COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Política, Direito & Economia NA REAL >
  4. Granularidade política, estagnação econômica e social e o grande risco

Granularidade política, estagnação econômica e social e o grande risco

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Atualizado às 07:46

Caminhamos para o final do ano, o primeiro do mandato do Presidente Lula. Já é tempo de avaliarmos os rumos do país, não propriamente com base nas realizações, as quais foram poucas, mas em função do momento, especialmente na economia e nas políticas sociais.

Do ponto de vista político, a configuração e a estratégia do governo parecem ser a de apaziguar as relações políticas e sociais em torno de duas ideias básicas: (i) a valorização da democracia como meio necessário e melhor para o progresso do país e (ii) a valorização da interlocução com o Congresso Nacional e, em menor medida, com os entes federativos.

No que se refere à defesa da democracia o governo se coloca na posição de portador das virtudes necessárias à efetividade do jogo democrático. Da história de Lula à postura de diálogo e aceitação das diferenças ideológicas, tudo se tornou meio de viabilização da imagem de um governo democrático.

De todo modo, é o papel saneador exercido pelo Judiciário em relação ao governo anterior que é mantida e propagada a visão restauradora do atual governo no que tange à democracia. Está claro que o saneamento promovido pelo TSE e pelo STF está inserido no contexto da crise institucional do país, marcada pelas disfuncionalidades dos poderes da República. Especificamente no que se refere à defesa democrática o papel do Judiciário é fundamental diante do vácuo deixado pelo Legislativo e Executivo durante o governo do ex capitão - não devemos esquecer que, mesmo diante de todas as mazelas produzidas por Bolsonaro e seus apoiadores, ele sempre esteve a salvo do impeachment e construiu uma base política regada a emendas secretas e fundos partidários.

Ainda na arena política, Lula quis repetir a fórmula anterior (de 2003 a 2010) de alojar aliados nas franjas do governo e, daí, obter o apoio congressual necessário para que a administração funcionasse e, quiçá, andasse para frente. Esta estratégia foi suficiente para barrar ímpetos contra o governo, mas foi incapaz de dar propulsão aos projetos formulados na Esplanada dos Ministérios e no Palácio do Planalto. A razão central para que esta iniciativa de Lula não funcionasse a contento deriva do fato de que os alojados no Executivo não têm "comandados" no Congresso, mas "aliados oportunísticos". A fragmentação política no Brasil não é apenas de partidos, agora é de subgrupos que se organizam e reorganizam entre si conforme a pauta, das causas identitárias até as econômicas. Da fragmentação reinante desde a redemocratização chegamos à "granularidade política".

A alternativa de Lula neste cenário de granularidade é ceder mais poder para mais grupos políticos, não mais nas franjas do governo, mas no seu coração: não é à toa que toda a direção da Caixa Econômica Federal é cedida ao Centrão. Também é notável que posições de Estado, tais quais as do Judiciário e do Ministério Público, tenham se tornado muito vulneráveis aos arranjos político-partidários. A demora do presidente em sancionar as nomeações aos cargos negociados é outro sinal deste processo.

O resumo deste quase um ano de governo é que (i) a segurança da democracia está associada ao medo da falta de apoio político ao governo e ao saneamento promovido pelo Judiciário, assim como, (ii) o controle da gestão administrativa é exercido pelas concessões cada vez mais relevantes e fragmentadas das funções do governo e do Estado. Por outro lado. as "garantias" para a efetividade da administração é cada vez mais complexas.

Há um fator mais incontrolável deste processo, mesmo que dele derive: o poder militar.

Ficou bastante evidente o papel das Forças Armadas na sustentação do governo Bolsonaro, sobretudo depois de conhecidos os eventos de 8 de janeiro. Militares de todas as patentes e de todas as Armas acabaram por assumir, ao longo dos quatro anos da administração Bolsonaro, papéis antes destinados aos civis. Duas justificativas sustentavam essa presença inédita desde a redemocratização: (i) a ausência de quadros técnico-burocráticos do partido (PSL) que elegeu o ex capitão e de outros partidos que compuseram a administração e (ii) o argumento espalhado na sociedade sobre a competência e, principalmente, a honestidade dos homens fardados. Do ponto de vista dos militares, os cargos traziam as vantagens salariais, para além dos soldos, e a visibilidade dos temas de governo e de Estado somada ao exercício de seus poderes concretos. Do Ministério da Saúde às agências reguladoras de diversas áreas, esse preenchimento resultou no devaneio de que há nos fardados ares redentores. Não à toa, há muitos eleitos com nomes associados às suas patentes a das Câmaras Municipais até o Congresso Nacional. Vale notar que as polícias ganharam o status de garantidoras da paz social e da ordem pública, a despeito do concreto agravamento da segurança pública, sobretudo nas grandes cidades brasileiras. Corporações antes relegadas aos seus papéis ordinários passaram a compor o "sistema bolsonarista": a título de ilustração, a polícia rodoviária exerceu funções jamais registradas, de guardiãs das fronteiras a combatentes contra o tráfico internacional de drogas. A tentativa de aparelhamento da Polícia Federal e da ABIN é outra expressão desse processo.

Diante da gradual e relevante evolução do poder militar dentro do governo de Bolsonaro dois fatos foram adicionados e este processo. O primeiro foi a tentativa de dar contornos de legitimidade política e jurídica à crescente participação dos militares na vida civil. O contorcionismo jurídico-constitucional versando sobre o "poder moderador" das Forças Armadas é a tradução mais visível deste intento. O segundo fato foi a escolha do vice-presidente de Bolsonaro para as eleições de 2022: Walter Braga Netto era a representação mais visível da preferência do então presidente pela ala mais radical do Exército sem que houvesse qualquer tentativa do candidato Bolsonaro de tornar a sua imagem mais "centrista".

Os eventos de 8 de janeiro podem ter sido inesperados, mas poderiam ser pressentidos. Afinal, o projeto bolsonarista sempre foi autoritário e isso foi evidente ao longo dos quatros anos de seu governo.

O bolsonarismo com Bolsonaro foi encalacrado pelo TSE e STF por meio de ações concretas, vigorosas e necessárias à defesa da democracia. A inelegibilidade de Bolsonaro e Braga Netto e a punição dos autores dos malfeitos de 8 de janeiro, contudo, não retiram do cenário político a percepção de parcela significativa da sociedade e da elite que as Forças Armadas podem preencher os vácuos políticos e, assim, cumprir a missão de construir uma nova ordem.

Se, de um lado, parte da sociedade vê-se dissociada da democracia e com visões messiânicas, a estagnação econômica e a ausência de reformas estruturantes acabam por engendrar frustrações que podem ser refletidas nas urnas a partir de 2024. Há uma extrema direita no país, momentaneamente acanhada pela força da reação institucional do governo, do Judiciário e da outra fração legalista e democrática da sociedade.

A dissociação entre o poder e a política no Brasil é grave e permanente. Este vácuo será ocupado inexoravelmente. A ausência de crescimento econômico e de reforma social inserida na granularidade do debate e da ação política são sinais norteadores para o retorno da radicalização vivenciada em 2022. Desta feita, a margem estreita da vitória da democracia nas últimas eleições pode mudar de lado.