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Novos Horizontes do Direito Privado

Abordagem de como se apresenta o Direito Privado.

Carlos Alberto Garbi
Os direitos reais pertencem a uma categoria de direitos identificada pelas suas características particulares e entre elas a tipicidade assume enorme importância na regência dos direitos reais. O princípio da tipicidade, de acordo com Arruda Alvim, deve ser entendido "como manifestação específica da legalidade no campo do direito das coisas, i.e., os direitos reais precisam estar normativamente previstos (CC/16, art. 674 e CC/02, art. 1.225); só existem, os direitos reais, como tais, se a situação enquadrar-se rigorosamente na regra de direito - subsumindo-se aos respectivos elementos definitórios - que os prevê".1 Explica José de Oliveira Ascensão que no antigo direito vigorava o princípio do "numerus apertus", o que deu lugar a uma floração de direitos sobre as coisas, especialmente as coisas imóveis, direitos que, muitas vezes, representavam derivações ou divisão da propriedade num domínio eminente e num domínio útil, próprias do feudalismo que estabelecia obrigações de um sujeito em favor do outro. Contra essa situação se rebelou o jusracionalismo e todo o corpo de doutrinas consagradas com a Revolução Francesa, procurando a liberdade da terra contra os vínculos feudais. Conclui, portanto, que: "O numerus clausus inscreve-se, ou pelo menos pode-se inscrever, neste movimento. Abolidos os vínculos feudais e instaurada uma nova ordem dos direitos sobre as coisas, um sistema fechado serve à maravilha para perpetuar as conquistas obtidas: tudo o que não se adaptar ao esquema legislativo é rejeitado. A alegação de que isso era uma maneira anti-histórica de proceder seria de todo indiferente para uma mentalidade racionalista; e a reprovação da coerção legal seria certamente rejeitada com a observação de que esta coerção era o elemento necessário para se obter a liberdade - a liberdade da terra e do seu explorador, desta vez."2 O princípio da tipicidade não está codificado e se dessume razoavelmente do sistema, justificado por razões de ordem pública e econômica. Em termos práticos se pode dizer que o direito real é aquele tipificado na lei, que define por completo o seu conteúdo, fruição, meio de aquisição, transmissão e extinção, e confere ao seu titular prerrogativas que caracterizam a relação de poder (relação potestativa de proveito econômico) sobre a coisa, assegurando-lhe obter diretamente, sem a intervenção de outrem (devedor), o proveito econômico, ou parcela dele (nos casos de direito real limitado, como p. ex. o usufruto), que a coisa pode oferecer. Consequentemente, não é direito real aquela situação ou relação jurídica que não se identifica plenamente com o tipo definido em lei. Vem daí a ideia de numerus clausus dos direitos reais, ou seja, a ideia de que os tipos estão fechados no rol previsto em lei. Esse princípio está na base dos direitos reais da codificação civil francesa há dois séculos, sendo certo que os juristas oitocentistas o consideravam fundamental para estabelecer limite rígido à proliferação dos direitos reais atípicos que pudessem reconstruir a técnica própria do ancien règime contra a propriedade do novo regime, plena, exclusiva, sagrada e oponível a todos, vinculada a um único titular3. Esse princípio servia bem ao sistema liberal e burguês diante do temor que tinha o novo regime, que se instaurou com a Revolução Francesa, da volta ao estado anterior, sobretudo quanto ao desmembramento da propriedade útil e do ressurgimento das técnicas de matriz feudal voltadas a assegurar renda fundiária a classes não produtivas, o que bem se vê nas destacadas palavras de José de Oliveira Ascensão. Evidentemente, o princípio da tipicidade não se justifica nos dias de hoje pelas preocupações burguesas verificadas há mais de duzentos anos. Não se imagina algum risco em nossos dias da volta do regime feudal da propriedade. Mas é certo que a tipicidade dos direitos reais continua a valer nos sistemas ocidentais de tradição romana-germânica. O que justifica ainda a tipicidade dos direitos reais é a segurança das relações jurídicas e o valor econômico que se tem na circulação dos bens. Por isso afirma o jurista italiano Umberto Morello que permanece ainda hoje o risco que a proliferação dos direitos reais pode comportar para a correta circulação dos bens, pois um número excessivo de direitos reais substancialmente novos e de incerto conteúdo não favorece a segurança das contratações e embaraça a alienação dos bens e o recurso ao crédito. Uma eficiente circulação dos bens deve comportar a certeza dos poderes que competem ao proprietário e aos titulares dos direitos reais oponíveis a terceiros. Em caso contrário os adquirentes não saberão determinar, pela deficiente informação sobre os aspectos críticos do negócio, o valor correto do bem e os riscos inerentes à aquisição, assim como o credor não saberá se a garantia que recebe pode assegurar o crédito de modo adequado4. E com razão conclui Morello que o problema não é, portanto, a organização eficiente da propriedade e dos novos direitos reais, mas principalmente a possibilidade de dar informações claras sobre o conteúdo dos direitos reais aos terceiros adquirentes, aos credores e aos interessados, ou seja, o problema hoje é de comunicação. O princípio da tipicidade, portanto, encontra hoje outras razões a justificá-lo e assume especial importância neste cenário a publicidade desses direitos. Compreender a significativa mudança que ocorreu com a evolução da tipicidade nos direitos reais permitirá fazer e projetar a sua correta aplicação. Verifica-se, hoje, nítida tendência em dar maior elasticidade ao princípio da tipicidade. Procura-se superar a rigidez presente na criação e modificação dos tipos de direitos reais com uma interpretação que aproxima certas figuras novas daquelas previstas em lei, embora tecnicamente diversas. Defende-se que o sistema dê acolhida e publicidade a novas figuras de propriedade que vão surgindo, como foi o caso da multipropriedade (já reconhecida), e, se pode lembrar, do leasing imobiliário e das restrições convencionais incidentes sobre lotes e unidades condominiais autônomas. Há outras figuras que igualmente reclamam publicidade, como é o caso da cessão de créditos edificantes, muito comum hoje nos Municípios. Essa tendência é difusa e pode ser encontrada nos principais sistemas do civil law e do common law, como registra Umberto Morello. O jurista italiano bem observa, depois de examinar detidamente as características dos sistemas ocidentais, que o numerus clausus não é entendido em nenhum ordenamento como um princípio idôneo a engessar o sistema exclusivamente nos direitos reais regulados pela lei. É aceita uma certa flexibilidade e, portanto, a possibilidade de reconhecer a legitimidade de um direito, cujos elementos essenciais divergem daqueles previstos na lei para determinado tipo de direito real, como direito real substancialmente novo, mas que se sustenta na prática consolidada e que se apresenta suficientemente claro e definido quanto aos poderes que o seu titular tem sobre a coisa5. E a partir dessa tendência, Morello vê como adequada a definição do princípio como numerus quasi clausus dos direitos reais. O objetivo desta interpretação é dar operatividade ao princípio da tipicidade em face da realidade mutante dos fatos sociais e favorecer a circulação eficiente dos bens, dando a possibilidade aos adquirentes, credores e interessados de conhecer com precisão os direitos oponíveis. Em outras palavras, visa essa tendente interpretação valorizar a informação, sabido que hoje a tipicidade é um problema de publicidade e comunicação. Admitida relativa flexibilidade da tipicidade na criação e modificação das figuras de direitos reais, não se pode imaginar que essa liberdade não encontra limites e que pode ser exercida como ocorre com o direito das obrigações. Embora se possa afirmar que vigora o numerus quasi clausus, lembra Antonio Roman Garcia que a liberdade, como expressão da autonomia da vontade, encontra limites, porque a relação jurídica nova deve reunir objetivamente as características essenciais  próprias da categoria jurídica dos direitos reais, porque impossível aceitar que, fazendo uso dessa liberdade, se possa chegar à configuração de tipos ambíguos ou confusos, que impeçam, na prática, fixar com exatidão e alcance os próprios direitos constituídos, pondo em risco a necessária segurança do tráfego jurídico.6 A propósito desta mudança importante na forma de ver a tipicidade dos direitos reais com alguma flexibilidade, vale lembrar o caso Maison de Poésie, julgado pela Corte de Cassação francesa em 2012. Uma Fundação (A Maison de Poésie) vendeu um imóvel em 1932 e estabeleceu uma cláusula, segundo a qual a vendedora poderia fazer uso de uma parte do imóvel vendido.  Esse direito somente poderia ser extinto se o adquirente colocasse à disposição da vendedora, gratuitamente, um outro imóvel com a mesma característica. A adquirente demandou em juízo a extinção daquele direito, sustentando que em favor de pessoa jurídica o direito de uso não pode ultrapassar mais de 30 anos, como ocorre com o nosso usufruto (art. 1.410, III, CC). A Corte de Apelação de Paris acolheu a pretensão do adquirente, afirmando que não havia um direito real típico, mas a Corte de Cassação reformou a sentença para manter o direito da vendedora, afirmando que, respeitada a ordem pública, o proprietário pode criar direito de fruição (gozo) especial sobre o bem. Com esse julgamento estabeleceu-se um debate na europa sobre numerus clausus em Direitos Reais. A rigor, é difícil tipificar como Direito Real formas especiais de fruição ou gozo não previstas em lei. No caso, o direito recaiu sobre bem ainda não existente, mas a Corte de Cassação reconheceu esse direito real especial de gozo, atípico, e assegurou o seu exercício perpétuo, como se fora uma parcela do direito de propriedade do adquirente, que foi retido pela alienante. Pouco mais de dois anos daquele julgamento, surgiu um novo caso na França. Uma empresa cedeu o uso de um transformador de energia elétrica sem determinar o termo final desta cessão, que muito se assemelhava ao direito especial de gozo do caso anterior. Depois de trinta anos, a empresa titular do transformador pediu a sua restituição. O juiz aplicou o entendimento da sentença Maison de Poésie e negou a pretensão. A Corte de Cassação, neste caso, ao contrário do outro, entendeu que, à falta de um termo final, o direito se extingue em trinta anos. A decisão do caso Maison de Poésie animou a doutrina francesa e os meios acadêmicos na europa quanto à possibilidade de criação e reconhecimento de novos tipos de direitos reais de gozo. No entanto, logo a Corte de Cassação francesa mudou o seu entendimento, o que levou o jurista italiano Ermanno Calzolaio, que escreveu a respeito dessas decisões, observar que no momento em que se discute a tipicidade dos direitos reais adequada aos tempos atuais, se verifica o quanto ainda são resistentes as ideias do passado.7 Cabe lembrar que a tipicidade dos fatos inscritíveis no registro não se identifica com a tipicidade dos direitos reais.8 Como visto, a tipicidade dos direitos reais se refere basicamente aos tipos e respectivo conteúdo dos direitos previstos em lei, em rol taxativo (numerus clausus), enquanto a tipicidade registral se refere aos fatos típicos registráveis, em rol que se pode afirmar exemplificativo ou aberto. Aqui existe uma diferença conceitual, como afirma Kioitsi Chicuta, "e que tem causado inúmeras confusões, ou seja, nem todos os atos de registro destinam-se a criar direitos reais. Alguns, por exemplo, como o registro do contrato de locação onde consignada cláusula de vigência em caso de alienação (art. 167, I, n. 3, da lei 6.015/73), geram apenas direitos pessoais com efeito real. Nesse campo, sim, até mesmo para que a publicidade de situação jurídica de imóvel seja a mais ampla e correta possível, é possível alargamento do entendimento hoje vigorante. [...] Muitos confundem a taxatividade dos direitos reais com a taxatividade dos atos inscritíveis no Registro de Imóveis. Diariamente, nega-se a prática de atos de registro e ou de averbação sob o argumento de que não estão expressamente previstos em lei, afirmando alguns que tal praxe causa lesão a terceiros que, eventualmente, poderiam ser alertados com a inserção de fatos relevantes e vinculados ao imóvel"9. O direito registral não opera na seleção dos atos registráveis, porque o seu verdadeiro campo de atuação é o procedimento registral. Não é a quantidade dos atos suscetíveis de registro que traz a rigidez de um sistema de segurança jurídica. Também não se registram direitos, mas sim fatos jurídicos para publicar uma situação jurídica. Compete à ciência do direito "a elaboração e ordenamento de toda a matéria relativa aos direitos reais sobre bens imóveis, tanto no ângulo de sua conformação substantiva, quanto do de sua configuração formal, quer dizer, o tráfico jurídico daqueles tutelados pelo instituto do registro da propriedade"10. Os fins do direito imobiliário são alcançados através de um instrumento técnico, que é o registro, e a publicidade por esse conferida. A dificuldade de distinção entre a tipicidade dos direitos reais e a tipicidade dos fatos inscritíveis tem levado o intérprete e o operador do sistema registral a aceitar passivamente a ideia de que existe igualmente uma rigorosa tipicidade dos fatos inscritíveis, e se nega registro de títulos simplesmente porque não são encontrados no rol da Lei de Registros Públicos. Esta cômoda solução que se adota em nome da segurança jurídica afasta cada vez mais o registro da realidade e o faz perder o seu relevante papel de oferecer informação segura para orientar as relações jurídicas. Há meios adequados e efetivos para vencer com segurança esta conservadora e defensiva postura dos registradores e juízes brasileiros que se abrigam na letra da lei para não correr o risco da inovação. A jurisprudência e a doutrina têm papel importante na definição dos tipos de direitos reais e dos fatos inscritíveis, mas tem especial relevo nesse sentido a dinâmica atividade das Corregedorias na atualização das Normas de Serviço e nas decisões administrativas orientadoras da atividade notarial e registral. A lei 13.097/2015 trouxe uma série de disposições que valorizam as informações do registro, em favor do princípio da concentração da matrícula e no sentido desse movimento de flexibilização da rigidez dos direitos reais. Foi um bom sinal. Que venham os novos tempos. __________ 1 José Manoel de Arruda Alvim Neto. Princípios Gerais do Direito das Coisas: Tentativa de Sistematização. Atualidades de Direito Civil.  V. I. Coord. Angélica Arruda Alvim e Everaldo Augusto Cambler. Curitiba : Juruá, 2006, p. 178. 2 José de Oliveira Ascensão. A Tipicidade dos Direitos Reais. Lisboa : Minerva, 1968, p. 74. 3 Umberto Morello. Trattato dei Diritti Reali. Vol I. Diretto da Antonio Gambaro e Umberto Morello, Milano : Giuffrè Editore, 2008, p. 67-69. 4 Umberto Morello, op. cit., p. 75-76. 5 Op. cit., p. 204. 6 Antonio Roman Garcia. La Tipicidad en los Derechos Reales. Editorial Montecorvo, p. 75. 7 La Tipicità dei Diritti Reali: spunti per uma comparazione. Rivista di Diritto Civile. Cedam. Anno LXII - N. 4 (2016), 1080/1095. 8 Para o aprofundamento do tema, me permito recomendar ao leitor, de minha autoria e de Carlos Alberto Garbi Junior, Tipicidade dos fatos inscritíveis, publicado in "Direito Notarial e Registral - Homenagem às Varas de Registros Públicos da Comarca de São Paulo". Coord. Tânia Mara Ahuali e Marcelo Benacchio. São Paulo : Editora Quartier Latin, 2016. 9 Kioitsi Chicuta. Os Direitos Reais e o Novo Código Civil - A Locação e o Registro de Imóveis. In "O Novo Código Civil e o Registro de Imóveis", sob coordenação de Ulisses da Silva, ed. Sergio Antonio Fabris, 2004, p. 100-101. 10 Angel Cristóbal Montes. Direito imobiliário registral. Trad. de Francisco Tost - Porto Alegre: Sergio Francisco Fabris, 2005, p. 1.
Como é sabido, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, tem forte impacto em todas as Relações Privadas. São inúmeras as inserções na Tríade Civilística, assim entendia como Contrato, Família e Propriedade. Todavia, o presente artigo tem como objetivo entender suas interferências junto à atividade condominial, em especial a Responsabilidade Civil, ainda que de forma sintética, tendo em vista a amplitude de entrelaçamentos jurídicos, contábeis e sociais que envolvem tal fenômeno social. Como premissa inicial, se faz necessário entender alguns pontos centrais da citada lei, para somente após verificar seus possíveis pontos de interação. Desta forma, inegavelmente a lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade (artigos 1° e 3° da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais). Seu âmbito de aplicação é amplo e abrange qualquer operação de tratamento de dados realizada por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, bem como tem por objeto claramente dados pessoais que envolvam informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável, o que nos parece fatalmente atingir as relações condominiais. Dentre as formas de obtenção dos dados, ou seja, conforme referida lei, para que seja possível o tratamento de dados pessoais, tal fato somente poderá ocorrer, dentre outras formas: para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória, quando necessário para a execução de contrato ou de procedimentos preliminares relacionados a contrato do qual seja parte o titular, a pedido do titular dos dados pelo controlador ou mediante o fornecimento de consentimento pelo titular. Ao que se apresenta, para a devida e viável execução da administração do condomínio pelo sindico ou do gestor condominial, a utilização dos dados se faz necessária, até mesmo sob pena de ser responsabilizado civil, penal e admistrativamente. Tanto é assim, que imagine tentar realizar qualquer um dos deveres previstos no artigo 1.348 do CC sem os dados adequados. Somente pode haver, por exemplo, cobranças indevidas ou até mesmo a nulidade de assembleia por ausência de convocação adequada de todas as unidades autônomas. Porém, não é só, há um grande entrelaço de contratos e relações intersubjetivas que envolvem tratamentos de dados não só de relações diretas entre administrador e condôminos, mas também com terceiros, tendo em vista a relação de controle de acessos junto às portarias ou até contato com possíveis promitentes compradores de imóveis das unidades autônomas. Como atender as diretrizes legais presentes na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais? Bem, esse é um ponto sensível da referida legislação, pois, não obstante existirem critérios e parâmetros disponíveis na própria lei, a questão não se resolve somente por ferramentas jurídicas, mas também e especialmente com a utilização de ferramentas da área da Tecnologia da Informação, ou seja, o conjunto de todas as soluções oriundas de recursos de computação que visam à produção, ao armazenamento, à transmissão, ao acesso, à segurança e ao uso das informações. Como é sabido, os processos contábeis, fiscais e administrativos cada vez são mais automatizados, com o uso de ferramentas tecnológicas,  e, assim, todos os programas, pelo que se observa na referida legislação, devem estar preparados para essa nova demanda. Por esse motivo, a interdisciplinaridade quando da consultoria para implantação desses processos se faz necessária ou, no mínimo, prudente. Retomando especificadamente os comandos normativos jurídicos, nos termos do artigo 9° da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, o titular dos dados tem direito ao acesso facilitado aos mesmos, que deverão ser disponibilizadas de forma clara, adequada e ostensiva, ou seja, atender ao princípio do livre acesso. Além do livre acesso, há clara disposição normativa (artigo 18° da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) no sentido de que o titular dos dados pessoais tem um amplo direito de obter do controlador a possibilidade de manuseio dos dados, dentre eles, solicitar a correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados. Assim, além do acesso amplo, há também a nítida gestão dos dados. Por fim, porém não menos importante, quanto aos efeitos jurídicos da Responsabilidade Civil, tem-se uma seção especialmente dedicada ao tema entre os artigos 42 e 45, bem como o artigo 52 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Podemos dividir didaticamente tal seção em 4 frentes: a) efetiva reparação do dano, verificando-se hipóteses de solidariedade entre operadores e controladores de dados que atuam com violação à legislação de proteção de dados pessoais; b) formas de rompimento do nexo de causalidade, quando os agentes provarem que não realizaram o tratamento de dados pessoais que lhes é atribuído; que, embora tenham realizado o tratamento de dados pessoais que lhes é atribuído, não houve violação à legislação de proteção de dados; ou que o dano é decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiros; c) as hipóteses de violação do direito do titular no âmbito das relações de consumo permanecem sujeitas às regras de responsabilidade previstas na legislação pertinente; d) não obstante ser uma sanção administrativa, mas que repercute na espera patrimonial, deve ser registrado que, nos termos do artigo 52 da lei, se faz possível a aplicação de uma multa de até 2% (dois por cento) do faturamento da pessoa jurídica de direito privado, grupo ou conglomerado no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, limitada, no total, a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) por infração. Diante de todo o exposto, pode ser percebido que a questão é de fundamental importância para a ordem civilista e merece o devido cuidado dos operadores dessa riquíssima atividade condominial, que comporta várias facetas junto à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. _________ *Cesar Calo Peghini é doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Especialista em Direito do Consumidor na experiência do Tribunal de Justiça da União Europeia e na Jurisprudência Espanhola, pela Universidade de Castilla-La Mancha, em Toledo, Espanha. Especialista em Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD).   
Paritário, do latim paritas, que significa semelhança, paridade, qualidade do que é par e igual, é expressão nova no vocabulário do jurista e na classificação dos contratos. Foi introduzida no Código Civil pelo art. 421-A, com a redação que lhe deu a lei 12.874/2019, que Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. A referência aos contratos paritários já era encontrada na doutrina, inclusive estrangeira, e na jurisprudência, e parece que ganhou foro quando surgiu o Código Civil de 2002, com a unificação do Direito Privado, com exceção das relações de consumo. O Direito Contratual passou a olhar para os Códigos (Civil e Consumidor) e ver dois tipos de contratos, dividindo, ou separando, o universo contratual entre os contratos clássicos e liberais, que se passou a identificar como paritários, e os contratos da relação de consumo. Os contratos paritários seriam aqueles em que as partes se apresentam em condições de igualdade, são pares, e as negociações entre elas se dão com liberdade e no pleno exercício da mais ampla autonomia privada, resultando em um contrato que reflete mais fielmente a vontade dos contratantes. De outra parte, as relações contratuais de consumo, caracterizadas pela adesão, se dão entre partes que se apresentam de forma assimétrica, não em razão propriamente da diferença econômica entre elas, mas em razão do déficit informacional, que caracteriza especialmente a vulnerabilidade do consumidor. Esta ideia da existência de duas realidades contratuais, paritária e não paritária (de consumo), foi reforçada equivocadamente pela redação que se deu ao art. 421-A, do Código Civil: "Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção...". O Código Civil, a partir desta inovação, colocou os contratos civis e empresariais, pelo gênero, no mesmo plano jurídico, como paritários, presumindo-se em relação a ambos a simetria de forças que inibe a intervenção judicial e fortalece a obrigatoriedade das declarações das partes. Esta intervenção no Código Civil animou esse equivocado entendimento, que era conhecido desde a unificação do Direito Privado, no sentido de colocar todas as realidades contratuais nos dois modelos de regime. De um lado, o regime que valoriza a autonomia contratual e a intervenção mínima do Estado nessa relação (contratos civis e empresariais), e, de outro lado, o regime que reconhece a assimetria de forças e que promove a intervenção máxima na relação das partes (contrato da relação de consumo). Este reducionismo não permite identificar com liberdade as relações contratuais que sofrem interferências decorrentes da dependência econômica e da deficiente informação, verdadeira causa de assimetria (ao lado da assimetria de poder de negociação e de poder de imposição), o que também se verifica nos contratos civis e empresariais. Por conta desta visão parcial das realidades contratuais, podemos ser levados a entender que pela qualidade das partes, e não pelo conteúdo e natureza contratual, existe uma relação contratual entre pares, semelhantes e iguais, quando nem sempre isto ocorre. Na jurisprudência se verifica facilmente o reflexo dessa polarização. Quando não se identifica no contrato uma relação de consumo, ele é reputado paritário, e neste caso não se pode colocar em dúvida o cumprimento das declarações das partes, aplicando-se interpretação infensa à intervenção corretiva de abusos e desequilíbrios, deixando de dar valor à boa-fé objetiva, à função social do contrato e ao equilíbrio das prestações. Pode-se observar de algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça que essa interpretação é comum. No julgamento de ação revisional fundada na imprevisão, da compra e venda de fertilizantes, sujeita à variação cambial, afirmou-se na ementa do julgado: "Não envolvendo relação de consumo, o contrato objeto do pedido de revisão, mas, sim, revelando-se paritário, convém que se submetam as partes aos termos do acordo celebrado, não decorrendo da variação cambial verificada base para a revisão do negócio entabulado" (AgRg no REsp n. 1.518.605-MT, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe. 12.04.2016). Em outro julgado do Superior Tribunal de Justiça, se decidiu que a cláusula resolutiva expressa em contrato de promessa de compra e venda não opera efeitos automáticos, tantos nos contratos de adesão, como nos contratos paritários, indicando também a ideia de que existem apenas duas categorias de contratos, e nesse caso de um lado os paritários e de outro os de adesão. Na ementa do julgado se consignou o seguinte: "Esclareça-se, quanto ao tema, que a jurisprudência desta Corte Superior foi firmada não apenas com base em situações nas quais houve a pactuação de contratos de adesão, havendo precedentes ancorados em casos que versam sobre contratos paritários." (AgInt no AgREsp n. 1.170.673-RS, rel. Min. Marco Aurélio Belizze, DJe. 18.05.2018). O Superior Tribunal de Justiça decidiu, em outro caso, pela validade da eleição de foro estrangeiro em contrato firmado por empresa de artigos esportivos e jogador de futebol, considerando a relação simétrica e paritária, e não uma relação de consumo, como se houvesse somente duas realidades. Na ementa do julgado se assentou o seguinte: "Em sendo paritária e, assim, simétrica a relação negocial estabelecida entre conhecido jogador de futebol e empresa multinacional do ramo dos artigos esportivos, contrato cujo objeto, ademais, relaciona-se à cessão dos direitos de uso de imagem do atleta, não é possível qualificá-la como relação de consumo para efeito de incidência das normas do Código de Defesa do Consumidor." (REsp n. 1.518.604-SP, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe., 29.03.2016). Neste último caso, a decisão afasta a relação de consumo e conclui: "Parte-se, assim, da premissa de que o contrato é paritário ... A relação é, assim, disciplinada pelas normas de Direito Civil, não se tendo, todavia, acerca da cláusula de eleição de foro, manifestado afronta a qualquer dispositivo de lei que não seja o art. 101 do CDC, razão por que estou em negar provimento ao recurso no que respeita". Não se questiona aqui o acerto destas decisões. A nossa observação recai sobre a argumentação e a forma de pensar as questões que se apresentam no Direito Contratual. A partir do entendimento de que há somente duas realidades contratuais, o jurista poderá simplesmente decidir por um regime ou outro, e não atentar para situações diversas. A ideia de que pode existir "paridade" nos contratos, no sentido de que as partes são "pares" e "iguais", não nos parece a mais adequada. Não há, evidentemente, paridade entre o jogador de futebol e a poderosa empresa de artigos esportivos e patrocinadora dos grandes eventos do esporte mundial. Nem parece que a expressão é utilizada nesse sentido nas decisões judiciais. Há uma questão semântica no seu uso que pode dificultar a identificação de abusos e de dependência econômica nas relações contratuais, assim como pode acolher desequilíbrios inaceitáveis. Parece também equivocado contrastar o chamado contrato paritário com o contrato de adesão, porque o resultado poderá igualmente indicar que o contrato é paritário quando não é de adesão. A cláusula de eleição de foro ou de compromisso arbitral em contratos entre empresas, que apresentam posição de força diversa - assimétricas  (como pode ocorrer, por exemplo, nos contratos de franquia, nos contatos de distribuição, nos contratos de concessão comercial e nos contratos de representação comercial), pode representar abuso, quando incluídas com o propósito de inibir a parte mais fraca de demandar contra a outra. Olhando para essa relação interempresarial com a visão binária das relações contratuais, a solução será pela validade desta cláusula, porque se a relação não é de consumo, o contrato deve ser entendido como paritário. Há algum tempo escrevi sobre o Terzo Contratto1, expressão cunhada pelo italiano Roberto Pardolesi2 no prefácio do livro de Giuseppe Colangelo3, que sustenta a existência de uma "terra do meio" entre o contrato clássico liberal e o contrato da relação de consumo, passando-se a observar que a contratação entre duas empresas, quando uma delas é dependente economicamente da outra, reflete uma categoria de contrato que não se identifica com o contrato clássico (primeiro contrato), aquele caracterizado pela presença de partes igualmente informadas e com livre capacidade de escolha. Essa contratação também não se identifica com o contrato de consumo (segundo contrato), que é marcado pela presumida vulnerabilidade de uma das partes em razão essencialmente da deficiência de informação. Cuida-se, de acordo com Pardolesi, de uma realidade diversa - um terceiro contrato (il terzo contrato) -, para a qual o regime dualista apontado não oferece resposta adequada. É um novo personagem, afirma, que surge no horizonte e que deve ser visto muito proximamente4, como parte da fenomenologia e disciplina atual dos contratos entre empresas5. Em geral a doutrina hoje classifica os contratos, de forma unitária, a despeito da variação designativa, em contratos business-to-business (B2B) e business-to-consumer (B2C), contratos negociados e não negociados, contratos individuais e estandardizados, contratos paritários e não paritários, e contratos com simetria ou não de poderes, revelando, fundamentalmente, a distinção entre a contratação individual e a contratação de massa, bem como a distinção entre a contração negociada e a contração não negociada6. Bem anota Giuseppe Amadio que a classificação referida, assim como a norma que regula a respectiva contratação, tem como objeto de observação a atividade (não somente a posição ou o papel das partes no negócio, quanto à modalidade do exercício da autonomia negocial) e a efetividade da contratação, considerando no plano normativo o confronto entre o contrato de direito comum e o contrato de consumo. Do ponto de vista teórico, a distinção se faz entre o contrato que é celebrado com ou sem acordo de vontades7. A classificação feita pela doutrina nestes termos passa em boa medida pela forma de exercício da autonomia privada e se reflete na dualidade de tratamento da tutela contratual. Esse dualismo, entre contrato de consumo e contrato de direito comum, revela que a lei labora: (i) de um lado, com um modelo de contrato inteiramente negociado, entre partes que se encontram em condição de igualdade, e que reclama o máximo de liberdade e o mínimo de intervenção do legislador e do Juiz, em favor da autonomia privada; (ii) de outro lado, com um contrato (de consumo) no qual se verifica uma disparidade de instrumentos e de informações, não negociado plenamente e marcado pela assimetria de forças, que reclama o máximo de controle do legislador, especialmente no momento formativo, e admite em grau maior a intervenção judicial. Quando se unificou o direito privado, o que ocorreu no Brasil com o Código Civil de 2002, o regime geral dos contratos (empresariais ou não) também foi unificado. Destacou-se desse regime geral a contratação nas relações de consumo, o que polarizou o direito contratual em duas categoriais bem definidas. Sucede que a afeição do jurista à categorização do direito o levou a perder a percepção para outras realidades não compreendias nos modelos conhecidos, o que se refletiu no paradigma do direito contratual orientador da tutela adequada. Se alguma restrição se pode fazer no campo acadêmico a uma classificação dogmática do contrato como supõe a doutrina de Pardolesi8 (embora não é nesse sentido exato o seu pensamento), é inegável o fato de que essa doutrina bem identificou a existência de realidades contratuais estranhas ao binário regime jurídico que se tem aplicado a todas elas, indistintamente. Esses dois polos definidos no direito contratual não alcançam, seguramente, todas as categoriais contratuais que, em razão das suas especificidades, não se ajustam a esse dualismo9. Esse reducionismo das realidades contratuais tem um efeito perverso na tutela que exigem os desequilíbrios entre as vantagens e benefícios decorrentes da relação contratual, sobre a qual deve se concentrar a visão do jurista. Essa forma de ver e pensar o Direito Contratual, que trabalha somente com uma parte da sua fenomenologia, pode causar o equivocado entendimento, para além de outras distorções, de que, como bem anotou Anderson Schreiber, "os contratos empresariais representariam, desse modo, a última praia do liberalismo jurídico, um setor em que a liberdade das partes é tendencionalmente plena e a vontade dos contratantes merecem mais proteção que os valores solidaristas que norteiam a ordem jurídica brasileira. Tal abordagem exprime grave equívoco"10. __________ 1 Il Terzo  Contratto - Surge uma nova categoria de contratos empresariais? Publicado em 30 de julho de 2018, em três partes. 2 Na página eletrônica de LUISS - Università Guido Carli,  pode ser encontrado o link para  "Una postilla sul Terzo Contrato", de Roberto Pardolesi, ou diretamente aqui. 3 L' abuso di dipendenza economica tra disciplina della concorrenza e diritto dei contratti. Un'analisi economica e comparata. Editora Giappichelli, 2004. 4 Gregorio Gitti e Gianroberto Villa. Il Terzo Contratto. (Introduzione). Ed. il Mulino, 2008, p. 7. 5 Vale registrar a observação de Rita Marsico: "Trattasi di una recentissima fattispecie dai contenuti normativi ed applicativi ancora incerti e che non ne garantiscono, ad ora, portata dogmatica, nonostante stia acquisendo sempre maggiori consensi nel panorama civilistico" (Le nuove frontiere della dottrina civilistica: il terzo contratto. Mesmo quando não invocada a nova figura, a doutrina reconhece a existência de um vazio na hipótese de um contrato entre empresários. Ernesto Capobianco, justifica esse vazio pelo fato de que, diante de uma relação contratual entre empresas, sujeitos profissionalmente organizados e melhores árbitros dos próprios interesses, não haveria de se imaginar necessária a intromissão judicial para decidir sobre a justiça do contrato (Lezioni sul contrato. G. Giappichelli Editore - Torino, 2014, p. 172). 6 Giusepe Amadio. Il terzo contratto. Il problema. Op. cit., p. 10. 7 Op. cit., p. 10-11. 8 Vincenzo Roppo prefere colocar todos os contratos os assimétricos, seja decorrente de uma relação de consumo, ou de uma relação entre empresas, quando uma é dominante e outra dependente, num único e homogêneo paradigma: contrato assimétrico. Todavia, admite rever essa posição se encontrar diferenças de paradigma normativo entre os contratos de relação de consumo e os contratos entre empresas a justificar uma autônoma categoria de terzo contratto. (Il contrato del duemila. Terza Edizione. Torino : G.Giappichelli Editore, p.120-124). Também Guido Alpa prefere falar em contrato assimétrico em geral, quando a parte é exposta ao poder econômico da outra (Le stagioni del contratto. Bologna : Il Mulino, 2012, p. 142-143). 9 Bem a propósito a precisa observação de Eros Roberto Grau e Paula Forgioni no sentido de que "o contrato não é um instituto único, porém um feixe de institutos jurídicos (os contratos)", de forma que as regras aplicáveis aos contratos são diferentes (O Estado, a empresa e o contrato. Malheiros Editores, 2005, p. 16). 10 Manual de direito civil contemporâneo. São Paulo : Saraiva Educação, 2018, p. 441.
quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Culpa civil, bem comum e doação de alimentos

Introdução Somos uma República que se fundamenta no bem comum. Na dignidade da pessoa humana, na provisão das necessidades dela e numa ordem jurídica justa, estável e segura. Essa República, assim alicerçada, constitui um Estado Democrático de Direito, um governo do povo, pelo povo e para o povo, uma democracia vivificada pela Justiça. A dignidade é um atributo da pessoa humana1; é o atributo que, pelo reconhecimento da transcendência daquela, trata-a como princípio, sujeito e fim de todas as instituições sociais, que devem ser ordenadas para a consecução da felicidade humana2, outorgando ao homem todos os direitos, todas as garantias e toda a estrutura operacional do Estado, para ensejar aquela plena realização de cada um, segundo as potencialidades individuais3. Trata-se da essência, da substância do próprio Estado Democrático de Direito. Sem a preservação da inata dignidade do ser humano não há Estado, Democracia e Direito. Restaria a barbárie. Formado por espírito e matéria, o ser humano tem concretas e variadas necessidades intelectuais, afetivas, morais, corporais, e o Estado se legitima com o planejamento e a execução de políticas públicas econômicas e sociais que satisfaçam aquelas, em igualdade, e a ampliação da satisfação das mesmas em conformidade com o desenvolvimento coletivo. Da concepção ao nascer e respirar ar puro4 até o último suspiro e o repouso num pedaço de chão5, passando pelo comer, beber e sonhar, a pessoa humana tem essas necessidades que o Estado deve satisfazer. Este ser, social por natureza, com necessidades que geram dever público e obrigação privada, precisa de uma ordem jurídica - Estado de Direito -, justa, estável e segura. Justa, decorrente da atribuição do devido a cada qual. Estável, invariável em seu núcleo - vida, liberdade, igualdade - e progredindo para os direitos de terceira geração. Segura, protegida pelas garantias e direitos individuais, e pela efetividade deles. Fontes A República, por se fundamentar no bem comum e constituir num Estado Democrático de Direito, depende de três coisas para alcançar o seu fim: a doutrina, a norma e a jurisprudência. Fontes do direito ou não, elas constituem as mais importantes bases da ordem jurídica justa, estável e segura. A doutrina é o resultado da produção científica dos juristas, o estudo que fazem sobre a origem do Direito, as suas divisões e classificações, as suas definições, os seus conceitos, as sistematizações que empreendem, as críticas e sugestões sobre as normas e as decisões administrativas e judiciais, iluminando o caminho dos legisladores e dos julgadores. Ao exarar opinião comum sobre certa matéria, essa obra assume especial relevância na compreensão do Direito e na promoção da Justiça. A norma é um preceito geral e abstrato, dotado de coercibilidade, compreendendo o resultado da produção legislativa, desde emendas constitucionais até resoluções, passando pela lei complementar, delegada ou provisória (art. 59, incs. I a VII, Constituição da República). A jurisprudência é o resultado da atividade-fim do poder jurisdicional. O conjunto das decisões dos tribunais que, na medida em que se são harmônicas entre si e caminhem na mesma direção, assumem um papel mais importante na constituição da ordem jurídica justa, estável e segura. Outorgam segurança para o exercício dos direitos das pessoas físicas e jurídicas que, na dinâmica da vida, precisam conhecer e, na medida do possível, prever o alcance e a aceitação de seus atos e omissões perante a coletividade e às autoridades. Inteligência alguma, artificial ou não, suprimirá a dicção do direito aplicável aos casos concretos, pois os seres humanos, com a sua inteligência e vontade, voltam-se ao aperfeiçoamento constante, operando com criatividade e consciência de si e do próximo6. Ao lado dos princípios gerais do direito, da analogia e dos usos e costumes (art. 4º, Lei de Introdução ao Código Civil), a doutrina, a lei e a jurisprudência formam o conteúdo básico da ordem jurídica e de sua qualidade dependem a justiça, a estabilidade e a segurança dessa disposição conveniente das coisas que, por sua vez, ao lado da provisão das necessidades do ser humano e da preservação de sua dignidade, podem constituir uma sociedade livre, justa e solidária, um efetivo Estado Democrático de Direito ou um governo absolutista, assumido ou disfarçado. Esses pontos são vitais para o Direito e incidem direta e concretamente da vida de cada cidadão, posto que é regido pelas normas, que devem obedecer um processo legislativo moderno, serem iluminadas pela doutrina e bem interpretadas pelos julgadores7. Culpa civil O compromisso com o bem comum e a importância da doutrina, da lei e da jurisprudência, podem ser ilustradas com uma breve incursão sobre a culpa em direito civil. Uma das mais importantes matérias do Direito Privado é a responsabilidade civil, pois a vida em sociedade gera danos que devem ser reparados com justiça para que se mantenha a ordem jurídica justa, estável e segura, a paz social. A disciplina jurídica dessa reparação foi se desenvolvendo ao longo da história, recebendo a contribuição de grandes juristas, aplicada em inúmeros julgamentos e integrando os mais elaborados Códigos de Leis. Essa dedicação à obrigação de indenizar formou um verdadeiro tesouro que a civilização precisa manter, aprimorar e transmitir às novas gerações. "Não é novidade que as leis anteriores sejam aproveitadas pelas posteriores"8. Suprimir esse legado implica  desastrosa involução. A ação, o dano e o nexo causal constituem os três pressupostos da responsabilidade civil. Os seus fundamentos são a culpa e o risco. A responsabilidade subjetiva baseia-se na culpa em sentido amplo: dolo e culpa em sentido estrito (imprudência, negligência e imperícia). A responsabilidade objetiva funda-se no risco, não importando a culpa, bastando os pressupostos: ação, dano e nexo causal. A responsabilidade subjetiva é a teoria clássica, tradicional. A culpa pode ser lata, leve e levíssima. Contratual ou extracontratual (aquiliana). In eligendo (escolha do representante) ou in vigilando (fiscalização do representante). Por ação ou por omissão. In custodiendo (dever de bem guardar). Em concreto ou em abstrato. O atual Código Civil, ao tratar do ato ilícito, dispõe que aquele "que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito" (art. 186)9 e quem, por ato ilícito, "causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo" (art. 927, Código Civil). A culpa extra contratual é subjetiva. O prejudicado tem que provar a culpa do causador do dano. Na culpa contratual, esta resulta do próprio descumprimento do contrato. Deve ser verificada a imputabilidade do causador do dano, a sua vontade apta à compreensão da conduta, pois se faltar essa consciência, a responsabilidade poderá ser do seu representante legal. A regra geral é a responsabilidade por culpa. A responsabilidade objetiva implica a responsabilidade sem culpa do autor. Indeniza-se o prejuízo causado pela ação lesiva a partir da presença do dano e do nexo causal entre aquele e esta. Prevalece a teoria do risco criado pela atividade do agente que, ao desempenhá-la e colocar os demais em situação de risco, tem que reparar quem sofre dano provocado por ela. Sustenta o dever de indenizar nas relações de consumo, nas questões ambientais, na responsabilidade civil do Estado, nos acidentes de trabalho, entre diversas outras situações em que, a proteção dos bens jurídicos especialmente relevantes para o bem comum, a vulnerabilidade do prejudicado, a superioridade do criador do risco e outras circunstâncias, recomenda que se prescinda da apuração de culpa do autor do fato, sob pena de impossibilitar a reparação do prejuízo sofrido. No atual estágio de nosso Direito, sempre em evolução10, harmoniza-se a aplicação dessas teorias. A subjetiva é o padrão e, nas situações acima apontadas, vige a teoria objetiva11. A comum opinião dos doutores costuma inspirar as codificações e as principais normas que regem a responsabilidade civil. Os Tribunais Superiores, em harmonia com essa antiga tradição jurídica, formulam diversas súmulas para disciplinar as lides submetidas à jurisdição civil12. Responsabilidade civil e doação de alimentos Incidindo nas relações humanas, a responsabilidade civil tem aplicação vasta. Há um problema vital que pode ilustrar a importância de sua cognição, observância de seus princípios e cooperação para o seu desenvolvimento. Trata-se da produção, conservação e distribuição de alimentos. Obra essencial para a pessoa humana, especialmente em período de calamidade pública, com efeitos intensos e ainda não totalmente apurados, na vida, na saúde, na educação e na economia do universo. Projeta-se que está crescendo o número de famintos e se premiam os estudos para a solução do problema13. Nesse contexto, chamam a atenção uma lei recente14 e um Projeto de Lei em tramitação no Senado Federal15. Ambas versando a doação de alimentos. Naquela, há expresso comando de que essa doação não configura relação de consumo (art. 2º, parágrafo único) e haverá responsabilidade do doador somente se agir com dolo (art. 3º). Neste, propõe-se que a doação configura exceção ao regime de responsabilidade civil objetiva e afasta expressamente a incidência do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor. Não implica relação de consumo. A responsabilidade civil depende de dolo (arts. 9º, 11º e 12º). Por evidência, o conteúdo atual da responsabilidade civil, como a consagraram os povos cultos, ao longo dos séculos, não é estático. Pode e deve ser aperfeiçoado. O sistema jurídico deve ser observado em sua globalidade. Ao Poder Legislativo compete editar normas que contribuam para o bem comum. As pessoas, físicas e jurídicas, devem observar essas regras. Os conflitos devem ser resolvidos pelo Poder Judiciário, com base nas leis, na doutrina e nos precedentes dos tribunais. Romper com a tradição e se desviar radicalmente de monumento jurídico tão importante como a construção milenar da responsabilidade civil, parece não contribuir para a civilização dos povos. A população precisa amar e respeitar os seus juízes. Não se pode desconfiar deles, subtrair-lhes o poder de distribuir justiça, violar a separação de poderes. Conviver é preciso. Alimentados. Não se precisaria de comandos legais para fazer o bem ao próximo. Muito menos, porque o próximo está faminto, isentar de responsabilidade objetiva o doador, por evidência dotado do poder de controle geral de sua conduta. A doação de alimento pressupõe a entrega de produto saudável e não deteriorado. A doação de alimento estragado implica a responsabilidade civil objetiva do doador. Viver é um risco. Conviver humaniza. Humanizar é progredir. O progresso é coletivo e universal. A proteção dos bens jurídicos especialmente relevantes para o bem comum, a vulnerabilidade do faminto, a superioridade do doador, o seu controle sobre essa atividade humanística e as demais circunstâncias desse benefício tão importante para a sociedade, recomendam que se prescinda da apuração de culpa do autor do fato, sob pena de impossibilitar a reparação do prejuízo sofrido. Não está conforme ao bem comum, fundamento republicano, vedar ao Poder Judiciário a classificação jurídica de fatos, a exclusão da disciplina legal das relações de consumo e a restrição da responsabilidade civil às hipóteses de dolo, livrando o doador de alimentos de agir com a prudência, a diligência e a perícia exigíveis de todos para o bem de todos, especialmente para os famintos.        *Jaques de Camargo Penteado é consultor e advogado. Mestre e doutor pela USP e procurador de Justiça aposentado (MP/SP). __________ 1 "C. METAF - Característica essencial de uma substância" (LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico de Filosofia. São Paulo:Martins Fontes, 1999, p. 110). Ver ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo:Martins Fontes, 2003, p. 94. Atributo do homem, a dignidade é inerente à natureza humana, e tem existência, validade e eficácia plena independentemente do direito posto que, assim, deve positivá-la para a legitimidade do mesmo. 2 "Do direito reclama-se ser uma causa eficiente - não a única, por certo, se nos lembramos do amor e, menos felizmente, da força -, uma causa eficiente para que a nossa vida, a de todos nós, seja feliz, para que possamos ser felizes na nossa defectível condição humana. A primeira coisa que se exige do direito é que respeite a primazia da realidade de nossas pessoas: um ordenamento normativo que não assegure a existência pessoal é um contra-sentido, um contra-direito" (DIP, Ricardo Henry Marques. Execução Jurídico-Penal ou Ético-penal? In Caetano Lagrasta Neto, José Renato Nalini e Ricardo Henry Marques Dip (Coord),  Execução Penal - Visão do Tacrim-SP, São Paulo, Juarez de Oliveira, 1998, p. 173). 3 PENTEADO, Jaques de Camargo. A dignidade humana e a Justiça Penal. In Jorge Miranda e Marco Antonio Marques da Silva (Coords.), Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. 2ª ed. São Paulo:Quartier Latin, 2009. 4 PENTEADO, Jaques de Camargo e DIP, Ricardo Henry Marques. A Vida dos Direitos Humanos - Bioética Médica e Jurídica, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1999. 5 "E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida)" (MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina, Rio de Janeiro, Objetiva, 2012, p. 76). 6 DINIZ, Maria Helena. Fontes do Direito. Enciclopédia Jurídica PUCSP, Teoria Geral e Filosófica do Direito, 1/6/2017. 7 Sobre a importância dos grandes doutrinadores, a codificação das leis e a contribuição para o julgamento: RUFINO, Almir Gasquez. Teixeira de Freitas e Clóvis Beviláqua. Dois Juristas. Destinos que se cruzam. Migalhas, 23.9.2020. 8 D.1.3.26 Paulus Libro III quaestionum (MADEIRA, Hélcio Maciel França. Digesto de Justiniano, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p. 50). 9 O abuso de direito também constitui ato ilícito (art. 187, Código Civil). 10 Sobre novas tecnologias e avanço das ciências e a responsabilidade civil, ver GARBI, Carlos Alberto. Responde o Médico e a Clínica que realizou o procedimento de vasectomia mal sucedido pela gravidez indesejada? 11 MONTEIRO, Washington de Barros. MALUF, Carlos Alberto Dabus. SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Curso de Direito Civil, Direito das Obrigações, 2ª Parte, 38ª ed., São Paulo, Saraiva, 2011, pp. 565-612. 12 Súmula Vinculante nº 22 (competência da Justiça do Trabalho para julgar as indenizações por danos morais e patrimoniais decorrentes de acidentes de trabalho; 187, 261, 490,491, 492 e 562, STF; 37, 43, 54, 132, 154, 221, 229, 297, 362, 370, 387, 388 e 403, STJ). Os mais importantes Tribunais do País consolidaram imenso repertório da jurisprudência mansa e pacífica sobre a responsabilidade civil. Há notáveis tratados doutrinários sobre o tema escritos por Juristas como Orlando Gomes, Sérgio Cavalieri Filho, Rui Stoco, dentre muitos outros. 13 Sem políticas públicas, emergenciais e sem a volta do crescimento econômico, o cenário será desfavorável, segundo PEREZ, Marcos Augusto (Entrevista Rádio USP, 30.9.2020). O Prêmio Nobel foi dado a organismos de combate à fome. 14 Lei 14.016, de 24.6.2020. 15 Projeto de Lei do Senado  672/15.
quarta-feira, 7 de outubro de 2020

O direito dos privados na obra de Paolo Grossi

O estudo da história do direito é relativamente recente no Brasil1. A presença de Paolo Grossi2 foi fundamental na consolidação neste campo de pesquisa jurídica entre nós, ajudando a renovar3 um filão que já possuía alguma tradição, se pensarmos que temas como escravidão4, codificação civil5 e propriedade6, típicos do direito privado, já vinham sendo tratados. Em sua obra "Mitologias Jurídicas da Modernidade"7, Grossi organiza uma série de conferências em forma de um manifesto cujo objetivo foi denunciar uma leitura que dava caráter absoluto à lei, que minou a criatividade do direito dos privados. Por isso, denuncia a forma-código, que buscava unificar em uma única lei todo o direito privado, que passava a se chamar "civil", ou seja, daqueles vinculados à comunidade política. Retirava-se o poder e a criatividade da sociedade civil. Isso se fez em nome de um novo fundamento para a certeza do direito, que não tinha mais o seu fundamento no seu conteúdo justo, mas no procedimento de feitura da lei por um órgão político representativo. Trata-se de uma continuidade ou complemento à sua mais comentada obra, "A Ordem Jurídica Medieval"8. Grossi parte das mais diversas fontes (registros notariais, direito canônico e, especialmente, a literatura dos juristas da tradição do ius commune) para demonstrar que, longe de se tratar da "idade das trevas", o medievo representou para o direito, especialmente para o direito privado, um momento de grande criatividade. Seja na "oficina da práxis" altomedieval construindo as novas formas contratuais para o mundo agrário feudal, seja no "laboratório sapiencial" tardomedieval das comunas autônomas em sua prosperidade comercial, o direito privado do período construiu e reconstruiu diversas categorias do direito privado. Esta fortunada reflexão mira ao grande plano de trabalho da obra de Paolo Grossi, que é o diálogo entre os historiadores do direito e os juristas do direito positivo. A historiografia jurídica serve para chamar a atenção à provisoriedade das soluções, para não termos as atuais formas jurídicas como as melhores até então formuladas. Esse exercício constante de relativização busca fomentar a consciência crítica dos juristas, com destaque aos estudantes, aos quais o mestre florentino sempre deu atenção prioritária. Por isso a importância de a História do Direito ser cultivada por juristas e fazer parte da formação nas faculdades de direito9. Mais especificamente sobre a história do direito privado, na obra "História da Propriedade e outros ensaios"10, o autor apresenta as diversas facetas da propriedade e das "propriedades", justamente porque a propriedade privada moderna, cristalizada nos códigos, é apenas uma das tantas experiências na história dos modos de possuir. Para nós, brasileiros, basta pensar no princípio constitucional da função social como contraste à clássica teoria do domínio; ou como Grossi traz da experiência medieval, a teoria do domínio diviso, em que o título deveria se coligar à utilidade do bem. Na mesma obra, Grossi denuncia que a modernidade, no campo do direito privado, acabou redundando em um "absolutismo jurídico", contrastando com o absolutismo político do antigo regime. Especialmente para o campo do direito privado, que necessita estar aberto às novidades de seu tempo para cumprir a sua promessa de autonomia, trata-se de um alerta que nos desaloja das certezas encontradas nos estudos dogmáticos subservientes a uma lógica estatalista que aprisiona o direito privado. Resta, então, o convite aos civilistas para o estabelecimento de um diálogo frutífero entre essas áreas do campo jurídico, de modo que tradição e inovação se encontrem rumo a uma perspectiva que compreenda o direito como fruto da cultura11. *Diego Nunes é professor de Teoria e História do Direito na UFSC, com doutorado na Universidade de Macerata (Itália). __________ 1 Vejam-se FONSECA, Ricardo Marcelo. O deserto e o vulcão: reflexões e avaliações sobre a história do direito no Brasil. Forum historiae iuris. Frankfurt, 15 jun. 2012; DAL RI JR., Arno. La storiografia giuridica brasiliana letta attraverso l'esperienza storiografica penale: note per la consolidazione di una disciplina. In: SORDI, Bernardo (a cura di). Storia e Diritto: esperienze a confronto. Incontro internazionale di studi in occasione dei 40 anni dei Quaderni fiorentini, Firenze 18-19 ottobre 2012. Milano: Giuffrè, 2013; MECCARELLI, Massimo. A história do direito na América Latina e o ponto de vista europeu: perspectivas metodológicas de um diálogo historiográfico. Revista da Faculdade de Direito - UFU, Uberlândia (MG), v. 43, n. 2, jun./dez. 2015.    2 Paulo Grossi é professor emérito de História do Direito da Universidade de Florença, na Itália. Foi membro e presidente da Corte Constitucional italiana. Fundador da revista Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico.  3 Veja-se, por exemplo, VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna: um estudo de história do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005 e a resenha à obra: GROSSI, Paolo. Un saluto alla giovane storiografia giuridica brasiliana (a proposito di Laura Beck Varela, Das Sesmarias à Propriedade moderna: Um Estudio de História do Direito Brasileiro). Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico, v. XXXV (2006), p. 1037-1042.   4 Veja-se o recente trabalho de PAES, Mariana Armond Dias. Escravidão e direito: o estatuto jurídico dos escravos no Brasil oitocentista (1860-1888). São Paulo: Alameda, 2019, que faz um balanço dessa historiografia e avança para novas questões.  5 Veja-se, por exemplo, MARTINS-COSTA, Judith (Org.). Código. Dimensão Histórica e Desafio Contemporâneo: Estudos em Homenagem ao Professor Paulo Grossi. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2013.    6 Veja-se, por exemplo, ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à História do Direito Privado e da Codificação. 4 ed. Belo Horizonte: Lafayette, 2020.   7 GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Tradução de Arno Dal Ri Jr. 2. ed. Florianópolis: Boiteux, 2007.  8 GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. Tradução de Denise Rossato Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2014.  9 GROSSI, Paolo. O ponto e a linha: história do direito e direito positivo na formação do jurista de nosso tempo. In: Id., O direito entre poder e ordenamento. Tradução de Arno Dal Ri Jr. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.   10 GROSSI, Paolo. História da propriedade e outros ensaios. Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.  11 Para quem desejar um primeiro contato com o autor e algumas de suas obras, reporto ao Minicurso Online "Introdução à História do Direito a partir de Paolo Grossi" por mim ministrado.
Apesar do reduzido espaço deste escrito, não constitui tarefa custosa assinalar a importância de Teixeira de Freitas e Clóvis Beviláqua para a história do Direito nacional, em especial no Direito Privado, de que se ocupa esta prestigiosa coluna. Facilita-nos, sem dúvida, o fato de o fazermos da perspectiva privilegiada do presente, quando já decorreram tantos anos da morte de um e de outro.               Não é preciso dizer que se está diante de dois juristas extraordinários, muito acima da média, do seu tempo e também deste; ambos francamente comprometidos com o projeto de codificação civil, iniciado na segunda metade do século XIX, ainda no Império. Parece difícil de sustentar que pudessem ficar de fora de qualquer lista dos nossos juristas mais representativos, a partir dos antigos e chegando aos contemporâneos. Bem por essa razão, aliás, que os dois, juntamente com Tobias Barreto, são os únicos brasileiros incluídos na obra Juristas Universales, dirigida por Rafael Domingo e publicada pela Editora Marcial Pons no ano de 20041, em quatro alentados volumes. Eles três, mais Rui Barbosa e Pontes de Miranda, também compõem o quadro de notáveis juristas brasileiros inseridos no dicionário biográfico reorganizado no ano de 2001 pelo historiador alemão Michael Solleis, em que se buscou sintetizar vida e obra dos mais proeminentes juristas universais, do período da antiguidade até o século XX2. Comecemos por Teixeira de Freitas. Como os grandes destinos são imprevisíveis, ninguém poderia imaginar que a criança nascida em 1816 na cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano, distante mais de cem quilômetros de Salvador, viria a se tornar o maior jurisconsulto do Império3. Não alcançou os 70 anos de idade, mas decerto que a morte não teve, ao menos quanto a ele, o poder de apagar, quando menos deslustrar, a memória da sua existência. Basta dizer que ainda hoje, mesmo depois de transcorrido mais de um século, não é possível ignorar-lhe o nome e a importância em qualquer trabalho que se proponha com seriedade a relatar a história da codificação civil nacional e sul-americana. Seguindo a linha do tempo, é interessante sublinhar que Pontes de Miranda nem sequer era nascido por ocasião da morte de Teixeira de Freitas; tampouco Orlando Gomes, Caio Mário da Silva Pereira, San Tiago Dantas, Serpa Lopes e Washington de Barros Monteiro, para mencionar tão somente nossos mais notáveis civilistas. Naquela mesma época, em 1883, Clóvis Beviláqua, recém-formado em Direito, contava apenas 24 anos de idade. Eduardo Espínola, Orosimbo Nonato e Carvalho Santos (João Manuel de), juristas que também moldariam a história do direito privado, ainda brincavam nas ruas, como fazem todos os meninos. Carvalho de Mendonça (Manoel Inácio) graduara-se em Direito fazia pouco tempo, o que também ocorreria logo após com Tito Fulgêncio. Por sua vez, Antonio Joaquim Ribas, o Conselheiro Ribas, professor da Faculdade de Direito de São Paulo, consagrara-se como jurista por meio do seu Curso de Direito Civil brasileiro, publicado em 1866. Morreria em 1890, seis anos depois de Teixeira de Freitas. Quanto ao mineiro Lafayette Rodrigues Pereira, sabemos que já era respeitado jurisconsulto e aclamado jurista, autor das obras clássicas Direitos de Família (1869) e Direito das Coisas (1877). Com justiça reputado um dos maiores civilistas do Império e dos primeiros anos da República, morreu em 29 de janeiro de 1917, poucos dias após a entrada em vigor do nosso primeiro Código Civil. No ponto, não se poderia deixar de recordar a figura de Lacerda de Almeida, morto em 1943; jurisconsulto bastante prestigiado, deixou-nos como o mais expressivo legado o estudo original e sistemático do Direito Civil no período de 1887 a 1934.  O grande e justificado mérito de Teixeira de Freitas traduz-se, num primeiro momento, na consolidação sistemática e lógica das nossas leis civis até então vigentes (que incluíam não apenas as centenárias e obsoletas Ordenações Filipinas, como também extensa e multifária legislação extravagante, sem falar dos costumes presentes, resultando num acúmulo desordenado e confuso), revelando, já aí, espírito analítico e genialidade sintética, em perfeita combinação. O texto pronto, acrescido de inúmeras e enriquecedoras notas de rodapé, logrou aprovação em dezembro de 1858, tendo sido observado, com o "status" de lei, por várias décadas, até o início de vigência do Código Civil de 1916. Como apreendeu Carvalho de Mendonça (Manoel Inácio), Teixeira de Freitas deu "corpo a um amontoado de leis caóticas; construiu a ordem com a desordem por uma forma originalíssima. Teve pontos de vista inolvidáveis, como a original classificação de direitos de sua Introdução à Consolidação das Leis Civis"4. Adiciono que essa erudita Introdução, com viés crítico, sintetizava os grandes problemas do Direito da época, abarcando doutrina, direito comparado, filosofia, economia e história (supérfluo aduzir que o acesso à informação não era fácil naquele tempo).  Rodrigo Otávio considerou-a, com acerto, uma das "páginas mais notáveis de Direito escritas na América Latina, capaz, por ela só, de fazer a fama de seu autor, como jurisconsulto, não somente pelo conhecimento da lei, mas como possuindo uma ideia construtiva das necessidades jurídicas da sociedade"5.       Seguiu-se, num segundo momento, também por incumbência do Governo imperial, a elaboração do Esboço do Código Civil6, assim designado pelo próprio Teixeira de Freitas. Depois de alguns anos de intenso labor, onde aplicou todo o seu engenho com prejuízo do exercício da advocacia, a tarefa acabou inconclusa (até então, o texto entregue já reunia 4908 artigos) por decisão dele mesmo em novembro de 1866, movido por uma intersecção de fatores: exaustão física e mental, dificuldades financeiras, injustificada lentidão dos trabalhos da Câmara revisora e, sobretudo, a frustração de concretizar, como ideal de perfeição, a ampla unificação do Direito Civil com o Mercantil num só corpo legislativo (Código Geral de Direito Privado)7. Assim se despediu, pesaroso, da mais cara esperança de entregar à Nação seu primeiro Código Civil. No entanto, releva sublinhar que esse monumental trabalho não podia e deveras não foi perdido, tendo sido confessadamente aproveitado, em parte, como todos sabem, por Velez Sarsfield no projeto de Código Civil da Argentina (1869) e, mais tarde, nos estatutos civis do Uruguai e Paraguai, entre outros8.    Nos anos seguintes, depois de mais de uma tentativa malograda de levar adiante o projeto de codificação (com Nabuco de Araújo, Felício dos Santos e Coelho Rodrigues), o Governo da República encarregou, afinal, Clóvis Bevilaqua para a empresa, isso em 1899. Cearense de Viçosa, com aproximados quarenta anos de idade e boa reputação, atuava como um humilde professor de Legislação Comparada da Faculdade de Direito do Recife. Disciplinado e operoso, desincumbiu-se da tarefa em poucos meses, para tanto concorrendo o fato de já ter à sua disposição, como valiosos subsídios, não apenas o Esboço de Teixeira de Freitas, como também, e especialmente, o projeto de Coelho Rodrigues, sem falar dos trabalhos legislativos que precederam o BGB (Código Civil alemão). Decorridos mais de quinze anos de debates nas duas Casas Legislativas e submetido à crítica severa, à frente o então Senador Ruy Barbosa, o projeto foi sancionado em 1916. Muito embora não se apresentasse como modelo para todos copiarem pelo mundo afora, porque já descompassado com a época da promulgação, o certo é que vigorou por quase um século. Seja como for, não é exagero afirmar que todos esses projetos de codificação devem algo a Teixeira de Freitas, inclusive o atual Código Civil. Se nos é possível traçar um paralelo, cabe acrescentar que Teixeira de Freitas viveu e morreu no século XIX, enquanto Clóvis Beviláqua testemunhou o nascimento de um novo século. Ambos de origem nordestina, formaram-se pela célebre Faculdade de Direito do Recife e os dois faleceram, sem quaisquer riquezas, no Rio de Janeiro. Deixaram muitas obras como precioso e imperecível legado, que até hoje podem ser lidas com gosto e proveito. Muito embora com temperamentos diferentes, eram pessoas simples, de modéstia desafetada, desprendidas de vaidades e com boas intenções. Seus dons intelectuais e de caráter eram admirados por todos os lados9. Passaram à história do Direito Privado como os grandes protagonistas da causa da codificação civil nacional. Para concluir, pode ser - e devemos todos esperar que assim seja - que estas páginas suscitem em quem as ler um especial interesse por esses dois juristas, que os estudiosos da história do Direito procuram exaltar na mesma medida em que eles próprios nunca buscaram fama e prestígio. *Almir Gasquez Rufino é advogado. Membro do Ministério Público (Procurador de Justiça) de São Paulo (aposentado). Coautor e organizador, juntamente com Jaques de Camargo Penteado, da obra "Grandes Juristas Brasileiros", editada pela Martins Fontes, SP, em 2003 e 2006 (segunda série). __________ 1 Coube ao professor Ignacio Poveda, da Universidade de São Paulo, a elaboração das três breves biografias. 2 Juristen - Ein Biographisches Lexikon - von der Antike bis zum 20. Jahrhundert, München: Beck, 2001. Os cinco verbetes que nos interessam são de autoria de Wolf Paul, professor em Frankfurt. 3 Ninguém menos que Pontes de Miranda considerava Teixeira de Freitas o "gênio do direito civil na América" no século XIX (Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, RJ, 1981, 2ª ed., § 7º, p. 63).  O "mais genial de nossos jurisconsultos", destacou Miguel Reale na qualidade de supervisor da comissão revisora e elaboradora do Código Civil de 2002 (item 12 da Exposição de Motivos). 4 Do usufruto, do uso e da habitação, Rio de Janeiro: Candido de Oliveira, 1922, p. 17. 5 Teixeira de Freitas e a unidade do Direito Privado, Arquivo Judiciário, 1933, vol. 35, p. 61. 6 Obra gigantesca e original, qualificou Mario G. Losano, à medida que se "distanciava do 'Código Napoleônico' em muitos pontos: inicialmente, antecipando o código civil alemão de 1900, dividia o código civil em uma parte geral e uma parte especial; nesta, introduzia a distinção entre direitos reais e direitos pessoais, chegando a liberalizar as normas jurídicas relativas à escravidão" (Os grandes sistemas jurídicos, São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 298). 7 O que apenas ocorreria muito mais tarde, ao menos em parte, no Código Civil de 2002, com a unificação do Direito das Obrigações. 8 "Muitas disposições que se acham no 'Bürgesliches Gesetzbuch' e no 'Zivilgesetzbuch' acham-se nele, talvez sem que o soubessem os novos legisladores" (Pontes de Miranda, ibidem).  9 Há uma nota final que não podemos deixar passar. Em agosto de 1916, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em sessão comemorativa do centenário do nascimento de Teixeira de Freitas, ao conceder a palavra a Clóvis Bevilaqua, o palestrante, Ruy Barbosa declarou: "Dou a palavra ao maior civilista vivo, para que fale sobre o maior civilista morto".
Há muito está superada a controvérsia a respeito da natureza contratual da sociedade. Na doutrina já se sustentou que a sociedade não é constituída por um contrato, mas sim por ato complexo1. Esse entendimento estava fundado na ideia equivocada de que na sociedade não há conflito de interesses entre as partes. Tullio Ascarelli já assinalava que o contrato de sociedade, desde a sua constituição e durante a vida da sociedade, compreende um natural conflito de interesses entre os sócios. Lembrava, como exemplo, o conflito que pode existir na conferência de bens em favor da integralização do capital, voltado para a avaliação dos bens, conflito muito semelhante àquele que ocorre nos contratos de escambo. Lembrava, ainda, o conflito que pode existir na distribuição de lucros ou na administração da sociedade. Afastou, portanto, a ideia de ato complexo para afirmar a existência de um contrato na sociedade, que distinguiu dos contratos de escambo pela comunhão de objetivos entre os sócios. Funda-se, exatamente na comunhão de escopo, inerente ao contrato de sociedade, o traço distintivo mais relevante entre o contrato de sociedade e o contrato de escambo2. É esse objetivo comum que pode levar ao falso entendimento de que não há conflito de interesses no contrato de sociedade, do qual também decorrem dificuldades para entender os efeitos causados pelos vícios na formação do contrato e os efeitos do inadimplemento das obrigações contraídas pelos sócios. Para a formação do contrato de sociedade é necessário o acordo de vontades, como ocorre em qualquer contrato. É certo que há sociedades que não são constituídas por um contrato, e sim por negócio unilateral, como é o caso da sociedade unipessoal, introduzida no Código Civil pela lei 13.874/20193. Nota-se na redação do dispositivo referido ("Se for unipessoal, aplicar-se-ão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social." - art. 1.052, § 2º, CC), que no caso de sociedade unipessoal, em boa técnica, não se fala em contrato, mas em "documento de constituição", ao qual, no que couber, serão aplicadas as disposições do contrato social. Por isso, para dizer da constituição da sociedade, prefere J.M. Coutinho de Abreu falar de "sociedade-ato jurídico", porquanto existem atos constitutivos de sociedades sem natureza contratual (sociedade unipessoal), e mesmo sem natureza negocial, como é o caso de sociedades de capital público, constituídas por lei4. Não obstante o devido enquadramento da constituição da sociedade em "sociedade ato-jurídico", o contrato é a forma natural de sua criação quando concorre a vontade de duas ou mais pessoas (sócios). Em razão da natureza singular que esse contrato apresenta, a ele igualmente se reconhece um regime jurídico diferente do direito contratual em geral. J.M. Coutinho de Abreu assinala as características marcantes deste contrato de sociedade: "Trata-se de um contrato de fim comum (a obtenção de lucros distribuíveis pelos sócios) e de organização (o negócio faz nascer uma entidade estruturada orgânico-funcionalmente), não de um contrato comutativo (como é, v.g., a compra e venda)."5 Na doutrina se formou uma forte corrente, liderada por Tullio Ascarelli, no sentido de que o contrato social é uma espécie de contrato plurilateral, no qual cada contratante assume obrigações em relação aos demais, com o objetivo de exploração em conjunto da atividade empresarial, com uma particular característica, que é o fato de surgir do contrato social um novo sujeito de direitos. Essa doutrina recebeu larga consideração em vários países e oferece boas respostas à complexidade desta relação contratual. Desde logo é importante assinalar que a sociedade, como sujeito de direitos, constituída pelo contrato, também é parte nas relações jurídicas estabelecidas pelo ato constituinte, o que soma complexidade a este contrato. Há uma íntima relação entre o ato constituinte (contrato social) e a sociedade. Explica J.M. Coutinho de Abreu que "o ato faz nascer a entidade, esta assenta geneticamente nele e por ele é em boa medida disciplinada. Mas, por outro lado, há um considerável desprendimento da sociedade-entidade relativamente ao ato constitutivo: afora o fato da organização e funcionamento internos da sociedade serem em larga medida independentes do ato de constituição (sendo diretamente regidos pela legislação societária), ela é novo sujeito (distinto do sócio), que por si atua e se relaciona com outros sujeitos."6 Quando o sócio deixa de fazer as contribuições que se obrigou pelo contrato, é a sociedade que deverá notificá-lo, e o sócio responderá perante ela pelos danos decorrentes da mora (art. 1.004, CC). Caberá à sociedade, também, restituir o sócio remisso e pagar haveres ao retirante e ao excluído (art. 1.031, CC), e por isso é chamada a integrar sempre o processo no qual se pede a sua dissolução parcial. Tullio Ascarelli, sob o seu aspecto estrutural, vê no contrato social uma subespécie de contrato, que se distingue dos contratos em geral (contratos de permuta, de trocas, de escambo): (i) pela possibilidade de participação de mais de duas partes: (ii) pelo fato de que, quanto a todas estas partes, decorrem do contrato, quer obrigações, de uma lado, quer direitos, de outro. Quando se fala em mais de duas partes no contrato plurilateral, evidentemente não se refere ao número de sujeitos. Uma compra e venda com condôminos pode ter vários sujeitos, mas somente duas partes (vendedor e comprador). O contrato plurilateral se apresenta, portanto, com a "possibilidade" de participação de mais de duas partes, como ocorre no contrato de sociedade, no qual não é possível agrupar todas em dois grupos ou dois polos. Os interesses contrastantes das várias partes na sociedade devem ser unificados por uma finalidade comum. O contrato de sociedade é, portanto, finalístico, e obriga a todos os sócios, inclusive aos aderentes posteriores, em torno de um fim comum, de uma atividade ulterior. As partes, no contrato de sociedade, cumprem as obrigações assumidas com o propósito de organizar o desenvolvimento de uma atividade ulterior, da qual não se pode desviar sem risco para as responsabilidades dos sócios. Também decorre desta observação a distinção que deve ser feita entre os requisitos de formação do contrato e outros, que dizem respeito à vida da organização, que devem continuamente subsistir. O contrato de sociedade é um contrato de execução continuada, porque formado para desenvolver uma atividade ulterior. Os prazos do contrato de sociedade são determinados, não para o cumprimento de obrigações, mas pelo tempo que deve perdurar essa atividade. O contrato plurilateral, como é o contrato de sociedade, compreende partes que são titulares de direitos e obrigações. Por esta razão se pode dizer, não quanto à sua formação, mas quanto aos efeitos que produz, que é um contrato "bilateral". No contrato de sociedade cada sócio tem obrigações e adquire direitos em relação a todas as outras partes (sócios). Por isso Ascarelli afirma que as partes se acham como dispostas em círculos e não em extremos de uma linha. No contrato em geral, a sua conclusão ocorre quando as partes estão simultaneamente presentes, reunindo os consentimentos. No contrato de sociedade, que tem a participação de mais de duas partes, a reunião dos consentimentos não precisa ocorrer simultaneamente, admitindo-se a constituição sucessiva da sociedade pelos ausentes naquele ato de constituição. Por isso pode-se admitir uma nova parte, assim como pode ocorrer a retirada ou exclusão do sócio sem nenhuma solução de continuidade para o contrato de sociedade. Os contratos de sociedade são contratos abertos, no sentido de que admitem a entrada e a saída de partes, o que não ocorre nos contratos em geral. O aspecto mais relevante da ideia de contrato plurilateral diz respeito aos vícios de adesão e ao cumprimento de obrigações assumidas pelas partes. A atenção à sua peculiar natureza é a condição para o enquadramento das soluções que se deve dar a estas situações. O vício de vontade na adesão ao contrato de sociedade não tem o efeito produzido nos contratos de escambo em geral. O vício de vontade (incapacidade, erro, dolo, coação etc.) invalida o contrato de escambo, mas não produz igual efeito no contrato plurilateral, porque é possível distinguir o ato de adesão de cada parte (e os vícios existentes). Logo, o vício de adesão ao contrato de sociedade de uma parte invalida somente a manifestação desta parte, não importando em nulidade ou anulabilidade do contrato. Ocorre uma espécie de aplicação do princípio da conservação dos contratos, que propõe não atribuir ao vício consequências além do necessário. A solução pode ser diversa se a invalidade da adesão de uma das partes implicar em substancial redução de capital a tornar impossível a consecução do objeto social. O contrato de sociedade constituí uma organização destinada a entrar em relação com terceiros. Esta característica impõe uma solução diversa aos casos de vícios de adesão da parte, impedindo efeitos retroativos, que poderiam prejudicar terceiros (credores). Exige-se, portanto, uma solução diversa no tratamento dos vícios do contrato plurilateral em favor de uma necessária tutela dos interesses de terceiros, havendo uma tendência em conter internamente estes efeitos invalidantes. Cabe lembrar que o contrato plurilateral apresenta, ainda, outra característica, que é a separação entre as relações internas (entre os sócios) e as relações externas (estabelecidas com terceiros, quase sempre credores). São estas últimas relações decorrentes da natureza de organização e do caráter instrumental do contrato. Outro aspecto relevante da natureza plurilateral do contrato de sociedade diz respeito à inexecução das obrigações contraídas pelas partes. O inadimplemento da obrigação em relação a uma das partes, não determina a resolução do contrato. A resolução ocorre somente em relação ao vínculo do sócio inadimplente, sem nenhum prejuízo ao contrato de sociedade, quando ainda possível a consecução dos seus fins sociais. Questão interessante suscita a sinalagma própria dos contratos bilaterais. Caso uma das partes do contrato de sociedade não cumpra a obrigação contraída (v.g. integralização do capital), questiona-se se as outras partes estão autorizadas a não cumprir também as suas obrigações, alegando exceptio inadimpleti contractus. A resposta é negativa. A ideia de contrato plurilateral oferece solução adequada a esta questão. Nega-se, portanto, a existência de sinalagma (ao menos no sentido que se lhe atribui normalmente) no contrato plurilateral, que é a relação de dependência, ou propriamente de interdependência, entre as prestações. A parte não está autorizada a não cumprir a obrigação se outra não o fez, como ocorre nos contratos de escambo, porque a inexecução das obrigações de uma parte não exclui a permanência no contrato entre as demais, a não ser que a consecução do seu fim não possa ser alcançada. Existe no contrato plurilateral uma equivalência entre as prestações, mas é uma equivalência entre as obrigações e direitos de uma parte em relação a todas as outras partes. Nesse sentido explica Giuseppe Ferri que existe interdependência entre as várias obrigações, seja no momento genético, seja naquele funcional, somente enquanto todas elas são assumidas em função de um escopo estabelecido previamente. A obrigação do sócio não constitui o correspectivo da obrigação do outro, mas junto com esta o meio para realizar o escopo comum. Exatamente pela realização do escopo comum é que o sócio receberá o benefício ou vantagem correspectiva à obrigação assumida7. A influência da obrigação de um sócio sobre o contrato por inteiro se determina, de acordo com Ferri, "através do diafragma do escopo comum". Explica Ferri que esse entendimento não permite ao sócio negar o cumprimento da sua obrigação em razão do inadimplemento da obrigação do outro sócio, não se admitindo a exceção do contrato não cumprido, salvo se o cumprimento da obrigação do outro é condição necessária para alcançar o escopo comum. E acrescenta, portanto, que o contrato de sociedade não sofre nenhum efeito pela morte, exclusão ou recesso do sócio, a não ser que importe substancial impedimento para alcançar o escopo comum8. Resolvido o contrato em relação ao sócio inadimplente, a sua substituição na sociedade não tem a natureza de novação e não altera substancialmente o contrato. O Código Civil seguiu a doutrina do contrato plurilateral, como se percebe em diversas passagens. No enunciado que precede ao art. 1.028 e seg., que cuida da resolução da sociedade em relação a um sócio, se vê aplicada a solução preconizada para o contrato plurilateral. São hipóteses previstas nestes dispositivos pelas quais o contrato se desfaz em relação a somente um dos sócios (morte, retirada do sócio, sócio remisso, exclusão por falta grave e falência do sócio).  Também em relação à sociedade limitada o Código Civil cuida da resolução da sociedade em relação ao sócio minoritário, quando se entender que um os mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa em virtude de atos de inegável gravidade (art. 1.085, CC). De outra parte, a natureza de organização que é própria do contrato de sociedade implica na gestão desta organização e, consequentemente, no reconhecimento de direitos das partes na administração e na tomada de deliberações por maioria. Diz Ascarelli que é justamente na comunhão de escopo existente na sociedade que se assenta o poder da maioria. Quanto mais intensos os interesses comuns, mais se legitima a deliberação pelo poder da maioria. A organização externa constituída pelo contrato implica na criação de uma pessoa jurídica (o contrato plurilateral é o substrato da pessoa jurídica) e a partir da sua existência algumas características mais interessantes do contrato plurilateral, no seu aspecto externo, são reveladas: (i) o patrimônio da sociedade é separado e não está sujeito a um regime de condomínio, porque ele pertence à pessoa jurídica e não aos participantes do contrato; (ii) as obrigações contraídas pela pessoa jurídica não são obrigações dos participantes. A natureza plurilateral do contrato de sociedade quase sempre permanece nas sombras das decisões que envolve a complexidade do contrato de sociedade, mas não passa ao largo da jurisprudência, da qual nos ocuparemos em outra oportunidade. *Na próxima edição da nossa coluna contaremos com a honrosa participação do doutor Almir Gasquez Rufino, que organizou, junto com Jacques de Camargo Penteado, as duas edições dos "Grandes Juristas Brasileiros", publicadas pela Editora Martins Fontes. Teremos, portanto, um pouco da memória do nosso Direito Privado. Não percam! __________ 1 Tullio Ascarelli explica que esta distinção entre contrato e ato complexo decorre da observação de que no contrato as partes são animadas por interesses contrapostos, enquanto no ato complexo as partes apresentam-se animadas por idêntico interesse. Ascarelli logo desfaz esta ideia equivocada, no sentido de que não há conflito de interesses na sociedade, para defender a existência de um contrato (O Contrato Plurilateral. "Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado" 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 1969, p. 258). O Código Civil brasileiro é expresso ao estabelecer no art. 997 que "a sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público." 2 Nesse sentido a doutrina de Pier Giusto Jaeger, Francesco Denozza e Alberto Toffoletto (Appunti di Diritto Commerciale - impresa e società. 7ª ed. Milano : Giuffrè Editore, p. 82-84). 3 É certo que antes da modificação legislativa referida já era reconhecida no direito brasileiro a sociedade unipessoal em casos de dissolução parcial da sociedade, quando se permitia a existência temporária da sociedade com apenas um sócio até que a pluralidade fosse restabelecida. 4 Jorge Manuel Coutinho de Abreu. Curso de Direito Comercial. Vol. II. 5ª ed. Coimbra : Almedina, p. 20. 5 Op. cit, p. 95. 6 Op. cit., p'. 20. 7 Giuseppe Ferri. Manuale di Diritto Commerciale. 15ª ed. a cura di C. Angelici e G.B. Ferri. Milano : Utet, 2017, p. 175. 8 Op. cit., p. 175.
O usufruto é originário do direito romano. Mais recente que as servidões prediais, "surgiu por obra da jurisprudência, no século II a.C., quando se difundiu em Roma o casamento que não é acompanhado da conuentio in manum. Neste, ao contrário do que ocorria no casamento a que se segue a conuentio in manum, a mulher não ingressava na família do marido, e, consequentemente, não se tornava herdeira dele. Muitas vezes, enquanto vivo o marido, a mulher dispunha de recursos que ele lhe propiciava, mas, quando ele falecia, ficava reduzida à miséria. Para obviar a isso, surgiu o usufruto, possibilitando-se assim que o marido, antes de morrer, e sem nomeá-la, no testamento, herdeira, em prejuízo dos filhos, a designasse usufrutuária de certos bens. O usufruto, portanto, nasceu com certo caráter alimentício"1. Já no período clássico do direito romano, o usufruto se distinguia do direito de propriedade e era considerado como direito sobre coisa alheia (ius in re aliena). No direito de Justiniano o usufruto, até então independente das servitutes, foi aproximado das servidões prediais e enquadrado em categoria nova, denominada servidões pessoais (servitutes personarum)2. Explica Cunha Gonçalves que "esta expressão de servidão pessoal atravessou os tempos até o século XVIII, em que o Código civil da Prússia a pôs de parte, classificando o usufruto como direitos de gôzo; e em França, ao tempo da elaboração do respectivo Código civil, depois que a Revolução Francesa abolira todos os serviços pessoais de origem feudal (corvéss) e abolida estava na Europa a escravidão, aquela expressão pareceu obnóxia, e, por isso, dela se não encontra qualquer traço no Código civil francês. Todavia, os jurisconsultos modernos continuam a usar e até defendem a expressão servidões pessoais, que nos parece inadmissível e errônea, porque o usufruto não recai nas pessoas, mas sim nas coisas"3. O Código Civil de 2002, com mais técnica, se afastou do romanismo e regula simplesmente as "servidões", não mais adjetivadas.  É interessante notar como um modelo antigo de direito privado, que nasceu para atender a um determinado fim, amparar a mulher sem direito à herança na morte do marido, foi utilizado modernamente para outra finalidade, confirmando uma espécie de característica genética do direito privado de se amoldar às novas necessidades sociais4. Com o tempo surgiu o usufruto oneroso e sobre qualquer coisa, como verdadeiro negócio jurídico. A ideia de fruição de um bem, como dono, sem adquirir a sua titularidade, foi levada a outras relações. Hoje é comum estabelecer usufruto sobre quotas e ações de empresas, como meio de planejar a sucessão. Pretendemos abordar algumas questões que envolvem essa nova espécie de usufruto, ou talvez melhor fosse dizer desse novo objeto do usufruto, e a sucessão de partes societárias. Geralmente o usufruto de participações societárias é utilizado na criação de uma Holding5. É o caso da pessoa que formou ao longo da vida um patrimônio e que deseja planejar a sua sucessão, com o propósito de prevenir litígios entre herdeiros, proteger o patrimônio, antecipar a herança, e ao mesmo tempo melhorar a administração dos seus bens, com a redução de tributos. É a Holding patrimonial. A Holding (a designação vem de to hold, que na língua inglesa quer dizer manter, controlar, segurar, etc.) foi prevista no art. 2º, § 3º, da Lei das Sociedades Anônimas (lei 6.404/76), que estabeleceu: "A companhia pode ter por objeto participar de outras sociedades; ainda que não prevista no estatuto, a participação é facultada como meio de realizar o objeto social, ou para beneficiar-se de incentivos fiscais". A interpretação mais abrangente do objeto da Holding, que não se limita a deter participações em outras sociedades, admitiu a chamada Holding patrimonial, que tem por finalidade deter exclusivamente patrimônio. Esse tipo de sociedade, também muito empregado no controle de outras sociedades empresárias, bem serviu ao propósito de planejar a sucessão. O capital da Holding é integralizado com imóveis ou a participação em outras sociedades (quotas e ações). O instituidor divide o capital em quotas ou ações, dependendo do tipo societário que escolheu (sociedade limitada, unipessoal, EIRELI ou sociedade anônima) e cede aos herdeiros, reservando-se para ele o usufruto vitalício. A Constituição Federal assegura imunidade na transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital (art. 156, § 2, I), o que facilita a criação da Holding. Recentemente o Supremo Tribunal Federal apreciou o Tema 796 de Repercussão Geral e fixou o entendimento de que "A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado". Essa decisão exige a maior atenção hoje na criação da Holding6. Para a constituição de uma Holding patrimonial com a finalidade sucessória são necessários outros cuidados7. É importante assegurar expressamente ao usufrutuário o exercício exclusivo de direitos políticos e econômicos, sobre as quotas ou ações, e delimitar os poderes de administração decorrentes, para evitar que eventuais conflitos de interesses entre o usufrutuário e o herdeiro titular da propriedade das quotas e ações venham a ocorrer. É importante estabelecer, expressamente, no caso de Holding constituída a partir da cessão das quotas pelos cônjuges ou companheiros em favor dos herdeiros, que a morte de um dos usufrutuários não extingue a sua parte no usufruto. É o chamado direito de acrescer a parte do usufrutuário morto, previsto no art. 1.411 do Código Civil. As quotas podem ser gravadas com cláusula de incomunicabilidade, inalienabilidade e impenhorabilidade, protegendo-se da ação de futuros credores e da indesejada comunicação patrimonial pelo casamento dos herdeiros. A constituição da Holding não pode ocorrer em prejuízo de credores do instituidor e, também, não pode resultar em fraude, quando a estrutura societária só existe no papel e no registro. A sociedade constituída deve ter vida, observando as normas contábeis e tributárias. O usufruto pode ser utilizado também quando ocorre a doação de quotas ou ações. Neste caso não existe uma Holding. O titular das quotas e ações antecipa a legítima com a doação, e reserva a ele o usufruto vitalício. É preciso, também, deixar claro quais são os poderes do usufrutuário a respeito da administração, voto e direito de acrescer. É necessário estabelecer qual será o destino do usufruto se ocorrer a liquidação da sociedade. Não se deve deixar dúvidas sobre a extensão do usufruto em caso de aumento de capital ou subscrição de ações em razão do exercício de preferência. Cabe, também, dizer sobre o direito de retirada do sócio em relação ao usufruto e a participação do usufrutuário em acordo de sócios e acionistas. Caso a doação de partes societárias ocorra sem reserva de usufruto, é possível estabelecer condição para a doação, exigindo a manutenção de administrador, observância de certas diretrizes da empresa, proibição de distribuição de lucros e dividendos acima de certo limite (evitando a descapitalização da sociedade) e a proibição de investimentos de risco. É possível, neste caso de doação sem reserva de usufruto, condicionar a doação à outorga de mandato irrevogável em favor do doador para administração da empresa, com indicação expressa dos poderes conferidos. Neste cenário de planejamento sucessório e as empresas há uma particular situação que igualmente exige cuidados. É o caso do titular de participações societárias que, sem recorrer à constituição de uma Holding ou à doação de quotas e ações, pensa nos efeitos da sua sucessão sobre a empresa da qual participa. É possível incluir no contrato da sua sociedade cláusulas que podem evitar litígio e preservar a empresa. Algumas recomendações podem ser feitas: a) estabelecer quem pode entrar na sociedade no caso da sua morte, restringindo a entrada de incapazes, meeiros, legatários ou herdeiros que não exerçam certa profissão; b) dispor sobre a nomeação e forma de administração da sociedade em caso de ingresso de herdeiros: c) impor direito de preferência para a cessão de quotas  e acordo de acionistas para as sociedades anônimas; d) estabelecer o destino das quotas que não admitir ingresso de herdeiros (redução de capital, retenção em tesouraria etc.); e) estabelecer a possibilidade de exclusão de sócio e prever as hipóteses de justa causa (desvio de clientela, violação de sigilo, recusa em assinar documentos etc.); f) estabelecer a forma de apuração e pagamento de haveres (metodologia, juros, correção e parcelamento do pagamento); g) estabelecer claramente quóruns de deliberação e aprovação de matérias. Essas medidas e outras são muito importantes, especialmente quando o titular de participações societárias estabeleceu múltiplos relacionamento durante a vida, gerando filhos de relações diferentes, quando a possibilidade do litígio entre herdeiros é real, com grave prejuízo para a sociedade. Procuramos fazer um panorama das questões mais frequentes. Existem muitas outras possibilidades para planejar a sucessão. O usufruto tem se mostrado um instrumento muito útil para esse fim e merece a atenção dos advogados. Em outra oportunidade pretendemos examinar a jurisprudência que se formou a respeito destas questões. O planejamento sucessório deve ser uma preocupação de todos que desejam prevenir litígios entre herdeiros, proteger o patrimônio, conservar empresas, facilitar a sucessão e reduzir custos, mas exige atenção máxima, porque o resultado pode ser indesejado. ___________ 1 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 5ª ed., Rio de Janeiro : Forense, 1983, V. 1, p. 410. 2 ALVES, José Carlos Moreira. op. cit., p. 411. 3 GONÇALVES, Luiz da Cunha. Tratado de Direito Civil. 1ª ed. Brasileira, v. XI, t. I e II. São Paulo : Max Limonad, p. 472. 4 A respeito do usufruto e sua relação jurídica me permitido indicar o que escrevi (Carlos Alberto Garbi. Relação Jurídica de Direito Real e Usufruto. São Paulo : Método, 2008). 5 Sobre Holding e planejamento sucessório vale a consulta à obra de Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede (Holding familiar e suas vantagens: planejamento jurídico e econômico do patrimônio e da sucessão familiar. São Paulo : Atlas, 2020.). 6 A tese foi fixada por maioria de votos em julgamento que se concluiu em 04.08.2020. Aguarda-se a publicação do Acórdão e das declarações de voto para o entendimento adequado da decisão. 7 A respeito pode ser consultada a obra de Fernanda Valle Versiani (Usufruto de Participações Societárias. Belo Horizonte : Editora D'Plácido, 2017).
Me recordo de uma velha lição que ouvi de um experiente professor nos bancos da faculdade. Dizia que o direito civil se assentava em três pilares: a propriedade, o contrato e a família. Já se foram muitos anos desde que aquelas palavras encheram o meu pensamento de perplexidades. Se o direito civil representava a constituição do cidadão e governava toda a sua vida, então o universo se resumia àqueles três elementos: propriedade, contrato e família. O excesso desta proposição, evidentemente, pretende assinalar a enorme relevância desses fundamentos para a tradição do Direito Privado. No direito romano a figura central era a propriedade, sua segurança e estabilidade, com vistas à conservação e ao aproveitamento das riquezas. Era o direito por excelência. Ao contrato se reservava a função de aquisição e disposição da propriedade, e suas formalidades eram ditadas em favor da proteção dos contratantes enquanto proprietários. O contrato não tinha maior relevância, visto somente como um meio de transmitir a propriedade. Com a Revolução Francesa e o Code de Napoleão de 1804, voltado para uma sociedade de economia prevalentemente rural e com particular interesse sobre a propriedade imóvel, o contrato passa a ser reconhecido como uma garantia de conservação da propriedade, na medida em que se protege com rigor a autonomia da vontade. Ninguém poderia ser privado dos seus próprios bens sem o concurso da sua vontade livre. O contrato, portanto, recebe toda a atenção necessária à garantia da livre manifestação da vontade. A forma do contrato, importante para os romanos, cede lugar de importância à vontade dos contratantes. É o consensualismo, fundamental na teoria clássica do contrato. Essa transformação do contrato decorreu em boa medida da forma como era utilizado na Idade Média, no âmbito dos usos do comércio (Lex Mercatoria), entre os mercadores, que se interessavam pela celeridade das contratações e pelo desenvolvimento do tráfico de mercadorias. É o contrato como meio de fazer negócios. É na moderna sociedade industrial que o contrato se afasta da propriedade para servir, agora, como instrumento característico da atividade empreendedora, voltada para a produção e o mercado. A exigência de produção e circulação de riqueza prevalece sobre a propriedade. Nos Novecentos se acentua a tendência de objetivar o contrato, reduzindo o valor subjetivo da vontade das partes. É a crise do consensualismo1, que já foi identificada por Grant Gilmore como a morte do contrato2. Essa tendência ganha impulso a partir do final do século passado, com a aplicação pela jurisprudência das cláusulas gerais da boa-fé, equidade, equilíbrio e função social, concorrentes com a vontade das partes e com a lei. Em favor da equidade e da justiça contratual, o juiz se habilita a corrigir o ato de autonomia contratual e a restabelecer o equilíbrio das prestações. É o que Francesco Galgano chamou de "governo judiciário da discricionariedade contratual"3 ou, simplesmente, nas palavras de Guido Alpa, "controle judicial do contrato"4. Essa intervenção no contrato veio com a crise do Estado moderno, que é uma crise da legalidade, segundo Paolo Grossi, uma crise que se refletiu no ordenamento positivo e na ideia de que o contrato faz lei entre as partes, o que levou o grande economista Keynes a afirmar, em notável conferência sobre "O fim do laissez-faire", depois escrita e publicada, que não há direito absoluto no contrato.5 Um outro aspecto desta evolução se verifica já na fase pós-industrial, quando o contrato passa a servir a uma economia das finanças, dos valores mobiliários e instrumentos financeiros, portando engenhosa técnica contratual criativa de novas riquezas (new properties). Se fala em um Terzo Contratto5 e na revisão da sua classificação. O que mais tem suscitado o interesse dos juristas atualmente sobre o contrato, e ele está vivo, como sempre esteve, é efetivamente o controle judicial, que coloca em questão a relação entre a autonomia da parte e os limites do ordenamento jurídico, limites que podem ser aplicados pelo juiz no exame dos contratos. Ao escrever sobre o Projeto do Código Civil, Miguel Reale observava que, "se o contrato é o produto da autonomia da vontade, não quer dizer que essa vontade deva ser incontrolada: a medida de seu querer nasce de uma ambivalência, de uma correlação essencial entre o valor do indivíduo e o valor da coletividade. O contrato é o elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e de medida. E é por esta razão que estabelecemos um artigo do Projeto do Código Civil, que me parece muito importante ter presente, no qual se declara que contrato terá que ser analisado em razão de sua função social. É o princípio da socialidade governando o Direito Obrigacional."7 Esses limites podem versar sobre o mérito do interesse perseguido pela parte, sua legitimidade ou conformidade com a lei, sobre a sua licitude ou reprovabilidade social e até mesmo sobre a sua conformidade moral e ética. Percebe-se que esse controle pode ser muito amplo, sondando os elementos do contrato, como a sua causa, objeto, forma e elementos acidentais, assim como os precedentes da sua formação, como a fase de tratativas, de troca de informações e documentos. Esse controle pode dar lugar à responsabilidade pré-contratual, contratual e extracontratual, observando a sua execução, frustração, extinção e os impedimentos ao seu exato cumprimento. O espaço de valoração do contrato e de operatividade do juiz, e os limites da sua discricionariedade, são ainda mais amplos quando as disposições aplicáveis contêm cláusulas e princípios gerais, como a boa-fé, solidariedade, razoabilidade, proporcionalidade, função social etc. Aproveitando a observação de Guido Alpa, se pode dizer que é amplíssimo o raio de ação de controle judicial, um raio que foi alargado no curso do tempo, partindo da aplicação literal e restritiva da lei a uma interpretação elástica, atenta a novas exigência sociais e econômicas, proporcionada pela "explosão" das cláusulas gerais.8 O poder que tem o juiz de "controlar" o contrato não é, contudo, ilimitado. O limite da discricionariedade de valoração do contrato pelo juiz deve ser encontrado também no ordenamento jurídico, e principalmente na jurisprudência. Como afirmou Eros Roberto Grau, "por mais que isso revolte a doutrina, a segurança e a previsibilidade dos contratos passa, necessariamente, pela interpretação que as Cortes dão às avenças. O reconhecimento do crucial papel do Poder Judiciário talvez seja o início da superação de tantos entraves enfrentados pela ordem jurídica na promoção do comércio."9 Os precedentes da nossa Corte Superior, que tem a última palavra na interpretação da lei infraconstitucional, dão conta do reconhecimento e da amplitude dos poderes do juiz no exame dos contratos. Destaco dois julgados representativos: "O acórdão recorrido está em consonância com a Jurisprudência do STJ quando sustenta que a autonomia privada, como bem delineado no Código Civil de 2002 (arts. 421 e 422) não constitui um princípio absoluto em nosso ordenamento jurídico, sendo relativizada, entre outros, pelos princípios da função social, da boa-fé objetiva e da prevalência do interesse público; e que o Direito brasileiro admite, expressamente, a revisão contratual, diante da alteração superveniente das circunstâncias que deram origem ao negócio jurídico. Precedentes." (AgInt no AREsp 1450387/AP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/06/2019, DJe 11/06/2019) "Ademais, a jurisprudência deste Tribunal Superior é firme no sentido de que o princípio da pacta sunt servanda pode ser relativizado, visto que sua aplicação prática está condicionada a outros fatores, como, por exemplo, a função social, a onerosidade excessiva e o princípio da boa-fé objetiva dos contratos. Incidência da Súmula 83/STJ. Precedentes." (AgInt no AREsp 1506600/RJ, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 09/12/2019, DJe 12/12/2019) A amplitude dos poderes do juiz no exame dos contratos é angustiante para o jurista deste século, porque porta uma insegurança e indeterminação que não havia na modernidade. Também é, todavia, uma característica do momento histórico que vivemos e de um novo paradigma do contrato, segundo Vincenzo Roppo, um contrato no qual a "força de lei" resulta notavelmente atenuada10, não para lhe decretar a sua morte, mas para lhe dar vida. Como diz Eros Roberto Grau, com apoio em Corbin, o jurista deve libertar-se da ilusão da certeza.11 Há aspectos positivos da valorização da jurisprudência neste cenário de transição para a pós-modernidade, refletidos diretamente no Direito Privado. É que as normas decorrentes da jurisprudência, pela sua concretude e historicidade, podem ser mais estáveis e racionais, assim como mais próximas da realidade e dos valores econômicos e sociais. Esta estabilidade, todavia, depende muito da forma como operam racionalmente os juízes. Depende, particularmente, da efetividade das disposições do Novo Código de Processo Civil de 2015 quanto às exigências do seu art. 489 para a motivação das decisões e o respeito aos precedentes. Essa racionalidade que se exige das decisões judiciais, que foi sendo introduzida no direito brasileiro por influência do common law e do seu sistema de precedentes, que promove uma espécie de retorno ao direito, que deve ser pensado e interpretado (compreendido), é a garantia de segurança contratual, e não propriamente de certeza, e também um imperativo do Direito Privado vivente na interpretação dos Tribunais. A expressão máxima do individualismo, traduzida no poder negocial que dá origem ao contrato, não encontra no controle judicial propriamente uma restrição, mas o equilíbrio necessário à promoção dos valores sociais e econômicos, bem definidos na nossa Constituição Federal.__________ 1 - Ver a respeito Paolo Pollice in "Il Contratto - appunti per um corso di diritto civile", Torino : G. Giappichelli Editore, 2015, p. 63-70. 2 - É o título do clássico livro de Grant Gilmore - The Death of Contract, que tenho em mãos na versão traduzida para o italiano por Andrea Fusaro, com um prólogo de Guido Alpa ("La morte del contrato". Milano : A. Giuffrè Editore, 1999) 3 - Para um bom panorama histórico do contrato vale a leitura das primeiras páginas de Francesco Galgano in "Il Contratto" (Cedam, 2ª ed., Milano : 2011). 4 - Le Stagioni del Contratto. Bologna : il Mulino, 2012, p. 161-173. 5 - O fim do "laissez-faire". In: SZMRECSÁNYI, Tamás (Org.). Economia. Tradução de Miriam Moreira Leite. São Paulo: Ática, 1978. p. 106-7. Um estudo primoroso apresentado na conferência que fez em Oxford (novembro de 1924) e numa palestra na Universidade de Berlim em junho de 1926, publicado em Essays in persuasion - CWJMK. Londres: Macmillan, 1972. v. IX, cap. IV-2. p. 272-94. Keynes escreveu em 1936, aos cinquenta e dois anos, durante a grande depressão americana, a sua obra mais famosa - The General Theory of Employment, Interest and Money (A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda) - considerada, na opinião de Dudley Dillard, professor de economia da Universidade de Maryland (EUA) e conhecedor das teorias de Keynes, "um repúdio dos fundamentos do laissez-faire" (A teoria econômica de John Maynard Keynes. 6. ed. Tradução de Albertino Pinheiro Júnior. São Paulo: Pioneira, 1989. p. 3). 6 - Já tivemos a oportunidade de escrever a respeito (Il Terzo Contratto, uma nova modalidade de contrato empresarial). 7 - Miguel Reale se referia ao atual artigo 421 do Código Civil (O Projeto de código civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo : Saraiva, 1986, p. 10) 8 - Guido Alpa anota que as compilações de jurisprudência na italia, organizadas cientificamente, evidenciam as operações judiciais no controle dos contratos. Esse valor da jurisprudência como fonte do direito, uma característica da pós-modernidade, é resultado, segundo Guido Alpa, da passagem por diversas fases. Inicialmente o valor da jurisprudência como fonte do direito foi muito debatido na doutrina, passando a uma fase factual ou pragmática, mediante o recurso aos precedentes invocados pelos advogados nas suas peças defensivas, e depois na motivação das sentenças. Essa afirmação da jurisprudência como fonte do direito também encontra outra dimensão na atividade legislativa, que muitas vezes transforma os precedentes em disposições legais. (Op. cit., p. 164) 9 - Um Novo Paradigma dos Contratos? Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. V. 96 (2001). 10 - Esse novo paradigma do contrato é resultado de um conjunto de fatores, que não podemos abordar nesta oportunidade. A respeito consultar a obra de Vincenzo Roppo (Il contrato del duemila. Terza edizione. Torino : G. Giappichelli Editore, 2011). 11 - Op. cit.
quarta-feira, 29 de julho de 2020

Direito Privado - Direito Vivente

Ao estrear esta coluna, que ocupo com muita honra no Migalhas, um informativo eletrônico completo e indispensável ao jurista moderno, quero falar um pouco sobre o Direito Privado do nosso tempo, que é fruto, como escreveu Guido Alpa, de uma história milenária, e que tem grande densidade cultural, sólida organização dogmática e fundamental função prática1. O Direito Privado tem domínio sobre os setores mais proeminentes da nossa vida social e econômica, cuidando da pessoa e dos seus bens, da sua vida privada e dos seus negócios, do nascituro e das pessoas jurídicas, dos mercadores e do mercado. As fronteiras do Direito Privado são largas e as suas relações são cada vez mais complexas. Convencido de que o jurista moderno não pode ignorar essa atual tendência transcendente do Direito Privado, que transita entre os vários setores da ciência jurídica, dando passos, vez ou outra, nos territórios do Direito Público, influenciado por doutrinas e sistemas de todo o mundo, numa verdadeira simbiose que lhe atribuiu uma nova fisionomia, surgiu o nosso desejo de assinar uma coluna e, junto com o leitor, empreender uma viagem pela cultura e o conhecimento do seu vasto universo. Guido Alpa bem assinalou a ideia de que o Direito Privado é uma imagem da sociedade, na qual as suas regras são aplicadas, voltado a garantir o direito das pessoas, físicas e jurídicas, numa dimensão que não está confinada na tutela de interesses privados, mas se propõe a atender ao interesse público com o qual deve haver um adequado temperamento, sem se afastar dos valores da economia. Esse Direito Privado do qual fala Guido Alpa é aquele atento aos direitos fundamentais da pessoa, em particular, das pessoas que se encontram em posição débil e vulnerável, como é o caso do consumidor, das empresas tomadoras de crédito, dos imigrantes, das mulheres e crianças, da pessoa portadora de deficiência, das minorias de gênero etc. Mas também é o Direito Privado das companhias, das relações empresariais e do mercado. Para o jurista italiano é possível observar o Direito Privado com um telescópio, individualizando os seus eixos de direção, categorias, finalidades e estrutura. Outros preferem olhar com o microscópio, para estudar o caso concreto, colocando-o no interior do ordenamento. Prefere ele, todavia, voltar a sua atenção ao Direito Privado com o emprego de um caleidoscópio, porque o Direito Privado, variegado, complexo e fascinante é ao mesmo tempo tecnico, sapienziale e giurisprudenziale. É um direito que se modela de tempo em tempo, seguindo a evolução do ordenamento, da prática e do direito vivente, mas também dos métodos interpretativos2. Segundo a sua observação, ainda, o Direito Privado se transformou no tempo. Nos Oitocentos era o direito dos privados, a esfera que não deveria ser penetrada pelo Estado. Na primeira metade dos Novecentos era a esfera da autonomia das pessoas enquadradas nos paradigmas do Estado (legislador, regulador, empreendedor, administrador). Na segunda metade dos Novecentos era a esfera privada na qual o Estado garantia os valores constitucionais. Hoje, afirma, o Direito Privado é um processo em curso, um complexo de regras nas quais a autonomia convive com os valores constitucionais e com o mercado. Por mais de um século o Direito Privado esteve sob a autoridade do Estado. Hoje a sua palavra de ordem é pessoa, liberdade, mercado e regulação. Por mais de um século o Direito Privado foi ordenado pelos Códigos, pelas fontes rígidas preordenadas. Hoje, com a pluralidade de fontes, aquele modelo se tornou elástico e fluído e a tudo se acresce o papel da jurisprudência, do diritto vivente3. Esse direito vivente, que não é o direito propriamente vivo, mas o direito que vive, que vê a vida da norma no tempo e no espaço a partir da sua aplicação4, é uma característica forte da "paisagem jurídica pós-moderna", como afirma Paolo Grossi. E é próprio nesta paisagem que se reconheça no trabalho hermenêutico dos juízes a expressão mais genuína de um direito vivente, o modo pelo qual concretamente a disposição legislativa vive no ordenamento, como sinal da expansão judicial5. É o resultado do fenômeno da pluralidade ou policentrismo de fontes normativas, que não são coordenadas e não são diferenciadas pelo grau de legalidade, e daí o recurso aos princípios e conceitos jurídicos indeterminados. Não pretendemos investigar ou criticar neste momento a causa deste fenômeno, mas tão somente constatar esta inexorável realidade, a despeito da vontade que muitos manifestam de que não fosse assim. Essa característica do Direito pós-moderno, que se volta para uma certa historicidade, em detrimento do rigor da lei, dá relevo ao intérprete e, particularmente, ao protagonismo dos juízes e da jurisprudência. Estudar e conhecer o Direito Privado hoje impõe o atento exame da interpretação dos Tribunais, não só pela hermenêutica que se desenvolveu nos últimos anos, como também pelo sistema complexo de vinculações estabelecido pelo Código de Processo Civil de 2015, que valorizou sobremaneira a interpretação judicial, seguindo essa tendência pós-moderna. Ao apresentar o programa científico da Rivista de Cultura Giuridica e Diritto Vivente, Giuseppe Giliberti assinala que o direito observado não coincide com o direito oficial, legislado, porque deve confrontar-se também com a praxe judiciária, os interesses sociais, os valores e a cultura jurídica. Este trabalho de contínua redefinição da norma é inevitável nos ordenamentos codificados, porque a uma sociedade viva não pode corresponder um direito petrificado6. Esta coluna pretende abordar o Direito Privado como ele se apresenta, olhando muito de perto a jurisprudência, o direito vivente, como resultado da interpretação, que não pode ser entendida somente como "conhecimento", porque interpretar é compreensão, intermediação entre a mensagem do texto (sempre estranho ao devenir) e a atualidade do intérprete7. Este é o caminho que o Direito Privado pós-moderno está percorrendo, embora, como adverte Paolo Grossi, é possível qualquer mudança, e há movimentos nesse sentido, dos quais nos ocuparemos em outra oportunidade. O nosso projeto, acolhido pelo Migalhas, é publicar a cada quinzena, um artigo, recebendo também contribuições de outros autores. Convidamos o leitor a participar desta empreitada e esperamos que o nosso esforço possa oferecer uma contribuição ao entendimento desse Direito Vivente. __________ 1 Guido Alpa. Che cos'è il diritto privato? Roma-Bari : Gius Laterza & Figli Spa, 2009, p. VI - Prefazione. 2 Op. cit., p. VIII - Prefazione. A expressão "direito vivente" foi utilizada pela primeira vez na Itália, pela Corte Constitucional, em 11 de dezembro de 1974 (sentença n. 276), para indicar uma interpretação estabilizada na jurisprudência, cuja exegese pode ser considerada "direito vivente" (L. Salvato. Profili del "diritto vivente" nella giurisprudenza costituzionale. Publicado em fevereiro de 2015 no sítio da Corte Costituzionale). Salvato usa a definição de M. Cavino: "Diritto vivente" costituisce un sintagma utilizzato in diversi contesti ed in differenti accezioni, per indicare - in estrema sintesi e con l'inesattezza che questa rende ineludibile - la communis opinio maturata nella giurisprudenza e nella dottrina in ordine al significato normativo da attribuire ad una determinata disposizione. Secondo la prevalente dottrina, «la verbalizzazione del formante giurisprudenziale nella dottrina del diritto vivente» nel nostro Paese è conseguita proprio «alla riflessione condotta dalla Corte costituzionale che con la propria giurisprudenza ha riconosciuto espressamente il suo valore» 3 Op. cit., p. 10-11. 4 Na obra de Eligio Resta o Direito Vivente se apresenta como o direito que surge da vida e está na vida, é o direito "animado", que passa da exegese à hermenêutica, no qual a interpretação e a aplicação têm papel determinante (Diritto vivente. Roma-Bari : Gius. Laterza & Figli Spa, 2008). Em boa interpretação de sua obra pode ser consultado, de Fernanda Damacena e Suellen Webber, "Observações sobre o Direito Vivente na Sociedade Complexa" (Revista do Curso de Direito - FSG 13/22, p. 3-21), do qual se extrai o seguinte: "Na mesma medida em que o Direito precisa da vida, em inúmeras circunstâncias, proporciona sua morte. Essa situação pode ser facilmente vislumbrada quando não se permite que um Direito, com outros fundamentos, como o Vivente, efetivamente seja o decidido e julgado. O Direito "morto" neste contexto seria o da lei, da regra, pura e simplesmente, sem contato com o vivo. O Direito Vivente descrito por Resta persegue a busca da difícil incorporação da vida no Direito. A noção de vida e morte traz à tona à ambivalência, uma das categorias mais trabalhadas por Eligio em toda sua obra e, também, uma das características mais típicas do Direito. Nesse sentido, a relação entre Direito e vida é apresentada como um jogo de aproximação e distanciamento. A expressão Direito Vivente significa "direito animado" que vive e tem vida. É o Direito que se apresenta de um modo, mas poderia se apresentar de outro, que tenta regular o próprio direito, quando não consegue regular nem o Direito nem a vida em sociedade. Portanto, é revestido da contingência luhmanniana. O Direito Vivente olha a vida da norma no tempo e no espaço. Não é uma leitura literal da norma, mas da sua aplicação. É neste aspecto que o Direito ganha vida e se torna animado". 5 Paolo Grossi escreve sobre o "Ritorno al Diritto", cuja essência foi reduzida, alterada e traída durante a modernidade. O retorno ao direito passa pela sua conexão não só com às manifestações de vontade do titular do poder político, mas sobretudo aos princípios informadores do ordenamento jurídico decorrentes diretamente dos valores que dão suporte a um complexo de aspectos culturais espontâneos e organizados historicamente por uma coletividade (civiltà storica). (Ritorno al Diritto. Roma-Bari : Gius. Laterza & Figli Spa, 2.019, p. 84-87). Em outras palavras, critica-se o positivismo legal a partir do Código Civil francês, que fez o jurista, como observa Antonio Junqueira de Azevedo, procurar o texto da lei, ao invés da razão. Pode-se dizer que, segundo Junqueira, "a partir daí, cada vez mais quem diz "direito" diz "lei". O direito não é somente lei. O texto não basta. (O direito, ontem e hoje. Crítica ao neopositivismo constitucional e insuficiência dos direitos humanos. Publicado em "Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado". São Paulo : Saraiva, 2009, p. 8-9). 6 Giuseppe Giliberti. Manifesto. "Rivista de Cultura Giuridica e Diritto Vivente" | 1/2014. 7 Paolo Grossi. Il giudice civile. Un interprete? Publicado em "L'invenzione del diritto". Roma-Bari : Gius. Laterza & Figli Spa, 2017, p. 88.