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Pirataria, adequação social e insignificância

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Atualizado às 09:08

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio

O entendimento do STJ sobre a criminalização do mercadeio de produtos que infringem direitos autorais acaba de ser sumulado a partir de um conjunto de 11 decisões recentes da Corte que afastam a aplicabilidade do princípio da adequação social para esses casos. A súmula 502 veio a público com o seguinte teor: "Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao crime previsto no art. 184, § 2º1, do CP, a conduta de expor à venda CDs e DVDs piratas".

As diversas decisões2 de varas criminais e tribunais estaduais que absolviam vendedores de mercadoria irregular reclamavam a aplicação do princípio da adequação social com fundamento na alegação de que as autoridades públicas haveriam deixado de reprimir o crime de pirataria país afora, e que a sociedade já não via como passível de reprimenda o comércio desses produtos ilegais. A aplicação desse princípio permitiria, em tese, ao juiz, negar vigência ao dispositivo criminalizante para absolver o réu, mesmo que sua conduta perfizesse com exatidão o comportamento sancionado na norma penal.

O compêndio de decisões3 a fundamentar a súmula 502, entretanto, revela outro entendimento nesses dois pontos centrais da discussão: rechaça a alegação de que o crime tipificado no 184, § 2º, do CP já não é mais objeto do exercício da persecução penal por parte do Estado, e retira do princípio da adequação social a capacidade de revogar norma penal. Ou seja, não só o STJ afirma que o crime segue sendo reprimido pelo Estado como declara que, ainda que assim não fosse, o princípio da adequação social não poderia, por si, revogar o tipo penal.

O Supremo Tribunal Federal, em recentes decisões também tem demonstrado esse entendimento relacionado à tipicidade do crime em questão, ressaltando três dimensões de implicações advindas de sua prática: a do titular do direito autoral violado, a dos cofres públicos e a dos comerciantes que legitimamente desempenham a atividade de distribuição4. Em conjunto com a afirmação de que a conduta do artigo 184, § 2º, do CP segue sendo objeto de represão estatal, menciona esses itens como aptos a infirmar a tese de que estaríamos diante de um tipo que se tornou letra morta.

Ainda que brevemente, analisemos alguns aspectos da adequação social como princípio, seus fundamentos e funcionamento ao lado do princípio da insignificância para levantarmos questões relacionadas à sua aplicabilidade no ordenamento pátrio.

O princípio da adequação social5, que, como visto, tem servido de tábua de salvação aos comerciantes de itens produzidos em violação a direitos autorais, é um dos princípios limitadores da pretensão punitiva do Estado, ao lado de outros como o princípio da insignificância, da reserva legal, da fragmentariedade do direito penal, da humanidade das penas e da irretroatividade da lei penal, todos moldados na esteira do desenvolvimento histórico do garantismo penal e das salvaguardas do indivíduo contra o Estado.

Seus fundamentos são de simples enunciação: a aceitação social de uma conduta revela-lhe um conteúdo valorativo incompatível com a criminalização de um delito. A reprovação social, portanto, deveria ser um patamar de valoração negativa mínimo para que determinada conduta pudesse ser punida pelo direito penal.

Alguns doutrinadores nacionais mencionam como exemplo de aplicação desse princípio o fato de que a conduta de furar o lóbulo da orelha de uma criança para enfeita-la com um brinco não é passível de punição, embora formalmente se enquadre no tipo penal de lesão corporal.

A construção do princípio também tem relação com a definição do conceito de tipicidade material. Enquanto a tipicidade puramente formal se esgota na execução dos comportamentos descritos no tipo penal, a tipicidade material investiga a existência de valoração negativa daquela conduta concretamente analisada e do resultado que ela produz, buscando um vínculo entre conduta e lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal.

Um dos problemas apontados pela doutrina na aplicação desse princípio em qualquer caso é a sua vagueza6. Como se mediria a aceitação social de uma determinada conduta? Como se chega à conclusão de que um determinado comportamento passou a ser aceito socialmente? Com que segurança a aplicação da norma seria afastada? Essa imprecisão é um dos motivos pelos quais parte respeitável da doutrina internacional nega aplicabilidade consistente ao princípio6.

Outro ponto bastante relevante a ser considerado na eventual aplicação desse princípio como catalizador da descriminalização de certas condutas é a investigação dos motivos que desaguam na aceitação social. Trata-se efetivamente de uma mudança estrutural no sistema de valores de um determinado grupo social ou concorreram fatores indesejados como a incapacidade estatal de efetivamente aplicar o direito penal?

A livre perpetração de uma determinada atividade ilícita em sociedade pode, muitas vezes, ser o reflexo da incapacidade de repressão dessa conduta pelo Estado em um dado momento de sua história, muito embora a sociedade ainda perceba na conduta um enorme desvalor. Assim, a prática reiterada de um crime não significa necessariamente que ele se tornou socialmente adequado. Se tem sido reiterada e impunemente praticado sem atuação efetiva do Estado, e, em nome dessa impunidade passa-se a considerá-lo socialmente adequado, cria-se uma situação em que um bem jurídico que o Estado decidiu proteger quando estatuiu as normas penais perde proteção criminal pela ineficácia de atuação do próprio Estado. Autoriza-se que a política criminal e sua ratio deem lugar à ineficácia de sua execução. Não nos parece que andaríamos bem.

Outra questão que decorre da impunidade crônica é a perda cumulativa dos efeitos secundários da aplicação da pena na percepção social da punibilidade de um determinado delito. Bem se sabe que uma das funções da pena é a prevenção geral - o crime punido representa um desestímulo à perpetração da conduta. A ausência dessa punição motiva sua prática sempre que o delito representar ganhos de algum gênero ao delinquente.

Assim, se atingimos um ponto em que uma determinada conduta típica aparenta ser socialmente aceita, é bom que antes de descriminaliza-la verifique-se efetivamente se esse movimento representa uma estrutural mudança valorativa da conduta ou se esta-se diante de uma situação causada por externalidades indesejadas que não advêm de uma nova ordem social, mas antes a transformam e influenciam na direção oposta daquela previamente planejada.

Caminhando sempre lado a lado com o princípio da adequação social, encontramos o princípio da insignificância que, assim como seu congênere já delineado, limita a capacidade estatal de punir conduta tipificada que, perfeitamente praticada do ponto de vista formal, não encontra suficiente materialidade delitiva para merecer a remprimenda estatal. Essa falta de substância delitiva que no princípio da adequação social era ausência de valoração negativa, é, no princípio da insignificância, ausência de lesividade.

Assim, ainda que um determinado tipo seja praticado, se a conduta concreta não causou lesão minimamente relevante ao bem jurídico que a norma buscava proteger, o princípio determina que não há tipicidade material na conduta, sem prejuizo da constatação da tipicidade formal. É o famoso crime de bagatela.

Não se trata, entretanto, de declarar-se determinado tipo como deslocado da realidade valorativa da sociedade em um determinado momento, e não se trata de indicar tendências normativas abstratas. O princípio da insignificância tem, ao contrário, vocação absolutamente casuística. Seu reconhecimento em um caso não determinará a exclusão de uma conduta qualquer da esfera de incidência do tipo penal.

Os critérios balizadores da aplicação desse princípio foram lançados doutrinariamente e consolidados na última década na interpretação normativa do STF. Em voto estrutural7, o ministro Celso de Mello fala em quatro vetores que o orientam: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a ausência de periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Vejam-se alguns exemplos de análise do princípio em casos de violação de direito autoral:

"Sem embargo, não se pode admitir, em primeiro lugar, que a ação analisada possa ser afastada em nome do princípio da insignificância. Equivocado, no ponto, o argumento de que o impacto econômico da conduta seria apenas de R$320,00 (trezentos e vinte reais), valor obtido a partir do preço cobrado pelo próprio infrator da norma penal. Em verdade, o impacto econômico da violação ao direito autoral deve ser medido pelo valor que os detentores das obras deixam de receber ao sofrer com a "pirataria", e não pelo que os falsificadores obtêm com a sua atuação imoral e ilegal. Nesse cenário, inviável afirmar que a conduta da paciente apresente diminuta lesividade, a qual somente se sustenta sob a ótica distorcida da linha defensiva". (STF HC 115.986/ES Rel Min. LUIZ FUX - JUN/2013)

"HABEAS CORPUS . PENAL. VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL (ART. 184, § 2º, DO CÓDIGO PENAL). VENDA DE CD'S E DVD'S PIRATEADOS. ADEQUAÇÃO SOCIAL DA CONDUTA. INEXISTÊNCIA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. INVIABILIDADE. PRECEDENTES DO STJ E DO STF. 1. O tão-só fato de estar disseminado o comércio de mercadorias falsificadas ou 'pirateadas' não torna a conduta socialmente aceitável, uma vez que fornecedores e consumidores têm consciência da ilicitude da atividade, a qual tem sido reiteradamente combatida pelos órgãos governamentais, inclusive com campanhas de esclarecimento veiculadas nos meios de comunicação. 2. A quantidade de mercadorias apreendidas (90 DVD's e 130 CD's) demonstra a existência de efetiva lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal, afastando a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância. 3. Ordem denegada". (HC 159.474/TO, Rel. Min. LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, DJe 06/12/2010).

"Reconhecidas a reincidência e a habitualidade da prática delituosa, a reprovabilidade do comportamento do agente é significativamente agravada, sendo suficiente para inviabilizar a incidência do princípio da insignificância. Precedentes". HC 100.240/RJ Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, SEGUNDA TURMA, 7/12/2010)

Há, evidentemente, muito de política criminal na aplicação do princípio da insignificância, que deve permitir ao legislador e ao judiciário manterem um corpo ordenativo capaz de atingir os objetivos do Estado em um dado momento. Assim, por exemplo, passando-se a reiteradamente considerar uma determinada conduta como abrigada nos limites do princípio da insignificância, a eventual multiplicação descontrolada dessa conduta certamente passará a representar lesão significativa ao bem jurídico tutelado se considerado amplamente, autorizando-se o judiciário a evoluir seu entendimento para deixar de considerar atípica determinada situação.

__________

1Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

§ 1o Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 2o Na mesma pena do § 1o incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente.

2Mencionem-se os tribunais do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Acre, Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais como prolatores de decisões que acolhem o entendimento de aplicabilidade do princípio da adequação social para eximir vendedores de produtos piratas da aplicabilidade do artigo 184.

3Nesse sentido, particularmente relevantes os seguintes trechos: "O fato de, muitas vezes, haver tolerância das autoridades públicas em relação a tal prática, não pode e não deve significar que a conduta não seja mais tida como típica, ou que haja exclusão de culpabilidade, razão pela qual, pelo menos até que advenha modificação legislativa, incide o tipo penal, mesmo porque o próprio Estado tutela o direito autoral. [...] Destaque-se, ainda, que a "pirataria" é combatida por inúmeros órgãos institucionais, como o Ministério Público e o Ministério da Justiça, que fazem, inclusive, campanhas em âmbito nacional destinadas a combater tal prática. [...] Na mesma linha de pensamento, colaciono os ensinamentos de Cezar Roberto Bitencourt: (...) a eventual tolerância das autoridades ou a indiferença na repressão criminal, bem como o pretenso desuso, não se apresentam, em nosso sistema jurídico penal, como causa de exclusão da tipicidade. A norma incriminadora não pode ser neutralizada ou considerada revogada em decorrência de desvirtuada autuação das autoridades constituídas (art. 2º, caput, da LICC)". (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial . vol. 4. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 162)". (REsp 1.193.196 - MG 2010/0084049-5)

4EMENTA: DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL EM HABEAS CORPUS (CRFB, 102, II, a). CRIME DE VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL (CP, ART. 184, §2º). VENDA DE CD'S E DVD'S "PIRATAS". ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA POR FORÇA DOS PRINCÍPIOS DA INSIGNIFICÂNCIA E DA ADEQUAÇÃO SOCIAL. IMPROCEDÊNCIA DA TESE DEFENSIVA. NORMA INCRIMINADORA EM PLENA VIGÊNCIA. RECURSO ORDINÁRIO NÃO PROVIDO. 1. Os princípios da insignificância penal e da adequação social reclamam aplicação criteriosa, a fim de evitar que sua adoção indiscriminada acabe por incentivar a prática de delitos patrimoniais, fragilizando a tutela penal de bens jurídicos relevantes para vida em sociedade. 2. O impacto econômico da violação ao direito autoral mede-se pelo valor que os detentores das obras deixam de receber ao sofrer com a "pirataria", e não pelo montante que os falsificadores obtêm com a sua atuação imoral e ilegal. 3. A prática da contrafação não pode ser considerada socialmente tolerável haja vista os enormes prejuízos causados à indústria fonográfica nacional, aos comerciantes regularmente estabelecidos e ao Fisco pela burla do pagamento de impostos. 4. In casu, a conduta da recorrente amolda-se perfeitamente ao tipo de injusto previsto no art. 184, §2º, do Código Penal, uma vez foi identificada comercializando mercadoria pirateada (100 CD's e 20 DVD's de diversos artistas, cujas obras haviam sido reproduzidas em desconformidade com a legislação). 5. Recurso ordinário em habeas corpus não provido". (STF HC 115.986/ES Min. Luiz Fux - JUN/2013)

5O desenvolvimento do princípio é atribuído a Hans Welzel em seu Studien zum system des strafrechts de 1939.

6O sempre excepcional Cezar Roberto Bitencourt, em seu Manual de Direito Penal, menciona como detratores Zaffaroni, Rodriguez Mourullo, Muñoz Conde e Jescheck (BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. V1. São Paulo, Saraiva, 2000. p18).

7HC 84.412 min. Celso de Mello, DJ 19.11.04