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Novos Horizontes do Direito Privado

Abordagem de como se apresenta o Direito Privado.

Carlos Alberto Garbi
Há muito está superada a controvérsia a respeito da natureza contratual da sociedade. Na doutrina já se sustentou que a sociedade não é constituída por um contrato, mas sim por ato complexo1. Esse entendimento estava fundado na ideia equivocada de que na sociedade não há conflito de interesses entre as partes. Tullio Ascarelli já assinalava que o contrato de sociedade, desde a sua constituição e durante a vida da sociedade, compreende um natural conflito de interesses entre os sócios. Lembrava, como exemplo, o conflito que pode existir na conferência de bens em favor da integralização do capital, voltado para a avaliação dos bens, conflito muito semelhante àquele que ocorre nos contratos de escambo. Lembrava, ainda, o conflito que pode existir na distribuição de lucros ou na administração da sociedade. Afastou, portanto, a ideia de ato complexo para afirmar a existência de um contrato na sociedade, que distinguiu dos contratos de escambo pela comunhão de objetivos entre os sócios. Funda-se, exatamente na comunhão de escopo, inerente ao contrato de sociedade, o traço distintivo mais relevante entre o contrato de sociedade e o contrato de escambo2. É esse objetivo comum que pode levar ao falso entendimento de que não há conflito de interesses no contrato de sociedade, do qual também decorrem dificuldades para entender os efeitos causados pelos vícios na formação do contrato e os efeitos do inadimplemento das obrigações contraídas pelos sócios. Para a formação do contrato de sociedade é necessário o acordo de vontades, como ocorre em qualquer contrato. É certo que há sociedades que não são constituídas por um contrato, e sim por negócio unilateral, como é o caso da sociedade unipessoal, introduzida no Código Civil pela lei 13.874/20193. Nota-se na redação do dispositivo referido ("Se for unipessoal, aplicar-se-ão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social." - art. 1.052, § 2º, CC), que no caso de sociedade unipessoal, em boa técnica, não se fala em contrato, mas em "documento de constituição", ao qual, no que couber, serão aplicadas as disposições do contrato social. Por isso, para dizer da constituição da sociedade, prefere J.M. Coutinho de Abreu falar de "sociedade-ato jurídico", porquanto existem atos constitutivos de sociedades sem natureza contratual (sociedade unipessoal), e mesmo sem natureza negocial, como é o caso de sociedades de capital público, constituídas por lei4. Não obstante o devido enquadramento da constituição da sociedade em "sociedade ato-jurídico", o contrato é a forma natural de sua criação quando concorre a vontade de duas ou mais pessoas (sócios). Em razão da natureza singular que esse contrato apresenta, a ele igualmente se reconhece um regime jurídico diferente do direito contratual em geral. J.M. Coutinho de Abreu assinala as características marcantes deste contrato de sociedade: "Trata-se de um contrato de fim comum (a obtenção de lucros distribuíveis pelos sócios) e de organização (o negócio faz nascer uma entidade estruturada orgânico-funcionalmente), não de um contrato comutativo (como é, v.g., a compra e venda)."5 Na doutrina se formou uma forte corrente, liderada por Tullio Ascarelli, no sentido de que o contrato social é uma espécie de contrato plurilateral, no qual cada contratante assume obrigações em relação aos demais, com o objetivo de exploração em conjunto da atividade empresarial, com uma particular característica, que é o fato de surgir do contrato social um novo sujeito de direitos. Essa doutrina recebeu larga consideração em vários países e oferece boas respostas à complexidade desta relação contratual. Desde logo é importante assinalar que a sociedade, como sujeito de direitos, constituída pelo contrato, também é parte nas relações jurídicas estabelecidas pelo ato constituinte, o que soma complexidade a este contrato. Há uma íntima relação entre o ato constituinte (contrato social) e a sociedade. Explica J.M. Coutinho de Abreu que "o ato faz nascer a entidade, esta assenta geneticamente nele e por ele é em boa medida disciplinada. Mas, por outro lado, há um considerável desprendimento da sociedade-entidade relativamente ao ato constitutivo: afora o fato da organização e funcionamento internos da sociedade serem em larga medida independentes do ato de constituição (sendo diretamente regidos pela legislação societária), ela é novo sujeito (distinto do sócio), que por si atua e se relaciona com outros sujeitos."6 Quando o sócio deixa de fazer as contribuições que se obrigou pelo contrato, é a sociedade que deverá notificá-lo, e o sócio responderá perante ela pelos danos decorrentes da mora (art. 1.004, CC). Caberá à sociedade, também, restituir o sócio remisso e pagar haveres ao retirante e ao excluído (art. 1.031, CC), e por isso é chamada a integrar sempre o processo no qual se pede a sua dissolução parcial. Tullio Ascarelli, sob o seu aspecto estrutural, vê no contrato social uma subespécie de contrato, que se distingue dos contratos em geral (contratos de permuta, de trocas, de escambo): (i) pela possibilidade de participação de mais de duas partes: (ii) pelo fato de que, quanto a todas estas partes, decorrem do contrato, quer obrigações, de uma lado, quer direitos, de outro. Quando se fala em mais de duas partes no contrato plurilateral, evidentemente não se refere ao número de sujeitos. Uma compra e venda com condôminos pode ter vários sujeitos, mas somente duas partes (vendedor e comprador). O contrato plurilateral se apresenta, portanto, com a "possibilidade" de participação de mais de duas partes, como ocorre no contrato de sociedade, no qual não é possível agrupar todas em dois grupos ou dois polos. Os interesses contrastantes das várias partes na sociedade devem ser unificados por uma finalidade comum. O contrato de sociedade é, portanto, finalístico, e obriga a todos os sócios, inclusive aos aderentes posteriores, em torno de um fim comum, de uma atividade ulterior. As partes, no contrato de sociedade, cumprem as obrigações assumidas com o propósito de organizar o desenvolvimento de uma atividade ulterior, da qual não se pode desviar sem risco para as responsabilidades dos sócios. Também decorre desta observação a distinção que deve ser feita entre os requisitos de formação do contrato e outros, que dizem respeito à vida da organização, que devem continuamente subsistir. O contrato de sociedade é um contrato de execução continuada, porque formado para desenvolver uma atividade ulterior. Os prazos do contrato de sociedade são determinados, não para o cumprimento de obrigações, mas pelo tempo que deve perdurar essa atividade. O contrato plurilateral, como é o contrato de sociedade, compreende partes que são titulares de direitos e obrigações. Por esta razão se pode dizer, não quanto à sua formação, mas quanto aos efeitos que produz, que é um contrato "bilateral". No contrato de sociedade cada sócio tem obrigações e adquire direitos em relação a todas as outras partes (sócios). Por isso Ascarelli afirma que as partes se acham como dispostas em círculos e não em extremos de uma linha. No contrato em geral, a sua conclusão ocorre quando as partes estão simultaneamente presentes, reunindo os consentimentos. No contrato de sociedade, que tem a participação de mais de duas partes, a reunião dos consentimentos não precisa ocorrer simultaneamente, admitindo-se a constituição sucessiva da sociedade pelos ausentes naquele ato de constituição. Por isso pode-se admitir uma nova parte, assim como pode ocorrer a retirada ou exclusão do sócio sem nenhuma solução de continuidade para o contrato de sociedade. Os contratos de sociedade são contratos abertos, no sentido de que admitem a entrada e a saída de partes, o que não ocorre nos contratos em geral. O aspecto mais relevante da ideia de contrato plurilateral diz respeito aos vícios de adesão e ao cumprimento de obrigações assumidas pelas partes. A atenção à sua peculiar natureza é a condição para o enquadramento das soluções que se deve dar a estas situações. O vício de vontade na adesão ao contrato de sociedade não tem o efeito produzido nos contratos de escambo em geral. O vício de vontade (incapacidade, erro, dolo, coação etc.) invalida o contrato de escambo, mas não produz igual efeito no contrato plurilateral, porque é possível distinguir o ato de adesão de cada parte (e os vícios existentes). Logo, o vício de adesão ao contrato de sociedade de uma parte invalida somente a manifestação desta parte, não importando em nulidade ou anulabilidade do contrato. Ocorre uma espécie de aplicação do princípio da conservação dos contratos, que propõe não atribuir ao vício consequências além do necessário. A solução pode ser diversa se a invalidade da adesão de uma das partes implicar em substancial redução de capital a tornar impossível a consecução do objeto social. O contrato de sociedade constituí uma organização destinada a entrar em relação com terceiros. Esta característica impõe uma solução diversa aos casos de vícios de adesão da parte, impedindo efeitos retroativos, que poderiam prejudicar terceiros (credores). Exige-se, portanto, uma solução diversa no tratamento dos vícios do contrato plurilateral em favor de uma necessária tutela dos interesses de terceiros, havendo uma tendência em conter internamente estes efeitos invalidantes. Cabe lembrar que o contrato plurilateral apresenta, ainda, outra característica, que é a separação entre as relações internas (entre os sócios) e as relações externas (estabelecidas com terceiros, quase sempre credores). São estas últimas relações decorrentes da natureza de organização e do caráter instrumental do contrato. Outro aspecto relevante da natureza plurilateral do contrato de sociedade diz respeito à inexecução das obrigações contraídas pelas partes. O inadimplemento da obrigação em relação a uma das partes, não determina a resolução do contrato. A resolução ocorre somente em relação ao vínculo do sócio inadimplente, sem nenhum prejuízo ao contrato de sociedade, quando ainda possível a consecução dos seus fins sociais. Questão interessante suscita a sinalagma própria dos contratos bilaterais. Caso uma das partes do contrato de sociedade não cumpra a obrigação contraída (v.g. integralização do capital), questiona-se se as outras partes estão autorizadas a não cumprir também as suas obrigações, alegando exceptio inadimpleti contractus. A resposta é negativa. A ideia de contrato plurilateral oferece solução adequada a esta questão. Nega-se, portanto, a existência de sinalagma (ao menos no sentido que se lhe atribui normalmente) no contrato plurilateral, que é a relação de dependência, ou propriamente de interdependência, entre as prestações. A parte não está autorizada a não cumprir a obrigação se outra não o fez, como ocorre nos contratos de escambo, porque a inexecução das obrigações de uma parte não exclui a permanência no contrato entre as demais, a não ser que a consecução do seu fim não possa ser alcançada. Existe no contrato plurilateral uma equivalência entre as prestações, mas é uma equivalência entre as obrigações e direitos de uma parte em relação a todas as outras partes. Nesse sentido explica Giuseppe Ferri que existe interdependência entre as várias obrigações, seja no momento genético, seja naquele funcional, somente enquanto todas elas são assumidas em função de um escopo estabelecido previamente. A obrigação do sócio não constitui o correspectivo da obrigação do outro, mas junto com esta o meio para realizar o escopo comum. Exatamente pela realização do escopo comum é que o sócio receberá o benefício ou vantagem correspectiva à obrigação assumida7. A influência da obrigação de um sócio sobre o contrato por inteiro se determina, de acordo com Ferri, "através do diafragma do escopo comum". Explica Ferri que esse entendimento não permite ao sócio negar o cumprimento da sua obrigação em razão do inadimplemento da obrigação do outro sócio, não se admitindo a exceção do contrato não cumprido, salvo se o cumprimento da obrigação do outro é condição necessária para alcançar o escopo comum. E acrescenta, portanto, que o contrato de sociedade não sofre nenhum efeito pela morte, exclusão ou recesso do sócio, a não ser que importe substancial impedimento para alcançar o escopo comum8. Resolvido o contrato em relação ao sócio inadimplente, a sua substituição na sociedade não tem a natureza de novação e não altera substancialmente o contrato. O Código Civil seguiu a doutrina do contrato plurilateral, como se percebe em diversas passagens. No enunciado que precede ao art. 1.028 e seg., que cuida da resolução da sociedade em relação a um sócio, se vê aplicada a solução preconizada para o contrato plurilateral. São hipóteses previstas nestes dispositivos pelas quais o contrato se desfaz em relação a somente um dos sócios (morte, retirada do sócio, sócio remisso, exclusão por falta grave e falência do sócio).  Também em relação à sociedade limitada o Código Civil cuida da resolução da sociedade em relação ao sócio minoritário, quando se entender que um os mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa em virtude de atos de inegável gravidade (art. 1.085, CC). De outra parte, a natureza de organização que é própria do contrato de sociedade implica na gestão desta organização e, consequentemente, no reconhecimento de direitos das partes na administração e na tomada de deliberações por maioria. Diz Ascarelli que é justamente na comunhão de escopo existente na sociedade que se assenta o poder da maioria. Quanto mais intensos os interesses comuns, mais se legitima a deliberação pelo poder da maioria. A organização externa constituída pelo contrato implica na criação de uma pessoa jurídica (o contrato plurilateral é o substrato da pessoa jurídica) e a partir da sua existência algumas características mais interessantes do contrato plurilateral, no seu aspecto externo, são reveladas: (i) o patrimônio da sociedade é separado e não está sujeito a um regime de condomínio, porque ele pertence à pessoa jurídica e não aos participantes do contrato; (ii) as obrigações contraídas pela pessoa jurídica não são obrigações dos participantes. A natureza plurilateral do contrato de sociedade quase sempre permanece nas sombras das decisões que envolve a complexidade do contrato de sociedade, mas não passa ao largo da jurisprudência, da qual nos ocuparemos em outra oportunidade. *Na próxima edição da nossa coluna contaremos com a honrosa participação do doutor Almir Gasquez Rufino, que organizou, junto com Jacques de Camargo Penteado, as duas edições dos "Grandes Juristas Brasileiros", publicadas pela Editora Martins Fontes. Teremos, portanto, um pouco da memória do nosso Direito Privado. Não percam! __________ 1 Tullio Ascarelli explica que esta distinção entre contrato e ato complexo decorre da observação de que no contrato as partes são animadas por interesses contrapostos, enquanto no ato complexo as partes apresentam-se animadas por idêntico interesse. Ascarelli logo desfaz esta ideia equivocada, no sentido de que não há conflito de interesses na sociedade, para defender a existência de um contrato (O Contrato Plurilateral. "Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado" 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 1969, p. 258). O Código Civil brasileiro é expresso ao estabelecer no art. 997 que "a sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público." 2 Nesse sentido a doutrina de Pier Giusto Jaeger, Francesco Denozza e Alberto Toffoletto (Appunti di Diritto Commerciale - impresa e società. 7ª ed. Milano : Giuffrè Editore, p. 82-84). 3 É certo que antes da modificação legislativa referida já era reconhecida no direito brasileiro a sociedade unipessoal em casos de dissolução parcial da sociedade, quando se permitia a existência temporária da sociedade com apenas um sócio até que a pluralidade fosse restabelecida. 4 Jorge Manuel Coutinho de Abreu. Curso de Direito Comercial. Vol. II. 5ª ed. Coimbra : Almedina, p. 20. 5 Op. cit, p. 95. 6 Op. cit., p'. 20. 7 Giuseppe Ferri. Manuale di Diritto Commerciale. 15ª ed. a cura di C. Angelici e G.B. Ferri. Milano : Utet, 2017, p. 175. 8 Op. cit., p. 175.
O usufruto é originário do direito romano. Mais recente que as servidões prediais, "surgiu por obra da jurisprudência, no século II a.C., quando se difundiu em Roma o casamento que não é acompanhado da conuentio in manum. Neste, ao contrário do que ocorria no casamento a que se segue a conuentio in manum, a mulher não ingressava na família do marido, e, consequentemente, não se tornava herdeira dele. Muitas vezes, enquanto vivo o marido, a mulher dispunha de recursos que ele lhe propiciava, mas, quando ele falecia, ficava reduzida à miséria. Para obviar a isso, surgiu o usufruto, possibilitando-se assim que o marido, antes de morrer, e sem nomeá-la, no testamento, herdeira, em prejuízo dos filhos, a designasse usufrutuária de certos bens. O usufruto, portanto, nasceu com certo caráter alimentício"1. Já no período clássico do direito romano, o usufruto se distinguia do direito de propriedade e era considerado como direito sobre coisa alheia (ius in re aliena). No direito de Justiniano o usufruto, até então independente das servitutes, foi aproximado das servidões prediais e enquadrado em categoria nova, denominada servidões pessoais (servitutes personarum)2. Explica Cunha Gonçalves que "esta expressão de servidão pessoal atravessou os tempos até o século XVIII, em que o Código civil da Prússia a pôs de parte, classificando o usufruto como direitos de gôzo; e em França, ao tempo da elaboração do respectivo Código civil, depois que a Revolução Francesa abolira todos os serviços pessoais de origem feudal (corvéss) e abolida estava na Europa a escravidão, aquela expressão pareceu obnóxia, e, por isso, dela se não encontra qualquer traço no Código civil francês. Todavia, os jurisconsultos modernos continuam a usar e até defendem a expressão servidões pessoais, que nos parece inadmissível e errônea, porque o usufruto não recai nas pessoas, mas sim nas coisas"3. O Código Civil de 2002, com mais técnica, se afastou do romanismo e regula simplesmente as "servidões", não mais adjetivadas.  É interessante notar como um modelo antigo de direito privado, que nasceu para atender a um determinado fim, amparar a mulher sem direito à herança na morte do marido, foi utilizado modernamente para outra finalidade, confirmando uma espécie de característica genética do direito privado de se amoldar às novas necessidades sociais4. Com o tempo surgiu o usufruto oneroso e sobre qualquer coisa, como verdadeiro negócio jurídico. A ideia de fruição de um bem, como dono, sem adquirir a sua titularidade, foi levada a outras relações. Hoje é comum estabelecer usufruto sobre quotas e ações de empresas, como meio de planejar a sucessão. Pretendemos abordar algumas questões que envolvem essa nova espécie de usufruto, ou talvez melhor fosse dizer desse novo objeto do usufruto, e a sucessão de partes societárias. Geralmente o usufruto de participações societárias é utilizado na criação de uma Holding5. É o caso da pessoa que formou ao longo da vida um patrimônio e que deseja planejar a sua sucessão, com o propósito de prevenir litígios entre herdeiros, proteger o patrimônio, antecipar a herança, e ao mesmo tempo melhorar a administração dos seus bens, com a redução de tributos. É a Holding patrimonial. A Holding (a designação vem de to hold, que na língua inglesa quer dizer manter, controlar, segurar, etc.) foi prevista no art. 2º, § 3º, da Lei das Sociedades Anônimas (lei 6.404/76), que estabeleceu: "A companhia pode ter por objeto participar de outras sociedades; ainda que não prevista no estatuto, a participação é facultada como meio de realizar o objeto social, ou para beneficiar-se de incentivos fiscais". A interpretação mais abrangente do objeto da Holding, que não se limita a deter participações em outras sociedades, admitiu a chamada Holding patrimonial, que tem por finalidade deter exclusivamente patrimônio. Esse tipo de sociedade, também muito empregado no controle de outras sociedades empresárias, bem serviu ao propósito de planejar a sucessão. O capital da Holding é integralizado com imóveis ou a participação em outras sociedades (quotas e ações). O instituidor divide o capital em quotas ou ações, dependendo do tipo societário que escolheu (sociedade limitada, unipessoal, EIRELI ou sociedade anônima) e cede aos herdeiros, reservando-se para ele o usufruto vitalício. A Constituição Federal assegura imunidade na transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital (art. 156, § 2, I), o que facilita a criação da Holding. Recentemente o Supremo Tribunal Federal apreciou o Tema 796 de Repercussão Geral e fixou o entendimento de que "A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado". Essa decisão exige a maior atenção hoje na criação da Holding6. Para a constituição de uma Holding patrimonial com a finalidade sucessória são necessários outros cuidados7. É importante assegurar expressamente ao usufrutuário o exercício exclusivo de direitos políticos e econômicos, sobre as quotas ou ações, e delimitar os poderes de administração decorrentes, para evitar que eventuais conflitos de interesses entre o usufrutuário e o herdeiro titular da propriedade das quotas e ações venham a ocorrer. É importante estabelecer, expressamente, no caso de Holding constituída a partir da cessão das quotas pelos cônjuges ou companheiros em favor dos herdeiros, que a morte de um dos usufrutuários não extingue a sua parte no usufruto. É o chamado direito de acrescer a parte do usufrutuário morto, previsto no art. 1.411 do Código Civil. As quotas podem ser gravadas com cláusula de incomunicabilidade, inalienabilidade e impenhorabilidade, protegendo-se da ação de futuros credores e da indesejada comunicação patrimonial pelo casamento dos herdeiros. A constituição da Holding não pode ocorrer em prejuízo de credores do instituidor e, também, não pode resultar em fraude, quando a estrutura societária só existe no papel e no registro. A sociedade constituída deve ter vida, observando as normas contábeis e tributárias. O usufruto pode ser utilizado também quando ocorre a doação de quotas ou ações. Neste caso não existe uma Holding. O titular das quotas e ações antecipa a legítima com a doação, e reserva a ele o usufruto vitalício. É preciso, também, deixar claro quais são os poderes do usufrutuário a respeito da administração, voto e direito de acrescer. É necessário estabelecer qual será o destino do usufruto se ocorrer a liquidação da sociedade. Não se deve deixar dúvidas sobre a extensão do usufruto em caso de aumento de capital ou subscrição de ações em razão do exercício de preferência. Cabe, também, dizer sobre o direito de retirada do sócio em relação ao usufruto e a participação do usufrutuário em acordo de sócios e acionistas. Caso a doação de partes societárias ocorra sem reserva de usufruto, é possível estabelecer condição para a doação, exigindo a manutenção de administrador, observância de certas diretrizes da empresa, proibição de distribuição de lucros e dividendos acima de certo limite (evitando a descapitalização da sociedade) e a proibição de investimentos de risco. É possível, neste caso de doação sem reserva de usufruto, condicionar a doação à outorga de mandato irrevogável em favor do doador para administração da empresa, com indicação expressa dos poderes conferidos. Neste cenário de planejamento sucessório e as empresas há uma particular situação que igualmente exige cuidados. É o caso do titular de participações societárias que, sem recorrer à constituição de uma Holding ou à doação de quotas e ações, pensa nos efeitos da sua sucessão sobre a empresa da qual participa. É possível incluir no contrato da sua sociedade cláusulas que podem evitar litígio e preservar a empresa. Algumas recomendações podem ser feitas: a) estabelecer quem pode entrar na sociedade no caso da sua morte, restringindo a entrada de incapazes, meeiros, legatários ou herdeiros que não exerçam certa profissão; b) dispor sobre a nomeação e forma de administração da sociedade em caso de ingresso de herdeiros: c) impor direito de preferência para a cessão de quotas  e acordo de acionistas para as sociedades anônimas; d) estabelecer o destino das quotas que não admitir ingresso de herdeiros (redução de capital, retenção em tesouraria etc.); e) estabelecer a possibilidade de exclusão de sócio e prever as hipóteses de justa causa (desvio de clientela, violação de sigilo, recusa em assinar documentos etc.); f) estabelecer a forma de apuração e pagamento de haveres (metodologia, juros, correção e parcelamento do pagamento); g) estabelecer claramente quóruns de deliberação e aprovação de matérias. Essas medidas e outras são muito importantes, especialmente quando o titular de participações societárias estabeleceu múltiplos relacionamento durante a vida, gerando filhos de relações diferentes, quando a possibilidade do litígio entre herdeiros é real, com grave prejuízo para a sociedade. Procuramos fazer um panorama das questões mais frequentes. Existem muitas outras possibilidades para planejar a sucessão. O usufruto tem se mostrado um instrumento muito útil para esse fim e merece a atenção dos advogados. Em outra oportunidade pretendemos examinar a jurisprudência que se formou a respeito destas questões. O planejamento sucessório deve ser uma preocupação de todos que desejam prevenir litígios entre herdeiros, proteger o patrimônio, conservar empresas, facilitar a sucessão e reduzir custos, mas exige atenção máxima, porque o resultado pode ser indesejado. ___________ 1 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 5ª ed., Rio de Janeiro : Forense, 1983, V. 1, p. 410. 2 ALVES, José Carlos Moreira. op. cit., p. 411. 3 GONÇALVES, Luiz da Cunha. Tratado de Direito Civil. 1ª ed. Brasileira, v. XI, t. I e II. São Paulo : Max Limonad, p. 472. 4 A respeito do usufruto e sua relação jurídica me permitido indicar o que escrevi (Carlos Alberto Garbi. Relação Jurídica de Direito Real e Usufruto. São Paulo : Método, 2008). 5 Sobre Holding e planejamento sucessório vale a consulta à obra de Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede (Holding familiar e suas vantagens: planejamento jurídico e econômico do patrimônio e da sucessão familiar. São Paulo : Atlas, 2020.). 6 A tese foi fixada por maioria de votos em julgamento que se concluiu em 04.08.2020. Aguarda-se a publicação do Acórdão e das declarações de voto para o entendimento adequado da decisão. 7 A respeito pode ser consultada a obra de Fernanda Valle Versiani (Usufruto de Participações Societárias. Belo Horizonte : Editora D'Plácido, 2017).
Me recordo de uma velha lição que ouvi de um experiente professor nos bancos da faculdade. Dizia que o direito civil se assentava em três pilares: a propriedade, o contrato e a família. Já se foram muitos anos desde que aquelas palavras encheram o meu pensamento de perplexidades. Se o direito civil representava a constituição do cidadão e governava toda a sua vida, então o universo se resumia àqueles três elementos: propriedade, contrato e família. O excesso desta proposição, evidentemente, pretende assinalar a enorme relevância desses fundamentos para a tradição do Direito Privado. No direito romano a figura central era a propriedade, sua segurança e estabilidade, com vistas à conservação e ao aproveitamento das riquezas. Era o direito por excelência. Ao contrato se reservava a função de aquisição e disposição da propriedade, e suas formalidades eram ditadas em favor da proteção dos contratantes enquanto proprietários. O contrato não tinha maior relevância, visto somente como um meio de transmitir a propriedade. Com a Revolução Francesa e o Code de Napoleão de 1804, voltado para uma sociedade de economia prevalentemente rural e com particular interesse sobre a propriedade imóvel, o contrato passa a ser reconhecido como uma garantia de conservação da propriedade, na medida em que se protege com rigor a autonomia da vontade. Ninguém poderia ser privado dos seus próprios bens sem o concurso da sua vontade livre. O contrato, portanto, recebe toda a atenção necessária à garantia da livre manifestação da vontade. A forma do contrato, importante para os romanos, cede lugar de importância à vontade dos contratantes. É o consensualismo, fundamental na teoria clássica do contrato. Essa transformação do contrato decorreu em boa medida da forma como era utilizado na Idade Média, no âmbito dos usos do comércio (Lex Mercatoria), entre os mercadores, que se interessavam pela celeridade das contratações e pelo desenvolvimento do tráfico de mercadorias. É o contrato como meio de fazer negócios. É na moderna sociedade industrial que o contrato se afasta da propriedade para servir, agora, como instrumento característico da atividade empreendedora, voltada para a produção e o mercado. A exigência de produção e circulação de riqueza prevalece sobre a propriedade. Nos Novecentos se acentua a tendência de objetivar o contrato, reduzindo o valor subjetivo da vontade das partes. É a crise do consensualismo1, que já foi identificada por Grant Gilmore como a morte do contrato2. Essa tendência ganha impulso a partir do final do século passado, com a aplicação pela jurisprudência das cláusulas gerais da boa-fé, equidade, equilíbrio e função social, concorrentes com a vontade das partes e com a lei. Em favor da equidade e da justiça contratual, o juiz se habilita a corrigir o ato de autonomia contratual e a restabelecer o equilíbrio das prestações. É o que Francesco Galgano chamou de "governo judiciário da discricionariedade contratual"3 ou, simplesmente, nas palavras de Guido Alpa, "controle judicial do contrato"4. Essa intervenção no contrato veio com a crise do Estado moderno, que é uma crise da legalidade, segundo Paolo Grossi, uma crise que se refletiu no ordenamento positivo e na ideia de que o contrato faz lei entre as partes, o que levou o grande economista Keynes a afirmar, em notável conferência sobre "O fim do laissez-faire", depois escrita e publicada, que não há direito absoluto no contrato.5 Um outro aspecto desta evolução se verifica já na fase pós-industrial, quando o contrato passa a servir a uma economia das finanças, dos valores mobiliários e instrumentos financeiros, portando engenhosa técnica contratual criativa de novas riquezas (new properties). Se fala em um Terzo Contratto5 e na revisão da sua classificação. O que mais tem suscitado o interesse dos juristas atualmente sobre o contrato, e ele está vivo, como sempre esteve, é efetivamente o controle judicial, que coloca em questão a relação entre a autonomia da parte e os limites do ordenamento jurídico, limites que podem ser aplicados pelo juiz no exame dos contratos. Ao escrever sobre o Projeto do Código Civil, Miguel Reale observava que, "se o contrato é o produto da autonomia da vontade, não quer dizer que essa vontade deva ser incontrolada: a medida de seu querer nasce de uma ambivalência, de uma correlação essencial entre o valor do indivíduo e o valor da coletividade. O contrato é o elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e de medida. E é por esta razão que estabelecemos um artigo do Projeto do Código Civil, que me parece muito importante ter presente, no qual se declara que contrato terá que ser analisado em razão de sua função social. É o princípio da socialidade governando o Direito Obrigacional."7 Esses limites podem versar sobre o mérito do interesse perseguido pela parte, sua legitimidade ou conformidade com a lei, sobre a sua licitude ou reprovabilidade social e até mesmo sobre a sua conformidade moral e ética. Percebe-se que esse controle pode ser muito amplo, sondando os elementos do contrato, como a sua causa, objeto, forma e elementos acidentais, assim como os precedentes da sua formação, como a fase de tratativas, de troca de informações e documentos. Esse controle pode dar lugar à responsabilidade pré-contratual, contratual e extracontratual, observando a sua execução, frustração, extinção e os impedimentos ao seu exato cumprimento. O espaço de valoração do contrato e de operatividade do juiz, e os limites da sua discricionariedade, são ainda mais amplos quando as disposições aplicáveis contêm cláusulas e princípios gerais, como a boa-fé, solidariedade, razoabilidade, proporcionalidade, função social etc. Aproveitando a observação de Guido Alpa, se pode dizer que é amplíssimo o raio de ação de controle judicial, um raio que foi alargado no curso do tempo, partindo da aplicação literal e restritiva da lei a uma interpretação elástica, atenta a novas exigência sociais e econômicas, proporcionada pela "explosão" das cláusulas gerais.8 O poder que tem o juiz de "controlar" o contrato não é, contudo, ilimitado. O limite da discricionariedade de valoração do contrato pelo juiz deve ser encontrado também no ordenamento jurídico, e principalmente na jurisprudência. Como afirmou Eros Roberto Grau, "por mais que isso revolte a doutrina, a segurança e a previsibilidade dos contratos passa, necessariamente, pela interpretação que as Cortes dão às avenças. O reconhecimento do crucial papel do Poder Judiciário talvez seja o início da superação de tantos entraves enfrentados pela ordem jurídica na promoção do comércio."9 Os precedentes da nossa Corte Superior, que tem a última palavra na interpretação da lei infraconstitucional, dão conta do reconhecimento e da amplitude dos poderes do juiz no exame dos contratos. Destaco dois julgados representativos: "O acórdão recorrido está em consonância com a Jurisprudência do STJ quando sustenta que a autonomia privada, como bem delineado no Código Civil de 2002 (arts. 421 e 422) não constitui um princípio absoluto em nosso ordenamento jurídico, sendo relativizada, entre outros, pelos princípios da função social, da boa-fé objetiva e da prevalência do interesse público; e que o Direito brasileiro admite, expressamente, a revisão contratual, diante da alteração superveniente das circunstâncias que deram origem ao negócio jurídico. Precedentes." (AgInt no AREsp 1450387/AP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/06/2019, DJe 11/06/2019) "Ademais, a jurisprudência deste Tribunal Superior é firme no sentido de que o princípio da pacta sunt servanda pode ser relativizado, visto que sua aplicação prática está condicionada a outros fatores, como, por exemplo, a função social, a onerosidade excessiva e o princípio da boa-fé objetiva dos contratos. Incidência da Súmula 83/STJ. Precedentes." (AgInt no AREsp 1506600/RJ, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 09/12/2019, DJe 12/12/2019) A amplitude dos poderes do juiz no exame dos contratos é angustiante para o jurista deste século, porque porta uma insegurança e indeterminação que não havia na modernidade. Também é, todavia, uma característica do momento histórico que vivemos e de um novo paradigma do contrato, segundo Vincenzo Roppo, um contrato no qual a "força de lei" resulta notavelmente atenuada10, não para lhe decretar a sua morte, mas para lhe dar vida. Como diz Eros Roberto Grau, com apoio em Corbin, o jurista deve libertar-se da ilusão da certeza.11 Há aspectos positivos da valorização da jurisprudência neste cenário de transição para a pós-modernidade, refletidos diretamente no Direito Privado. É que as normas decorrentes da jurisprudência, pela sua concretude e historicidade, podem ser mais estáveis e racionais, assim como mais próximas da realidade e dos valores econômicos e sociais. Esta estabilidade, todavia, depende muito da forma como operam racionalmente os juízes. Depende, particularmente, da efetividade das disposições do Novo Código de Processo Civil de 2015 quanto às exigências do seu art. 489 para a motivação das decisões e o respeito aos precedentes. Essa racionalidade que se exige das decisões judiciais, que foi sendo introduzida no direito brasileiro por influência do common law e do seu sistema de precedentes, que promove uma espécie de retorno ao direito, que deve ser pensado e interpretado (compreendido), é a garantia de segurança contratual, e não propriamente de certeza, e também um imperativo do Direito Privado vivente na interpretação dos Tribunais. A expressão máxima do individualismo, traduzida no poder negocial que dá origem ao contrato, não encontra no controle judicial propriamente uma restrição, mas o equilíbrio necessário à promoção dos valores sociais e econômicos, bem definidos na nossa Constituição Federal.__________ 1 - Ver a respeito Paolo Pollice in "Il Contratto - appunti per um corso di diritto civile", Torino : G. Giappichelli Editore, 2015, p. 63-70. 2 - É o título do clássico livro de Grant Gilmore - The Death of Contract, que tenho em mãos na versão traduzida para o italiano por Andrea Fusaro, com um prólogo de Guido Alpa ("La morte del contrato". Milano : A. Giuffrè Editore, 1999) 3 - Para um bom panorama histórico do contrato vale a leitura das primeiras páginas de Francesco Galgano in "Il Contratto" (Cedam, 2ª ed., Milano : 2011). 4 - Le Stagioni del Contratto. Bologna : il Mulino, 2012, p. 161-173. 5 - O fim do "laissez-faire". In: SZMRECSÁNYI, Tamás (Org.). Economia. Tradução de Miriam Moreira Leite. São Paulo: Ática, 1978. p. 106-7. Um estudo primoroso apresentado na conferência que fez em Oxford (novembro de 1924) e numa palestra na Universidade de Berlim em junho de 1926, publicado em Essays in persuasion - CWJMK. Londres: Macmillan, 1972. v. IX, cap. IV-2. p. 272-94. Keynes escreveu em 1936, aos cinquenta e dois anos, durante a grande depressão americana, a sua obra mais famosa - The General Theory of Employment, Interest and Money (A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda) - considerada, na opinião de Dudley Dillard, professor de economia da Universidade de Maryland (EUA) e conhecedor das teorias de Keynes, "um repúdio dos fundamentos do laissez-faire" (A teoria econômica de John Maynard Keynes. 6. ed. Tradução de Albertino Pinheiro Júnior. São Paulo: Pioneira, 1989. p. 3). 6 - Já tivemos a oportunidade de escrever a respeito (Il Terzo Contratto, uma nova modalidade de contrato empresarial). 7 - Miguel Reale se referia ao atual artigo 421 do Código Civil (O Projeto de código civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo : Saraiva, 1986, p. 10) 8 - Guido Alpa anota que as compilações de jurisprudência na italia, organizadas cientificamente, evidenciam as operações judiciais no controle dos contratos. Esse valor da jurisprudência como fonte do direito, uma característica da pós-modernidade, é resultado, segundo Guido Alpa, da passagem por diversas fases. Inicialmente o valor da jurisprudência como fonte do direito foi muito debatido na doutrina, passando a uma fase factual ou pragmática, mediante o recurso aos precedentes invocados pelos advogados nas suas peças defensivas, e depois na motivação das sentenças. Essa afirmação da jurisprudência como fonte do direito também encontra outra dimensão na atividade legislativa, que muitas vezes transforma os precedentes em disposições legais. (Op. cit., p. 164) 9 - Um Novo Paradigma dos Contratos? Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. V. 96 (2001). 10 - Esse novo paradigma do contrato é resultado de um conjunto de fatores, que não podemos abordar nesta oportunidade. A respeito consultar a obra de Vincenzo Roppo (Il contrato del duemila. Terza edizione. Torino : G. Giappichelli Editore, 2011). 11 - Op. cit.
quarta-feira, 29 de julho de 2020

Direito Privado - Direito Vivente

Ao estrear esta coluna, que ocupo com muita honra no Migalhas, um informativo eletrônico completo e indispensável ao jurista moderno, quero falar um pouco sobre o Direito Privado do nosso tempo, que é fruto, como escreveu Guido Alpa, de uma história milenária, e que tem grande densidade cultural, sólida organização dogmática e fundamental função prática1. O Direito Privado tem domínio sobre os setores mais proeminentes da nossa vida social e econômica, cuidando da pessoa e dos seus bens, da sua vida privada e dos seus negócios, do nascituro e das pessoas jurídicas, dos mercadores e do mercado. As fronteiras do Direito Privado são largas e as suas relações são cada vez mais complexas. Convencido de que o jurista moderno não pode ignorar essa atual tendência transcendente do Direito Privado, que transita entre os vários setores da ciência jurídica, dando passos, vez ou outra, nos territórios do Direito Público, influenciado por doutrinas e sistemas de todo o mundo, numa verdadeira simbiose que lhe atribuiu uma nova fisionomia, surgiu o nosso desejo de assinar uma coluna e, junto com o leitor, empreender uma viagem pela cultura e o conhecimento do seu vasto universo. Guido Alpa bem assinalou a ideia de que o Direito Privado é uma imagem da sociedade, na qual as suas regras são aplicadas, voltado a garantir o direito das pessoas, físicas e jurídicas, numa dimensão que não está confinada na tutela de interesses privados, mas se propõe a atender ao interesse público com o qual deve haver um adequado temperamento, sem se afastar dos valores da economia. Esse Direito Privado do qual fala Guido Alpa é aquele atento aos direitos fundamentais da pessoa, em particular, das pessoas que se encontram em posição débil e vulnerável, como é o caso do consumidor, das empresas tomadoras de crédito, dos imigrantes, das mulheres e crianças, da pessoa portadora de deficiência, das minorias de gênero etc. Mas também é o Direito Privado das companhias, das relações empresariais e do mercado. Para o jurista italiano é possível observar o Direito Privado com um telescópio, individualizando os seus eixos de direção, categorias, finalidades e estrutura. Outros preferem olhar com o microscópio, para estudar o caso concreto, colocando-o no interior do ordenamento. Prefere ele, todavia, voltar a sua atenção ao Direito Privado com o emprego de um caleidoscópio, porque o Direito Privado, variegado, complexo e fascinante é ao mesmo tempo tecnico, sapienziale e giurisprudenziale. É um direito que se modela de tempo em tempo, seguindo a evolução do ordenamento, da prática e do direito vivente, mas também dos métodos interpretativos2. Segundo a sua observação, ainda, o Direito Privado se transformou no tempo. Nos Oitocentos era o direito dos privados, a esfera que não deveria ser penetrada pelo Estado. Na primeira metade dos Novecentos era a esfera da autonomia das pessoas enquadradas nos paradigmas do Estado (legislador, regulador, empreendedor, administrador). Na segunda metade dos Novecentos era a esfera privada na qual o Estado garantia os valores constitucionais. Hoje, afirma, o Direito Privado é um processo em curso, um complexo de regras nas quais a autonomia convive com os valores constitucionais e com o mercado. Por mais de um século o Direito Privado esteve sob a autoridade do Estado. Hoje a sua palavra de ordem é pessoa, liberdade, mercado e regulação. Por mais de um século o Direito Privado foi ordenado pelos Códigos, pelas fontes rígidas preordenadas. Hoje, com a pluralidade de fontes, aquele modelo se tornou elástico e fluído e a tudo se acresce o papel da jurisprudência, do diritto vivente3. Esse direito vivente, que não é o direito propriamente vivo, mas o direito que vive, que vê a vida da norma no tempo e no espaço a partir da sua aplicação4, é uma característica forte da "paisagem jurídica pós-moderna", como afirma Paolo Grossi. E é próprio nesta paisagem que se reconheça no trabalho hermenêutico dos juízes a expressão mais genuína de um direito vivente, o modo pelo qual concretamente a disposição legislativa vive no ordenamento, como sinal da expansão judicial5. É o resultado do fenômeno da pluralidade ou policentrismo de fontes normativas, que não são coordenadas e não são diferenciadas pelo grau de legalidade, e daí o recurso aos princípios e conceitos jurídicos indeterminados. Não pretendemos investigar ou criticar neste momento a causa deste fenômeno, mas tão somente constatar esta inexorável realidade, a despeito da vontade que muitos manifestam de que não fosse assim. Essa característica do Direito pós-moderno, que se volta para uma certa historicidade, em detrimento do rigor da lei, dá relevo ao intérprete e, particularmente, ao protagonismo dos juízes e da jurisprudência. Estudar e conhecer o Direito Privado hoje impõe o atento exame da interpretação dos Tribunais, não só pela hermenêutica que se desenvolveu nos últimos anos, como também pelo sistema complexo de vinculações estabelecido pelo Código de Processo Civil de 2015, que valorizou sobremaneira a interpretação judicial, seguindo essa tendência pós-moderna. Ao apresentar o programa científico da Rivista de Cultura Giuridica e Diritto Vivente, Giuseppe Giliberti assinala que o direito observado não coincide com o direito oficial, legislado, porque deve confrontar-se também com a praxe judiciária, os interesses sociais, os valores e a cultura jurídica. Este trabalho de contínua redefinição da norma é inevitável nos ordenamentos codificados, porque a uma sociedade viva não pode corresponder um direito petrificado6. Esta coluna pretende abordar o Direito Privado como ele se apresenta, olhando muito de perto a jurisprudência, o direito vivente, como resultado da interpretação, que não pode ser entendida somente como "conhecimento", porque interpretar é compreensão, intermediação entre a mensagem do texto (sempre estranho ao devenir) e a atualidade do intérprete7. Este é o caminho que o Direito Privado pós-moderno está percorrendo, embora, como adverte Paolo Grossi, é possível qualquer mudança, e há movimentos nesse sentido, dos quais nos ocuparemos em outra oportunidade. O nosso projeto, acolhido pelo Migalhas, é publicar a cada quinzena, um artigo, recebendo também contribuições de outros autores. Convidamos o leitor a participar desta empreitada e esperamos que o nosso esforço possa oferecer uma contribuição ao entendimento desse Direito Vivente. __________ 1 Guido Alpa. Che cos'è il diritto privato? Roma-Bari : Gius Laterza & Figli Spa, 2009, p. VI - Prefazione. 2 Op. cit., p. VIII - Prefazione. A expressão "direito vivente" foi utilizada pela primeira vez na Itália, pela Corte Constitucional, em 11 de dezembro de 1974 (sentença n. 276), para indicar uma interpretação estabilizada na jurisprudência, cuja exegese pode ser considerada "direito vivente" (L. Salvato. Profili del "diritto vivente" nella giurisprudenza costituzionale. Publicado em fevereiro de 2015 no sítio da Corte Costituzionale). Salvato usa a definição de M. Cavino: "Diritto vivente" costituisce un sintagma utilizzato in diversi contesti ed in differenti accezioni, per indicare - in estrema sintesi e con l'inesattezza che questa rende ineludibile - la communis opinio maturata nella giurisprudenza e nella dottrina in ordine al significato normativo da attribuire ad una determinata disposizione. Secondo la prevalente dottrina, «la verbalizzazione del formante giurisprudenziale nella dottrina del diritto vivente» nel nostro Paese è conseguita proprio «alla riflessione condotta dalla Corte costituzionale che con la propria giurisprudenza ha riconosciuto espressamente il suo valore» 3 Op. cit., p. 10-11. 4 Na obra de Eligio Resta o Direito Vivente se apresenta como o direito que surge da vida e está na vida, é o direito "animado", que passa da exegese à hermenêutica, no qual a interpretação e a aplicação têm papel determinante (Diritto vivente. Roma-Bari : Gius. Laterza & Figli Spa, 2008). Em boa interpretação de sua obra pode ser consultado, de Fernanda Damacena e Suellen Webber, "Observações sobre o Direito Vivente na Sociedade Complexa" (Revista do Curso de Direito - FSG 13/22, p. 3-21), do qual se extrai o seguinte: "Na mesma medida em que o Direito precisa da vida, em inúmeras circunstâncias, proporciona sua morte. Essa situação pode ser facilmente vislumbrada quando não se permite que um Direito, com outros fundamentos, como o Vivente, efetivamente seja o decidido e julgado. O Direito "morto" neste contexto seria o da lei, da regra, pura e simplesmente, sem contato com o vivo. O Direito Vivente descrito por Resta persegue a busca da difícil incorporação da vida no Direito. A noção de vida e morte traz à tona à ambivalência, uma das categorias mais trabalhadas por Eligio em toda sua obra e, também, uma das características mais típicas do Direito. Nesse sentido, a relação entre Direito e vida é apresentada como um jogo de aproximação e distanciamento. A expressão Direito Vivente significa "direito animado" que vive e tem vida. É o Direito que se apresenta de um modo, mas poderia se apresentar de outro, que tenta regular o próprio direito, quando não consegue regular nem o Direito nem a vida em sociedade. Portanto, é revestido da contingência luhmanniana. O Direito Vivente olha a vida da norma no tempo e no espaço. Não é uma leitura literal da norma, mas da sua aplicação. É neste aspecto que o Direito ganha vida e se torna animado". 5 Paolo Grossi escreve sobre o "Ritorno al Diritto", cuja essência foi reduzida, alterada e traída durante a modernidade. O retorno ao direito passa pela sua conexão não só com às manifestações de vontade do titular do poder político, mas sobretudo aos princípios informadores do ordenamento jurídico decorrentes diretamente dos valores que dão suporte a um complexo de aspectos culturais espontâneos e organizados historicamente por uma coletividade (civiltà storica). (Ritorno al Diritto. Roma-Bari : Gius. Laterza & Figli Spa, 2.019, p. 84-87). Em outras palavras, critica-se o positivismo legal a partir do Código Civil francês, que fez o jurista, como observa Antonio Junqueira de Azevedo, procurar o texto da lei, ao invés da razão. Pode-se dizer que, segundo Junqueira, "a partir daí, cada vez mais quem diz "direito" diz "lei". O direito não é somente lei. O texto não basta. (O direito, ontem e hoje. Crítica ao neopositivismo constitucional e insuficiência dos direitos humanos. Publicado em "Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado". São Paulo : Saraiva, 2009, p. 8-9). 6 Giuseppe Giliberti. Manifesto. "Rivista de Cultura Giuridica e Diritto Vivente" | 1/2014. 7 Paolo Grossi. Il giudice civile. Un interprete? Publicado em "L'invenzione del diritto". Roma-Bari : Gius. Laterza & Figli Spa, 2017, p. 88.