do contrato como modo de transmissão da propriedade ou de constituição de direitos reais de garantia, privilegiando nessa operação, como ato caracterizador do aperfeiçoamento do negócio jurídico, o "recebimento dos recursos", a par, obviamente, da sua formalização. A publicidade do registro, neste caso, será representada pela publicidade do próprio processo de recuperação judicial. No que tange à garantia fiduciária, a par da extraconcursalidade decorrente da sua própria natureza,3 a lei (art. 84) confere preferência especial aos titulares do crédito derivado dessa espécie de financiamento em relação ao valor a ela efetivamente desembolsado, qualquer que seja a garantia, e preserva a extraconcursalidade qualificada do crédito e a garantia, na proporção do valor já desembolsado, caso, em grau de recurso, seja modificada a decisão do juiz da recuperação que autorizou a contratação do financiamento. Por esse modo, corrige-se um ponto de "ineficácia do sistema anterior", acrescentando uma importante contribuição para essa nova roupagem do processo de reestruturação de empresas Embora a lei não admita a constituição de garantia subordinada sobre bens objeto de alienação fiduciária ou cessão fiduciária (art. 69-C), nada impede que a empresa recuperanda constitua garantia fiduciária sobre a propriedade superveniente (CC, art. 1.361, § 3º) de bem que já alienara fiduciariamente, possibilitando, assim e em certa medida, o compartilhamento (condicionado à aquisição superveniente da propriedade) de garantia preexistente.  Relevante ainda o destaque para a convolação da recuperação judicial em falência antes da liberação dos valores correspondentes ao financiamento DIP, o que importará em automática extinção desse contrato, preservadas a validade e a eficácia das garantias e da preferência especial até o limite dos valores entregues à devedora antes da data da sentença de convolação. Desta forma, os novos artigos 69-A até 69-F, que comporão a nova Seção IV - A da Lei, estabelecem um procedimento mais seguro para a celebração de contratos de financiamento pela empresa em recuperação, contemplando, em apertada síntese:  (a)                para o juiz ou o Comitê de credores autorizarem o DIP será necessário que conheçam suas condições, o que implicará na apresentação nos autos de uma proposta detalhada de financiamento com descrição da estrutura financeira (taxa, prazo, eventuais condições especiais), das garantias e dos benefícios desse financiamento com a concomitante ciência, no processo, a toda a coletividade de credores; (b)                como ao administrador judicial compete a fiscalização da empresa em recuperação (art. 22) será alta a probabilidade do juiz dar ciência ao administrador judicial do DIP (para fiscalização de sua utilização no negócio em si), independente da autorização para sua celebração; (c)                 a modificação em grau de recurso da decisão que autorizou a contratação do financiamento não alterará sua natureza extraconcursal nem as garantias outorgadas ao credor de boa-fé; (d)                caso a recuperação judicial seja convolada em falência antes da liberação integral dos valores financiados, o contrato será considerado rescindido, respeitando as liberações parciais e as garantias constituídas; (e)                qualquer pessoa pode garantir o financiamento DIP, inclusive o próprio devedor, mediante a alienação ou oneração de bens; Apenas como nota, registre-se que a possibilidade de concessão do financiamento DIP por qualquer pessoa física ou jurídica, credor ou não na recuperação judicial (art. 69-E), e a constituição de garantias para esse DIP sobre bens do próprio devedor ou de terceiros, não afasta o regramento especial sobre as espécies de propriedade fiduciária, submetidas às disciplinas específicas (v.g. Lei 4.728/1965, lei 9.514/97 etc.), conforme disposto no art. 1.368-A do Código Civil. Vistas assim, em destaque, as principais inovações do financiamento conhecido como DIP Financing, suas disposições induzem a crer que essa nova regulamentação conferirá segurança aos credores, tanto para a contratação do financiamento, como para constituir garantias que aumentem as chances de retorno do capital mutuado, estimulando a oferta de crédito para as empresas em recuperação com vistas a alcançar o escopo maior da lei, que é o soerguimento das empresas "recuperáveis".____________ 1 Lei 11.101/05, com a redação dada pela Lei 14.112/2020: "Art. 66-A. A alienação de bens ou a garantia outorgada pelo devedor a adquirente ou a financiador de boa-fé, desde que realizada mediante autorização judicial expressa ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial aprovado, não poderá ser anulada ou tornada ineficaz após a consumação do negócio jurídico com o recebimento dos recursos correspondentes pelo devedor."  2 Lei 11.101/05, com a redação dada pela Lei 14.112/2020: "Art. 69-A. Durante a recuperação judicial, nos termos dos arts. 66 e 67 desta Lei, o juiz poderá, depois de ouvido o Comitê de Credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor, garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante, para financiar as suas atividades e as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos." 3 Tratamos dos efeitos da garantia fiduciária na 7ª edição do nosso Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário (GenForense, 2021). ____________ *Marcio Calil de Assumpção é advogado, Mestre em Direito, Coordenador do Comitê legal de recuperação de crédito da Febraban, Membro da Comissão de Direito Bancário do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo, Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. *Melhim Chalhub é advogado, Parecerista, Especialista em Direito Privado pela Universidade Federal Fluminense,  membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Autor do livro Alienação Fiduciária - Negócio Fiduciário (GenForense, 7ª edição, 2021) entre outros.
No Brasil, assim como ocorreu em outros países, foi adotado o modelo da concessão comercial para a distribuição de veículos pelas montadoras. Prefere a montadora de automóveis, por uma escolha de ordem econômica e empresarial, concentrar seus esforços na produção e deixar a concessionários a distribuições dos seus produtos e a assistência aos consumidores. A relação contratual que se estabelece entre a montadora e a sua concessionária é sabidamente marcada pela dependência econômica e pela desigualdade de forças. A lei 6.729/79, conhecida como Lei Ferrari, veio justamente para regular essa relação desigual. É uma lei, como afirma Humberto Theodoro Júnior e Adriana Mandim Theodoro de Mello, "de ordem pública, editada com o propósito de interferir no relacionamento estabelecido entre o fabricante de veículos automotores, de via terrestre, e seus revendedores, visando tutelar a parte economicamente mais fraca - o concessionário - quase sempre sujeito a grandes investimentos técnicos para desempenhar a concessão. Por isso, a preocupação central da lei 6.729 é com a duração do contrato e com a sua ruptura" (Contratos de Colaboração Empresarial. Ed. Forense,  p. 344). Bem a propósito desta observação, cabe lembrar o que constou na exposição de motivos da Lei Ferrari: "... a própria circunstância de uma grande empresa necessitar de uma rede para a comercialização e assistência técnica de seus produtos, ao mesmo tempo em que evidencia o seu extraordinário porte econômico e tecnológico, suscita a desigualdade decorrente do estilhaçamento da relação, na medida em que confronte a grande unidade da empresa concedente com os concessionários, limitados na sua capacidade negocial em razão de seu porte e de sua multiplicidade. A concedente, como grande empresa, tende a tornar-se o senhor da relação contratual e fazer prevalecer sobre cada concessionário isolado a sua vontade, pois detém, graças a sua cadeia de monopólios justapostos, um terrível poder de domínio." Na lição de Miguel Reale, que participou da elaboração da Lei Ferrari, "a lei 6.729 surgiu, assim, em razão de plena consciência de haver uma estrutura oligopolística (a das "montadoras" de veículos) perante a qual os "distribuidores" se colocavam em visível desvantagem, sem condições de per si  obterem o reconhecimento de normas contratuais reconhecedoras de seu autônomo status  empresarial, na conclusão do contrato e ao longo de sua execução" (Estrutura Normativa da lei 6.729 sobre Concessões Comerciais entre Produtores e Distribuidores de Veículos automotivos Terrestres. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. 91/1996, p. 63-103. Acesso aqui). A situação dos concessionários brasileiros, não obstante o esforço legislativo, continua a evidenciar esse enorme poder que as montadoras têm nessa relação contratual, e por conta de uma equivocada interpretação, reduzida a um binário tratamento entre os contratos de modelo clássico liberal e os contratos de consumo, muitos tipos contratuais, especialmente envolvendo empresas, não têm recebido dos tribunais a devida atenção para a realidade da dependência econômica e para a claríssima desigualdade de forças existentes1, reconhecida pela própria Lei Ferrari nos contratos de concessão. A recente notícia do encerramento das atividades da Ford no Brasil suscitou novamente a fragilidade dessa relação entre os concessionários e as montadoras. Há alguns anos na Itália, entre 1992 e 1996, se verificou uma situação que guarda alguma semelhança com esta que ocorre agora no Brasil com a Ford. A poderosa montadora francesa Renault (Renault Itália spa) decidiu exercer o direito de recesso e encerrar o contrato de concessão comercial com aproximadamente 200 distribuidores na Itália. O motivo teria sido a necessidade de reestruturação da empresa. Entendendo abusivo o exercício do direito de recesso neste caso, os ex-concessionários da Renault Itália, reunidos em uma associação (Associazione Concessionari Revocati), demandaram em 1997 na Justiça italiana a indenização pelos danos causados em razão do rompimento dos contratos. O tribunal de Roma e a Corte de Apelação (Corte d'Appello) negaram a pretensão, entendendo indevido o controle judicial do exercício abusivo do direito de recesso previsto no contrato (autonomia privada). O caso chegou à Corte de Cassação Italiana, que, pela famosa decisão de 18 de setembro de 2009 (CASSAZIONE CIVILE, Sez. III, 18 settembre 2009, n. 20106 - Pres. Varrone - Rel. Urban - P. M. Destro - A. G. c. Renault Italia S.p.a.), reconheceu a violação da boa-fé objetiva no exercício do recesso. A decisão da Corte de Cassação italiana tem fortes fundamentos no princípio da boa-fé objetiva, e reconhece admissível o controle judicial do ato de autonomia privada. Quando no exercício de um ato de autonomia privada se verifica um interesse contrastante com outras partes da relação contratual, entendeu a Corte italiana que é sempre possível o seu controle judicial, porque a decisão reclamada do juiz impõe a interpretação do contrato e da vontade das partes, segundo a boa-fé, que é o instrumento com o qual o juiz deve operar em busca do equilíbrio da relação contratual. Afirmou a Suprema Corte italiana que o exercício do recesso pelo contratante envolve uma decisão econômica e empresarial que não pode ser objeto do controle judicial. É uma prerrogativa do empreendedor que opera no mercado e assume o risco das suas escolhas. O que deve ser examinado judicialmente, ou sindicado, é o abuso ou desvio que eventualmente pode ocorrer no ato de autonomia que é praticado em favor daquela escolha. Essa interpretação, e propriamente o controle judicial sobre o ato de autonomia privada, devem ser feitos tendo em conta a supremacia e dependência de uma parte em relação a outra, buscando o temperamento dos interesses opostos. Entendeu a Corte de Cassação italiana que deixar de examinar o recesso neste caso, à luz da boa-fé objetiva e da relevância do seu exercício abusivo, é consentir que o recesso se transforme em recesso arbitrário, ad libitum, seguramente não permitido pelo ordenamento jurídico. Destacando a colaboração entre os contratantes como característica deste contrato e a dependência econômica existente nesta relação, a Suprema Corte cassou a decisão da Corte de Apelação de Roma (Corte d'Appello) e devolveu a causa para nova decisão, na qual o ato de recesso deverá ser examinado com base na boa-fé objetiva . Em novo julgamento da causa, a Corte de Apelação de Roma (Corte d'Appello), em 5 de fevereiro de 2018 (decisione n. 691/2018),  passou a considerar se o recesso da Renault, não obstante o pré-aviso e a previsão contratual, poderia ser admitido como um ato inesperado e surpreendente, e, portanto, se a concedente criou a legítima expectativa de continuação do contrato ou, em outras palavras, se ocorreu a violação da boa-fé objetiva. Não se examinou o motivo pelo qual o recesso ocorreu, mas a forma de agir da concedente (procedimento). No caso, é importante lembrar que os autores do pedido levantaram a hipótese de que o motivo do recesso foi o fato de interessar à concedente colocar ex-dirigentes na rede de vendas, para evitar elevadas despesas com o rompimento da relação de trabalho. A Corte de Apelação (Corte d'Appello) não examinou esse fato, como também não examinou a alegação de reorganização empresarial da concedente como motivo do recesso, entendendo que não é possível decidir sobre a validade dos motivos, que estão fora do poder de controle judicial, sob pena de transformar o direito de livre recesso (ad nutum) em recesso por "justa causa". Não examinou, igualmente, a hipótese de abuso de direito no ato de recesso. A nova decisão concentrou o exame somente na forma como ocorreu o ato de recesso em face da boa-fé objetiva e reconheceu que a concedente não atendeu ao dever de lealdade e correção, em razão da desproporção dos interesses em jogo, porque aos concessionários a concedente havia preordenado incremento de vendas, investimentos em novo show room, publicidade, abertura de subconcessionárias, aumento de capital social, construção de sedes e aquisição de materiais e contratação de pessoas, tudo sem que pudessem amortizar esses investimentos diante do curto espaço de tempo do pré-aviso, que foi de 12 meses, ou que pudessem negociar a duração do contrato ou, ainda, que fossem indenizados. Ao final, reconheceu que a concedente violou o dever de boa-fé objetiva e causou danos aos concessionários, que confiaram na justa expectativa de continuidade dos contratos. Determinou o pagamento de indenizações, calculadas individualmente em favor de cada concessionário (um pouco mais de vinte concessionários), alcançando globalmente a soma aproximada de dois milhões de euros. Este caso foi muito debatido na Itália e levou anos a encontrar uma decisão final. Resulta como ponto de maior interesse deste julgamento o entendimento que se consolidou no sentido de que o ato de recesso, ou rompimento unilateral dos contratos de concessão, mesmo quando atendidos aparentemente o direito vigente e o regime contratual, podem ser examinados em juízo, não pelo conteúdo da decisão empresarial, mas pela forma com a qual ela é levada a efeito, protegendo os interesses da parte mais fraca na relação com base exclusivamente na boa-fé objetiva. A decisão deste caso suscitou um vivo debate na doutrina italiana, porque a Corte de Cassação decidiu fundamentalmente examinar o ato de exercício da autonomia privada com base no princípio da boa-fé objetiva. Não obstante as críticas que recebeu, a decisão bem considerou a justa expectativa dos concessionários em dar continuidade ao contrato quando determinou a indenização pelo rompimento não esperado, que impossibilitou a recuperação dos investimentos realizados. No contrato de concessão comercial, em razão dos investimentos que o concessionário é levado a fazer, o tempo de duração dessa relação tem especial relevância. A nossa Lei Ferrari identifica muito bem a natureza de duração desse contrato, assim como ocorreu expressamente com o Regulamento n. 1.400/2002 da União Europeia, que cuida das práticas no setor de automóveis, constando dos seus considerandos a necessidade de que seja assegurado ao concessionário o tempo necessário para recuperar o seu investimento, alargando-se o aviso de recesso pela concedente, mesmo nos casos de contratação por tempo determinado. É o que está escrito no ítem 9, in verbis: "Por outro lado, para reforçar a independência dos distribuidores e oficinas de reparação face aos seus fornecedores, devem ser previstos períodos mínimos para a comunicação da não renovação de acordos concluídos por um período limitado e para a rescisão de acordos concluídos por um período ilimitado." No caso da Ford do Brasil temos como certo que as expectativas dos concessionários, em relação à duração dos respectivos contratos, certamente pesará na solução que se deve encontrar para a despedida do nosso país da centenária e emblemática fabricante de automóveis. __________ 1 Escrevemos a respeito deste tema aqui nesta Coluna, no artigo "Os contratos paritários na Teoria Geral dos Contratos - Uma visão crítica".
A questão do pagamento de dividendos nas companhias continua a desafiar o regime legal em vigor. A constituição de uma sociedade mercantil visa ao lucro. Os sócios e acionistas são movidos pelo desejo de lucro. Naturalmente a participação nos lucros é decorrência da posição de sócio ou acionista e representa o interesse maior da existência da sociedade. Qualquer disposição estatutária a retirar do acionista ou sócio o direito aos lucros deve ser reputada nula.1 Na lei brasileira (LSA) prevaleceu seguramente a concepção contratualista da companhia2, cuja orientação tem origem no direito americano, no sentido de que a companhia deve exercer a atividade empresarial para gerar lucro a ser distribuído a seus acionistas, ao contrário da concepção institucionalista, que sustenta que a companhia deve agir no interesse da empresa.3 Não significa dizer que a concepção contratualista assegura exclusivamente o interesse egoísta do sócio ou acionista em obter o lucro, porque outros interesses estão diretamente ligados à companhia, como é o caso dos interesses dos consumidores, dos trabalhadores, da comunidade e de todos aqueles relacionados à responsabilidade social da companhia, que não descaracterizam a sua natureza contratual (ver por todos Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira in "Direito das Companhias",  2ª ed., ed. Forense, §§ 21 e 22). A apuração dos resultados da sociedade ocorre ao final do exercício social, que terá duração de um ano, embora o estatuto possa determinar duração diversa (art. 175 da LSA). A distribuição dos lucros envolve muitos interesses. Deve ser respeitada a garantia dos credores que recai sobre o capital da companhia, intangível à distribuição de dividendos, assim como deve ser assegurado o interesse legítimo da própria companhia (ou dos seus controladores) em fazer uso dos lucros para promover o autofinanciamento ou a expansão de seus negócios. De outra parte, os lucros interessam aos acionistas. Há acionistas controladores e outros minoritários. Há acionistas de longo prazo e outros eventuais e especulativos. Há acionistas com interesse interno e outros com interesse externo na companhia.4 A distribuição de dividendos pode ser objeto de abuso dos controladores que impõe, pelo poder de controle sobre a companhia, a retenção de lucros sob os mais variados argumentos e com o propósito de enfraquecer a posição dos acionistas minoritários, desvalorizando as suas ações com a intenção de compra oportuna, ou para obter a satisfação de interesses pessoais e não da companhia.5 Diante dessas questões, a LSA criou o dividendo obrigatório, pelo art. 202, que não poderá ser inferior a 25% do lucro líquido. A LSA também criou um sistema a legitimar qualquer retenção de dividendos somente quando há uma justificativa admitida em Lei. São garantias que não existiam na Lei anterior. Esses dois conceitos, "[d]a destinação integral do resultado e do dividendo obrigatório, que buscaram impor um limite à discricionariedade do acionista controlador e ao autofinanciamento da empresa, reconhecem que o acionista tem a legítima expectativa de receber parte do lucro do exercício como dividendo" (Luiz Antonio de Sampaio Campos in "Notas sobre Destinação do Lucro do Exercício: a Reserva de Lucros a Realizar e a Destinação a ela do Lucro Excedente do Dividendo Obrigatório", publicado in "Lei das S.A. em seus 40 anos", org. Alberto Venancio Filho, Carlos Augusto da Silveira Lobo e Luiz Alberto Colonna Rosman, ed. Forense, p. 416). Percebe-se que a Lei procurou solução que pudesse conciliar os interesses conflitantes a respeito da distribuição dos dividendos e avançou muito em face da Lei anterior, sem deixar de se preocupar com a possibilidade de descapitalização da empresa em razão da distribuição de dividendos, cuja retenção se faz necessária à continuidade e expansão das suas atividades. Pode-se afirmar que o sistema criado pela LSA é bom e atende adequadamente aos interesses em jogo. Não obstante o bom tratamento da LSA, o abuso pode se manifestar sob o manto da legalidade, quando se faz uso de um direito legítimo para alcançar outra finalidade que não lhe é própria e lícita. Vale lembrar, a propósito do quanto afirmado, a exposição de motivos da lei 6.404/76, na qual se converteu o projeto de Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira: "[a] proteção do direito dos acionistas minoritários de participar, através de dividendos, nos lucros da companhia, exige a definição de regime legal sobre formação de reservas, que limite a discricionariedade da maioria nas deliberações sobre a destinação dos lucros". Não foi por outra razão que se estabeleceu no art. 202 da Lei em referência ao "dividendo obrigatório" mínimo, que não poderá ser inferior a 25% do lucro líquido. Nesse sentido assevera Bruno Robert, "[o] estímulo para a formação de um contrato de sociedade é a busca pelo lucro, através da organização de meios. Essa é a finalidade original, que estimula a constituição das sociedades e que alimenta sua existência. [...] O objetivo da sociedade não pode ser considerado simplesmente a obtenção do lucro, mas, sim, a obtenção do lucro pelos sócios, pois essa foi a ideia que os impulsionou em direção da constituição da sociedade. Essa ressalva inicial ilustra a dupla perspectiva sob a qual se pode compreender o conceito de objetivo social. Por perspectiva objetiva, entende-se a fundamental busca da sociedade pelo lucro. Por perspectiva subjetiva, entende-se a intenção de partilha do lucro obtido pela sociedade entre os sócios. Dentro do conceito de objetivo social, pois, estão incluídas tanto a ideia de obtenção do lucro quanto a ideia de aproveitamento desses lucros pelos sócios" (Dividendo mínimo obrigatório nas S/A. Ed. Quartier Latin, p. 25-26). Mais incisivo, Modesto Carvalhosa, invocando Trajano de Miranda Valverde, afirma que "[a] realização de lucros a serem distribuídos aos acionistas é da essência da sociedade anônima" (Comentários à lei das sociedades anônimas. Ed. Saraiva, 1.997, p. 20). Ou como escreveu Waldemar Ferreira: "[n]ada de economizar para enriquecer! Nada disso! A missão da sociedade anônima é distribuir dividendo e nada mais. Para que prever! Para que reter lucros, não incorporados, desde logo, ao capital, por via de seu aumento e distribuição das ações aos seus acionistas? Findo o ano social, ou o semestre, os lucros têm que ser entre eles rateados em dinheiro ou em ações! Cada vez que a sociedade tiver de fazer novas obras ou novas instalações, que aumente o seu capital! Abra subscrições" Angarie ela o dinheiro de que carecer, entre os seus próprios acionistas! Obtenha-o de terceiros enlevados pelas perspectivas dos seus dividendos" (Compêndio de Sociedades Mercantis. vol. II, p. 359). Portanto, cuidando-se de direito básico e inerente ao acionista da companhia, inderrogável e de ordem pública, o direito à participação dos lucros e resultados somente pode ser relativizado desde que presentes circunstâncias sociais objetivas, pertinentes e devidamente justificadas e comprovadas pela companhia. Essa é a correta interpretação que deve ser conferida aos arts. 202 e 196 da lei 6.404/76. A possibilidade de retenção de parcela de lucros pela companhia, mesmo havendo previsão estatutária, não é disposição assemblear ampla e incondicionada, de modo que não basta a aprovação da maioria na Assembleia Geral para que seja efetivada. Consiste em exceção à regra da distribuição dos lucros, princípio que norteou a Lei das Sociedades Anônimas. Nesse quadro, conquanto a lei 6.404/76 autorize a companhia a reter parte dos lucros, em detrimento do pleno direito do acionista, e mesmo que o Estatuto Social tenha previsão expressa nesse sentido, mostra-se imprescindível a demonstração da necessidade/utilidade da retenção da verba para fins sociais, demonstração que deve ser promovida e disponibilizada antes da deliberação assemblear de forma objetiva e detalhada mediante a apresentação de documentos que apontem os motivos justificadores da medida. Não basta seja indicada genericamente a retenção para investimentos, pesquisas e desenvolvimento da companhia. Não é suficiente, para justificar a relativização do direito essencial do acionista à divisão dos lucros a capitalização para financiamento próprio, a manutenção de reservas contra oscilação do mercado e contra a desvalorização da moeda ou para atender genericamente a estratégias de mercado. A sociedade anônima que pretende reter parcela dos lucros deve necessariamente apresentar projeto de orçamento de capital no qual constem os empreendimentos futuros que pretende sejam implantados com o uso dos lucros obtidos no exercício ou deve obrigatoriamente apresentar demonstração econômico-financeira da companhia na qual se verifique a efetiva e concreta necessidade de capitalização. Deve a companhia, nos termos do caput do art. 196, da lei 6.404/76, apresentar o projeto de investimento, devidamente aprovado pelo conselho de administração ou pela diretoria e o orçamento de capital no qual constem os custos, as planilhas e os recursos necessários ao desenvolvimento, melhoria ou soerguimento da sociedade. A Comissão de Valores Mobiliários já decidiu nesse sentido (PROC. RJ2005/2611, Reg. nº 4734/05, Relator: DSW, j. 04.10.2005; PROC. RJ2001/3270, Reg. nº 3202/01, Relator: DWB, j. 09.07.2002). A retenção de lucros que não encontra justificativa legal, portanto, se define como ilícita por abuso de direito da maioria dos sócios ou acionistas. O exemplo trazido por Jorge Manuel Coutinho de Abreu, catedrático da Universidade de Coimbra, bem se ajusta ao quanto se verifica nessas situações: "[i]lustremos com um caso que passou nos tribunais portugueses. Uma SQ vinha conseguindo lucros de exercício consideráveis; mas por força dos votos dos sócios maioritários, também gerentes, eles não era distribuídos pelos sócios há um quarto de século; eram retidos em reservas várias e, em parte, investidos na empresa; os sócios gerentes recebiam remunerações anualmente atualizadas e, a partir de certo ano, gratificações (de legalidade duvidosa) deliberadas em assembleia; o sócio minoritário (com quota correspondente a 40% do capital social) nada recebida da sociedade. Ora, em casos destes, não é difícil considerar abusiva-anulável , nos termos do art. 58/1 b, uma deliberação de retenção de lucros - é uma deliberação apropriada para satisfazer o propósito de o ou os sócios maioritários conseguirem vantagens especiais em prejuízo dos minoritários, ou conseguirem tão só prejudicar estes. Anulada a deliberação, cada sócio tem o direito de exigir, extrajudicialmente ou judicialmente, que a sociedade lhe entregue o respectivo quinhão na metade do lucro de exercício. E os sócios que votaram abusivamente podem ter de indenizar os minoritários (art. 58/3)".6 É uma espécie de litígio societário próprio das sociedades fechadas, especialmente das familiares, nas quais se verifica a concentração do controle em poucos sócios ou acionistas. Essa concentração é uma característica das companhias brasileiras quando comparadas com as norte-americanas. A presença de um acionista com detenção de mais de 50% das ações e o direito ao voto não ocorre nas maiores companhias norte-americanas. A detenção de ações nessas companhias nas mãos de um único acionista não passa de 7% do capital ou das ações com direito a voto, conforme se vê das informações colhidas por Alexandre Di Miceli da Silveira (Governança corporativa no Brasil e no mundo: teoria e prática. Ed. Elsevier, 2ª ed., p. 12-13), o que melhora a qualidade da governança, porque os acionistas, ou grupos de acionistas, fracos, não podem impor à companhia decisões empresariais em favor dos seus próprios interesses. Nessas companhias a governança é entregue geralmente a executivos que encontram as melhores condições para decidir em favor dos interesses sociais. Preserva-se o interesse dos acionistas e a permanente capacidade de atrair investimentos e a própria companhia. A retenção de lucros pode e deve se sujeitar ao controle judicial, afastando-se os abusos que ocorrem silenciosa e passivamente nas companhias brasileiras. Antes de uma intervenção indevida na companhia, o controle judicial sobre a distribuição de lucros representa o meio de impor o exato cumprimento da lei.7 __________ 1 Na Espanha se aprovou recentemente alteração da Lei das Sociedades de Capital para assegurar o direito de "separação" ou retirada do acionista que sofrer a retenção indevida dos dividendos. Esta é a redação do dispositivo que entrou em vigor em 2017: "Artículo 348 bis. Derecho de separación en caso de falta de distribución de dividendos. 1. A partir del quinto ejercicio a contar desde la inscripción en el Registro Mercantil de la sociedad, el socio que hubiera votado a favor de la distribución de los beneficios sociales tendrá derecho de separación en el caso de que la junta general no acordara la distribución como dividendo de, al menos, un tercio de los beneficios propios de la explotación del objeto social obtenidos durante el ejercicio anterior, que sean legalmente repartibles." Em defesa deste novo dispositivo sustenta Ángel Marina García-Tuñón que não há dúvida alguma que o direito de participar nos lucros sociais constitui um direito que integra uma posição jurídica, uma espécie de pressuposto que justifica em última instância a aquisição da condição de sócio ou acionista. A expectativa de obter lucro é um princípio substancial da atividade econômica (Los Derechos al Dividendo y de Separación a La Luz Del art. 348 Bis De La Ley de Sociedades de Capital: una revisión general. Revista de Derecho de Sociedades n. 49, enero-abril 2017, Aranzadi, p. 37). 2 Embora alguns dispositivos da LSA se aproximem da concepção institucionalista, quando coloca os interesses da companhia acima dos interesses dos acionistas (v.g. arts. 115, 116, 117 e 154), a moderna doutrina dá a esses dispositivos outra interpretação, afastando-se do institucionalismo. 3 Esse movimento institucionalista, segundo nos dá notícia Paula A. Forgioni, em excelente monografia sobre "A Evolução do Direito Comercial Brasileiro: Da mercancia ao mercado", editada pela Editora Revista dos Tribunais, 3ª ed., tem origem em parte na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, identificado com as raízes do nacional-socialismo, e depois se amolda ao fascismo italiano, especialmente pela Carta del Lavoro, na qual está presente a ideia de que os benefícios da empresa deveriam ser dirigidos à Sociedade, e ao Estado caberia orientar e supervisionar a empresa. Destaca a autora nesse sentido o pensamento desse movimento: "Rathenau, contemporâneo de Hauriou e incentivador da escola institucionalista alemã, era engenheiro e industrial. Sua teoria buscava o fortalecimento da indústria no período entre guerras; um de seus escopos práticos era justificar o reinvestimento do lucro na sociedade, deixando, portanto, de distribuir dividendos. A preocupação essencial reside na distribuição da riqueza, tarefa que não deveria caber aos acionistas, mas a toda coletividade. O fim da empresa é construir riqueza para a comunidade, oferecer trabalho, melhorar a técnica, favorecer o progresso científico - e não simplesmente buscar lucros para distribuição aos sócios. Nesse prisma, os pequenos acionistas são inimigos da empresa, pois, movidos pelo egoísmo, sacrificam o interesse geral em prol de seu exclusivo benefício" (p. 56). Não foi essa orientação que prevaleceu no direito brasileiro. O tema exigiria desenvolvimento que este ensaio não comporta. 4 Raul Ventura, jurista português, já apontava essa distinção em antigo escrito sobre os Grupos de Sociedades: "[a]  disciplina tradicional das sociedades por acções assentava e ainda assenta em muitos países sobre um postulado fundamental: a perfeita homogeneidade dos associados; os accionistas são todos iguais, todos com os mesmos direitos, todos com os mesmos deveres. Levou tempo a reconhecer uma primeira distinção entre os accionistas que pretendem investir activamente na empresa e aqueles desejosos apenas de obter dividendos abundantes e regulares para as suas poupanças. Uma nova distinção vai, porém, abrindo caminho, separando, para um lado, os accionistas com interesses empresariais externos à sociedade, e, para outro lado, todos os outros. Os primeiros fazem reflectir sobre o seu comportamento interno o seu interesse externo e por isso constituem uma fonte de potenciais conflitos de interesses. O direito das sociedades não desconhece problemas de conflitos de interesses, mas os conflitos suscitados pela nova categoria de accionistas são de tipo diferente; não se trata de conflitos esporádicos, manifestados ocasionalmente quanto a algum acto da administração ou alguma deliberação da assembleia, mas sim da criação duma situação permanente de conflito potencial, de um conflito de interesses sistemático e institucional" (Grupos de sociedades. Uma introdução comparativa a propósito de um projeto preliminar de directiva da C.E.E. Revista da Ordem dos Advogados. Ano 41. I e II. Lisboa, 1981, p. 35). 5 Jorge Manuel Coutinho de Abreu bem anota que "[a] constituição de reservas pode justificar-se para fazer face à concorrência de outras empresas, para prevenir períodos de crise, para garantir uma prática de dividendos estáveis, etc.. Mas se, por exemplo, os sócios maioritários decidem não distribuir lucros (ou boa parte deles) para forçar os minoritários a ceder-lhes as suas quotas ou se, numa sociedade anónima, a recusa de dividendos visa provocar uma baixa de cotação de acções, a fim de os sócios da maioria comprarem no período da baixa os títulos vendidos pelos da minoria (podendo o ciclo completar-se - e renovar-se - após os maioritários deliberarem grandes distribuições de lucros saídos das reservas, com consequente venda de acções suas no período da alta), então teremos deliberações abusivas" (Do abuso de direito: ensaio de um critério em direito civil e nas deliberações sociais. Ed. Almedina, 2006, p. 169-170). É o que ocorre igualmente, lembra o catedrático de Coimbra, quando se aprovam remunerações desproporcionais e excessivas em favor da diretoria e gestores da sociedade, reduzindo a participação de lucros dos acionistas, especialmente quando a diretoria é formada por pessoas ligadas aos acionistas maioritários, como é muito comum nas companhias brasileiras, especialmente fechadas. 6 COUTINHO DE ABREU, Jorge Manuel. Sociedades Fechadas. Direito das sociedades em Revista, ano 7, v. 13., p. 36.  Editora Almedina, março de 2015. Embora o Professor Coutinho de Abreu, da consagrada Universidade de Coimbra, faça referência a uma Sociedade por Quotas (SQ), a sua ilustração se aplica às sociedades fechadas, inclusive às anônimas. A indicação dos artigos de lei no texto do autor se referem ao Código das Sociedades Comerciais de Portugal em vigor (DL n. 262/86, de 02 de Setembro) que prevê, expressamente, para as Sociedades Anônimas o seguinte: "Artigo 294.º Direito aos lucros do exercício. 1 - Salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, não pode deixar de ser distribuída aos accionistas metade do lucro do exercício que, nos termos desta lei, seja distribuível." E a ambas sociedades se aplica o disposto do art. 58/1 b do Código das Sociedades Comerciais de Portugal, in verbis: "Artigo 58.º (Deliberações anuláveis). 1 - São anuláveis as deliberações que: a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56.o, quer do contrato de sociedade; b) Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos;" 7 Desenvolvemos o tema da tutela provisória neste casos no artigo "A Retenção de Dividendos nas Sociedades Anônimas e a Questão da Admissibilidade da Tutela Jurisdicional Provisória", publicado in Processo Societário III, coord. de Flávio Luiz Yarshell e Guilherme Setoguti J. Pereira. São Paulo : Quartier Latin, 2019.
quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Chegamos ao final de 2020

Ao final de cada ano é muito comum olhar para o que passou e procurar nas experiências vividas os acertos e erros cometidos. A passagem para o novo ano é sempre uma oportunidade de reflexão, para tentar novamente, fazer o que deixou de ser feito, reorganizar a nossa vida, inovar no trabalho, enfim, começar de novo. É natural neste momento o impulso de fazer uma retrospectiva, listar acontecimentos e decisões importantes dos tribunais. Pretendemos nesta oportunidade olhar menos para o passado e mais para o futuro do Direito Privado. No próximo ano entra em vigor a Nova Lei de Recuperação e Falência (lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020), trinta dias depois da sua publicação. Esta nova legislação, que altera substancialmente o regime vigente, terá um papel importante na solução da crise das empresas, especialmente em razão dos efeitos da pandemia. No Direito Empresarial surgem novas e renovadas questões, que interessam ao leitor, como é o caso ainda da desconsideração da personalidade jurídica, depois da Declaração da Liberdade Econômica, e das coligações e relações de grupo de sociedades, pouco desenvolvidas no Direito brasileiro. No Direito Societário o financiamento de empresas, que encontrou novos modelos, tem efeitos importantes sobre as sociedades, sócios e credores, que devem ser estudados. A responsabilidade dos administradores e controladores das sociedades empresárias é um tema sempre aberto. Os efeitos da pandemia serão sentidos mais acentuadamente no próximo ano. Os contratos serão afetados. Pretendemos trazer ao leitor desta coluna algumas observações comparativas do nosso direito com as recentes reformas do Direito Contratual francês (Ordonnance nº 2016-131) e do Direito Contratual alemão (Schuldrechtsmodernisierungsgesetz - 2002), especialmente do ponto de vista da imprevisão, que tanto interessa ao direito brasileiro nesse momento. Cabe lembrar, ainda no campo contratual, as dúvidas que ainda existem sobre os efeitos da modificação das circunstâncias existentes ao tempo da contratação, bem como sobre o dever de renegociação dos contratos e os limites da sua readequação por decisão do juiz. Um tema antigo e correlacionado, e que ganha atualidade, é a teria da imprevisão, já superada em outros países, que adotaram orientação diversa, mas que está na letra do nosso Código. Há outras questões do Direito Contratual que suscitam debate, como é o caso da dualidade de regimes (civil-liberal e do consumidor) incapaz de resolver adequadamente todas as questões que se apresentam. O Direito de Família e o direito da sucessão reclamam mudanças. Não obstante a aparente evolução dos últimos anos, indicada nas decisões de nossos tribunais, os resultados não são bons, refletidos no crescente litígio e incertezas nessas relações. Devemos nos questionar se o que fizemos até agora trouxe estabilidade e segurança para as relações de família e ao direito das sucessões. Cabe investigar se demos a devida atenção à ordem constitucional, que tem na família a base da sociedade e que reconhece, por isso, o interesse de ordem pública no ordenamento dessas relações. Dúvidas sobre a Constituição e efeitos da união de fato, sobre o direito a alimentos (transitórios, compensatórios, sancionatórios etc.), sobre a prisão civil, sobre a parentalidade, sobre o afeto, sobre a monogamia, sobre os múltiplos e simultâneos relacionamentos e sobre as novas famílias continuam desafiadoras. Delimitar o espaço de liberdade e de autonomia da pessoa nessas relações ainda é um tema aberto. A violência doméstica, a violência de gênero e a responsabilidade parental são ainda questões que não encontraram respostas eficientes do nosso ordenamento. Repensar o Direito de Família e o Direito das Sucessões se impõe quando se verifica que existe incerteza e insegurança no direito que praticamos, incapaz de dizer com clareza, por exemplo, se o companheiro de uma dupla relação (concubinária) tem direito ou não a dividir a pensão deixada pelo companheiro morto, como verificamos no recente julgamento do Supremo Tribunal Federal, decidido por um voto. Devemos reconhecer que o direito que praticamos não tem apresentado resultados aceitáveis. A família não pode viver e se organizar sob a intranquilidade que verificamos hoje na definição de direitos. No campo da responsabilidade civil, ou do direito de danos, há inúmeras outras questões que merecem atenção, como é o caso do dano coletivo e dos danos decorrentes da violação dos dados pessoais, para dizer apenas do que se apresenta mais recentemente. A efetividade da reparação é um problema permanente. O Direito Privado não passa ao largo do amplo debate sobre a crise do Estado e da Legalidade, bem como sobre a produção do direito e o ordenamento jurídico. Nesse campo tem especial interesse o direito vivente nas decisões judiciais e as influências que recebemos, e são benvindas, do sistema do common law. Entender e aplicar o sistema de precedentes no Brasil é o grande desafio, não só técnico, mas sobretudo cultural, especialmente para o Direito Privado. Estamos convencidos de que o sistema de precedentes, se aperfeiçoado, poderá trazer a racionalidade que se perdeu no Direito brasileiro. Me recordo de uma observação de Robert Weaver Shirley, numa pequena monografia publicada em 1987 a respeito da antropologia jurídica, um tema pouco tratado no Brasil. Dizia o autor que "do ponto de vista da ciência jurídica pura e da lógica técnica no elaborar as leis, o Brasil pode ser considerado um país desenvolvido. É na aplicação das leis, entretanto, que surgem os problemas; na divisão nítida entre a teoria e a prática, que permitiu que a forte tendência liberal na filosofia brasileira existisse lado a lado com uma das mais elitistas e estratificadas sociedades de classe do mundo. (...) Essa lacuna entre o direito formal e o aplicado é real em todos os países, mas no Brasil alcançou proporções quase surrealistas. Os brasileiros simplesmente não acreditam na lei. Creem, sim, numa estrutura de poder e em mediadores do poder que se movem paralelamente à ordenação formal das leis substantivas do País."1 O tempo não mudou muito a realidade. O Direito Privado deve ser vivente também no dia a dia de todos nós. Podemos, todos nós, fazer alguma coisa a respeito. Convidamos o leitor a participar desta empreitada no próximo ano, interagindo com a nossa coluna, que oferece espaço para comentários e sugestões. Agradeço a todos que dedicaram a sua atenção à leitura desta coluna em 2020 e auguro um ano novo com paz e saúde. __________ 1 Antropologia jurídica. São Paulo : Editora Saraiva, 1987, p.89.
Há anos a controvertida cobrança de contribuições, promovida por associações de proprietários e moradores de loteamento contra não associados, ocupa os Tribunais brasileiros. De um lado, os interesses de proprietários que se reuniram e formaram uma associação visando melhorias no loteamento. De outro lado, proprietários e possuidores que não desejaram se associar e que resistem à cobrança de contribuições em favor de entidade da qual não participam. A discussão passa pelo direito constitucional de liberdade de associação (art. 5º, XX, CF), sempre defendido pelos não associados, e pela alegação de enriquecimento sem causa, defendida pelas associações. A matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal pelo RE 432106, julgado pela Primeira Turma, em 20.09.2011. Pelo voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, se decidiu que: "Por não se confundir a associação de moradores com o condomínio disciplinado pela Lei nº 4.591/64, descabe, a pretexto de evitar vantagem sem causa, impor mensalidade a morador ou a proprietário de imóvel que a ela não tenha aderido. Considerações sobre o princípio da legalidade e da autonomia da manifestação de vontade - artigo 5º, incisos II e XX, da Constituição Federal." (RE 432106, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 20/09/2011, DJe-210 DIVULG 03-11-2011 PUBLIC 04-11-2011 EMENT VOL-02619-01 PP-00177). Logo depois, em 20.10.2011, ao julgar o AI 745.831 RG/SP, no RE 595911/SP, o plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral desse tema, pelo voto do Min. Dias Toffoli, vencido o Min. Marco Aurélio. A ementa da decisão diz o seguinte: "AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE COBRANÇA DE TAXAS DE MANUTENÇAO E CONSERVAÇÃO DE ÁREA DE LOTEAMENTO. DISCUSSÃO ACERCA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO. MATÉRIA PASSÍVEL DE REPETIÇÃO EM INÚMEROS PROCESSOS, A REPERCUTIR NA ESFERA DE INTERESSE DE MILHARES DE PESSOAS. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO GERAL." Afetada a matéria, portanto, no Tema 492 de Repercussão Geral, o seu julgamento foi realizado em sessão virtual, cujo resultado foi proclamado em 18 de dezembro último, nos termos seguintes: "Decisão: O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 492 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário e fixou a seguinte tese: "É inconstitucional a cobrança por parte de associação de taxa de manutenção e conservação de loteamento imobiliário urbano de proprietário não associado até o advento da Lei nº 13.465/17, ou de anterior lei municipal que discipline a questão, a partir da qual se torna possível a cotização dos proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos de acesso controlado, que i) já possuindo lote, adiram ao ato constitutivo das entidades equiparadas a administradoras de imóveis ou (ii) sendo novos adquirentes de lotes, o ato constitutivo da obrigação esteja registrado no competente Registro de Imóveis", nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, Roberto Barroso e Gilmar Mendes, que negavam provimento ao recurso. O Ministro Marco Aurélio deu provimento ao recurso e fixava tese nos termos de seu voto. Sessão Virtual de 04.12.2020 a 14.12.2020." Tivemos a oportunidade de participar do julgamento do tema de repercussão geral, atuando como advogado da ANVIFALCON - Associação Nacional de Vítimas de Falsos Condomínios, admitida como amicus curiae. Prevaleceu no julgamento, por maioria, o voto do Min. Dias Toffoli. A decisão interessa a milhares de pessoas e lamenta-se que o julgamento deste tema, sensível, tenha sido realizado em sessão virtual, restringindo, senão anulando, o debate público da causa pelo colegiado, como deveria ocorrer. Não me parece aceitável que a nossa Suprema Corte tenha adotado essa forma de julgar os processos mais importantes do país, não obstante as dificuldades surgidas em razão da pandemia. Esta questão envolvendo o julgamento virtual fica para outro momento.1 A matéria de repercussão geral em julgamento diz respeito ao que se convencionou chamar de "loteamento fechado", que é um loteamento constituído na vigência da Lei nº 6.766/79, mas que teve o acesso fechado, restringido ou "controlado" por concessão municipal em favor de associações de proprietários. Assemelha-se ao condomínio, mas não é. É o falso condomínio. Não há no "loteamento fechado" partes comuns ou unidades autônomas, como não há Convenção de Condôminos. Implantado o loteamento, o lote é "um novo todo", na feliz expressão de Arnaldo Rizzardo2, propriedade singular e independente dos demais lotes e do próprio loteamento. O voto do Ministro Dias Toffoli enfrenta a discussão a respeito da "possibilidade de administradora de loteamento imobiliário urbano, constituída sob forma de associação de moradores, exigir de proprietário ou possuidor de lote, que manifesta desejo de a ela não se associar, o pagamento de taxas de conservação, de manutenção de serviços e realização de benfeitorias". A identificação dessas associações como administradoras de loteamentos, como ocorreu na interpretação do Relator, veio com a Lei nº 13.465/2017, que incluiu o art. 36-A, na Lei do Parcelamento do Solo Urbano (Lei nº 6.766/1979), para dizer que essas associações "vinculam-se, por critérios de afinidade, similitude e conexão, à atividade de administração de imóveis". Não concordamos com essa interpretação, porque a administração depende de contrato e impõe prestação de contas, que não existem para o não associado. Não nos parece que a atividade dessas entidades é propriamente de administração, que pressupõe a sua sujeição à vontade dos contratantes. A associação tem vida própria, segundo as deliberações tomadas por maioria de votos, e não pode ser entendida como prestadora de serviços contratados. Não há razão para dizer que essas associações são administradoras de loteamentos, até porque o loteamento não está sujeito à administração. Uma vez implantado, os lotes estão livres de qualquer vínculo. A par desta questão, o voto do Ministro Dias Toffoli afirma que a Lei nº 13.465/2017, que dispõe de modo inaugural acerca da questão dos loteamentos fechados, representa um marco legislativo do tema. Assinala que as premissas que orientaram o julgamento do RE 432.106/RJ (que destacamos acima) continuam válidas, com adição da Lei nº 13.465/2017, a partir da qual as obrigações decorrentes da atividade das associações não vinculam somente os associados, como ocorria antes do advento da Lei. Admite que os direitos fundamentais, no caso o direito de liberdade de associação, podem ser limitados por lei, embora a restrição ao direito de liberdade deva ser mínima. Afasta o princípio da vedação do enriquecimento sem causa, o princípio da eticidade e a remissão à obrigação propter rem, não previstos constitucionalmente, como argumentos para contraposição à liberdade associativa definida na Constituição, que deve ser sopesada em face do princípio da legalidade. Conclui que a obrigação só pode ser imposta por lei ou pela vontade. Em consequência o Ministro Dias Toffoli afirma: "exigir daquele que não deseja se associar o pagamento de taxas ou encargos cobrados em função dos serviços prestados por uma associação a determinada coletividade significaria, na prática, obrigar o indivíduo a se associar por imposição da vontade coletiva daqueles que, expressamente, anuíram com a associação e seus encargos. Equivaleria, também, a fabricar e legitimar fonte obrigacional que não seja a lei nem a vontade." Este entendimento está de acordo com a decisão anterior da primeira Turma do Supremo Tribunal Federal e bem interpreta a liberdade constitucional de associação. O voto do Ministro Dias Toffoli ganha corpo e inova a partir do momento em que afirma a equiparação da associação de proprietários à administradora de imóveis e a equiparação dos loteamentos de acesso controlado a condomínios edilícios. Com efeito, a lei nº 13.465/2017, que não pode ter efeitos retroativos, não equiparou o loteamento de acesso controlado ao condomínio de lotes. Constou do novo art. 1.358-A, § 2º, do Código Civil, que: "Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes o disposto sobre o condomínio edilício..." Portanto, a aproximação das figuras ou tipos (e não equiparação) ocorreu entre o condomínio de lotes e o condomínio edilício. Não há equiparação do condomínio edilício ao loteamento de acesso controlado, justamente o chamado "falso condomínio". Logo, se não há equiparação, e não há mesmo, não tem sustentação, com este fundamento, a possibilidade de cotização, e nem se pode dizer que o ato constitutivo da associação tem o efeito de uma Convenção para prever a obrigação, porque lhe falta a manifestação de vontade. Aceitar a obrigação do não associado, mesmo depois da lei nº 13.465/2017, autoriza o uso do mesmo argumento que defendeu o voto do Ministro Dias Toffoli, que me permito reproduzir novamente: "exigir daquele que não deseja se associar o pagamento de taxas ou encargos cobrados em função dos serviços prestados por uma associação a determinada coletividade significaria, na prática, obrigar o indivíduo a se associar por imposição da vontade coletiva daqueles que, expressamente, anuíram com a associação e seus encargos. Equivaleria, também, a fabricar e legitimar fonte obrigacional que não seja a lei nem a vontade." Há um outro aspecto do voto referido que igualmente suscita dúvida. Afirmou-se: "Assim, para que exsurja para os beneficiários o dever obrigacional de contraprestação pelas atividades desenvolvidas pelas associações (ou outra entidade civil organizada) em loteamentos, é necessário que a obrigação esteja disposta em ato constitutivo firmado após o advento da Lei nº 13.465 /2017 (e que este esteja registrado na matrícula atinente ao loteamento no competente Registro de Imóveis, a fim de se assegurar a necessária publicidade ao ato)." Não me parece possível fazer o registro (depois indicado como "averbação") deste ato constitutivo como referido no voto. Não há matrícula do loteamento aberta para receber o registro. Há matrícula dos lotes de terreno nas quais não tem acesso o "ato constitutivo da obrigação", salvo por força de uma inovadora interpretação dos atos e fatos registráveis ou inscritíveis. Admite o voto, ainda, que lei municipal possa definir essa obrigação de cotização, pelo exercício concorrente da competência legislativa. Anota nesse sentido o que se decidiu no RE 607.940/DF, pelo voto do Min. Teori Zavascki, que julgou constitucional lei do Distrito Federal que disciplinava "unidades autônomas e áreas comuns condominiais", que é figura semelhante aos loteamentos com acesso controlado, segundo entendeu o Ministro Dias Toffoli no caso em discussão. Contudo, com todo respeito, as situações são bem diferentes. A lei do Distrito Federal fala explicitamente na Lei nº 4.591/64, em unidades autônomas, condomínio e áreas comuns. É certo que se refere a lotes, mas incluídos, ao que é dado entender, "no condomínio". A hipótese é diferente do loteamento que, por concessão do poder municipal, passou a ter acesso controlado. Com esses fundamentos, o voto do Ministro Dias Toffoli conclui que, à luz dos princípios constitucionais da liberdade associativa e da legalidade, não é possível cobrar do proprietário não associado qualquer contribuição até o advento da Lei 13.465/17, ou de lei anterior municipal, que disponha sobre essa obrigação, fixando a tese nos termos seguintes: "É inconstitucional a cobrança por parte de associação de taxa de manutenção e conservação de loteamento imobiliário urbano de proprietário não associado até o advento da Lei nº 13465/17, ou de anterior lei municipal que discipline a questão, a partir da qual se torna possível  cotização dos proprietários de imóveis, titulares de direitos ou moradores em loteamentos de acesso controlado, que i) já possuindo lote, adiram ao ato constitutivo das entidades equiparadas a administradoras de imóveis ou (ii) sendo novos adquirentes de lotes, o ato constitutivo da obrigação esteja registrado no competente Registro de Imóveis." Decorre do enunciado que o proprietário ou possuidor de lote que não é associado, ou deixou de ser, só poderá ser obrigado ao pagamento de qualquer contribuição a partir da lei n° 13.465/2017, ou lei municipal anterior, que defina essa obrigação, desde que também atendidas a uma das duas condições: se associou ou o ato constitutivo da obrigação foi registrado no Registro de Imóveis antes da aquisição. Percebe-se que o enunciado da tese fixada não decorre integralmente dos fundamentos do voto e condiciona a obrigação de contribuição à existência de lei e ao registro do ato constitutivo da obrigação, este último para o caso de novos adquirentes. Deixa dúvidas a respeito desse ato constitutivo da obrigação e do seu registro, assim como oferece dúvida quanto à legalidade da obrigação, porque não se verifica a equiparação de loteamento a condomínio na lei, se é que é possível atribuir por lei efeitos iguais a coisas diferentes. A decisão representa um enorme avanço no tratamento do tema, em favor da liberdade associativa constitucional, e de deve ser comemorada, mas há questões que merecem ser esclarecidas. Cabe registrar que este artigo está fundado na "minuta" do voto, divulgada pelo site do Supremo Tribunal Federal, que poderá sofrer modificação de redação antes da publicação. Também deve ser lembrado que a decisão está sujeita a embargos de declaração. Em outra oportunidade pretendemos voltar ao tema. ________ 1- Vale lembrar a carta pública, de 14 de abril de 2020, dirigida ao Presidente do STF, assinada por mais de 100 advogados, contra essa forma de julgamento, na qual se encontram as razões para a revogação da ampliação da competência do plenário virtual, que não assinei por falta de oportunidade, mas que reitero hoje, noticiada pelo Migalhas aqui. 2- Considera-se "lote", "o terreno servido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe" (art. 2º, § 4º, Lei nº 6.766/1979, incluído pela Lei nº 9.785/1999).  Feita da divisão da gleba em lotes, bem anota Arnaldo Rizzardo, "estes não mais são parte daquela, mas propriedades separadas, que passam a constituir, cada uma, um novo todo, uma nova propriedade" (Promessa de compra e venda e parcelamento do solo urbano. 6ª ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 35.).
A noção de propriedade não é imutável e a história mostra que ela tem sofrido mutações importantes ao longo do tempo. No Direito Romano, a propriedade era ilimitada, assegurando ao seu titular poder egoístico e absoluto sobre a coisa. O dono do imóvel estendia os seus poderes usque ad sidera et usque ad inferos (até o céu e até as profundezas), o que bem revela a onipotência da propriedade. Na idade média a propriedade se modifica e passa a ser objeto de domínio do senhor e de inúmeros outros sujeitos, abaixo dele, fruto de relações intrincadas e hierárquicas entre soberanos e vassalos. É um direito que não circula em estrutura piramidal. Surge a ideia de que a propriedade de todas as coisas pertencia a Deus, que a concedia ao homem para usar em favor de suas necessidades, sem poder abusar. Os filósofos de inspiração católica já entendiam que o homem tinha o direito de se apropriar das coisas, mas reconheciam o direito de todos ao uso do bem comum. Foi a Revolução Francesa de 1789, antifeudal e laica, que liberou a propriedade desses vínculos, a unificou e a consignou ao homem. As leis do iluminismo e do jusnaturalismo colocam o homem no centro dos interesses, o que significa a centralidade do direito de propriedade. Há uma certa semelhança com a propriedade romana. No início dos anos novecentos, passando pela Revolução Industrial, e deixando o homem de ser vinculado a terra tanto quanto foi (como meio de sustento), se chega à revolução socialista. É reconhecido um conceito de função econômico-social da propriedade, mas que se revela apenas em tímida limitação dos poderes do proprietário (ex. BGB de 1900 e o CC italiano de 1865). A Constituição de Weimar de 1919, aprovada após o final da primeira grande guerra, que fundava a Nova República alemã, estabeleceu no seu art. 153 que a propriedade obriga e o seu uso, além do privado, deve ser dirigido ao bem comum. Seguiu a Constituição mexicana de 1917 e representa o ponto de transição entre o liberalismo do século XVIII, em crise, e o Estado Social do século XX. A crise do liberalismo, que segundo Paolo Grossi é a crise da legalidade, trouxe a ideia de socialização do Direito, que incidiu sobre os dois pilares do Direito Privado: o contrato e a propriedade. A introdução dessa ideia socializante no interior da propriedade privada demoliu o direito subjetivo que representava a propriedade (pensamento de Duguit). Para Duguit a propriedade deixa de ser um direito subjetivo e passa a um direito objetivo, uma situação de ordem geral e permanente que implica um conjunto de imperativos. Só são legítimos a propriedade e os atos do proprietário quando praticados em direção a essa funcionalização. Os anos novecentos iniciam com o entardecer do mundo da propriedade absoluta e ilimitada e a revisitação da propriedade a partir das ideias da socialização do direito. Se passa a pensar em vários estatutos proprietários a partir da diversidade dos bens objeto da propriedade e sua relevância social. A intervenção sempre mais incisiva do Estado na economia e as consequências da segunda guerra, que agravaram a situação já deteriorada pelo primeiro conflito mundial, e a crise de 1929, impunham o superamento do horizonte cultural e jurídico próprio da codificação oitocentista francesa a respeito da propriedade para se produzir uma legislação especialmente orientada para o social. Se dá uma nova dimensão social ao abuso de direito e ao abuso dos bens. A partir do último quarto do século passado, contudo, se verifica uma proeminência do aspecto proprietário - numa inclinação liberal - sobre aquele social. É oportuno, neste momento, de aparente transição, fazer um balanço de tantos anos de defesa da funcionalização da propriedade, que a nossa Constituição de 1988 acolheu (art. 5º, XXIII), e essa retrospectiva não é positiva. Verifica-se que não temos no Brasil uma política urbanística adequada. A propriedade urbana continua a ser utilizada a fim de atender aos interesses egoísticos dos seus proprietários. São edificados prédios cada vez mais altos, com superadensamento de regiões, ineficiência do transporte público e pouca atenção ao meio ambiente. Se vê a crescente, e parece mesmo irrefreável, deterioração dos centros históricos. A costa brasileira foi seriamente prejudicada pela ocupação imobiliária desenfreada. Ocorrem desmatamentos descontrolados e a poluição de rios e do mar. Perdemos mananciais. Ao fim e ao cabo dessa experiência funcionalizadora, ao menos na letra da Constituição, constatamos que não conseguimos transformar a cidade e o mundo em lugar melhor para viver. Os resultados obtidos depois de trinta e dois anos da Constituição social de 1988 são mínimos, porque o legislador e a jurisprudência não foram capazes de concretizar a funcionalização da propriedade mediante uma disciplina de fruição e disposição dos bens, e o grande desafio continua vivo e consiste em conciliar os interesses privatísticos do proprietário com a promoção dos interesses coletivos decorrentes do uso da propriedade dos bens em uma sociedade industrializada, tecnológica e de mercado. Não se pode assegurar a possibilidade de vencer esse desafio. Como afirma Antonio Iannarelli, em extrema síntese, a crise financiária do Estado, o processo de globalização dos mercados, a hegemonia cultural do neoliberalismo, com o retorno da escola austríaca da economia e do pensamento de Heyeck, tem contribuído de modo importante para modificar a linha de leitura e atuação da função social da propriedade.1 O jurista italiano afirma que o pensamento liberal e neoliberal demoliu e neutralizou todos os ganhos do welfearismo, impondo uma releitura da função social em favor do funcionamento do livre mercado e não da finalidade redistributiva e da solução do desequilíbrio social. Iannarelli vê o Estado enfraquecido e a supremacia do mercado e do capitalismo. A propriedade voltou a ser um direito do homem, como em 1789, perdendo força o impulso de funcionalização do início do século passado. Constata-se a utilização da propriedade privada com o fim de extrair dela o mais eficiente proveito, sem preocupação com algum efeito distributivo ou de relevância social. A prevalência do interesse fiscal do Estado leva à privatização de bens, inclusive imobiliários, sem qualquer relação com o interesse público. Vivemos uma fase de desestruturação do compromisso social democrático no qual a propriedade torna a ser o direito fundamental do homem, que goza da máxima proteção e sofre a mínima limitação. Contra esta redução da funcionalização social da propriedade surge um debate novo na Europa sobre os bens comuns. O tema ganhou interesse especialmente com a questão da privatização da água. Cuida-se, essencialmente, de garantir   a fruição de direitos fundamentais destinados à satisfação das necessidades das pessoas e de individualizar os interesses coletivos. Se muda a forma de ver a propriedade. Como sustenta Stefano Rodotà, se pode dizer que se passa de uma propriedade exclusiva a uma inclusiva. Essa situação pode ser descrita como o reconhecimento da legitimidade de sujeitos e interesses diversos sobre o mesmo bem. O discurso, segundo Rodotà, se modifica da exclusão para a acessibilidade. Essa nova racionalidade da propriedade passa pelo reexame da sempre controversa função social, que foi entendida como instrumento para definir o conteúdo do direito e circunscrever as faculdades exercitáveis do proprietário. Rodotà sustenta, ainda, que configurada a propriedade como o poder de uma multiplicidade de sujeitos de participar das decisões a respeito de determinada categoria de bens, quando esses bens são o centro de uma constelação de interesses, se deve dar voz a quem representa esses interesses. Nasce um modelo participativo. A revisão da categoria proprietária importa também na revisão da categoria dos bens, com o ressurgimento dos bens comuns, que assume categoria irredutível ao modelo proprietário conhecido. A abstração proprietária se dissolve na concretude das necessidades que estão compreendidas na relação entre os direitos fundamentais  aos bens indispensáveis à respectiva satisfação.2 Resulta desta nova observação uma modificação profunda, segundo Rodotà, entre direitos fundamentais, acesso e bens comuns, desenhando uma trama a redefinir a relação entre o mundo da pessoa e o mundo dos bens. São Novos Horizontes do Direito Privado. __________ 1 Funzione sociale dela proprietà e disciplina dei beni. In"La funzione sociale nel diritto privado tra XX e XXI secolo". Coord. Francesco Macario e Marco Nicola Miletti. Roma : Roma Tre-Press, 2017. 2 Mondo dele persone, mondo dei beni. In "Il diritto di avere diritti". Roma : Editori Laterza, 2012.
Os direitos reais pertencem a uma categoria de direitos identificada pelas suas características particulares e entre elas a tipicidade assume enorme importância na regência dos direitos reais. O princípio da tipicidade, de acordo com Arruda Alvim, deve ser entendido "como manifestação específica da legalidade no campo do direito das coisas, i.e., os direitos reais precisam estar normativamente previstos (CC/16, art. 674 e CC/02, art. 1.225); só existem, os direitos reais, como tais, se a situação enquadrar-se rigorosamente na regra de direito - subsumindo-se aos respectivos elementos definitórios - que os prevê".1 Explica José de Oliveira Ascensão que no antigo direito vigorava o princípio do "numerus apertus", o que deu lugar a uma floração de direitos sobre as coisas, especialmente as coisas imóveis, direitos que, muitas vezes, representavam derivações ou divisão da propriedade num domínio eminente e num domínio útil, próprias do feudalismo que estabelecia obrigações de um sujeito em favor do outro. Contra essa situação se rebelou o jusracionalismo e todo o corpo de doutrinas consagradas com a Revolução Francesa, procurando a liberdade da terra contra os vínculos feudais. Conclui, portanto, que: "O numerus clausus inscreve-se, ou pelo menos pode-se inscrever, neste movimento. Abolidos os vínculos feudais e instaurada uma nova ordem dos direitos sobre as coisas, um sistema fechado serve à maravilha para perpetuar as conquistas obtidas: tudo o que não se adaptar ao esquema legislativo é rejeitado. A alegação de que isso era uma maneira anti-histórica de proceder seria de todo indiferente para uma mentalidade racionalista; e a reprovação da coerção legal seria certamente rejeitada com a observação de que esta coerção era o elemento necessário para se obter a liberdade - a liberdade da terra e do seu explorador, desta vez."2 O princípio da tipicidade não está codificado e se dessume razoavelmente do sistema, justificado por razões de ordem pública e econômica. Em termos práticos se pode dizer que o direito real é aquele tipificado na lei, que define por completo o seu conteúdo, fruição, meio de aquisição, transmissão e extinção, e confere ao seu titular prerrogativas que caracterizam a relação de poder (relação potestativa de proveito econômico) sobre a coisa, assegurando-lhe obter diretamente, sem a intervenção de outrem (devedor), o proveito econômico, ou parcela dele (nos casos de direito real limitado, como p. ex. o usufruto), que a coisa pode oferecer. Consequentemente, não é direito real aquela situação ou relação jurídica que não se identifica plenamente com o tipo definido em lei. Vem daí a ideia de numerus clausus dos direitos reais, ou seja, a ideia de que os tipos estão fechados no rol previsto em lei. Esse princípio está na base dos direitos reais da codificação civil francesa há dois séculos, sendo certo que os juristas oitocentistas o consideravam fundamental para estabelecer limite rígido à proliferação dos direitos reais atípicos que pudessem reconstruir a técnica própria do ancien règime contra a propriedade do novo regime, plena, exclusiva, sagrada e oponível a todos, vinculada a um único titular3. Esse princípio servia bem ao sistema liberal e burguês diante do temor que tinha o novo regime, que se instaurou com a Revolução Francesa, da volta ao estado anterior, sobretudo quanto ao desmembramento da propriedade útil e do ressurgimento das técnicas de matriz feudal voltadas a assegurar renda fundiária a classes não produtivas, o que bem se vê nas destacadas palavras de José de Oliveira Ascensão. Evidentemente, o princípio da tipicidade não se justifica nos dias de hoje pelas preocupações burguesas verificadas há mais de duzentos anos. Não se imagina algum risco em nossos dias da volta do regime feudal da propriedade. Mas é certo que a tipicidade dos direitos reais continua a valer nos sistemas ocidentais de tradição romana-germânica. O que justifica ainda a tipicidade dos direitos reais é a segurança das relações jurídicas e o valor econômico que se tem na circulação dos bens. Por isso afirma o jurista italiano Umberto Morello que permanece ainda hoje o risco que a proliferação dos direitos reais pode comportar para a correta circulação dos bens, pois um número excessivo de direitos reais substancialmente novos e de incerto conteúdo não favorece a segurança das contratações e embaraça a alienação dos bens e o recurso ao crédito. Uma eficiente circulação dos bens deve comportar a certeza dos poderes que competem ao proprietário e aos titulares dos direitos reais oponíveis a terceiros. Em caso contrário os adquirentes não saberão determinar, pela deficiente informação sobre os aspectos críticos do negócio, o valor correto do bem e os riscos inerentes à aquisição, assim como o credor não saberá se a garantia que recebe pode assegurar o crédito de modo adequado4. E com razão conclui Morello que o problema não é, portanto, a organização eficiente da propriedade e dos novos direitos reais, mas principalmente a possibilidade de dar informações claras sobre o conteúdo dos direitos reais aos terceiros adquirentes, aos credores e aos interessados, ou seja, o problema hoje é de comunicação. O princípio da tipicidade, portanto, encontra hoje outras razões a justificá-lo e assume especial importância neste cenário a publicidade desses direitos. Compreender a significativa mudança que ocorreu com a evolução da tipicidade nos direitos reais permitirá fazer e projetar a sua correta aplicação. Verifica-se, hoje, nítida tendência em dar maior elasticidade ao princípio da tipicidade. Procura-se superar a rigidez presente na criação e modificação dos tipos de direitos reais com uma interpretação que aproxima certas figuras novas daquelas previstas em lei, embora tecnicamente diversas. Defende-se que o sistema dê acolhida e publicidade a novas figuras de propriedade que vão surgindo, como foi o caso da multipropriedade (já reconhecida), e, se pode lembrar, do leasing imobiliário e das restrições convencionais incidentes sobre lotes e unidades condominiais autônomas. Há outras figuras que igualmente reclamam publicidade, como é o caso da cessão de créditos edificantes, muito comum hoje nos Municípios. Essa tendência é difusa e pode ser encontrada nos principais sistemas do civil law e do common law, como registra Umberto Morello. O jurista italiano bem observa, depois de examinar detidamente as características dos sistemas ocidentais, que o numerus clausus não é entendido em nenhum ordenamento como um princípio idôneo a engessar o sistema exclusivamente nos direitos reais regulados pela lei. É aceita uma certa flexibilidade e, portanto, a possibilidade de reconhecer a legitimidade de um direito, cujos elementos essenciais divergem daqueles previstos na lei para determinado tipo de direito real, como direito real substancialmente novo, mas que se sustenta na prática consolidada e que se apresenta suficientemente claro e definido quanto aos poderes que o seu titular tem sobre a coisa5. E a partir dessa tendência, Morello vê como adequada a definição do princípio como numerus quasi clausus dos direitos reais. O objetivo desta interpretação é dar operatividade ao princípio da tipicidade em face da realidade mutante dos fatos sociais e favorecer a circulação eficiente dos bens, dando a possibilidade aos adquirentes, credores e interessados de conhecer com precisão os direitos oponíveis. Em outras palavras, visa essa tendente interpretação valorizar a informação, sabido que hoje a tipicidade é um problema de publicidade e comunicação. Admitida relativa flexibilidade da tipicidade na criação e modificação das figuras de direitos reais, não se pode imaginar que essa liberdade não encontra limites e que pode ser exercida como ocorre com o direito das obrigações. Embora se possa afirmar que vigora o numerus quasi clausus, lembra Antonio Roman Garcia que a liberdade, como expressão da autonomia da vontade, encontra limites, porque a relação jurídica nova deve reunir objetivamente as características essenciais  próprias da categoria jurídica dos direitos reais, porque impossível aceitar que, fazendo uso dessa liberdade, se possa chegar à configuração de tipos ambíguos ou confusos, que impeçam, na prática, fixar com exatidão e alcance os próprios direitos constituídos, pondo em risco a necessária segurança do tráfego jurídico.6 A propósito desta mudança importante na forma de ver a tipicidade dos direitos reais com alguma flexibilidade, vale lembrar o caso Maison de Poésie, julgado pela Corte de Cassação francesa em 2012. Uma Fundação (A Maison de Poésie) vendeu um imóvel em 1932 e estabeleceu uma cláusula, segundo a qual a vendedora poderia fazer uso de uma parte do imóvel vendido.  Esse direito somente poderia ser extinto se o adquirente colocasse à disposição da vendedora, gratuitamente, um outro imóvel com a mesma característica. A adquirente demandou em juízo a extinção daquele direito, sustentando que em favor de pessoa jurídica o direito de uso não pode ultrapassar mais de 30 anos, como ocorre com o nosso usufruto (art. 1.410, III, CC). A Corte de Apelação de Paris acolheu a pretensão do adquirente, afirmando que não havia um direito real típico, mas a Corte de Cassação reformou a sentença para manter o direito da vendedora, afirmando que, respeitada a ordem pública, o proprietário pode criar direito de fruição (gozo) especial sobre o bem. Com esse julgamento estabeleceu-se um debate na europa sobre numerus clausus em Direitos Reais. A rigor, é difícil tipificar como Direito Real formas especiais de fruição ou gozo não previstas em lei. No caso, o direito recaiu sobre bem ainda não existente, mas a Corte de Cassação reconheceu esse direito real especial de gozo, atípico, e assegurou o seu exercício perpétuo, como se fora uma parcela do direito de propriedade do adquirente, que foi retido pela alienante. Pouco mais de dois anos daquele julgamento, surgiu um novo caso na França. Uma empresa cedeu o uso de um transformador de energia elétrica sem determinar o termo final desta cessão, que muito se assemelhava ao direito especial de gozo do caso anterior. Depois de trinta anos, a empresa titular do transformador pediu a sua restituição. O juiz aplicou o entendimento da sentença Maison de Poésie e negou a pretensão. A Corte de Cassação, neste caso, ao contrário do outro, entendeu que, à falta de um termo final, o direito se extingue em trinta anos. A decisão do caso Maison de Poésie animou a doutrina francesa e os meios acadêmicos na europa quanto à possibilidade de criação e reconhecimento de novos tipos de direitos reais de gozo. No entanto, logo a Corte de Cassação francesa mudou o seu entendimento, o que levou o jurista italiano Ermanno Calzolaio, que escreveu a respeito dessas decisões, observar que no momento em que se discute a tipicidade dos direitos reais adequada aos tempos atuais, se verifica o quanto ainda são resistentes as ideias do passado.7 Cabe lembrar que a tipicidade dos fatos inscritíveis no registro não se identifica com a tipicidade dos direitos reais.8 Como visto, a tipicidade dos direitos reais se refere basicamente aos tipos e respectivo conteúdo dos direitos previstos em lei, em rol taxativo (numerus clausus), enquanto a tipicidade registral se refere aos fatos típicos registráveis, em rol que se pode afirmar exemplificativo ou aberto. Aqui existe uma diferença conceitual, como afirma Kioitsi Chicuta, "e que tem causado inúmeras confusões, ou seja, nem todos os atos de registro destinam-se a criar direitos reais. Alguns, por exemplo, como o registro do contrato de locação onde consignada cláusula de vigência em caso de alienação (art. 167, I, n. 3, da lei 6.015/73), geram apenas direitos pessoais com efeito real. Nesse campo, sim, até mesmo para que a publicidade de situação jurídica de imóvel seja a mais ampla e correta possível, é possível alargamento do entendimento hoje vigorante. [...] Muitos confundem a taxatividade dos direitos reais com a taxatividade dos atos inscritíveis no Registro de Imóveis. Diariamente, nega-se a prática de atos de registro e ou de averbação sob o argumento de que não estão expressamente previstos em lei, afirmando alguns que tal praxe causa lesão a terceiros que, eventualmente, poderiam ser alertados com a inserção de fatos relevantes e vinculados ao imóvel"9. O direito registral não opera na seleção dos atos registráveis, porque o seu verdadeiro campo de atuação é o procedimento registral. Não é a quantidade dos atos suscetíveis de registro que traz a rigidez de um sistema de segurança jurídica. Também não se registram direitos, mas sim fatos jurídicos para publicar uma situação jurídica. Compete à ciência do direito "a elaboração e ordenamento de toda a matéria relativa aos direitos reais sobre bens imóveis, tanto no ângulo de sua conformação substantiva, quanto do de sua configuração formal, quer dizer, o tráfico jurídico daqueles tutelados pelo instituto do registro da propriedade"10. Os fins do direito imobiliário são alcançados através de um instrumento técnico, que é o registro, e a publicidade por esse conferida. A dificuldade de distinção entre a tipicidade dos direitos reais e a tipicidade dos fatos inscritíveis tem levado o intérprete e o operador do sistema registral a aceitar passivamente a ideia de que existe igualmente uma rigorosa tipicidade dos fatos inscritíveis, e se nega registro de títulos simplesmente porque não são encontrados no rol da Lei de Registros Públicos. Esta cômoda solução que se adota em nome da segurança jurídica afasta cada vez mais o registro da realidade e o faz perder o seu relevante papel de oferecer informação segura para orientar as relações jurídicas. Há meios adequados e efetivos para vencer com segurança esta conservadora e defensiva postura dos registradores e juízes brasileiros que se abrigam na letra da lei para não correr o risco da inovação. A jurisprudência e a doutrina têm papel importante na definição dos tipos de direitos reais e dos fatos inscritíveis, mas tem especial relevo nesse sentido a dinâmica atividade das Corregedorias na atualização das Normas de Serviço e nas decisões administrativas orientadoras da atividade notarial e registral. A lei 13.097/2015 trouxe uma série de disposições que valorizam as informações do registro, em favor do princípio da concentração da matrícula e no sentido desse movimento de flexibilização da rigidez dos direitos reais. Foi um bom sinal. Que venham os novos tempos. __________ 1 José Manoel de Arruda Alvim Neto. Princípios Gerais do Direito das Coisas: Tentativa de Sistematização. Atualidades de Direito Civil.  V. I. Coord. Angélica Arruda Alvim e Everaldo Augusto Cambler. Curitiba : Juruá, 2006, p. 178. 2 José de Oliveira Ascensão. A Tipicidade dos Direitos Reais. Lisboa : Minerva, 1968, p. 74. 3 Umberto Morello. Trattato dei Diritti Reali. Vol I. Diretto da Antonio Gambaro e Umberto Morello, Milano : Giuffrè Editore, 2008, p. 67-69. 4 Umberto Morello, op. cit., p. 75-76. 5 Op. cit., p. 204. 6 Antonio Roman Garcia. La Tipicidad en los Derechos Reales. Editorial Montecorvo, p. 75. 7 La Tipicità dei Diritti Reali: spunti per uma comparazione. Rivista di Diritto Civile. Cedam. Anno LXII - N. 4 (2016), 1080/1095. 8 Para o aprofundamento do tema, me permito recomendar ao leitor, de minha autoria e de Carlos Alberto Garbi Junior, Tipicidade dos fatos inscritíveis, publicado in "Direito Notarial e Registral - Homenagem às Varas de Registros Públicos da Comarca de São Paulo". Coord. Tânia Mara Ahuali e Marcelo Benacchio. São Paulo : Editora Quartier Latin, 2016. 9 Kioitsi Chicuta. Os Direitos Reais e o Novo Código Civil - A Locação e o Registro de Imóveis. In "O Novo Código Civil e o Registro de Imóveis", sob coordenação de Ulisses da Silva, ed. Sergio Antonio Fabris, 2004, p. 100-101. 10 Angel Cristóbal Montes. Direito imobiliário registral. Trad. de Francisco Tost - Porto Alegre: Sergio Francisco Fabris, 2005, p. 1.
Como é sabido, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, tem forte impacto em todas as Relações Privadas. São inúmeras as inserções na Tríade Civilística, assim entendia como Contrato, Família e Propriedade. Todavia, o presente artigo tem como objetivo entender suas interferências junto à atividade condominial, em especial a Responsabilidade Civil, ainda que de forma sintética, tendo em vista a amplitude de entrelaçamentos jurídicos, contábeis e sociais que envolvem tal fenômeno social. Como premissa inicial, se faz necessário entender alguns pontos centrais da citada lei, para somente após verificar seus possíveis pontos de interação. Desta forma, inegavelmente a lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade (artigos 1° e 3° da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais). Seu âmbito de aplicação é amplo e abrange qualquer operação de tratamento de dados realizada por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, bem como tem por objeto claramente dados pessoais que envolvam informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável, o que nos parece fatalmente atingir as relações condominiais. Dentre as formas de obtenção dos dados, ou seja, conforme referida lei, para que seja possível o tratamento de dados pessoais, tal fato somente poderá ocorrer, dentre outras formas: para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória, quando necessário para a execução de contrato ou de procedimentos preliminares relacionados a contrato do qual seja parte o titular, a pedido do titular dos dados pelo controlador ou mediante o fornecimento de consentimento pelo titular. Ao que se apresenta, para a devida e viável execução da administração do condomínio pelo sindico ou do gestor condominial, a utilização dos dados se faz necessária, até mesmo sob pena de ser responsabilizado civil, penal e admistrativamente. Tanto é assim, que imagine tentar realizar qualquer um dos deveres previstos no artigo 1.348 do CC sem os dados adequados. Somente pode haver, por exemplo, cobranças indevidas ou até mesmo a nulidade de assembleia por ausência de convocação adequada de todas as unidades autônomas. Porém, não é só, há um grande entrelaço de contratos e relações intersubjetivas que envolvem tratamentos de dados não só de relações diretas entre administrador e condôminos, mas também com terceiros, tendo em vista a relação de controle de acessos junto às portarias ou até contato com possíveis promitentes compradores de imóveis das unidades autônomas. Como atender as diretrizes legais presentes na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais? Bem, esse é um ponto sensível da referida legislação, pois, não obstante existirem critérios e parâmetros disponíveis na própria lei, a questão não se resolve somente por ferramentas jurídicas, mas também e especialmente com a utilização de ferramentas da área da Tecnologia da Informação, ou seja, o conjunto de todas as soluções oriundas de recursos de computação que visam à produção, ao armazenamento, à transmissão, ao acesso, à segurança e ao uso das informações. Como é sabido, os processos contábeis, fiscais e administrativos cada vez são mais automatizados, com o uso de ferramentas tecnológicas,  e, assim, todos os programas, pelo que se observa na referida legislação, devem estar preparados para essa nova demanda. Por esse motivo, a interdisciplinaridade quando da consultoria para implantação desses processos se faz necessária ou, no mínimo, prudente. Retomando especificadamente os comandos normativos jurídicos, nos termos do artigo 9° da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, o titular dos dados tem direito ao acesso facilitado aos mesmos, que deverão ser disponibilizadas de forma clara, adequada e ostensiva, ou seja, atender ao princípio do livre acesso. Além do livre acesso, há clara disposição normativa (artigo 18° da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) no sentido de que o titular dos dados pessoais tem um amplo direito de obter do controlador a possibilidade de manuseio dos dados, dentre eles, solicitar a correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados. Assim, além do acesso amplo, há também a nítida gestão dos dados. Por fim, porém não menos importante, quanto aos efeitos jurídicos da Responsabilidade Civil, tem-se uma seção especialmente dedicada ao tema entre os artigos 42 e 45, bem como o artigo 52 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Podemos dividir didaticamente tal seção em 4 frentes: a) efetiva reparação do dano, verificando-se hipóteses de solidariedade entre operadores e controladores de dados que atuam com violação à legislação de proteção de dados pessoais; b) formas de rompimento do nexo de causalidade, quando os agentes provarem que não realizaram o tratamento de dados pessoais que lhes é atribuído; que, embora tenham realizado o tratamento de dados pessoais que lhes é atribuído, não houve violação à legislação de proteção de dados; ou que o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiros; c) as hipóteses de violação do direito do titular no âmbito das relações de consumo permanecem sujeitas às regras de responsabilidade previstas na legislação pertinente; d) não obstante ser uma sanção administrativa, mas que repercute na espera patrimonial, deve ser registrado que, nos termos do artigo 52 da lei, se faz possível a aplicação de uma multa de até 2% (dois por cento) do faturamento da pessoa jurídica de direito privado, grupo ou conglomerado no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, limitada, no total, a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) por infração. Diante de todo o exposto, pode ser percebido que a questão é de fundamental importância para a ordem civilista e merece o devido cuidado dos operadores dessa riquíssima atividade condominial, que comporta várias facetas junto à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. _________ *Cesar Calo Peghini é doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Europeia e na Jurisprudência Espanhola, pela Universidade de Castilla-La Mancha, em Toledo, Espanha. Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD).   
Paritário, do latim paritas, que significa semelhança, paridade, qualidade do que é par e igual, é expressão nova no vocabulário do jurista e na classificação dos contratos. Foi introduzida no Código Civil pelo art. 421-A, com a redação que lhe deu a lei 12.874/2019, que Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. A referência aos contratos paritários já era encontrada na doutrina, inclusive estrangeira, e na jurisprudência, e parece que ganhou foro quando surgiu o Código Civil de 2002, com a unificação do Direito Privado, com exceção das relações de consumo. O Direito Contratual passou a olhar para os Códigos (Civil e Consumidor) e ver dois tipos de contratos, dividindo, ou separando, o universo contratual entre os contratos clássicos e liberais, que se passou a identificar como paritários, e os contratos da relação de consumo. Os contratos paritários seriam aqueles em que as partes se apresentam em condições de igualdade, são pares, e as negociações entre elas se dão com liberdade e no pleno exercício da mais ampla autonomia privada, resultando em um contrato que reflete mais fielmente a vontade dos contratantes. De outra parte, as relações contratuais de consumo, caracterizadas pela adesão, se dão entre partes que se apresentam de forma assimétrica, não em razão propriamente da diferença econômica entre elas, mas em razão do déficit informacional, que caracteriza especialmente a vulnerabilidade do consumidor. Esta ideia da existência de duas realidades contratuais, paritária e não paritária (de consumo), foi reforçada equivocadamente pela redação que se deu ao art. 421-A, do Código Civil: "Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção...". O Código Civil, a partir desta inovação, colocou os contratos civis e empresariais, pelo gênero, no mesmo plano jurídico, como paritários, presumindo-se em relação a ambos a simetria de forças que inibe a intervenção judicial e fortalece a obrigatoriedade das declarações das partes. Esta intervenção no Código Civil animou esse equivocado entendimento, que era conhecido desde a unificação do Direito Privado, no sentido de colocar todas as realidades contratuais nos dois modelos de regime. De um lado, o regime que valoriza a autonomia contratual e a intervenção mínima do Estado nessa relação (contratos civis e empresariais), e, de outro lado, o regime que reconhece a assimetria de forças e que promove a intervenção máxima na relação das partes (contrato da relação de consumo). Este reducionismo não permite identificar com liberdade as relações contratuais que sofrem interferências decorrentes da dependência econômica e da deficiente informação, verdadeira causa de assimetria (ao lado da assimetria de poder de negociação e de poder de imposição), o que também se verifica nos contratos civis e empresariais. Por conta desta visão parcial das realidades contratuais, podemos ser levados a entender que pela qualidade das partes, e não pelo conteúdo e natureza contratual, existe uma relação contratual entre pares, semelhantes e iguais, quando nem sempre isto ocorre. Na jurisprudência se verifica facilmente o reflexo dessa polarização. Quando não se identifica no contrato uma relação de consumo, ele é reputado paritário, e neste caso não se pode colocar em dúvida o cumprimento das declarações das partes, aplicando-se interpretação infensa à intervenção corretiva de abusos e desequilíbrios, deixando de dar valor à boa-fé objetiva, à função social do contrato e ao equilíbrio das prestações. Pode-se observar de algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça que essa interpretação é comum. No julgamento de ação revisional fundada na imprevisão, da compra e venda de fertilizantes, sujeita à variação cambial, afirmou-se na ementa do julgado: "Não envolvendo relação de consumo, o contrato objeto do pedido de revisão, mas, sim, revelando-se paritário, convém que se submetam as partes aos termos do acordo celebrado, não decorrendo da variação cambial verificada base para a revisão do negócio entabulado" (AgRg no REsp n. 1.518.605-MT, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe. 12.04.2016). Em outro julgado do Superior Tribunal de Justiça, se decidiu que a cláusula resolutiva expressa em contrato de promessa de compra e venda não opera efeitos automáticos, tantos nos contratos de adesão, como nos contratos paritários, indicando também a ideia de que existem apenas duas categorias de contratos, e nesse caso de um lado os paritários e de outro os de adesão. Na ementa do julgado se consignou o seguinte: "Esclareça-se, quanto ao tema, que a jurisprudência desta Corte Superior foi firmada não apenas com base em situações nas quais houve a pactuação de contratos de adesão, havendo precedentes ancorados em casos que versam sobre contratos paritários." (AgInt no AgREsp n. 1.170.673-RS, rel. Min. Marco Aurélio Belizze, DJe. 18.05.2018). O Superior Tribunal de Justiça decidiu, em outro caso, pela validade da eleição de foro estrangeiro em contrato firmado por empresa de artigos esportivos e jogador de futebol, considerando a relação simétrica e paritária, e não uma relação de consumo, como se houvesse somente duas realidades. Na ementa do julgado se assentou o seguinte: "Em sendo paritária e, assim, simétrica a relação negocial estabelecida entre conhecido jogador de futebol e empresa multinacional do ramo dos artigos esportivos, contrato cujo objeto, ademais, relaciona-se à cessão dos direitos de uso de imagem do atleta, não é possível qualificá-la como relação de consumo para efeito de incidência das normas do Código de Defesa do Consumidor." (REsp n. 1.518.604-SP, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe., 29.03.2016). Neste último caso, a decisão afasta a relação de consumo e conclui: "Parte-se, assim, da premissa de que o contrato é paritário ... A relação é, assim, disciplinada pelas normas de Direito Civil, não se tendo, todavia, acerca da cláusula de eleição de foro, manifestado afronta a qualquer dispositivo de lei que não seja o art. 101 do CDC, razão por que estou em negar provimento ao recurso no que respeita". Não se questiona aqui o acerto destas decisões. A nossa observação recai sobre a argumentação e a forma de pensar as questões que se apresentam no Direito Contratual. A partir do entendimento de que há somente duas realidades contratuais, o jurista poderá simplesmente decidir por um regime ou outro, e não atentar para situações diversas. A ideia de que pode existir "paridade" nos contratos, no sentido de que as partes são "pares" e "iguais", não nos parece a mais adequada. Não há, evidentemente, paridade entre o jogador de futebol e a poderosa empresa de artigos esportivos e patrocinadora dos grandes eventos do esporte mundial. Nem parece que a expressão é utilizada nesse sentido nas decisões judiciais. Há uma questão semântica no seu uso que pode dificultar a identificação de abusos e de dependência econômica nas relações contratuais, assim como pode acolher desequilíbrios inaceitáveis. Parece também equivocado contrastar o chamado contrato paritário com o contrato de adesão, porque o resultado poderá igualmente indicar que o contrato é paritário quando não é de adesão. A cláusula de eleição de foro ou de compromisso arbitral em contratos entre empresas, que apresentam posição de força diversa - assimétricas  (como pode ocorrer, por exemplo, nos contratos de franquia, nos contatos de distribuição, nos contratos de concessão comercial e nos contratos de representação comercial), pode representar abuso, quando incluídas com o propósito de inibir a parte mais fraca de demandar contra a outra. Olhando para essa relação interempresarial com a visão binária das relações contratuais, a solução será pela validade desta cláusula, porque se a relação não é de consumo, o contrato deve ser entendido como paritário. Há algum tempo escrevi sobre o Terzo Contratto1, expressão cunhada pelo italiano Roberto Pardolesi2 no prefácio do livro de Giuseppe Colangelo3, que sustenta a existência de uma "terra do meio" entre o contrato clássico liberal e o contrato da relação de consumo, passando-se a observar que a contratação entre duas empresas, quando uma delas é dependente economicamente da outra, reflete uma categoria de contrato que não se identifica com o contrato clássico (primeiro contrato), aquele caracterizado pela presença de partes igualmente informadas e com livre capacidade de escolha. Essa contratação também não se identifica com o contrato de consumo (segundo contrato), que é marcado pela presumida vulnerabilidade de uma das partes em razão essencialmente da deficiência de informação. Cuida-se, de acordo com Pardolesi, de uma realidade diversa - um terceiro contrato (il terzo contrato) -, para a qual o regime dualista apontado não oferece resposta adequada. É um novo personagem, afirma, que surge no horizonte e que deve ser visto muito proximamente4, como parte da fenomenologia e disciplina atual dos contratos entre empresas5. Em geral a doutrina hoje classifica os contratos, de forma unitária, a despeito da variação designativa, em contratos business-to-business (B2B) e business-to-consumer (B2C), contratos negociados e não negociados, contratos individuais e estandardizados, contratos paritários e não paritários, e contratos com simetria ou não de poderes, revelando, fundamentalmente, a distinção entre a contratação individual e a contratação de massa, bem como a distinção entre a contração negociada e a contração não negociada6. Bem anota Giuseppe Amadio que a classificação referida, assim como a norma que regula a respectiva contratação, tem como objeto de observação a atividade (não somente a posição ou o papel das partes no negócio, quanto à modalidade do exercício da autonomia negocial) e a efetividade da contratação, considerando no plano normativo o confronto entre o contrato de direito comum e o contrato de consumo. Do ponto de vista teórico, a distinção se faz entre o contrato que é celebrado com ou sem acordo de vontades7. A classificação feita pela doutrina nestes termos passa em boa medida pela forma de exercício da autonomia privada e se reflete na dualidade de tratamento da tutela contratual. Esse dualismo, entre contrato de consumo e contrato de direito comum, revela que a lei labora: (i) de um lado, com um modelo de contrato inteiramente negociado, entre partes que se encontram em condição de igualdade, e que reclama o máximo de liberdade e o mínimo de intervenção do legislador e do Juiz, em favor da autonomia privada; (ii) de outro lado, com um contrato (de consumo) no qual se verifica uma disparidade de instrumentos e de informações, não negociado plenamente e marcado pela assimetria de forças, que reclama o máximo de controle do legislador, especialmente no momento formativo, e admite em grau maior a intervenção judicial. Quando se unificou o direito privado, o que ocorreu no Brasil com o Código Civil de 2002, o regime geral dos contratos (empresariais ou não) também foi unificado. Destacou-se desse regime geral a contratação nas relações de consumo, o que polarizou o direito contratual em duas categoriais bem definidas. Sucede que a afeição do jurista à categorização do direito o levou a perder a percepção para outras realidades não compreendias nos modelos conhecidos, o que se refletiu no paradigma do direito contratual orientador da tutela adequada. Se alguma restrição se pode fazer no campo acadêmico a uma classificação dogmática do contrato como supõe a doutrina de Pardolesi8 (embora não é nesse sentido exato o seu pensamento), é inegável o fato de que essa doutrina bem identificou a existência de realidades contratuais estranhas ao binário regime jurídico que se tem aplicado a todas elas, indistintamente. Esses dois polos definidos no direito contratual não alcançam, seguramente, todas as categoriais contratuais que, em razão das suas especificidades, não se ajustam a esse dualismo9. Esse reducionismo das realidades contratuais tem um efeito perverso na tutela que exigem os desequilíbrios entre as vantagens e benefícios decorrentes da relação contratual, sobre a qual deve se concentrar a visão do jurista. Essa forma de ver e pensar o Direito Contratual, que trabalha somente com uma parte da sua fenomenologia, pode causar o equivocado entendimento, para além de outras distorções, de que, como bem anotou Anderson Schreiber, "os contratos empresariais representariam, desse modo, a última praia do liberalismo jurídico, um setor em que a liberdade das partes é tendencionalmente plena e a vontade dos contratantes merecem mais proteção que os valores solidaristas que norteiam a ordem jurídica brasileira. Tal abordagem exprime grave equívoco"10. __________ 1 Il Terzo  Contratto - Surge uma nova categoria de contratos empresariais? Publicado em 30 de julho de 2018, em três partes. 2 Na página eletrônica de LUISS - Università Guido Carli,  pode ser encontrado o link para  "Una postilla sul Terzo Contrato", de Roberto Pardolesi, ou diretamente aqui. 3 L' abuso di dipendenza economica tra disciplina della concorrenza e diritto dei contratti. Un'analisi economica e comparata. Editora Giappichelli, 2004. 4 Gregorio Gitti e Gianroberto Villa. Il Terzo Contratto. (Introduzione). Ed. il Mulino, 2008, p. 7. 5 Vale registrar a observação de Rita Marsico: "Trattasi di una recentissima fattispecie dai contenuti normativi ed applicativi ancora incerti e che non ne garantiscono, ad ora, portata dogmatica, nonostante stia acquisendo sempre maggiori consensi nel panorama civilistico" (Le nuove frontiere della dottrina civilistica: il terzo contratto. Mesmo quando não invocada a nova figura, a doutrina reconhece a existência de um vazio na hipótese de um contrato entre empresários. Ernesto Capobianco, justifica esse vazio pelo fato de que, diante de uma relação contratual entre empresas, sujeitos profissionalmente organizados e melhores árbitros dos próprios interesses, não haveria de se imaginar necessária a intromissão judicial para decidir sobre a justiça do contrato (Lezioni sul contrato. G. Giappichelli Editore - Torino, 2014, p. 172). 6 Giusepe Amadio. Il terzo contratto. Il problema. Op. cit., p. 10. 7 Op. cit., p. 10-11. 8 Vincenzo Roppo prefere colocar todos os contratos os assimétricos, seja decorrente de uma relação de consumo, ou de uma relação entre empresas, quando uma é dominante e outra dependente, num único e homogêneo paradigma: contrato assimétrico. Todavia, admite rever essa posição se encontrar diferenças de paradigma normativo entre os contratos de relação de consumo e os contratos entre empresas a justificar uma autônoma categoria de terzo contratto. (Il contrato del duemila. Terza Edizione. Torino : G.Giappichelli Editore, p.120-124). Também Guido Alpa prefere falar em contrato assimétrico em geral, quando a parte é exposta ao poder econômico da outra (Le stagioni del contratto. Bologna : Il Mulino, 2012, p. 142-143). 9 Bem a propósito a precisa observação de Eros Roberto Grau e Paula Forgioni no sentido de que "o contrato não é um instituto único, porém um feixe de institutos jurídicos (os contratos)", de forma que as regras aplicáveis aos contratos são diferentes (O Estado, a empresa e o contrato. Malheiros Editores, 2005, p. 16). 10 Manual de direito civil contemporâneo. São Paulo : Saraiva Educação, 2018, p. 441.
quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Culpa civil, bem comum e doação de alimentos

Introdução Somos uma República que se fundamenta no bem comum. Na dignidade da pessoa humana, na provisão das necessidades dela e numa ordem jurídica justa, estável e segura. Essa República, assim alicerçada, constitui um Estado Democrático de Direito, um governo do povo, pelo povo e para o povo, uma democracia vivificada pela Justiça. A dignidade é um atributo da pessoa humana1; é o atributo que, pelo reconhecimento da transcendência daquela, trata-a como princípio, sujeito e fim de todas as instituições sociais, que devem ser ordenadas para a consecução da felicidade humana2, outorgando ao homem todos os direitos, todas as garantias e toda a estrutura operacional do Estado, para ensejar aquela plena realização de cada um, segundo as potencialidades individuais3. Trata-se da essência, da substância do próprio Estado Democrático de Direito. Sem a preservação da inata dignidade do ser humano não há Estado, Democracia e Direito. Restaria a barbárie. Formado por espírito e matéria, o ser humano tem concretas e variadas necessidades intelectuais, afetivas, morais, corporais, e o Estado se legitima com o planejamento e a execução de políticas públicas econômicas e sociais que satisfaçam aquelas, em igualdade, e a ampliação da satisfação das mesmas em conformidade com o desenvolvimento coletivo. Da concepção ao nascer e respirar ar puro4 até o último suspiro e o repouso num pedaço de chão5, passando pelo comer, beber e sonhar, a pessoa humana tem essas necessidades que o Estado deve satisfazer. Este ser, social por natureza, com necessidades que geram dever público e obrigação privada, precisa de uma ordem jurídica - Estado de Direito -, justa, estável e segura. Justa, decorrente da atribuição do devido a cada qual. Estável, invariável em seu núcleo - vida, liberdade, igualdade - e progredindo para os direitos de terceira geração. Segura, protegida pelas garantias e direitos individuais, e pela efetividade deles. Fontes A República, por se fundamentar no bem comum e constituir num Estado Democrático de Direito, depende de três coisas para alcançar o seu fim: a doutrina, a norma e a jurisprudência. Fontes do direito ou não, elas constituem as mais importantes bases da ordem jurídica justa, estável e segura. A doutrina é o resultado da produção científica dos juristas, o estudo que fazem sobre a origem do Direito, as suas divisões e classificações, as suas definições, os seus conceitos, as sistematizações que empreendem, as críticas e sugestões sobre as normas e as decisões administrativas e judiciais, iluminando o caminho dos legisladores e dos julgadores. Ao exarar opinião comum sobre certa matéria, essa obra assume especial relevância na compreensão do Direito e na promoção da Justiça. A norma é um preceito geral e abstrato, dotado de coercibilidade, compreendendo o resultado da produção legislativa, desde emendas constitucionais até resoluções, passando pela lei complementar, delegada ou provisória (art. 59, incs. I a VII, Constituição da República). A jurisprudência é o resultado da atividade-fim do poder jurisdicional. O conjunto das decisões dos tribunais que, na medida em que se são harmônicas entre si e caminhem na mesma direção, assumem um papel mais importante na constituição da ordem jurídica justa, estável e segura. Outorgam segurança para o exercício dos direitos das pessoas físicas e jurídicas que, na dinâmica da vida, precisam conhecer e, na medida do possível, prever o alcance e a aceitação de seus atos e omissões perante a coletividade e às autoridades. Inteligência alguma, artificial ou não, suprimirá a dicção do direito aplicável aos casos concretos, pois os seres humanos, com a sua inteligência e vontade, voltam-se ao aperfeiçoamento constante, operando com criatividade e consciência de si e do próximo6. Ao lado dos princípios gerais do direito, da analogia e dos usos e costumes (art. 4º, Lei de Introdução ao Código Civil), a doutrina, a lei e a jurisprudência formam o conteúdo básico da ordem jurídica e de sua qualidade dependem a justiça, a estabilidade e a segurança dessa disposição conveniente das coisas que, por sua vez, ao lado da provisão das necessidades do ser humano e da preservação de sua dignidade, podem constituir uma sociedade livre, justa e solidária, um efetivo Estado Democrático de Direito ou um governo absolutista, assumido ou disfarçado. Esses pontos são vitais para o Direito e incidem direta e concretamente da vida de cada cidadão, posto que é regido pelas normas, que devem obedecer um processo legislativo moderno, serem iluminadas pela doutrina e bem interpretadas pelos julgadores7. Culpa civil O compromisso com o bem comum e a importância da doutrina, da lei e da jurisprudência, podem ser ilustradas com uma breve incursão sobre a culpa em direito civil. Uma das mais importantes matérias do Direito Privado é a responsabilidade civil, pois a vida em sociedade gera danos que devem ser reparados com justiça para que se mantenha a ordem jurídica justa, estável e segura, a paz social. A disciplina jurídica dessa reparação foi se desenvolvendo ao longo da história, recebendo a contribuição de grandes juristas, aplicada em inúmeros julgamentos e integrando os mais elaborados Códigos de Leis. Essa dedicação à obrigação de indenizar formou um verdadeiro tesouro que a civilização precisa manter, aprimorar e transmitir às novas gerações. "Não é novidade que as leis anteriores sejam aproveitadas pelas posteriores"8. Suprimir esse legado implica  desastrosa involução. A ação, o dano e o nexo causal constituem os três pressupostos da responsabilidade civil. Os seus fundamentos são a culpa e o risco. A responsabilidade subjetiva baseia-se na culpa em sentido amplo: dolo e culpa em sentido estrito (imprudência, negligência e imperícia). A responsabilidade objetiva funda-se no risco, não importando a culpa, bastando os pressupostos: ação, dano e nexo causal. A responsabilidade subjetiva é a teoria clássica, tradicional. A culpa pode ser lata, leve e levíssima. Contratual ou extracontratual (aquiliana). In eligendo (escolha do representante) ou in vigilando (fiscalização do representante). Por ação ou por omissão. In custodiendo (dever de bem guardar). Em concreto ou em abstrato. O atual Código Civil, ao tratar do ato ilícito, dispõe que aquele "que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito" (art. 186)9 e quem, por ato ilícito, "causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo" (art. 927, Código Civil). A culpa extra contratual é subjetiva. O prejudicado tem que provar a culpa do causador do dano. Na culpa contratual, esta resulta do próprio descumprimento do contrato. Deve ser verificada a imputabilidade do causador do dano, a sua vontade apta à compreensão da conduta, pois se faltar essa consciência, a responsabilidade poderá ser do seu representante legal. A regra geral é a responsabilidade por culpa. A responsabilidade objetiva implica a responsabilidade sem culpa do autor. Indeniza-se o prejuízo causado pela ação lesiva a partir da presença do dano e do nexo causal entre aquele e esta. Prevalece a teoria do risco criado pela atividade do agente que, ao desempenhá-la e colocar os demais em situação de risco, tem que reparar quem sofre dano provocado por ela. Sustenta o dever de indenizar nas relações de consumo, nas questões ambientais, na responsabilidade civil do Estado, nos acidentes de trabalho, entre diversas outras situações em que, a proteção dos bens jurídicos especialmente relevantes para o bem comum, a vulnerabilidade do prejudicado, a superioridade do criador do risco e outras circunstâncias, recomenda que se prescinda da apuração de culpa do autor do fato, sob pena de impossibilitar a reparação do prejuízo sofrido. No atual estágio de nosso Direito, sempre em evolução10, harmoniza-se a aplicação dessas teorias. A subjetiva é o padrão e, nas situações acima apontadas, vige a teoria objetiva11. A comum opinião dos doutores costuma inspirar as codificações e as principais normas que regem a responsabilidade civil. Os Tribunais Superiores, em harmonia com essa antiga tradição jurídica, formulam diversas súmulas para disciplinar as lides submetidas à jurisdição civil12. Responsabilidade civil e doação de alimentos Incidindo nas relações humanas, a responsabilidade civil tem aplicação vasta. Há um problema vital que pode ilustrar a importância de sua cognição, observância de seus princípios e cooperação para o seu desenvolvimento. Trata-se da produção, conservação e distribuição de alimentos. Obra essencial para a pessoa humana, especialmente em período de calamidade pública, com efeitos intensos e ainda não totalmente apurados, na vida, na saúde, na educação e na economia do universo. Projeta-se que está crescendo o número de famintos e se premiam os estudos para a solução do problema13. Nesse contexto, chamam a atenção uma lei recente14 e um Projeto de Lei em tramitação no Senado Federal15. Ambas versando a doação de alimentos. Naquela, há expresso comando de que essa doação não configura relação de consumo (art. 2º, parágrafo único) e haverá responsabilidade do doador somente se agir com dolo (art. 3º). Neste, propõe-se que a doação configura exceção ao regime de responsabilidade civil objetiva e afasta expressamente a incidência do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor. Não implica relação de consumo. A responsabilidade civil depende de dolo (arts. 9º, 11º e 12º). Por evidência, o conteúdo atual da responsabilidade civil, como a consagraram os povos cultos, ao longo dos séculos, não é estático. Pode e deve ser aperfeiçoado. O sistema jurídico deve ser observado em sua globalidade. Ao Poder Legislativo compete editar normas que contribuam para o bem comum. As pessoas, físicas e jurídicas, devem observar essas regras. Os conflitos devem ser resolvidos pelo Poder Judiciário, com base nas leis, na doutrina e nos precedentes dos tribunais. Romper com a tradição e se desviar radicalmente de monumento jurídico tão importante como a construção milenar da responsabilidade civil, parece não contribuir para a civilização dos povos. A população precisa amar e respeitar os seus juízes. Não se pode desconfiar deles, subtrair-lhes o poder de distribuir justiça, violar a separação de poderes. Conviver é preciso. Alimentados. Não se precisaria de comandos legais para fazer o bem ao próximo. Muito menos, porque o próximo está faminto, isentar de responsabilidade objetiva o doador, por evidência dotado do poder de controle geral de sua conduta. A doação de alimento pressupõe a entrega de produto saudável e não deteriorado. A doação de alimento estragado implica a responsabilidade civil objetiva do doador. Viver é um risco. Conviver humaniza. Humanizar é progredir. O progresso é coletivo e universal. A proteção dos bens jurídicos especialmente relevantes para o bem comum, a vulnerabilidade do faminto, a superioridade do doador, o seu controle sobre essa atividade humanística e as demais circunstâncias desse benefício tão importante para a sociedade, recomendam que se prescinda da apuração de culpa do autor do fato, sob pena de impossibilitar a reparação do prejuízo sofrido. Não está conforme ao bem comum, fundamento republicano, vedar ao Poder Judiciário a classificação jurídica de fatos, a exclusão da disciplina legal das relações de consumo e a restrição da responsabilidade civil às hipóteses de dolo, livrando o doador de alimentos de agir com a prudência, a diligência e a perícia exigíveis de todos para o bem de todos, especialmente para os famintos.        *Jaques de Camargo Penteado é consultor e advogado. Mestre e doutor pela USP e procurador de Justiça aposentado (MP/SP). __________ 1 "C. METAF - Característica essencial de uma substância" (LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico de Filosofia. São Paulo:Martins Fontes, 1999, p. 110). Ver ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo:Martins Fontes, 2003, p. 94. Atributo do homem, a dignidade é inerente à natureza humana, e tem existência, validade e eficácia plena independentemente do direito posto que, assim, deve positivá-la para a legitimidade do mesmo. 2 "Do direito reclama-se ser uma causa eficiente - não a única, por certo, se nos lembramos do amor e, menos felizmente, da força -, uma causa eficiente para que a nossa vida, a de todos nós, seja feliz, para que possamos ser felizes na nossa defectível condição humana. A primeira coisa que se exige do direito é que respeite a primazia da realidade de nossas pessoas: um ordenamento normativo que não assegure a existência pessoal é um contra-sentido, um contra-direito" (DIP, Ricardo Henry Marques. Execução Jurídico-Penal ou Ético-penal? In Caetano Lagrasta Neto, José Renato Nalini e Ricardo Henry Marques Dip (Coord),  Execução Penal - Visão do Tacrim-SP, São Paulo, Juarez de Oliveira, 1998, p. 173). 3 PENTEADO, Jaques de Camargo. A dignidade humana e a Justiça Penal. In Jorge Miranda e Marco Antonio Marques da Silva (Coords.), Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. 2ª ed. São Paulo:Quartier Latin, 2009. 4 PENTEADO, Jaques de Camargo e DIP, Ricardo Henry Marques. A Vida dos Direitos Humanos - Bioética Médica e Jurídica, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1999. 5 "E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida)" (MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina, Rio de Janeiro, Objetiva, 2012, p. 76). 6 DINIZ, Maria Helena. Fontes do Direito. Enciclopédia Jurídica PUCSP, Teoria Geral e Filosófica do Direito, 1/6/2017. 7 Sobre a importância dos grandes doutrinadores, a codificação das leis e a contribuição para o julgamento: RUFINO, Almir Gasquez. Teixeira de Freitas e Clóvis Beviláqua. Dois Juristas. Destinos que se cruzam. Migalhas, 23.9.2020. 8 D.1.3.26 Paulus Libro III quaestionum (MADEIRA, Hélcio Maciel França. Digesto de Justiniano, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p. 50). 9 O abuso de direito também constitui ato ilícito (art. 187, Código Civil). 10 Sobre novas tecnologias e avanço das ciências e a responsabilidade civil, ver GARBI, Carlos Alberto. Responde o Médico e a Clínica que realizou o procedimento de vasectomia mal sucedido pela gravidez indesejada? 11 MONTEIRO, Washington de Barros. MALUF, Carlos Alberto Dabus. SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª Parte, 38ª ed., São Paulo, Saraiva, 2011, pp. 565-612. 12 Súmula Vinculante nº 22 (competência da Justiça do Trabalho para julgar as indenizações por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidentes de trabalho; 187, 261, 490,491, 492 e 562, STF; 37, 43, 54, 132, 154, 221, 229, 297, 362, 370, 387, 388 e 403, STJ). Os mais importantes Tribunais do País consolidaram imenso repertório da jurisprudência mansa e pacífica sobre a responsabilidade civil. Há notáveis tratados doutrinários sobre o tema escritos por Juristas como Orlando Gomes, Sérgio Cavalieri Filho, Rui Stoco, dentre muitos outros. 13 Sem políticas públicas, emergenciais e sem a volta do crescimento econômico, o cenário será desfavorável, segundo PEREZ, Marcos Augusto (Entrevista Rádio USP, 30.9.2020). O Prêmio Nobel foi dado a organismos de combate à fome. 14 Lei 14.016, de 24.6.2020. 15 Projeto de Lei do Senado  672/15.
quarta-feira, 7 de outubro de 2020

O direito dos privados na obra de Paolo Grossi

O estudo da história do direito é relativamente recente no Brasil1. A presença de Paolo Grossi2 foi fundamental na consolidação neste campo de pesquisa jurídica entre nós, ajudando a renovar3 um filão que já possuía alguma tradição, se pensarmos que temas como escravidão4, codificação civil5 e propriedade6, típicos do direito privado, já vinham sendo tratados. Em sua obra "Mitologias Jurídicas da Modernidade"7, Grossi organiza uma série de conferências em forma de um manifesto cujo objetivo foi denunciar uma leitura que dava caráter absoluto à lei, que minou a criatividade do direito dos privados. Por isso, denuncia a forma-código, que buscava unificar em uma única lei todo o direito privado, que passava a se chamar "civil", ou seja, daqueles vinculados à comunidade política. Retirava-se o poder e a criatividade da sociedade civil. Isso se fez em nome de um novo fundamento para a certeza do direito, que não tinha mais o seu fundamento no seu conteúdo justo, mas no procedimento de feitura da lei por um órgão político representativo. Trata-se de uma continuidade ou complemento à sua mais comentada obra, "A Ordem Jurídica Medieval"8. Grossi parte das mais diversas fontes (registros notariais, direito canônico e, especialmente, a literatura dos juristas da tradição do ius commune) para demonstrar que, longe de se tratar da "idade das trevas", o medievo representou para o direito, especialmente para o direito privado, um momento de grande criatividade. Seja na "oficina da práxis" altomedieval construindo as novas formas contratuais para o mundo agrário feudal, seja no "laboratório sapiencial" tardomedieval das comunas autônomas em sua prosperidade comercial, o direito privado do período construiu e reconstruiu diversas categorias do direito privado. Esta fortunada reflexão mira ao grande plano de trabalho da obra de Paolo Grossi, que é o diálogo entre os historiadores do direito e os juristas do direito positivo. A historiografia jurídica serve para chamar a atenção à provisoriedade das soluções, para não termos as atuais formas jurídicas como as melhores até então formuladas. Esse exercício constante de relativização busca fomentar a consciência crítica dos juristas, com destaque aos estudantes, aos quais o mestre florentino sempre deu atenção prioritária. Por isso a importância de a História do Direito ser cultivada por juristas e fazer parte da formação nas faculdades de direito9. Mais especificamente sobre a história do direito privado, na obra "História da Propriedade e outros ensaios"10, o autor apresenta as diversas facetas da propriedade e das "propriedades", justamente porque a propriedade privada moderna, cristalizada nos códigos, é apenas uma das tantas experiências na história dos modos de possuir. Para nós, brasileiros, basta pensar no princípio constitucional da função social como contraste à clássica teoria do domínio; ou como Grossi traz da experiência medieval, a teoria do domínio diviso, em que o título deveria se coligar à utilidade do bem. Na mesma obra, Grossi denuncia que a modernidade, no campo do direito privado, acabou redundando em um "absolutismo jurídico", contrastando com o absolutismo político do antigo regime. Especialmente para o campo do direito privado, que necessita estar aberto às novidades de seu tempo para cumprir a sua promessa de autonomia, trata-se de um alerta que nos desaloja das certezas encontradas nos estudos dogmáticos subservientes a uma lógica estatalista que aprisiona o direito privado. Resta, então, o convite aos civilistas para o estabelecimento de um diálogo frutífero entre essas áreas do campo jurídico, de modo que tradição e inovação se encontrem rumo a uma perspectiva que compreenda o direito como fruto da cultura11. *Diego Nunes é professor de Teoria e História do Direito na UFSC, com doutorado na Universidade de Macerata (Itália). __________ 1 Vejam-se FONSECA, Ricardo Marcelo. O deserto e o vulcão: reflexões e avaliações sobre a história do direito no Brasil. Forum historiae iuris. Frankfurt, 15 jun. 2012; DAL RI JR., Arno. La storiografia giuridica brasiliana letta attraverso l'esperienza storiografica penale: note per la consolidazione di una disciplina. In: SORDI, Bernardo (a cura di). Storia e Diritto: esperienze a confronto. Incontro internazionale di studi in occasione dei 40 anni dei Quaderni fiorentini, Firenze 18-19 ottobre 2012. Milano: Giuffrè, 2013; MECCARELLI, Massimo. A história do direito na América Latina e o ponto de vista europeu: perspectivas metodológicas de um diálogo historiográfico. Revista da Faculdade de Direito - UFU, Uberlândia (MG), v. 43, n. 2, jun./dez. 2015.    2 Paulo Grossi é professor emérito de História do Direito da Universidade de Florença, na Itália. Foi membro e presidente da Corte Constitucional italiana. Fundador da revista Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico.  3 Veja-se, por exemplo, VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna: um estudo de história do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005 e a resenha à obra: GROSSI, Paolo. Un saluto alla giovane storiografia giuridica brasiliana (a proposito di Laura Beck Varela, Das Sesmarias à Propriedade moderna: Um Estudio de História do Direito Brasileiro). Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico, v. XXXV (2006), p. 1037-1042.   4 Veja-se o recente trabalho de PAES, Mariana Armond Dias. Escravidão e direito: o estatuto jurídico dos escravos no Brasil oitocentista (1860-1888). São Paulo: Alameda, 2019, que faz um balanço dessa historiografia e avança para novas questões.  5 Veja-se, por exemplo, MARTINS-COSTA, Judith (Org.). Código. Dimensão Histórica e Desafio Contemporâneo: Estudos em Homenagem ao Professor Paulo Grossi. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2013.    6 Veja-se, por exemplo, ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à História do Direito Privado e da Codificação. 4 ed. Belo Horizonte: Lafayette, 2020.   7 GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Tradução de Arno Dal Ri Jr. 2. ed. Florianópolis: Boiteux, 2007.  8 GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. Tradução de Denise Rossato Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2014.  9 GROSSI, Paolo. O ponto e a linha: história do direito e direito positivo na formação do jurista de nosso tempo. In: Id., O direito entre poder e ordenamento. Tradução de Arno Dal Ri Jr. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.   10 GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.  11 Para quem desejar um primeiro contato com o autor e algumas de suas obras, reporto ao Minicurso Online "Introdução à História do Direito a partir de Paolo Grossi" por mim ministrado.
Apesar do reduzido espaço deste escrito, não constitui tarefa custosa assinalar a importância de Teixeira de Freitas e Clóvis Beviláqua para a história do Direito nacional, em especial no Direito Privado, de que se ocupa esta prestigiosa coluna. Facilita-nos, sem dúvida, o fato de o fazermos da perspectiva privilegiada do presente, quando já decorreram tantos anos da morte de um e de outro.               Não é preciso dizer que se está diante de dois juristas extraordinários, muito acima da média, do seu tempo e também deste; ambos francamente comprometidos com o projeto de codificação civil, iniciado na segunda metade do século XIX, ainda no Império. Parece difícil de sustentar que pudessem ficar de fora de qualquer lista dos nossos juristas mais representativos, a partir dos antigos e chegando aos contemporâneos. Bem por essa razão, aliás, que os dois, juntamente com Tobias Barreto, são os únicos brasileiros incluídos na obra Juristas Universales, dirigida por Rafael Domingo e publicada pela Editora Marcial Pons no ano de 20041, em quatro alentados volumes. Eles três, mais Rui Barbosa e Pontes de Miranda, também compõem o quadro de notáveis juristas brasileiros inseridos no dicionário biográfico reorganizado no ano de 2001 pelo historiador alemão Michael Solleis, em que se buscou sintetizar vida e obra dos mais proeminentes juristas universais, do período da antiguidade até o século XX2. Comecemos por Teixeira de Freitas. Como os grandes destinos são imprevisíveis, ninguém poderia imaginar que a criança nascida em 1816 na cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano, distante mais de cem quilômetros de Salvador, viria a se tornar o maior jurisconsulto do Império3. Não alcançou os 70 anos de idade, mas decerto que a morte não teve, ao menos quanto a ele, o poder de apagar, quando menos deslustrar, a memória da sua existência. Basta dizer que ainda hoje, mesmo depois de transcorrido mais de um século, não é possível ignorar-lhe o nome e a importância em qualquer trabalho que se proponha com seriedade a relatar a história da codificação civil nacional e sul-americana. Seguindo a linha do tempo, é interessante sublinhar que Pontes de Miranda nem sequer era nascido por ocasião da morte de Teixeira de Freitas; tampouco Orlando Gomes, Caio Mário da Silva Pereira, San Tiago Dantas, Serpa Lopes e Washington de Barros Monteiro, para mencionar tão somente nossos mais notáveis civilistas. Naquela mesma época, em 1883, Clóvis Beviláqua, recém-formado em Direito, contava apenas 24 anos de idade. Eduardo Espínola, Orosimbo Nonato e Carvalho Santos (João Manuel de), juristas que também moldariam a história do direito privado, ainda brincavam nas ruas, como fazem todos os meninos. Carvalho de Mendonça (Manoel Inácio) graduara-se em Direito fazia pouco tempo, o que também ocorreria logo após com Tito Fulgêncio. Por sua vez, Antonio Joaquim Ribas, o Conselheiro Ribas, professor da Faculdade de Direito de São Paulo, consagrara-se como jurista por meio do seu Curso de Direito Civil brasileiro, publicado em 1866. Morreria em 1890, seis anos depois de Teixeira de Freitas. Quanto ao mineiro Lafayette Rodrigues Pereira, sabemos que já era respeitado jurisconsulto e aclamado jurista, autor das obras clássicas Direitos de Família (1869) e Direito das Coisas (1877). Com justiça reputado um dos maiores civilistas do Império e dos primeiros anos da República, morreu em 29 de janeiro de 1917, poucos dias após a entrada em vigor do nosso primeiro Código Civil. No ponto, não se poderia deixar de recordar a figura de Lacerda de Almeida, morto em 1943; jurisconsulto bastante prestigiado, deixou-nos como o mais expressivo legado o estudo original e sistemático do Direito Civil no período de 1887 a 1934.  O grande e justificado mérito de Teixeira de Freitas traduz-se, num primeiro momento, na consolidação sistemática e lógica das nossas leis civis até então vigentes (que incluíam não apenas as centenárias e obsoletas Ordenações Filipinas, como também extensa e multifária legislação extravagante, sem falar dos costumes presentes, resultando num acúmulo desordenado e confuso), revelando, já aí, espírito analítico e genialidade sintética, em perfeita combinação. O texto pronto, acrescido de inúmeras e enriquecedoras notas de rodapé, logrou aprovação em dezembro de 1858, tendo sido observado, com o "status" de lei, por várias décadas, até o início de vigência do Código Civil de 1916. Como apreendeu Carvalho de Mendonça (Manoel Inácio), Teixeira de Freitas deu "corpo a um amontoado de leis caóticas; construiu a ordem com a desordem por uma forma originalíssima. Teve pontos de vista inolvidáveis, como a original classificação de direitos de sua Introdução à Consolidação das Leis Civis"4. Adiciono que essa erudita Introdução, com viés crítico, sintetizava os grandes problemas do Direito da época, abarcando doutrina, direito comparado, filosofia, economia e história (supérfluo aduzir que o acesso à informação não era fácil naquele tempo).  Rodrigo Otávio considerou-a, com acerto, uma das "páginas mais notáveis de Direito escritas na América Latina, capaz, por ela só, de fazer a fama de seu autor, como jurisconsulto, não somente pelo conhecimento da lei, mas como possuindo uma ideia construtiva das necessidades jurídicas da sociedade"5.       Seguiu-se, num segundo momento, também por incumbência do Governo imperial, a elaboração do Esboço do Código Civil6, assim designado pelo próprio Teixeira de Freitas. Depois de alguns anos de intenso labor, onde aplicou todo o seu engenho com prejuízo do exercício da advocacia, a tarefa acabou inconclusa (até então, o texto entregue já reunia 4908 artigos) por decisão dele mesmo em novembro de 1866, movido por uma intersecção de fatores: exaustão física e mental, dificuldades financeiras, injustificada lentidão dos trabalhos da Câmara revisora e, sobretudo, a frustração de concretizar, como ideal de perfeição, a ampla unificação do Direito Civil com o Mercantil num só corpo legislativo (Código Geral de Direito Privado)7. Assim se despediu, pesaroso, da mais cara esperança de entregar à Nação seu primeiro Código Civil. No entanto, releva sublinhar que esse monumental trabalho não podia e deveras não foi perdido, tendo sido confessadamente aproveitado, em parte, como todos sabem, por Velez Sarsfield no projeto de Código Civil da Argentina (1869) e, mais tarde, nos estatutos civis do Uruguai e Paraguai, entre outros8.    Nos anos seguintes, depois de mais de uma tentativa malograda de levar adiante o projeto de codificação (com Nabuco de Araújo, Felício dos Santos e Coelho Rodrigues), o Governo da República encarregou, afinal, Clóvis Bevilaqua para a empresa, isso em 1899. Cearense de Viçosa, com aproximados quarenta anos de idade e boa reputação, atuava como um humilde professor de Legislação Comparada da Faculdade de Direito do Recife. Disciplinado e operoso, desincumbiu-se da tarefa em poucos meses, para tanto concorrendo o fato de já ter à sua disposição, como valiosos subsídios, não apenas o Esboço de Teixeira de Freitas, como também, e especialmente, o projeto de Coelho Rodrigues, sem falar dos trabalhos legislativos que precederam o BGB (Código Civil alemão). Decorridos mais de quinze anos de debates nas duas Casas Legislativas e submetido à crítica severa, à frente o então Senador Ruy Barbosa, o projeto foi sancionado em 1916. Muito embora não se apresentasse como modelo para todos copiarem pelo mundo afora, porque já descompassado com a época da promulgação, o certo é que vigorou por quase um século. Seja como for, não é exagero afirmar que todos esses projetos de codificação devem algo a Teixeira de Freitas, inclusive o atual Código Civil. Se nos é possível traçar um paralelo, cabe acrescentar que Teixeira de Freitas viveu e morreu no século XIX, enquanto Clóvis Beviláqua testemunhou o nascimento de um novo século. Ambos de origem nordestina, formaram-se pela célebre Faculdade de Direito do Recife e os dois faleceram, sem quaisquer riquezas, no Rio de Janeiro. Deixaram muitas obras como precioso e imperecível legado, que até hoje podem ser lidas com gosto e proveito. Muito embora com temperamentos diferentes, eram pessoas simples, de modéstia desafetada, desprendidas de vaidades e com boas intenções. Seus dons intelectuais e de caráter eram admirados por todos os lados9. Passaram à história do Direito Privado como os grandes protagonistas da causa da codificação civil nacional. Para concluir, pode ser - e devemos todos esperar que assim seja - que estas páginas suscitem em quem as ler um especial interesse por esses dois juristas, que os estudiosos da história do Direito procuram exaltar na mesma medida em que eles próprios nunca buscaram fama e prestígio. *Almir Gasquez Rufino é advogado. Membro do Ministério Público (Procurador de Justiça) de São Paulo (aposentado). Coautor e organizador, juntamente com Jaques de Camargo Penteado, da obra "Grandes Juristas Brasileiros", editada pela Martins Fontes, SP, em 2003 e 2006 (segunda série). __________ 1 Coube ao professor Ignacio Poveda, da Universidade de São Paulo, a elaboração das três breves biografias. 2 Juristen - Ein Biographisches Lexikon - von der Antike bis zum 20. Jahrhundert, München: Beck, 2001. Os cinco verbetes que nos interessam são de autoria de Wolf Paul, professor em Frankfurt. 3 Ninguém menos que Pontes de Miranda considerava Teixeira de Freitas o "gênio do direito civil na América" no século XIX (Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, RJ, 1981, 2ª ed., § 7º, p. 63).  O "mais genial de nossos jurisconsultos", destacou Miguel Reale na qualidade de supervisor da comissão revisora e elaboradora do Código Civil de 2002 (item 12 da Exposição de Motivos). 4 Do usufruto, do uso e da habitação, Rio de Janeiro: Candido de Oliveira, 1922, p. 17. 5 Teixeira de Freitas e a unidade do Direito Privado, Arquivo Judiciário, 1933, vol. 35, p. 61. 6 Obra gigantesca e original, qualificou Mario G. Losano, à medida que se "distanciava do 'Código Napoleônico' em muitos pontos: inicialmente, antecipando o código civil alemão de 1900, dividia o código civil em uma parte geral e uma parte especial; nesta, introduzia a distinção entre direitos reais e direitos pessoais, chegando a liberalizar as normas jurídicas relativas à escravidão" (Os grandes sistemas jurídicos, São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 298). 7 O que apenas ocorreria muito mais tarde, ao menos em parte, no Código Civil de 2002, com a unificação do Direito das Obrigações. 8 "Muitas disposições que se acham no 'Bürgesliches Gesetzbuch' e no 'Zivilgesetzbuch' acham-se nele, talvez sem que o soubessem os novos legisladores" (Pontes de Miranda, ibidem).  9 Há uma nota final que não podemos deixar passar. Em agosto de 1916, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em sessão comemorativa do centenário do nascimento de Teixeira de Freitas, ao conceder a palavra a Clóvis Bevilaqua, o palestrante, Ruy Barbosa declarou: "Dou a palavra ao maior civilista vivo, para que fale sobre o maior civilista morto".