COLUNAS

Como nunca neste país

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Atualizado às 13:14

A polarização não é propriamente entre a esquerda e a direita, mas entre a democracia e o autoritarismo.

O resultado da corrida presidencial no próximo dia 30/10/2022 é incerto, não apenas pelo que demonstram as pesquisas de opinião, mas, sobretudo, em função do relativo desconhecimento sobre os efeitos da disseminação das fake news provocarão (ou não) sobre os eleitores somados aos desempenhos dos candidatos nos debates televisivos. A mídia reflete o andamento eleitoral sem que seja capaz de dirimir o tema para que o leitor possa se inteirar sobre as tendências em curso.

Observado o ambiente, não é razoável elaborar conjecturas sobre o futuro imediato, sendo possível ter uma leitura interpretativa e crítica sobre o futuro mediato.

A grande novidade é que o bolsonarismo conquistou solidez parlamentar e consistência de sua linguagem na campanha eleitoral, mesmo que isto tenha sido construído sobre o pântano das fake news e uma gestão governamental sem grandes conquistas. Conforme elaboramos em nosso último artigo ("A vulnerabilidade tomou conta do segundo turno" ), "o bolsonarismo permanecerá como a frente mais homogênea e preponderante na divisão do poder político". Ou seja, a conquista eleitoral do atual presidente e seus apoiadores é significativa e consistente, mesmo que diante de uma vitória oposicionista no segundo turno.

É necessário que o cenário político do país seja avaliado face à "insurgência" do ex-capitão contra o status dos valores políticos, culturais, religiosos e sociais, bem como, a demanda reprimida e interessada das elites por um liberalismo caboclo que estranhamente combina a aspiração de mais liberdade de iniciativa com a preservação de interesses privados dentro do Estado grande.

Depois do longo período de reconhecimento amplo dos valores e direitos fundamentais consolidados na Constituição de 1988, ingressamos em 2018 em novo momento no qual os fatos políticos começaram a concretamente conspirar contra os preceitos constitucionais. Da crise institucional que emergiu em meados da década passada passamos a um ambiente de enorme vulnerabilidade nas atuais eleições.

O bolsonarismo se oferece e se constitui como uma espécie de antibiótico contra a desordem que de muitas formas ele mesmo cria e dá propulsão. O ativismo deste movimento é bastante saliente, conforme demonstram o vigor das manifestações de seus adeptos. Até o presente, está claro que o ativismo a partir de causas genéricas e desconexas, mesmo que absurdas do ponto de vista de suas causas e consequências, é a principal razão de ser do bolsonarismo. De agora em diante, este movimento político começa a expressar com mais clareza e melhor elaboração as suas antipatias e intolerâncias. Interessante que, se no passado a práxis deste tipo de movimento radical era militar, agora a violência é praticada a partir do denominado mundo virtual e em rede.

Dentre as elaborações políticas do bolsonarismo, três se destacam: o moralismo dos costumes, a religião como forma de expressão política e a aversão radical a um "socialismo imaginário". Vale notar que estas construções ou ideias não foram moldadas de forma articulada e com a observância da consistência e coerência internas. Muito menos se identifica a existência de documentos e manifestos a validar e corroborar o pensamento e a ideologia do movimento. De fato, estamos diante de um "sistema de crenças" que usam, ao invés das armas, a difusão de falsas notícias e que pretende subjugar os que não concordam com o seu "modo de ser" por meio da tomada das instituições do Estado. Vale ressaltar que as Forças Armadas foram pouco a pouco submetidas a este processo nos últimos quatro anos, via a intervenção direta ou por meio da sua utilização direta no exercício do governo civil.

O contraste da forma de ação política do bolsonarismo frente aos meios tradicionais de coerção autoritária (violência, por exemplo) é que esta coerção não se dá pelo desencadeamento aberto à ordem, mas pelo uso, em geral, da própria estrutura institucional e jurídica. De agora em diante, com o apoio reforçado e consistente no Congresso, o atual presidente terá mais "armas" para agir. Nenhuma dúvida disso.

Com efeito, a representação política deve ser minorada pelo engrandecimento da figura presidencial, a supervisão dos poderes aparelhada pelos seus apoiadores e os princípios fundamentais relativizados pelo moralismo, religiosidade e libertarismo caboclo. Os ritos e procedimentos não devem ser completamente institucionais, mas cada vez mais personificados pelo líder do movimento.

O reconhecimento dos contornos e cenários acima distintos não parece ser claro aos eleitores do próximo domingo, em geral, e aos do bolsonarismo, em particular. Todavia, os elementos radicais deste movimento estão absolutamente disponíveis: (i) a ofensividade aos seus opositores que não são considerados "adversários", mas "inimigos", (ii) a preferência dos apoiadores por um Estado autoritário, (iii) a não-aceitação do pluralismo e da diversidade da nação, (iv) a valorização da diferença e não da igualdade, (v) a transformação da realidade factual em um mundo virtual estilizado por slogans e narrativas, (vi) a propagação de factoides e mentiras, dentre os principais.

Não faz sentido buscar equivalência simétrica entre o bolsonarismo de agora e o fascismo ou nazismo do passado. O Brasil é outro país e o contexto histórico bem diferente. De outro lado, o bolsonarismo não impede que se retire o foco sobre a sua essência de sorte a verificar a sua natureza. Considerada a crise política em torno da democracia ao redor do globo, é revelador o que aconteceu nos EUA sob Donald Trump, por exemplo. Não se trata claramente de um movimento autoritário? Há semelhanças com o Brasil?

Da mesma forma, a linguagem do ex-capitão em relação ao STF ou os seus comícios no sete de setembro não aproximam o presidente do que ocorreu no fascismo?

A prática de seus nomeados às posições de Estado (STF, MPF, agências, estatais, etc.) e de seus apoiadores no parlamento não é conivente e submetida ao interesse pessoal do presidente?  O uso dos recursos do Estado não serve aos interesses do presidente?

Ninguém pode sublimar os erros da oposição, de esquerda ou direita, ao bolsonarismo. Sem dúvida, houve práticas nefastas e graves e em desacordo com a Lei em outras administrações da atual oposição. Ademais, a relativamente frágil oposição ao bolsonarismo e a subestimação das transformações econômicas e sociais do país em seus programas políticos também são causas diretas para o que ocorre neste processo eleitoral e que se propagará nos próximos anos.

Ocorre que estamos diante de verdadeiro impasse a partir da formação de uma aglomeração política mais consistente e organizada que pode conspirar gravemente contra os princípios democráticos e os direitos fundamentais - como dissemos acima, este processo pode ser inclusive construído por meio dos procedimentos legais necessários à sua realização. A polarização não é propriamente entre a esquerda e a direita, mas entre a democracia e o autoritarismo. Este retrocesso já contempla o primeiro passo que foi a vitória significativa do bolsonarismo nas eleições parlamentares e o seu efeito será maior ou menor se e quando se formar uma maioria no próximo dia 30 que possa mitigar e eliminar os riscos autoritários. A radicalização ganha dinâmica. É preciso barrá-la.