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O Trust no Brasil - algumas anotações

quarta-feira, 9 de março de 2022

Atualizado em 8 de março de 2022 18:35

O trust surgiu na Inglaterra. A doutrina especializada sobre o trust costuma situar o seu surgimento com o início do regime feudal, por volta do século V. O isolamento dos povos em feudos foi essencial para que o trust se desenvolvesse. A propriedade da terra, figura de essencial destaque e importância para a época, desdobrava-se entre os servos, que detinham o seu domínio útil, responsáveis pela produção agrícola, e o senhor feudal, seu verdadeiro proprietário. Neste período, caso o servo viesse a falecer, o título que possuía (de uso útil da terra) era transmitido a seus herdeiros que, até completarem a maioridade, deveriam pagar impostos ao senhor feudal pelo uso da terra. Se não existissem herdeiros, o título voltava ao senhor feudal.

Desta forma, para buscar contornar a exigência de impostos aos herdeiros pelo senhor feudal, os servos enxergaram na "cessão de uso para terceiros" uma forma de se eximir dos referidos pagamentos. Assim, o servo, como cedente, transmitia ao cessionário a posição de titular da terra, para que pudessem usar conforme os interesses e critérios instituídos pelo próprio cedente, por determinado período de tempo, até que o herdeiro daquelas terras atingisse a maioridade. Esta prática, de cessão de direitos por tempo determinado e com poderes delimitados, ficou conhecida como use (uso), que se baseava na confiança de que o cessionário receberia a propriedade por tempo determinado e, depois, devolveria à pessoa indicada como beneficiária (o herdeiro do cedente quando completasse a maioridade). O use, na verdade, é uma das formas originárias do trust, que fundamentou posteriormente o seu reconhecimento e desenvolvimento jurídico.

Encontramos na baixa idade média outro acontecimento que contribuiu para o trust: as Cruzadas. Quando os cavaleiros cristãos partiam da Europa Ocidental em direção à Terra Santa e à cidade de Jerusalém, com retorno incerto, muitos entregaram seus bens à administração e garantia de pessoas de confiança.  

Somente no século XV, na Inglaterra, o Tribunal de Chancelaria (Chancellor) reconheceu a validade do use (instituto antecessor ao trust).1 Sucede que na Inglaterra a alienação inter vivos de terras era livre, podendo, inclusive, ser verbal, e não dependia do consentimento do senhor feudal. A prática se tornou popular e representou verdadeira evasão de impostos. No intuito de combater o problema, Henrique VIII, nos anos 1500, promulgou diversos estatutos sobre o tema, que culminou com a eliminação de qualquer possibilidade de se não pagar mais impostos pela transferência da propriedade. Dentre estes estatutos, o mais famoso deles foi o Statute of Uses 1536, que aboliu a possibilidade de se transmitir bens imóveis por testamento, tornando proprietários todos os beneficiários das terras, o que permitiu a exigência dos impostos. A medida, obviamente, não foi muito bem aceita, pois não só atingiu os servos, mas, também, diversos senhores feudais que se valiam dos uses. Como resultado, o monarca precisou ceder e promulgou o Statute of Wills 1540, que permitiu, pela primeira vez, a livre disposição de terras por testamento.

Os mencionados estatutos representam o maior impacto na evolução do trust. Com eles, o direito inglês verificou verdadeira flexibilidade no instituto da propriedade, que até então era contornada pelos uses. E mais: foi em razão de omissões legislativas que o use evoluiu para o trust.2

O caminho para o reconhecimento do trust não foi fácil. O primeiro caso em que esta prática foi apreciada pela corte, mas ainda não aceita, foi Tyrrel's Case (1557). Neste caso, a viúva concedia seus imóveis em benefício de seu filho, que por sua vez, os recebia e, em ato contínuo, os concedia em benefício de volta para sua mãe. Aqui, a Court of Wards and Liverires, criada por Henrique VIII, especialmente para casos de uses, entendia que o primeiro era abrangido e protegido pelo Statute of Use 1536, porém o segundo era nulo, proibindo que a mãe fosse beneficiária de seu próprio filho.

Posteriormente, em 1560, um outro caso, com um viés político, representou o primeiro reconhecimento do segundo e sucessivo use praticado. Trata-se do caso Bartie v Herenden. Neste caso, Katharine Bartie, Duquesa de Willoughby d'Eresby, instituiu use em favor de seu advogado, Walter Herenden, que se tornou beneficiário de todo seu patrimônio. A constituição do use se deu porque a Duquesa precisou fugir da Inglaterra. Receosa por eventual perseguição pela rainha Maria I (Bloody Mary) - famosa por perseguir protestantes - a Duquesa desejou se precaver e proteger seu patrimônio, constituindo o use em favor de seu advogado (Herenden). Posteriormente, a suspeita se confirmou, tendo a rainha Maria I determinado o confisco de todos os seus bens, que só não se concretizou, efetivamente, em razão do use realizado.

A Duquesa e seu advogado, no entanto, constituíram um segundo use, de modo que os bens seriam administrados pelo advogado até que a Duquesa retornasse para a Inglaterra, quando então devolveria seu patrimônio.

Porém, Herenden não cumpriu com o segundo use instituído, o que ensejou a irresignação da Duquesa contra seu advogado. Aqui, desta vez, a corte inglesa reconheceu o segundo use realizado - afinal, tratava-se da Duquesa - sendo determinado ao advogado que devolvesse todos os bens que ilicitamente havia retido, já que, até o momento, o segundo use constituído era considerado nulo.

O caso levantou a questão de eventuais abusos que poderiam vir a ser cometidos pelos administradores (trustees) dos bens. O advogado Herenden foi o protagonista desta preocupação, que ensejou a inovação pela corte inglesa em se reconhecer o segundo use instituído, que culminou no reconhecimento jurídico do próprio trust.

Em linhas gerais, o trust apresenta a seguinte estrutura básica: o instituidor do trust (settlor), que através da sua declaração de vontade, entrega os seus bens a um terceiro, o trustee, que irá fazer a sua administração em benefício de outro, o beneficiary.  Quando o instituidor realiza o trust, ele deixa de ser proprietário dos bens, pois ocorre verdadeira transmissão da propriedade para o administrador (trustee), não podendo mais reclamar ou exercer qualquer pretensão sobre eles.

Normalmente, o settlor fixa e determina algumas obrigações e condições para o trustee (administrador). Não se trata aqui de regra intransponível, pois o trust pode ser criado sem qualquer ressalva ou comando específico, porém é muito comum, por exemplo, que o settlor determine que os bens entregues ao trustee só sejam repassados ao beneficiary quando este alcançar certa idade, quando constituir matrimônio, quando completar os estudos ou, até mesmo, quando o próprio settlor vier a falecer.

Uma vez constituído o trust, verifica-se uma espécie de multipropriedade construída na common law, que não possui figura semelhante no ordenamento brasileiro. A propriedade é dividida em legal title e em equitable title, isto é, o trustee passará a ter o legal title, como se proprietário originário fosse daqueles bens, enquanto o beneficiary terá o equitable title ("titularidade equitativa sobre o bem"), que para o Direito Inglês consiste no direito de perceber os seus frutos. Embora esse modelo de trust se apresente como mais comum, existem outros. Pode ocorrer do settlor nomear a ele próprio como trustee, administrando aquela massa de bens em favor de um terceiro (o beneficiary), ou ainda, pode nomear um terceiro como trustee, mas se coloca, ele próprio, como beneficiary.

Com o legal title dos bens confiados em trust, cabe ao trustee diversos deveres, que por sinal, foram construídos através da jurisprudência inglesa. O trustee, apesar de proprietário dos bens, precisa administrá-los com a devida cautela e diligência, com imparcialidade, sem poder delegar sua função a terceiros.

Precisa ainda seguir e respeitar todas as obrigações e condições estipuladas pelo settlor, tudo, sob pena de responsabilidade. O trustee pode, ou não, ser remunerado pela sua função de administrador, a depender do que for estipulado pelo settlor. Caso não cumpra, poderá deixar de ser trustee, devendo, ainda, ressarcir eventuais honorários que recebeu, assim como pode ser condenado a indenizar o beneficiário do trust.

A quebra da confiança - descumprimento das condições e obrigações estipuladas em relação aos bens deixados em trust para o trustee -, representa a figura denominada breach of trust, que nos ordenamentos jurídicos nos quais é reconhecido, pode, inclusive, trazer repercussões cíveis e criminais. Ações fraudulentas por parte do trustee, com eventual apropriação indevida dos bens confiados em trust, são reconhecidas como crime nos Estados Unidos da América, conforme caso State v McCann, analisado pela Suprema Corte do Estado da Carolina do Sul em 1932.

Caso o instituidor do trust queira garantir maior segurança, pode ser nomeado uma quarta pessoa nesta relação, o protector (protetor), que irá fiscalizar a atuação do trustee para que se tenha maior segurança de que este patrimônio chegará, em definitivo, e bem administrado, às mãos do beneficiário:

 Além de toda esta sistemática, importante destacar a principal característica do trust, que, na nossa opinião, seja a que mais faça despertar o interesse por este instituto: o patrimônio de afetação. O bem, ou conjunto de bens, confiados em trust, passam a integrar o patrimônio do trustee e não podem ser alcançados por seus credores, da mesma forma que, eventuais credores do settlor, também não poderão mais se valer destes bens para satisfazerem eventual crédito que possuem.

Todo o patrimônio objeto do trust está afetado ao trustee constituído, que só poderá vir a responder por dívidas contraídas em razão do próprio trust criado. Existe verdadeira separação e proteção do patrimônio. A common law permite que a pessoa tenha diferentes esferas de patrimônio, nas quais uma não se comunica com a outra. Portanto, seja credor do instituidor do trust, ou do trustee, o patrimônio confiado em trust está a salvo de qualquer de seus credores originários. Esse aspecto do trust representa enorme interesse na sua instituição.

Assim, de modo geral, o settlor constitui o trust através de uma declaração de vontade, denominada trust deed, que irá prever e reger todas as condições e orientações para o trustee administrar o bem dado em confiança, para que, em outro momento, ele seja entregue ao beneficiário, existindo verdadeira separação e proteção do patrimônio em razão de sua afetação.

Esta declaração de vontade que faz surgir o trust é objeto de controvérsias. É o que procuramos abordar na próxima publicação desta Coluna.

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1 DAVID, René. O Direito Inglês. 2ª edição. Editora Martins Fontes : São Paulo, 2000, p. 102.

2 OLCESE, Tomás. Formação histórica da real property law inglesa: tenures, estates, equity & trusts. YK Editora : São Paulo, 2016, p. 156.