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A guerra de Putin e um certo ex-capitão

sexta-feira, 4 de março de 2022

Atualizado às 08:07

O declínio dos EUA na cena externa é uma má notícia para o mundo. 

Na esfera da política internacional prevalece a força, seja econômica ou militar (ou as combinações destas) sobre a ordem jurídica e institucional. A despeito da relevância das instituições multilaterais e do ordenamento relativamente rico em normas, a análise dos eventos fora das jurisdições dos Estados Nacionais é uma frondosa colcha de retalhos que retrata o amplo desrespeito das nações centrais à Lei e à Ordem internacional. Na história moderna, do Império Britânico ao Império Norte-Americano o que se verifica é que reina o caos na cena externa, calcado nos interesses mais variados das nações que dispõem de aparatos para agir frente aos inimigos históricos e ocasionais.

A iniciativa bélica russa frente à Ucrânia é mais uma das ocorrências que atraem as atenções do mundo e que demonstram que a desordem internacional é gigantesca. Na linguagem do teórico Hans Morgenthau (1904-1980), as relações internacionais se dão essencialmente pela força dos agentes que a operam. Com efeito, a visão caótica das relações deriva da impossibilidade civilizatória de se efetivar um ordenamento jurídico digno da própria condição humana. São as sociedades em seus cotidianos ordinários as maiores vítimas desta realidade.

Por óbvio, Vladimir Putin e seus oligarcas de plantão teceram um enredo complicado em relação à Ucrânia. Afinal, mesmo que haja justificativa geopolítica legítima e ameaçadora aos interesses e à segurança da Rússia e seus aliados, a guerra é o registro do fracasso da política e da diplomacia. Ademais, é a afirmação política interna de Putin, baseada em estruturas internas autoritárias, oligárquicas e militaristas. Não é necessário se fazer apurada contabilidade do poderio que a OTAN assumiu nas últimas décadas pós-URSS para encontrar as razões da reação de Putin. A Ucrânia é para a Rússia a Cuba dos EUA sob Kennedy. Difícil imaginar que a América aceitasse coisa equivalente.

A boa notícia desta (nova) guerra é que a opinião pública interna dos países, sobretudo os democráticos, tem um peso novo a influenciar o andamento dos fatos políticos, econômicos e militares. Os cidadãos dos países mais democráticos, de posse de seus celulares, têm exercido relevante e surpreendente poder nas decisões dos líderes dos países. Mesmo que se critique o fato de que há "ares eleitoreiros" em certas decisões de presidentes como Macron e Biden, bem como, de primeiros-ministros como Boris Johnson, é melhor que seja assim mesmo: o voto pesando sobre o gatilho. A comparação é fácil: Putin não tem este limite interno. Que pena.

É a opinião pública que está despejando esperanças para que a Ucrânia tenha uma vitória política frente ao seu provável fracasso militar. Afinal, é notável que o isolamento da Rússia tenha ocorrido em velocidade "internética". Em uma semana pós deflagração da guerra, verificou-se um conjunto bem articulado de medidas econômicas cujos efeitos são dramáticos para Putin e para a Rússia. Do congelamento das reservas internacionais do país até a exclusão de seus atletas de competições internacionais, ninguém pode negar que as coisas ficaram muito difíceis para o ex-KGB Vladimir Putin. Notadamente, a Europa, o continente mais fragmentado em termos de política externa, a reação conjunta foi espetacular para os padrões de Bruxelas, a capital da União Europeia. Não deixa de ser raro ver a Europa agindo unida e isto faz falta na cena internacional. Até mesmo os chineses, registraram um salto ornamental gigantesco em suas ações: de apoiadores de primeira hora passaram a arrependidos de rara hora. A China sentiu os ventos das maiores democracias e viu que tinha mais a perder que a auferir.

De outro lado, não deixa de ser visível que a América de Biden demonstra que a sua opinião pública persiste gravitando sob velado desinteresse pelo que acontece por fora de suas fronteiras. Não à toa, Donald Trump, ele mesmo!, persiste firme no debate interno do país. Logo ele, sobre quem repousam suspeitas consistentes de que teve apoio logístico na sua eleição, o que seria razão para os afagos que trocou com Putin durante a sua administração. Os extremos se parecem, não é mesmo?

O declínio dos EUA na cena externa é uma má notícia para o mundo. As oscilações da política externa americana sempre foram razão para atrair mais problemas que soluções. Os exemplos das duas guerras mundiais são os mais gritantes, mas todas as crises nas quais os EUA agiram para se fortalecer sozinhos acabaram por findar em fracassos militares e/ou políticos. De Cuba à invasão do Iraque, passando pelo Vietnã (sem maior fracasso), a fraqueza dos EUA foi causa da instabilidade do mundo. Agora, com a China nos calcanhares do Ocidente, as dúvidas são ainda maiores. Note-se que de Pequim não brotam identidades culturais e de valores com o Ocidente. Impera na pauta chinesa apenas o seu pragmatismo econômico, sempre perigoso quando se analisa a agenda multilateral do mundo moderno.

Para o Brasil, que, sob o ex-capitão, se consolidou como um anão no sentido econômico e político e um pária no cenário internacional, há um rompimento, esperado há certo tempo, com as tradições da diplomacia brasileira. Mesmo quando o Brasil era muito menos importante externamente como nos anos 1960, houve capacidade política de se articular uma política consistente e própria nas relações internacionais. Da "Política Externa Independente" de San Tiago Dantas até as articulações do governo Lula para alcançar maior visibilidade nos eventos externos, a tradição do Itamaraty sempre foi a de construir uma política externa de Estado que transpassassem os limites das administrações governamentais. O atual governo não apenas rompeu esta tradição como foi comunicar ao mundo uma visão obtusa e medíocre do presidente sobre os fatos ao redor da guerra entre Rússia e Ucrânia. Ainda apareceu frente às lentes da mídia internacional para apertar a mão do irmão siberiano. De volta de Moscou, o messias sem causa, foi dar um abraço apertado em Viktor Órban, o líder húngaro que ostenta um regime autoritário e racista.

É realmente uma pena que a opinião pública brasileira não tenha ainda se juntado com as dos principais países do mundo para enfrentar Putin na internet. Na desesperança que reina no país em relação à política e aos candidatos postos a disputar a cadeira do Planalto, o ex-capitão sobrevive com um quarto da opinião pública aos seus pés e outro tanto ainda podendo apertar o "confirma" na cabine eleitoral para jogar o país em mais incertezas. Mas, isto fica para outro artigo.