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Superendividamento ou insolvência?

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Atualizado em 22 de fevereiro de 2022 17:08

O Brasil esperava há muito tempo pelo tratamento legal do superendividamento. A expectativa era grande a partir do projeto de lei 283/12, de autoria do Senador José Sarney. Esse projeto resultou, depois de longa tramitação, na lei 14.181/21, que entrou em vigor no dia 2 de julho de 2.021, alterando o CDC. Estabeleceu, como princípio de Política Nacional de Relações de Consumo, a prevenção e o tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor (art. 4º, X, CDC).

Sabemos todos dos efeitos econômicos e sociais decorrentes da negativação do consumidor perante o mercado de crédito e as suas implicações para o acesso ao consumo. A questão do superendividamento está diretamente ligada, portanto, à dignidade da pessoa, à inclusão social e à garantia de acesso mínimo aos bens de consumo, daí a enorme relevância de uma lei que pudesse regular a matéria. Vale lembrar que, segundo o Mapa da Inadimplência e Renegociação de Dívidas no Brasil, publicado pelo SERASA, em dezembro de 2021 se registrou quase 64 milhões de inadimplentes, somando  dívidas no total de 252 bilhões de reais.1

Não é preciso dizer mais para que se possa entender que o tratamento do superendividamento não é somente um problema social, voltado para as pessoas e famílias, mas é também um problema da economia e do crédito. Na verdade, o superendividamento é uma parte do problema envolvendo outro maior, que é a insolvência em geral, tanto dos empresários e sociedades empresárias, como também das pessoas naturais. O tratamento desse problema avançou muito nos últimos anos em todo mundo, abandonando-se a ideia de falência, que deu lugar à insolvência. O Brasil avançou, mas não o suficiente. É uma carência que temos no direito brasileiro.

A atenção do referido Projeto, que se tornou lei, foi dirigida à prevenção do superendividamento, garantindo ao consumidor, ao lado da educação financeira, as práticas do chamado "crédito responsável", preservado o "mínimo existencial", nos termos da regulamentação, por meio da revisão e repactuação da dívida, entre outras medidas (art. 6º, XI e XII, CDC).

Já nos deparamos aqui com o primeiro grande problema: a lei não define o que é "mínimo existencial", deixando essa definição a um ato de "regulamentação". Não fosse somente a dificuldade, para não dizer impossibilidade, de encontrar uma definição para uma ideia tão abstrata como é a ideia do "mínimo existencial", também não cuidou a lei de dizer sobre a titularidade do poder de regulamentação. Não se afasta a possibilidade, por isso, de haver mais de uma regulamentação, talvez setorial (p. ex. imobiliária, financeira, mercado de consumo em geral), ou mesmo nenhuma.

Enquanto não estabelecida a regulamentação, tudo ficará por conta do nosso Judiciário, e não é preciso dizer que este preceito poderá receber a mais variada interpretação até que encontre alguma definição consolidada.

Essa ideia de assegurar o mínimo existencial na concessão do crédito e no tratamento do superendividamento veio, sem dúvida, por influência francesa do Code de la consommation, que se refere à uma limitação da percentagem apreensível do salário do consumidor, para que lhe seja reservada a parte dos recursos necessários às despesas correntes da família (art. L731-1). Não é exatamente o "mínimo existencial" que está previsto na lei brasileira, mas se identifica com o propósito do Projeto de limitar a 30% o comprometimento do salário do consumidor nos chamados empréstimos consignados. Sucede que essa proposição, a respeito dos consignados, foi vetada pela Presidência da República (estava no art. 54-E)2 e o "mínimo existencial", que encontrava algum sentido concreto na lei, ficou "solto" no texto aprovado, remetido para um ato de regulamentação, o que prenuncia dificuldades na sua aplicação.

Os problemas da Lei do Superendividamento vão além e são, a nosso ver, estruturais. A lei 14.181/21 não distinguiu as situações de endividamento, multiendividamento, superendividamento e insolvência do consumidor. Há situações em que o devedor está endividado, mas cumpre as obrigações, no entanto o faz com sacrifício. Ele não é insolvente e o sacrifício pode lhe retirar o mínimo existencial ou não. Há outras situações de comprometimento total das receitas do consumidor para o pagamento das dívidas. Neste caso, parece que ao consumidor pode faltar o mínimo existencial.  Em outra situação, o devedor tem bens suficientes para o cumprimento das obrigações, mas lhe falta liquidez. Ele pode ser entendido como insolvente. Outra situação é de incapacidade de pagamento, porque o volume de dívidas está acima da capacidade do devedor. É um caso de insolvência. O endividamento ou superendividamento pode ser passivo e até involuntário, nos casos de doença, desemprego, acidentes, pandemia etc. Ele pode decorrer de uma conduta imprudente do consumidor ou até mesmo de má-fé. Há, portanto, situações objetivamente diversas que não foram consideradas. Ao contrário, a lei preferiu dar valor a um aspecto subjetivo na constituição das dívidas (má-fé do devedor e dívidas para aquisição de produtos de luxo de alto valor), o que muito dificulta o tratamento adequado do superendividamento e da insolvência.

A lei apresentou uma definição de superendividamento que mais se aproxima da definição de insolvência ao dizer, no art. 54-A, § 1º, o seguinte: "Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação."

Cabe lembrar que a lei 11.101/05, que regula a recuperação judicial e a falência, define a crise de insolvência, "pela insuficiência de recursos financeiros ou patrimoniais com liquidez suficiente para saldar suas dívidas" (art. 51, § 6º, I).

Nota-se que, objetivamente, o superendividamento definido na lei se aproxima muito da definição de insolvência empresarial, pela impossibilidade do pagamento da totalidade das dívidas (cash flow). A diferença na definição está somente na consideração que a lei deu à "boa-fé" do devedor.

Não é fácil, realmente, distinguir a insolvência do superendividamento. A doutrina especializada, especialmente estrangeira, sempre apontou essa dificuldade. No entanto, é no tratamento dessas situações que a diferença deve ser percebida. Como princípio, o tratamento do superendividamento se volta para o devedor, procurando devolver a ele o acesso ao crédito e aos bens de consumo, enquanto na insolvência o interesse prevalente é do credor e na satisfação das dívidas, olhando para a liquidação dos seus bens. Ocorre que a Lei do Superendividamento deu à hipótese de insolvência, que não distinguiu, o tratamento próprio do superendividamento, colocando todas as realidades diversas no mesmo regime.

Há outros equívocos nessa solução. Diante de uma situação de insolvência, o melhor tratamento é aquele que estabelece o concurso de credores, no qual a igualdade deve ser assegurada (par conditio creditorum). Todavia, a lei brasileira se deixou contaminar, sob a influência francesa, pela ideia de que o consumidor pode ter contraído o superendividamento de má-fé, fazendo dívidas que não pretendia pagar, e afasta dos procedimentos previstos para o respectivo tratamento o credor que foi vítima desse consumidor, deixando de fora uma parte das dívidas, como se quisesse, nesse caso, aplicar uma sanção ao devedor. É evidente que o consumidor terá, nesse caso, todos os seus esforços de reorganização financeira prejudicados pela ação que esses credores continuam livres para promover. Nem faz sentido impor a todos os demais credores sacrifícios que não serão suportados pelos credores que foram vítimas do consumidor de má-fé, excluídos das medidas de tratamento, caso seja aplicado um plano de pagamento compulsório.

A lei também deixou de fora do tratamento as dívidas decorrentes da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor (art. 54-A, § 3°), deixando esses credores livres.

Em ambos os casos (dívidas contraídas de má-fé e dívidas decorrentes da aquisição de produtos de luxo de alto valor), incorre a lei no equívoco de confiar na reorganização financeira do devedor sem a participação de todos os seus credores. E mais: deixando de fora parte dos credores, a lei acaba por relativizar a garantia do "mínimo existencial", que só poderá ser observada pelo juiz no tratamento das dívidas contraídas de boa-fé, porque admite que ao devedor de má-fé se pode impor qualquer sacrifício, vez que ele não tem acesso às medidas de tratamento do superendividamento. A aplicação desses preceitos enfrenta a dificuldade de olhar para o consumidor e ver ao mesmo tempo a sua boa-fé, em relação a parte das dívidas, e a sua má-fé, em relação a outra parte, porque a lei defere as medidas para um conjunto de dívidas e nega ao outro.

Deixou de fora do tratamento do superendividamento as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural (art. 104-A).

Em face da insolvência, a igualdade de tratamento dos credores é um princípio universal que deve ser assegurado em um processo concursal. Excluir credores desse processo é o movimento contrário ao que preconiza toda a doutrina especializada no estudo da insolvência. De outra parte, essa espécie de "perseguição de culpados" (devedores e credores) e a consideração subjetiva que pretende a lei (devedor de má-fé, dívidas de luxo), ao lado da enorme dificuldade de caracterização objetiva que apresenta, retoma noções primitivas e já superadas de punição dos devedores, que não resolve a questão do superendividamento ou da insolvência.

A par destas questões, para o tratamento do superendividamento, a lei estabeleceu dois procedimentos: a) processo de repactuação de dívidas (art. 104-A);  b) processo de superendividamento (art. 104-B).

No primeiro deles, o consumidor superendividado (ou insolvente) apresenta uma proposta de Plano de Pagamento, com prazo máximo de 5 anos, preservado o mínimo existencial, com vistas à realização exclusivamente de uma audiência conciliatória. Nesse procedimento, que poderá se extinguir com essa audiência, o credor que não comparecer injustificadamente, terá suspensa a exigibilidade do seu crédito e só receberá depois do pagamento dos credores que compareceram à audiência. Se o acordo com "qualquer credor" ocorrer, a sentença judicial de homologação terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada.

No Plano de Pagamento deverá constar medidas de dilação de prazo, redução de encargos, exclusão de banco de dados e cadastros de inadimplentes e o duvidoso "condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento".

Estabelece a lei que esse pedido do consumidor não é uma declaração de insolvência civil, assegurando que o consumidor possa repetir o pedido depois de 2 anos, contados da liquidação das obrigações (que não pode passar de 5 anos). No entanto, define o superendividamento pela insolvência. Uma contradição assumida para que o consumidor não seja atraído ao concurso de credores, mas sem oferecer alternativa adequada.

Se não houver acordo na referida audiência, "a pedido do consumidor", será instaurado processo por superendividamento "para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório". Note-se que esse processo depende de um pedido do devedor, que poderá não ter interesse em fazê-lo. Também temos dúvidas sobre o que se pretende com a "revisão" e "integração" de contratos em procedimento desta natureza.

Para esse processo, os credores que não fizeram parte do acordo previsto na fase antecedente, serão "citados" para dizer das razões da negativa de aceder ao plano. Parece que a lei não pensou em outra matéria de defesa. O juiz poderá nomear um administrador, desde que não onere as partes, para apresentar em 30 dias um plano de pagamento. O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor principal corrigido, com o pagamento da primeira parcela em 180 dias e prazo máximo de 5 anos. Não há previsão para impugnação e decisão sobre os créditos, que naturalmente haverá.

Esse processo de superendividamento, entrega ao juiz o poder de impor um plano aos credores, contrariando o modelo privatista adotado na maior parte dos países, que atribuiu aos credores a decisão sobre planos de pagamento dos devedores. Essa decisão monocrática do juiz, e não a decisão coletiva dos credores, bem evidencia a natureza compulsória da solução da lei para o superendividamento. O plano compulsório bem pode se justificar em alguns casos de superendividamento, mas não nos casos de insolvência. A lei, todavia, não fez distinção.

Esse modelo de concentração de poderes no juiz em casos de insolvência e repactuação de dívidas se mostra fora do seu tempo. E para o superendividamento as soluções mais adequadas defendidas pela doutrina sempre passaram pela decisão dos credores. Também se vê, como já destacamos, que uma parte importante dos credores ficou de fora desse plano, livre para promover ações de constrição patrimonial contra o devedor e reduzir o seu patrimônio. Outros credores podem ter obtido acordos singulares e mais vantajosos com o devedor antes do processo ou na fase conciliatória antecedente prevista. É um plano compulsório, portanto, para alguns, e não para todos os credores, e não há garantia de igualdade de tratamento.

A lei não é clara, mas tudo indica pelo fato de que o plano será apresentado de acordo com as possibilidades de pagamento do devedor, ressalvado o mínimo existencial, que ao final do prazo de cinco anos será extinta a dívida que não foi paga. Todavia, de forma contraditória, diz que o plano deve assegurar aos credores o pagamento do principal corrigido. Também não está claro na lei se o acordo ou o plano compulsório tem o efeito de novação, como se dá na lei 11.101/05, assim como não está claro na lei quais são as consequências do inadimplemento do plano, como por exemplo o restabelecimento da obrigação originária.

O que sentimos efetivamente é a oportunidade perdida para atender a um reclamo antigo de criação de um procedimento adequado para regular a insolvência da pessoa natural e o superendividamento do consumidor, que já existe em muitos países. Recebemos um diploma que poderá ter sucesso parcial no tratamento do superendividamento dos consumidores. A lei é positiva na disciplina do crédito responsável e na formulação de um procedimento de aproximação do devedor e seus credores, mas deixou frustrada uma expectativa de cuidar melhor do superendividamento e da insolvência da pessoa natural, com a possibilidade de redução e perdão de dívidas e exclusão de encargos.  O saudoso professor Renan Lotufo dizia que as leis nem sempre são boas, mas com o tempo e o trabalho da doutrina e da jurisprudência elas se tornam melhores e úteis. Que assim seja.

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1 Acesso à informação disponível aqui.

2 Transcrevemos parte das razões do veto: "Entretanto, apesar da boa intenção do legislador, a propositura contrariaria interesse público ao restringir de forma geral a trinta por cento o limite da margem de crédito já anteriormente definida pela lei  14.131/21, que estabeleceu o percentual máximo de consignação em quarenta por cento, dos quais cinco por cento seriam destinados exclusivamente para amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito ou de utilização com finalidade de saque por meio do cartão de crédito, para até 31 de dezembro de 2021, nas hipóteses previstas no inciso VI do caput do art. 115 da lei 8.213/91, no § 1º do art. 1º e no § 5º do art. 6º da lei 10.820/03, e no § 2º do art. 45 da lei 8.112/90, bem como em outras leis que vierem a sucedê-las no tratamento da matéria, trazendo instabilidade para as operações contratadas no período de vigência das duas legislações. Mister destacar que o crédito consignado é uma das modalidades mais baratas e acessíveis, só tendo taxas médias mais altas que o crédito imobiliário, conforme dados do Banco Central do Brasil. Assim, a restrição generalizada do limite de margem do crédito consignado reduziria a capacidade de o beneficiário acessar modalidade de crédito, cujas taxas de juros são, devido à robustez da garantia, inferiores a outras modalidades. A restrição acabaria, assim, por forçar o consumidor a assumir dívidas mais custosas e de maior dificuldade de pagamento".