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Uma dupla e conexa (ou coligada) relação: de direito real e de direito pessoal

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Atualizado às 07:39

No último artigo desta coluna procuramos distinguir os direitos reais e os direitos pessoais. Esse contraste possibilitou dar relevo a um estatuto ou regime jurídico da relação jurídica de direito real. Nesta oportunidade pretendemos ingressar em um outro aspecto de grande interesse no conhecimento dos direito reais, que diz respeito aos tipos de direitos reais limitados, especialmente os tipos de fruição ou gozo, como é o caso do usufruto, da servidão e da superfície. Estas relações de direito real não têm sido enfrentadas sob uma perspectiva do direito pessoal, que se mostra ofuscada pela força e oponibilidade do direito real.

A questão da concorrência de poderes estabelecidos sobre o mesma coisa em favor de titularidades diversas, como é o caso, no usufruto, do proprietário e do usufrutuário, nos impõe penetrar nessa complexa situação jurídica real até identificar uma dupla relação jurídica, que compreende simultaneamente o direito real (exterior), que se projeta em boa parte para fora da estrutura de poder sobre a coisa, e o direito pessoal (interior), que se volta para o interior dessa relação, ambas atuando ao mesmo tempo sobre as partes envolvidas e terceiros, destacando-se o forte conteúdo obrigacional que está presente nessa relação interior, que se apresenta conexa ou coligada ao direito real.

A percepção desse conteúdo obrigacional, presente mais nitidamente no usufruto e na servidão, pode levar a uma melhor compreensão dos direitos e obrigações que decorrem dessa complexa relação jurídica, como também posicionar corretamente o terceiro em face do poder decorrente do direito real.

O interesse no estudo sistemático da conexão ou coligação real, observam Gustavo Tepedino e Gabriel Rocha Furtado, "não reside apenas na identificação dos valores e princípios jurídicos que permitem harmonizar o exercício de situações jurídicas incidentes sobre o mesmo bem, mas também na verificação dos efeitos que a criação, modificação ou extinção de algum desses direitos pode surtir nos demais - propósito para o qual será necessário identificar efeitos ínsitos à coligação de situações reais de fruição, de situações reais de garantia e de ambas as categorias entre si."1

A perspectiva dessa dupla relação impõe, ainda, uma revisão dos velhos conceitos a respeito da chamada obrigação passiva universal e do reconhecimento, encontrado em geral na doutrina, de uma natureza absoluta própria dessa categoria de direitos.2

A autonomia que tem o direito real limitado, em relação à propriedade, importa na existência de uma relação lógica, não com o proprietário, mas com outra situação de poder autônoma que concorre sobre a mesma coisa, objeto de ambas as relações de direito real, relação de coexistência que exige uma distinção entre ambas as situações de poder que só pode ser delimitada pela existência de elementos de uma estrutura de natureza obrigatória capaz de harmonizar as distintas relações de utilidade de que gozam.

Ocorre que, segundo a doutrina de Manuel Albaladejo: "... en la realidad se dan también casos en los que derecho real (poder sobre cosa) y obligación o derecho de crédito (poder de exigir una conducta a otra persona) se dan mezclados de una u otra forma"3. É o que se verifica, de acordo com a indicação do jurista espanhol, na "Situación en la que se da como figura central un derecho real, junto al que el titular del mismo tiene ciertas obligaciones hacia otra persona o ciertos derechos de crédito contra ésta (para la que son obligaciones). Contenido obligacional que se podría llamar conexo al derecho real. Por ejemplo, las obligaciones de hacer o de no hacer que entre si tienen quien es usufructuario (usufructo, derecho real) de una cosa, y el propietario de ésta, o que tienen entre sí los que son copropietarios de una cosa. Este contenido obligacional conexo al derecho real, se suele dar porque recayendo sobre una misma cosa los derechos reales de dos personas (en los ejemplos puestos, usufructuario y propietario, o copropietarios entre sí), tienen éstas una serie de puntos de contacto que hay que disciplinar estableciendo obligaciones a cargo de una y otra."4

Os deveres presentes nessa relação jurídica são concretos, determinados, desde o início, por lei ou pelo título constitutivo do direito real limitado, e afastam essa relação jurídica concreta daquela outra posição que o titular de direito real limitado mantém frente a todos os terceiros indeterminados, dos quais se pode reclamar apenas um abstrato dever de respeito e abstenção5.  Aqui se tem, portanto, bem definida essa dupla relação, ou esse conteúdo obrigacional conexo, expressão utilizada por Albaladejo, que caracteriza o direito real sobre coisa alheia.

Portanto, como bem observado na obra de Jose Luis Lacruz Berdejo em referência ao usufruto, e que se aplica igualmente a outras espécies de direitos reais sobre coisa alheia: "Hay, pues, un rico entramado de derechos, facultades, obligaciones, que vinculan a los dos protagonistas de la relación de usufructo."6

Não há como negar, portanto, o forte conteúdo obrigacional presente nos direitos reais limitados, especialmente no usufruto e na servidão, que impõe reconhecer uma dupla relação criada a partir da constituição desses direitos. Uma delas é tipicamente de direito real, envolvendo uma obrigação universal de respeito mais intensa e dirigida a terceiros não determinados, decorrente da natureza absoluta que tem o direito real e da oponibilidade que lhe é assegurada, relação jurídica que só é concretizada quando violado esse direito e que pode ser estabelecida inclusive entre o proprietário e o usufrutuário. Outra se estabelece desde o início, e não a partir da violação do direito, entre o proprietário e o titular do direito real concorrente, porque ambos têm direitos incidentes sobre uma só coisa. É uma relação jurídica delimitada por deveres de conteúdo positivo e, portanto, de natureza obrigacional, cuja violação encontra a tutela do direito pessoal (dever de ressarcimento) na própria relação jurídica constituída e não na responsabilidade aquiliana.

A coexistência desses direitos sobre a mesma coisa cria essa relação complexa que não pode ser simplesmente comparada à outra, que é a propriedade, porquanto não há desmembramento de faculdades ou poderes reais em favor do titular de direito real limitado, mas uma situação nova e autônoma que deve ser regrada por uma disciplina própria capaz de harmonizar essa dupla e complexa estrutura, o que depende necessariamente da identificação da relação jurídica que se põe em questão, se de direito real ou de direito obrigacional, quando será definido o seu estatuto próprio.

É um aspecto das relações de direito real pouco desenvolvido na doutrina em geral7 e raro nas discussões judiciais, mas certamente tem enorme peso na adequada decisões dos conflitos envolvendo a concorrência de poderes sobre a mesma coisa. Na nova economia compartilhada essas questões serão cada vez mais recorrentes.

__________

1 Direitos reais coligados: uma investigação que se anuncia. XXIV Encontro Nacional do Conpedi - UFS - Direito Civil-Constitucional, 2015, p. 143/162. Coord. : Ilton Garcia da Costa, Clara Angélica Gonçalves Dias, César Augusto de Castro Fiuza. Florianópolis : Conpedi, 2015 (acesso aqui).

2 Como anotam Gustavo Tepedino e Gabriel Rocha Furtado , "Tal investigação visa ao desenvolvimento de critérios valorativos para a conciliação dos exercícios de direitos reais constituídos sobre um mesmo bem. De fato, não é incomum que haja conflitos entre titulares de situações reais coligadas entre si, sejam elas de domínio, de fruição ou de garantia, ocasionados diretamente pelo nexo estrutural que une tais situações. A disciplina legal dos direitos reais sobre coisa alheia não apresenta soluções para boa parte desses conflitos (sobretudo quando eles ocorrem entre dois direitos independentes entre si, e não entre o domínio e um direito dele derivado). A multiplicidade de interações possíveis entre direitos reais constituídos sobre um mesmo bem gera uma dinâmica própria no exercício daqueles direitos - em princípio oponíveis a todos, mas que, na relação interna entre seus titulares, podem se tornar relativamente não oponíveis entre si, no âmbito de uma escala de preferência de exercícios ainda pouco analisada pela doutrina. Em outros termos, quando coligados entre si (e internamente a essa coligação), direitos reais podem se tornar relativos, a partir de critérios valorativos que determinam a tutela prioritária de certos exercícios em detrimento de outros, e que carecem de estudo pormenorizado para sua aplicação segura e adequada." (op. cit.).

3 ALBALADEJO, Manuel. Derecho civil III. 8ª ed., Barcelona: José Maria Bosch Editor, 1994.

4 Op. cit., p. 21.

5 Jesus Dominguez Platas extrai importante conclusão: "... hay que afirmar que existe una limitación al derecho de propiedad, pero ésta es sólo el efecto de la existencia de un derecho real limitado, y no basta entonces con constatar que tal límite se da; sino partiendo de él, conocer cuál sea la estructura de los derechos reales limitados, porque esa limitación no es más que el reflejo de la coexistencia sobre un mismo bien de dos derechos. Esta coexistencia, que requiere ciertamente una relación entre ambas situaciones de poder, no podrá nunca entenderse si se desconoce la verdadera relación intersubjetiva que la substenta: la que se establece entre los titulares de ambas situaciones jurídicas." (PLATAS, Jesús Domínguez. Obligación y derecho real de goce. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994.p. 105).

6 BERDEJO, Jose Luis Lacruz; REBULLIDA, Francisco de Assis Sancho; SERRANO, Agustin Luna et al. Elementos de derecho civil, III, derechos reales. 2ª ed., Barcelona: Jose Maria Bosch Editor, 1991, v. 2., p. 21.

7 Escrevi a respeito há algum tempo (Relação jurídica de direito real e usufruto. Ed. Método: São Paulo, 2007), provocado pelo Professor José Manuel de Arruda Alvim, que me orientou no meu mestrado.